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alistamento ĂŠder oliveira
BelĂŠm-PA | 2015
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) O48
Oliveira, Éder. Alistamento. Belém, 2015 40 p. : il.
Projeto contemplado pelo Edital Bolsa Funarte de Estímulo à Produção em Artes Visuais, 2014. ISBN: 978-85-919219-0-4 1. ARTES. 2. CATÁLOGO. I. Título CDD 700.81
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RETRATOS SEM HISTÓRIA1
“Jean Luc-Godard chamou a atenção para o fato das vítimas serem geralmente mostradas de frente e os executores de costas”2
Marie José Mondzain
1 O título “retratos sem história” faz referência a Euclides da Cunha quando se refere à Amazônia como uma “região sem história”.
p. 79, Marie José Mondzain, L´image peut-elle tuer? Paris, Bayard Éditions: 2002.
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O trabalho de Éder Oliveira constrói-se na observação direta do mundo em que vivemos juntos, entre contextos de identidade e pertencimento, de onde extrai sentidos artísticos e culturais para as nossas (problemáticas) sociabilidades. Uma vez mais o artista faz uso de métodos de rastreamento e mapeamento, e nos dá a percepção de que a pintura é um bisturi de dissecar a realidade, por mais trágica e violenta que esta seja. A pintura e agora também o vídeo onde se estréia, o que faz aprofundar mais e mais os sentidos do seu trabalho e dotar o espaço expositivo de um caráter cada vez mais “instalativo”. Para chegar ao conjunto final de trabalhos que compõem a exposição “Alistamento”, Éder Oliveira serviu-se de procedimentos de aproximação ao “objeto” relacionados aos campos das ciências sociais e em particular da antropologia. Junto aos quartéis militares e Forças Armadas de Belém divulgou uma convocatória pedindo a participação dos alistados num “projeto cultural” indeterminado, onde o grafismo se baseou nas convocatórias oficiais que são divulgadas nos portais das instituições militares. Tal como nas missivas oficiais, Éder também usou um tom direto e dirigista (Você, alistado!), que exortava à participação de um grupo específico da sociedade e comunicava uma ordem a cumprir. Porém, ao contrário daquelas, não veiculava imagens edificadoras ou promissoras de futuros (in)certos, e mostrava, de modo cru e preciso, três retratos de jovens considerados “marginais” ou “criminosos”, pertencentes à sua série que ganhou destaque nos muros de Belém
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e na 31a Bienal de São Paulo (2014). Aproximando “soldados” e “marginais” na convocatória o artista juntava, num gesto poético e contraditório, as duas pontas de um mesmo sistema de violência, numa espécie de declaração de intenções sobre a preconceituosa identificação entre traços fisionômicos e condição social, na representação do homem amazônico. Após a divulgação da convocatória em Belém, Éder recebeu respostas de um número significativo de “alistados”, chamou-os para o seu atelier localizado na periferia da cidade, e dividiu o processo de trabalho entre um questionário e uma sessão fotográfica, num studio improvisado para o efeito. Entre as várias perguntas do questionário existiam duas particularmente interessantes nos resultados: a primeira pedia para cada um dos soldados se descrever fisicamente; e a segunda para descreverem o “homem amazônico”. A surpresa das respostas veio do fato da quase totalidade dos entrevistados ter descrito dois tipos de homem completamente diferentes entre si, dando ênfase a aspectos físicos e de gênero. Os termos em que individualmente se veem (Me considero com estatura mediana, 1,79m... Fisicamente eu acho que tenho um corpo atlético), e a descrição (estranha e distante) daquilo que entendem por homem amazônico (Não é um homem que tenha uma musculatura... Tem geralmente cabelo liso, e tem aquele corpo que a gente diz “corpo de geladeira”...). Ainda que poucos tenham visto no “homem amazônico” uma identidade sua, o questionário assumiu um efeito de espelho antropológico, no processo artístico de Éder Oliveira. Sob o véu de falar dos outros, deixou passar observações sobre nós, sobre a nossa cultura, os nossos valores e atitudes. De modo simples e eficaz, enfatizou ainda o quanto toda a imagem é sempre a imagem de um outro, e o quanto a experiência de alteridade está incorporada na nossa linguagem, memórias e percepções. Ao questionário seguiu-se a sessão fotográfica, onde cada soldado foi
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3 A idéia da pintura como pensamento não-verbal foi amplamente explorada por Daniel Arasse, nomeadamente em “Histoires de Peinture” (2004) e “On n´y voit rien” (2000).
fotografado sobre um fundo neutro, e foram tomadas algumas vistas habituais frente, 3x4, corpo inteiro. E a partir destas foram realizados os retratos em tela e na parede da galeria, transferindo escalas e verossimilhanças físicas, um processo que o artista já vem adotando desde que nos surpreendeu com seus retratos de grande escala nos muros da Cidade Velha em Belém. O resultado de “Alistamento” e de outros projetos seus em Belém, Rio de Janeiro ou São Paulo, é uma tomada de vista pessoal sobre aspectos particulares do humano, que vão compondo uma já extensa galeria de retratos. Constatando a persistência do “retrato” no trabalho de Éder Oliveira e o seu método de composição das imagens pintadas, julgo que a função deste gênero tem sido apenas tangencialmente explorada pela crítica e pela curadoria. Aquilo que comumente se enfatiza é capacidade que o seu trabalho tem em testemunhar a invisibilidade de grupos sociais discriminados no contexto da Amazônia. Trata-se do argumento de que a imagem faz pensar, é um veículo de denúncia e de exercício de cidadania, capaz de agir na transformação do mundo. Este aspecto da imagem é importante e significativo já que aborda diretamente um campo de desejos da sociedade brasileira contra a violência e a atual espetacularização da imagem, mas aquilo que nos interessa propor como quadro interpretativo é o fato de que a imagem pensa3. Não se trata de uma mera deslocação semântica, mas de uma atenção particular à imagem enquanto signo construído de especificidades, forma singular de conhecimento do mundo, sem a pretensão de criar novos sujeitos sociais. Porque, como sabe o artista, o fato de pintarmos, esculpirmos ou desenharmos para falarmos de uma “causa”, ou de falarmos de soldados, índios ou marginais em vez de pessoas de classes enriquecidas, não vai mudar em nada as condições exatas de elaboração e recepção de uma obra, nem tampouco a vida daquelas pessoas. Assim sendo, que função assume (ou reassume) o retrato na economia da imagem realizada por Éder Oliveira? Como se apresentam estes retratos? E em
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que “meios” ganham estrutura e densidade? Vários modos de construção da imagem em geral e do retrato em particular entram em jogo em “Alistamento”. Por um lado temos os retratos a óleo dos soldados onde enquadramento, hieratismo da pose e composição se relacionam à longa genealogia da tradição retratística do Ocidente. Temos ainda os retratos, também de soldados, pintados fora da galeria de exposição, que derivam de uma experiência da rua, do atelier espalhado na escala urbana. E por fim o vídeo com um “autorretrato” de Éder enquanto soldado, que faz do próprio corpo o “lugar da imagem”, superfície de inscrição onde projetamos desejos e aspirações. A persistência de um gênero clássico das artes caído em desuso (por via do aparecimento da fotografia) por um lado, e um contexto de ancoragem dos signos oriundo da circulação intensa da imagem no mundo contemporâneo por outro, colaboram para a ambivalência da imagem relativamente à sua função. Para além disso, promove o entendimento alargado desta “galeria de retratos”, como um “campo expandido” contraditório e dinâmico que tanto se faz valer dos valores tradicionais da técnica (a transferência por quadriculado, o uso do óleo e da espátula, o desenho anatômico, etc.), quanto projeta estes “belos” retratos no espaço-tempo da nossa contemporaneidade: da mídia impressa e digital, da reprodutibilidade técnica, da propaganda e da comunicação. Mas vejamos em detalhe, por exemplo, o vídeo do “autorretrato” de Éder como soldado. Se por um lado ele decorre de um nítido entendimento de que representar o outro é elaborar sobre a nossa própria imagem4, é um trabalho que também nos oferece uma considerável capacidade para entender que aspectos da história cultural da imagem se espelham numa análoga história cultural do corpo. Assim sendo, podemos ver este “autorretrato” como derivado de uma imagem interna, de uma imaginação de si enquanto soldado, em tudo semelhante àqueles que o artista entrevistou em seu atelier (Hans Belting diferencia “imagens
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“... debaixo dessa camada mais aparente que aprendemos a ter como una, também sou eu e por isso são sempre autorretratos” p. 346, Éder Oliveira, Autorretrato in “Pororoca – a Amazônia no MAR” org. Paulo Herkenhoff, Rio de Janeiro, Circuito: Museu de Arte do Rio, 2014.
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5 p.161, Hans Belting, A antropologia da imagem, Lisboa, Imago: 2014. 6 “Estamento” refere-se a uma forma de estratificação social com camadas fechadas e reduzida mobilidade. Na obra do sociólogo Max Weber o conceito de “estamento” é ampliado, passando a significar não propriamente um corpo homogêneo estratificado, mas sim uma certa “teia de relacionamentos que constitui um determinado poder e influi em determinado campo de atividade”.
internas”, ou seja, produzidas pela nossa imaginação, pensamentos ou sonhos, e “imagens vindas do mundo exterior”, resultantes de um processo contínuo de interações que deixou vestígio na história dos artefatos5). Esta “imagem interna”, por sua vez, ganhou suporte e referencialidade no corpo através da escolha cuidadosa do vestuário e dos adereços de militar e, especialmente, na pose diante da câmera onde mímica corporal e dos gestos confirmam, de modo simples e evidente, que nós já in corpore nos transformamos em imagem ainda antes do disparo fotográfico ou da captação em vídeo. Um detalhe particularmente significativo é a substituição das insígnias do vestuário militar por outro tipo de distinção social, relacionado ao meio artístico. Letras bordadas com as principais etapas do seu percurso enquanto artista - MAR, PIPA, Bienal de SP, etc. -, foram aplicadas no vestuário, entrelaçando dois “mundos” distantes: a condição social de onde provém, filho de caboclos das camadas populares do pequeno vilarejo de Timboteua e a condição social a que chegou, e o reconhecimento do seu trabalho no campo das artes visuais. O resultado do vídeo é uma humorada especulação sobre o destino da sua vida se, porventura, aos 18 anos tivesse sido aceito nas Forças Militares, onde chegou a prestar provas, para além de atualizar os sentidos do título “Alistamento”, palavra que nos remete para os “estamentos”, uma estratificação social com reduzida mobilidade6. Significativa no seu trabalho é a dissecação geral de rostos e expressões do homem amazônico (dos soldados aos “marginais”). Nela há uma memória estranhamente perversa das práticas antropométricas ou somatológicas usadas até o final do séc. XIX que justificavam a ideologia cientificista da suposta superioridade do branco, e faziam desfilar rostos e corpos de negros e índios vazios de expressão e sentimento. Eram formas de despersonalização, seja por apresentarem estes sujeitos como meros tipos físicos, seja como simples função na estrutura social. O trabalho de Éder é sensível a este uso ideológico da imagem, tanto pela ciência quanto pela mídia, pontuando contundentemente a
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violência contida nelas. Assim, os retratos de Éder dão a ver aquilo que deveria ter ficado guardado ou invisível. O “homem amazônico” de que fala em seus projetos é uma espécie de “retorno do recalcado nacional”7, usando a expressão do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, que vem para nos estranhar e nos desestabilizar. Um desarranjo, de corpos, rostos e percepções, que é político sem que necessite ser engajado. Uma poética da imagem que inscreve um modo autoral de produzir sentidos e de reconfigurar as formas perceptivas existentes. Aquilo que importa é que Éder Oliveira continue a fazer arte, seja pintura ou qualquer outra técnica, para além de ou apesar dos temas que atualmente o ocupam. E o que importa a nós é que continuemos a nos interrogar quanto aos destinos das nossas emoções. Marta Mestre8
p. 147, “Encontros – Eduardo Viveiros de Castro”, org. Renato Sztutman, Rio de Janeiro, Azougue: 2008.
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Graduada em História da Arte, com mestrado em Cultura e Comunicação. Coordenou e programou o Centro de Artes de Sines (Portugal, 2005-08). Curadora assistente no Museu de Arte Moderna do Rio (Mam-Rio) e curadora convidada na Escola de Arte Visuais do Parque Lage (2015).
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Intervenção artística (Rua da Marinha | Belém-PA)
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Série S-1 (I) [2015] Óleo sobre tela 100 x 130cm
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Série S-1 (II) [2015] Óleo sobre tela 100 x 130cm 22 |
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Série S-1 (III) [2015] Óleo sobre tela 100 x 130cm | 25
Camuflagem recessiva [2015] Ă“leo sobre tela 220 x 144cm
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Insígnia [2015] Óleo sobre tela 220 x 144cm
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Série S-1 (IV) [2015] Óleo sobre tela 100 x 130cm 28 |
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Sem tĂtulo [2015] Autorretrato em vĂdeo
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Autorretrato e Retrato [2015] Bordado sobre velcro e tecido
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Exposição Centro Cultural Sesc Boulevard 30 de maio à 12 de julho | 2015 | 33
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ÉDER OLIVEIRA www.ederoliveira.net
Nascido em 1983, em Timboteua, região do Salgado paraense, e licenciado em Educação Artística - Artes Plásticas pela Universidade Federal do Pará. Desde 2004 se dedica sobre a temática da identidade cultural, tendo como objeto principal o homem amazônico, em intervenções, site-specifics e óleos sobre tela. Participou de exposições como a 31ª Bienal de Artes de São Paulo (Pavilhão Ciccillo Matarazzo, 2014), Pororoca: A Amazônia no MAR (Museu de Arte do Rio, 2014), Amazônia, Ciclos de Modernidade (CCBB Rio de Janeiro e Brasília, 2012), O Triunfo do Contemporâneo (Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul, 2012). Foi selecionado em bolsas e premiações, como a Bolsa Funarte de Estímulo à Produção em Artes Visuais (2014), Prêmio de Artes Visuais do Sistema Integrado de Museus (2008) e o 2º Grande Prêmio do Salão Arte Pará (2007). Possui trabalhos em acervo de instituições como Museu de Arte do Rio, Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul, Museu Casa das Onze Janelas e Museu da Universidade Federal do Pará.
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ALISTAMENTO Éder Oliveira Curadoria Marta Mestre Textos Éder Oliveira Marta Mestre Fotografias Éder Oliveira Tommaso Protti (exposição) Produção geral Suelen Silva Assistente de produção Lohana Schalken Assistente de atelier Diego Azevedo Mediação Paula Correa Vinicius Nascimento Projeto gráfico Carol Abreu Ficha catalográfica Cleidiomar Oliveira Agradecimentos Soldados, cabos e sargentos que participaram do projeto, Centro Cultural Sesc Boulevard e equipe, Galeria Blau Projects, Arleson Lima, Bartolomeu Miranda, José Maria Vilhena, Marcelo Lelis, Márcio Campos, Marcone Moreira, Nazaré Barros, Pablo Lafuente, Pablo Mufarrej, Paula Sampaio e Priscila Porto. | 41
Realização
Projeto contemplado pelo Ministério da Cultura e pela Fundação Nacional de Artes no Edital Bolsa Funarte de Estímulo à Produção em Artes Visuais Distribuição gratuita. Proibida a venda. Tiragem: 500 exemplares.
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Texto composto por tipografia Avenir Book 10,12, e Courier 10,12. Impresso em papel couchê 170g e duodesign 300 (capa), pela Gráfica Aquarela Belém - Pará - Brasil. Junho 2015.
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