ZBIGNIEW HERBERT O presente que cega
ZBIGNIEW HERBERT O presente que cega versões publicadas na ítaca 3
tradução do polaco de
Izabela Stapor, José Pedro Moreira e Tatiana Faia posfácio de
Ana María Sánchez Tarrío
Zbigniew Herbert O Presente que Cega tradução: Izabela Stapor, José Pedro Moreira e Tatiana Faia posfácio: Ana María Sánchez Tarrío fotografias: Ricardo Ávila revisão: Hanna Jakubowicz Batoréo © Katarzyna Herbertowa, Ana María Sánchez Tarrío, Izabela Stapor, José Pedro Moreira, Tatiana Faia, Edições Artefacto Agio cadernos de ideias, textos & imagens http://revistaagio.blogspot.pt/
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índice de Torrente de Luz, 1956 A Apolo...................................................................................p. 09 Sobre Tróia.............................................................................. p. 11 A Marco Aurélio......................................................................p. 13 Nikê que hesita........................................................................p. 14 Uma balada para que não pereçamos....................................... p. 16 de Estudo de Objecto, 1961 Apolo e Mársias....................................................................... p. 17 de Inscrição, 1969 Lugar....................................................................................... p. 20 Porquê os Clássicos..................................................................p. 21 de O Senhor Cogito, 1974 O Sr. Cogito e a pérola............................................................ p. 23 História do Minotauro............................................................ p. 24 O velho Prometeu................................................................... p. 25 Calígula...................................................................................p. 26 O Sr. Cogito discorre sobre a posição recta.............................. p. 28 posfácio Ana María Sánchez Tarrío, «O presente que cega»................... p. 33
A Apolo 1 Ia inteiro no rumor das vestes de pedra dava sombra láurea e brilho respirava suavemente como as estátuas e ia como uma flor ouvindo a sua própria canção erguia a lira à altura do silêncio submerso em si próprio as pupilas brancas como a corrente de um rio petrificado desde as sandálias até à fita nos cabelos
eu inventava os teus dedos confiava nos teus olhos
sem cordas o instrumento as mãos sem dedos devolve-me o grito jovem as mãos estendidas e a cabeça minha adornada com a colorida coroa do encanto devolve-me a esperança ó branca cabeça silenciosa 9 | Torrente de Luz, 1956
silêncio – o pescoço fendido silêncio – o canto quebrado 2 No primeiro fundo da juventude não tocarei eu mergulhador paciente agora apenas pesco torsos salgados feitos em estilhaços Apolo aparece-me em sonhos com o rosto do persa morto os vaticínios da poesia são enganadores tudo era diferente
diferente foi o fogo do poema diferente foi o fogo na cidade os heróis não regressaram da expedição não houve heróis salvaram-se os indignos
procuro a estátua submersa na juventude
ficou apenas o pedestal vazio o traço da mão buscando a forma
10 | Torrente de Luz, 1956
Sobre Tróia 1 Tróia ó Tróia um arqueólogo por entre os dedos deixará correr a tua cinza e um incêndio maior do que a Ilíada para as sete cordas – demasiado escassas as cordas necessário um coro um mar de lamentos um estrépito de montanhas uma chuva de pedras
– como conduzir a partir das ruínas a gente como conduzir a partir dos poemas o coro –
pensa o poeta perfeito como uma estátua de sal dignamente mudo – o Canto sairá ileso Saiu ileso de uma asa de fogo no céu límpido
Sobre as ruínas nasce a lua Tróia ó Tróia Está calma a cidade 11 | Torrente de Luz, 1956
O poeta luta com a própria sombra O poeta grita como um pássaro no vazio A lua repete a sua paisagem um metal suave nos escombros 2 Caminhavam pelos desfiladeiros de ruas do passado como por um mar vermelho de destroços e o vento levantava o pó vermelho fielmente pintava o ocaso da cidade Caminhavam pelos desfiladeiros de ruas do passado bafejavam em jejum na madrugada gelada diziam: longos anos passarão antes que aqui se construa a primeira casa caminhavam pelos desfiladeiros de ruas de outrora pensavam que viriam a encontrar uma pista na harmónica toca o aleijado acerca das tranças do salgueiro acerca da rapariga o poeta está calado chove
12 | Torrente de Luz, 1956
A Marco Aurélio Para o Professor Henryk Elzenberg Boa noite Marco apaga a luz e fecha o livro Já sobre a cabeça cresce o lamento de prata das estrelas é o céu que fala em outra língua é o grito bárbaro do terror que o teu latim desconhece é o medo eterno o medo sombrio começa pela frágil terra humana a bater-se E vencerá Ouves o rumor é a maré alta Destruirá as tuas letras a corrente imparável dos elementos até ruírem as quatro paredes do mundo e para nós – tremer ao vento e de novo soprar as cinzas agitar o éter morder os dedos procurar palavras vãs e arrastar connosco a sombra dos mortos melhor é então Marco que te despojes da paz e ergas a mão sobre a escuridade que trema ao bater nos cinco sentidos como numa lira débil o universo cego hão-de trair-nos o universo a astronomia os cálculos das estrelas e a sabedoria da relva e a tua grandeza demasiado grande e o meu choro Marco desamparado
13 | Torrente de Luz, 1956
Nikê que Hesita Nikê é mais bela quando hesita a mão direita bela como uma ordem apoia-se no ar porém as asas tremem pois ela vê um jovem solitário que segue o rasto de um carro de guerra por uma estrada cinzenta numa paisagem cinzenta de rochas e escassos arbustos de zimbro aquele jovem morrerá em breve agora mesmo o prato da balança do seu destino pende violentamente para terra Nikê sente um enorme desejo de se aproximar e beijar-lhe a testa mas teme que ele que não conhece ainda a doçura do carinho conhecendo-a pudesse fugir como os outros durante esta batalha então Nikê hesita e por fim resolve ficar na posição que lhe ensinaram os escultores 14 | Torrente de Luz, 1956
envergonhando-se muito por este momento de comoção sabe bem que amanhã de madrugada hão-de encontrar este jovem com o peito aberto os olhos fechados e com o amargo óbolo da pátria debaixo da língua rígida
15 | Torrente de Luz, 1956
Uma balada para que não pereçamos Aqueles que navegaram de madrugada mas nunca mais voltarão na onda deixaram o seu traço – no fundo do mar cai então uma concha bela como lábios petrificados estes que andavam pelo caminho de areia mas não chegaram às portadas embora avistassem já os telhados – e no sino do ar encontram abrigo e aqueles que só deixam órfão um quarto gelado alguns livros um tinteiro vazio uma folha branca – na verdade não morreram inteiramente por bosques de papel de parede avança o seu sussurro no tecto mora uma cabeça plana de ar água cal terra fizeram o seu paraíso o seu anjo de vento irá com a mão fazer pó dos seus corpos vão dispersar-se pelos prados deste mundo
16 | Torrente de Luz, 1956
Apolo e Mársias o exacto duelo entre Apolo e Mársias (o ouvido absoluto contra as escalas imensas) dá-se ao anoitecer quando como já sabemos os juízes deram a vitória ao deus fortemente amarrado à árvore perfeitamente arrancada a pele Mársias grita antes de o grito alcançar as suas altas orelhas descansa à sombra deste grito agitado por um arrepio de repugnância Apolo limpa o seu instrumento só em aparência a voz de Mársias é monótona e composta por uma vogal A na verdade conta Mársias a incomensurável riqueza do seu corpo 17 | Estudo de Objecto, 1961
calvas montanhas do fígado desfiladeiros brancos de alimentos sussurrantes bosques do pulmão doces colinas de músculos articulações fel sangue arrepio invernoso vento de ossos por sobre o sal da memória agitado por um arrepio de repugnância Apolo limpa o seu instrumento agora ao coro junta-se o monte de orações de Mársias essencialmente é o mesmo A só que mais profundo com a ferrugem adicionada isto ultrapassa as capacidades do deus de nervos de fibra sintética pela álea de gravilha de buxo plantada afasta-se o vencedor pensando se do uivo de Mársias não nasce com o tempo o novo ramo da arte – digamos – concreta de súbito aos pés cai-lhe um rouxinol petrificado vira a cabeça e vê 18 | Estudo de Objecto, 1961
que a รกrvore a que estava amarrado Mรกrsias estรก cinzenta totalmente
19 | Estudo de Objecto, 1961
Lugar regressei anos depois talvez demasiado saciado queria ver o lugar as colinas eram mais pequenas nas valas de salvação corria água castanha a relva no geral a mesma identificou a flor de angélica a paisagem minguou era meramente normal por trás de tanto medo por trás de tanta esperança os pássaros esvoaçavam dos ramos mais baixos para os ramos mais altos por isso nem neles podia procurar a certeza
20 | Inscrição, 1969
Porquê os Clássicos Para A. H. 1 no livro quarto da Guerra do Peloponeso Tucídides conta a história da sua expedição fracassada entre longos discursos de comandantes batalhas cercos pestes densa rede de intrigas esforços diplomáticos este episódio é uma agulha de pinheiro na floresta a colónia ateniense de Anfípolis caiu nas mãos de Brásidas porque Tucídides tardou com o auxílio por isto pagou à sua cidade com o exílio perpétuo os exilados de todos os tempos conhecem bem este preço 2 os generais das últimas guerras se lhes acontece caso parecido gemem de joelhos diante dos descendentes apregoam o seu heroísmo e inocência 21 | Inscrição, 1969
culpam subordinados colegas invejosos ventos adversos Tucídides diz apenas que tinha sete navios que era inverno e que foi rápido a navegar 3 se o tema da arte for um jarro quebrado uma pequena alma quebrada cheia de pena de si própria o que ficará depois de nós será como o choro de namorados num pequeno hotel sujo quando o papel de parede madruga
22 | Inscrição, 1969
O Sr. Cogito e a Pérola Por vezes o Sr. Cogito recorda, não sem comoção, a sua marcha adolescente rumo à perfeição, esse juvenil per aspera ad astram. Ora sucedeu-lhe um dia, ao correr para as aulas, uma pedrinha entrar-lhe para o sapato. Meteu-se maliciosamente entre a pele e a peúga. O bom-senso ordenava-lhe que se livrasse do intruso, mas o princípio de amor fati – pelo contrário – a suportá-lo. Optou pela segunda, resolução heróica. A princípio não parecia grave, apenas um incómodo e nada mais, no entanto, depois de algum tempo, no campo de consciência apareceu o calcanhar, e isto no momento em que o jovem Cogito tentava laboriosamente alcançar o pensamento do professor que desenvolvia o tema da ideia em Platão. O calcanhar crescia, inchava, pulsava, de rosa pálido tornava-se púrpura como o sol poente e afastava da sua mente não só a ideia de Platão mas qualquer outra ideia. À noite, antes de se entregar ao sono, sacudiu da peúga o corpo estranho. Era um pequeno grão de areia, frio e amarelo. O calcanhar, por sua vez, estava inchado, quente e negro de dor.
23 | O Senhor Cogito, 1974
História do Minotauro Na ainda não decifrada escrita do Linear A é contada a verdadeira história do príncipe Minotauro. Ele era – ao contrário de boatos posteriores – o verdadeiro filho do rei Minos e de Pasífae. O rapaz nasceu saudável, porém com uma cabeça anormalmente grande – que os adivinhos interpretaram como um sinal de futura sabedoria. Na verdade o Minotauro crescia forte, um pouco melancólico – um tonto. O rei escolheu para ele a carreira de sacerdote. Os sacerdotes, porém, explicaram que não podiam aceitar o anormal do príncipe, pois isto podia diminuir a já enfraquecida – pela invenção da roda – autoridade da religião. Minos mandou então vir Dédalo, o engenheiro, que estava na moda na Grécia – o inventor do estilo de arquitectura pedagógica. Assim foi criado o labirinto. Por meio do seu sistema de corredores, desde mais simples até cada vez mais complexos, por meio da variação de níveis e de degraus de abstracção, era suposto iniciar o príncipe nos princípios do pensamento correcto. O infeliz príncipe errava então, empurrado por preceptores, pelos corredores da indução e da dedução, olhava com olhar vazio para os frescos ideológicos. Não percebia nada de nada. Esgotadas todas as medidas, o rei Minos resolveu livrar-se da vergonha da sua linhagem. Mandou vir (também da Grécia, famosa por ter muita gente talentosa) o hábil Teseu. E Teseu matou o Minotauro. Neste ponto o mito e a história estão de acordo. Pelo labirinto – agora inútil cartilha – regressa Teseu trazendo a enorme cabeça ensanguentada do Minotauro de olhos esbugalhados, nos quais pela primeira vez começou a despontar a sabedoria – que a experiência normalmente transmite.
24 | O Senhor Cogito, 1974
O Velho Prometeu O velho Prometeu escreve as suas memórias. Tenta nelas explicar o lugar do herói no sistema da necessidade, reconciliar conceitos contrários sobre a existência e o destino... O fogo crepita alegre na lareira, pela cozinha anda a esposa – moça exaltada que não lhe pode dar um rapaz, mas consola-a a ideia de que mesmo assim ficará na história. Prepara-se o jantar, a que virão o pároco local e o farmacêutico, agora o mais próximo amigo de Prometeu. O fogo crepita alegre na lareira, na parede uma águia empalhada e a carta de agradecimento do tirano do Cáucaso, que graças ao invento de Prometeu conseguiu incendiar a cidade revoltosa. Prometeu ri baixinho. É agora a única forma que lhe resta de mostrar o seu desacordo com o mundo.
25 | O Senhor Cogito, 1974
Calígula Lendo velhas crónicas, poemas e vidas, o Sr. Cogito experimenta por vezes uma sensação de presença física de pessoas há muito falecidas Diz Calígula: de entre todos os cidadãos de Roma amei apenas um Incitato – o cavalo quando entrou no senado a irrepreensível toga do seu pêlo brilhava imaculadamente entre covardes assassinos orlados de púrpura Incitato era só virtudes nunca discursava natureza estóica creio que de noite no estábulo lia os filósofos ameio-o tanto que um dia resolvi crucificá-lo mas a sua nobre anatomia não o permitiu aceitou com indiferença a dignidade de cônsul exercia a autoridade da melhor forma possível isto é não a exercia de todo não se pôde convencê-lo a manter relações amorosas estáveis com a minha querida esposa Cesónia e assim tristemente não surgiu uma linhagem de Césares-centauros por isso Roma caiu
26 | O Senhor Cogito, 1974
decidi proclamá-lo um deus mas no nono dia antes das calendas de Fevereiro Quereia Cornélio Sabino e outros idiotas frustraram as minhas piedosas intenções recebeu com tranquilidade a nova da minha morte expulsaram-no do palácio e condenaram-no ao exílio suportou este golpe com dignidade morreu sem descendência abatido por um rude açougueiro do lugarejo de Âncio sobre o destino póstumo da sua carne Tácito cala-se
27 | O Senhor Cogito, 1974
O Sr. Cogito discorre sobre a posição recta 1 Em Útica os cidadãos não querem defender-se na cidade eclodiu a epidemia do instinto de sobrevivência o templo da liberdade mudaram-no para a feira da ladra o senado delibera sobre como não ser senado os cidadãos recusam defender-se frequentam cursos intensivos para aprender a cair de joelhos passivamente esperam o inimigo escrevem discursos submissos enterram o seu ouro cosem os novos estandartes inocentemente brancos ensinam as crianças a mentir escancararam as portas por onde agora entra uma coluna de areia 28 | O Senhor Cogito, 1974
além disso como sempre comércio e copulação 2 O Sr. Cogito queria ficar à altura da situação isto significa olhar o destino directamente nos olhos como Catão de Útica vide as Vidas não tem porém uma espada nem oportunidade de enviar a família para lá do mar espera então como os outros deambulando pelo quarto insone apesar das recomendações dos estoicos queria ter um corpo de diamante e asas olha pela janela como o sol da República caminha para o ocaso restou-lhe pouco verdadeiramente só a escolha da posição em que quer morrer 29 | O Senhor Cogito, 1974
a escolha do gesto a escolha da última palavra por isso não vai para a cama para evitar sufocar no sono queria até ao último instante estar à altura da situação o destino olha-o nos olhos no lugar onde antes estava a sua cabeça
30 | O Senhor Cogito, 1974
O presente que cega
Eu vivi estendido entre o passado e o momento presente crucificado muitas vezes pelo tempo e pelo espaço Z. Herbert, Rovigo (1992)
Após aquela explosão de 1939 – e a destruição de Lvov, do seu lugar de nascimento – seguiu-se uma segunda forma de devastação, mais violenta e definitiva, a do tempo estilhaçado, e, em seguida, a incapacidade de focar o próprio tempo. Contra esta haveria de levantar Zbigniew Herbert o seu imponente edifício de versos, enfrentando a perda maior que a Cultura Ocidental herdara da Segunda Guerra Mundial. Ao contrário de alguns dos ensaístas mais brilhantes desta perda, como George Steiner ou Hanna Arendt, o poeta polaco (1924-2008) – que também padeceu na própria carne as consequências da História – não perdeu tempo na análise da Culpa da Cultura Europeia. Esta classe de lamentação era alheia a um espírito que não se deixou iludir: pôr em causa a cultura herdada, afundar a fratura, daria lugar a uma arte que não mais seria do que essa «pequena alma quebrada, cheia de pena de si própria» do poema «Porquê os Clássicos», síntese bastante exacta do que haveria de ser uma parte considerável da poesia publicada na Europa durante o século xx até os nossos dias. Os melhores autores que escreviam sob os regimes da órbita soviética não podiam perder tempo em subtilezas de escalpelo procurando a génese e as formas desta ensurdecedora Culpa. Porque ela, a Cultura Ocidental, significava para eles o ventre materno que todos os órfãos idealizam, o elo umbilical com a Unidade de Civilização, que a sua arte exigia e que lhes era escamoteada pelos imperativos didácticos uniformizadores do Socialismo. 33 | Ana María Sánchez Tarrío
A resposta de Osip Mandelstam, – a quem pediram em certa ocasião uma definição do acmeísmo, movimento literário a que pertencia – a «nostalgia de uma cultura mundial» situa-nos adequadamente na qualidade da poesia de Herbert: a excavação intensa na tradição ocidental, e em particular na tradição clássica, à procura de sinais, de mestres como Marco Aurélio, que ajudam «a apagar a luz» antes da insónia («Para Marco Aurélio»), de juízes mais altos. O leitor de Herbert é obrigado a conhecer ou reconhecer as avenidas principais e secundárias do mapa de civilização que estruturou a Europa. Os seus poemas permitiram-me, sem qualquer classe de estridência ou exagerado entusiasmo, traçar uma geografia fundamental dos principais autores da cultura grega e latina: de Homero a Eurípides, de Tucídides a Tácito, de Cícero a Marco Aurélio e constantemente Ovídio. Permitiram-me deixar de os compreender tão adequadamente à luz das suas misérias e do seu contexto, e aprofundar em detalhes da sua in-actualidade – cada vez mais clara no nosso presente cego de trevas pós-modernas –, recuperar, enfim, uma leitura mais livre, muito antes, muito longe da pesada Culpa Ocidental que nos ensinaram a carregar. Sem casa no gigantesco quarto fechado da escala pan-soviética1, rio desviado do seu leito pela violência de uma época poderosa, como a Anna Akhmátova da Quinta Elegia do Norte (escrita em Leningrado em 1945), conhece o terror de não reconhecer as próprias margens, e procura no «diálogo com os mortos» (que descreve Heiner Müller) um mecanismo de sobrevivência. Um elo luminoso parece conectar a evocação da tradição clássica e a descrição da orfandade dos escritores malditos no universo pan-soviético: são «as Eurídices rodopiando» e «o touro levando Europa pelas ondas» que emitem um funesto agoiro sobre o futuro da pátria no poema Para Osip Mandelstam de Anna Akhmátova, em que descreve a angústia do instante daquela noite de Vorónej em que Mandelstam foi preso. Esta poesia, a do poeta homérico russo, Orfeu sacrificado (em dramático vaticínio da prematura e iminente morte de Mandelstam nos campos de Sibéria) e a da Cassandra russa que sobreviveu a todos para poder 1 Josif Brodsky, «El hijo de la civilización», Menos que uno, trad. R. Verdagué Costa y Esteban Riambau Saurí, Barelona, Versal, 1987, p.32.
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continuar o seu testemunho, tornou-se «voz da lira misteriosa/ aos prados de além-túmulo visitando» dos versos finais de esta magnífica epístola poética2. Esta poesia reiterava uma e outra vez a individualidade de Orfeu, dilacerada pelo corpo colectivo das Bacantes em fúria, e os mitos clássicos tornavam-se uma linguagem cifrada e universal que denunciava ao mundo a nova irmandade dos órfãos, separados e torturados, descrita por Marina Tsvetáeva no seu poema «Para Boris Pasternak». Perante a fortaleza nova do classicismo das suas obras, despedaçam-se categorias de ancoragem no pasado como conservadorismo ou elitismo, categorias que com demasiada frequência, e nem sempre injustamente, têm acompanhado a recepção da tradição clásica no Ocidente. Todos eles são de facto Orfeus que desceram à procura do Cultura Europeia ferida de morte. Alguns, como Osip Mandelstam, não conseguiram regressar. Herbert regressou. Porque «tinha dado a sua palavra»: … mas o tempo explodiu já não havia antes já não havia depois no presente que cega havia que escolher então dei a minha palavra uma palavra – corda ao pescoço palavra derradeira3.
O pensamento de Herbert foi transformado pelos clássicos, e será justo dizer que Herbert transformou para sempre Marco Aurélio, Tito Lívio, Tucídides... Dotou-os por vezes duma dimensão moral que lhes não pertencia por completo, e que habitava nele, forjada na experiência quotidiana das misérias e as humilhações do Mal contemporâneo («Porquê os clássicos»). A marcada modulação satírica impõe embora 2 A. Akhmátova, «Para Osip Mandelstam», Só o sangue cheira a sangue, trad. Nina e Filipe Guerra, Lisboa, Assirio & Alvim, 2000, pp. 52-55. 3 Tradução do original polaco por Izabela Stapor.
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distância, ponderação crítica perante o material clássico («Calígula», «O divino Cláudio», «As Metamorfoses de Tito Lívio») e responde, por outro lado, à sua inserção no ponto de vista dos bárbaros, dos vencidos, a sua genealogia predilecta de antepassados, do ponto de vista da nacionalidade mas sobretudo da irmandade moral. O material clássico concedeu-lhe, por exemplo, pensar «o Heróico» num tempo, o da geração que se seguiu à Segunda Guerra Mundial, marcado pela experiência da militarização fascista da heroicidade e os abusos totalitários do espírito de sacrifício individual. Tempos em que o conceito de herói era mal-visto na literatura, que se ocupava preferencialmente dos anti-heróis, salvados pela ironia, pela resistência passiva, como o bravo Soldado Svejk de Jaroslav Hasec, ou então enfrentava a desconstrução solene do próprio conceito do heróico, como o Poema sem herói de Akhmátova4. Herbert retira também do seu tempo estilhaçado o ponto de vista irónico, sem mergulhar porém no niilismo ou no relativismo. Trabalha contra a arte de um século que parece não ter voz já para o indivíduo que luta contra o seu tempo e por ele se imola. Ora o sacrifício inerente ao conceito do heróico é um tema principal do seu classicismo. Compartilha todavia com o seu tempo a impossibilidade da épica, descrita no seu poema «Tróia»: o silêncio de deserto que pesa sobre as ruínas de Tróia/Varsóvia/Lvov aniquiladas, o opressivo silêncio total que segue à matança colectiva deixa mudo o poeta, porque foi testemunha. A guerra constitui um assunto primordial no seu imaginário, mais focada, porém, no ponto de vista da Tragédia, do que da Épica: isto é, da perspectiva dos sobreviventes, das vítimas. A tragédia antiga proporciona-lhe também a focagem de outra das suas obsessões: a relação entre o indivíduo e a lógica do Estado moderno, do Estado totalitário que conhece desvios assassinos e demagogias impensáveis para Sófocles e Eurípides. O silêncio descrito em «Tróia» não deixou de pairar sobre a terra até o nosso tempo, aparentemente incapaz da epopeia. A moralidade define também a sua Poética, uma estilística marcada pelo princípio clássico da ordem e do sacrifício, o labor limae. Não se 4 A. Akhmátova, Prosas escolhidas e Poema sem herói, trad. Nina e Filipe Guerra, Lisboa, Relógio d’Água, 2001, pp. 208-276.
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concentrou porém na imitação directa da disciplina dos moldes métricos, essas magnitudes espirituais que não podem ser substituídas por nada, descritas por Brodsky a propósito de um Mandelstam que encontrou, nos seus alexandrinos fortemente cessurados, uma expressão russa para o hexâmetro homérico. A consciência vigilante de Herbert observa-se antes na elevada dose de autopoética dos seus poemas, e sobretudo na batalha evidente por purificar o seu estilo de todo o engano, de toda a inflação verbal, de toda a impostura erudita, como nos ajudam a compreender Izabela Stapor, José Pedro Moreira e Tatiana Faia com a sua tradução. Mas a leitura dos clássicos de Herbert revela-se mais vasta do que esta disciplina e esta ética. Como a de Mandelstam e a do seu exegeta exemplar, Josif Brodsky, é uma leitura radicalmente derivada do amor mais arrebatador, o amor de Dante por Vergílio: Amor que nos submete e acaba por nos transformar.
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