Maria Iphigênia de Lima Fernandes - Duas festas lindas: a graça e a bondade

Page 1

Maria Iphigênia de Lima Fernandes Duas festas lindas: a graça e a bondade 1918-2003 Uma homenagem por ocasião dos 100 anos de seu nascimento

Organização: Edésio Fernandes Júnior


2

3

“Maria Iphigênia, escuta Você não se lembra não, Mas, quando você nasceu, Todos viram na sua mão Um pedacinho do céu “ João Franzen de Lima, Tio Zizi


4


6


8


10


12

13


14

15

“Maria Iphigênia, querida, Você traz para o caminho dos que se encontram com o seu destino duas festas lindas: a graça, que é a festa dos olhos, e a bondade, que é a festa do coração.“ Eurydice Fernandes, em 29/07/1936


16

Maria Iphigênia de Lima Fernandes Duas festas lindas: a graça e a bondade 1918-2003 Uma homenagem por ocasião dos 100 anos de seu nascimento

Organização: Edésio Fernandes Júnior Belo Horizonte |

2018


18

Índice

Prefácio Edésio Fernandes Júnior __ 23

I Depoimentos de familiares 1.1 Heloisa Fernandes Carvalho (Filha) __ 25 1.2 Luiz Anibal de Lima Fernandes (Filho) (in memoriam) __ 30 1.3 Marcos de Lima Fernandes (Filho) (in memoriam) __ 34 1.4 Eduardo de Lima Fernandes (Filho) __ 46 1.5 Cândido Luiz de Lima Fernandes (Filho) __ 51 1.6 Maria Eugênia Fernandes Couri (Filha) __ 54 1.7 Edésio Fernandes Júnior (Filho) __ 56 1.8 Erton Carvalho (Genro) __ 62 1.9 Cristiana Fernandes Carvalho (Neta) e Henrique Fernandes Carvalho (Neto) (in memoriam) __ 63 1.10 Lucy Paim Fernandes (Nora) __ 66 1.11 Luiz Renato Paim Fernandes (Neto) __ 67 1.12 Rodrigo Paim Fernandes (Neto) __ 68 1.13 Verena Silviano Brandão Ahouagi Fernandes (Nora) __ 68 1.14 Silvia Ahouagi Fernandes (Neta) __ 70 1.15 Marcos Ahouagi Fernandes (Neto) __ 73 1.16 Elizabeth Lobato (Nora) __ 75 1.17 Bernardo Lobato Fernandes (Neto) __ 77 1.18 Eduardo Lobato Fernandes (Neto) __ 77 1.19 Leonardo Lobato Fernandes (Neto) __ 78 1.20 Adriene Souza Mendes (Nora) __ 79 1.21 Denise Portela de Lima Fernandes (Nora) __ 80 1.22 Bruno Portela de Lima Fernandes (Neto) __ 81 1.23 Marina Portela Fernandes Rodarte (Neta) __ 86 1.24 Armando Carmo Couri (Genro) __ 89 1.25 Armando Carmo Couri Filho (Neto) __ 89 1.26 Juliana Fernandes Couri Tassini Vitória (Neta) __ 90 1.27 Daniel Fernandes Couri (Neto) __ 91 1.28 Renata Fernandes Couri Penna (Neta) __ 92 1.29 Robert A. Annibale (Genro) __ 92


20

II Depoimentos de outros familiares e amigos 2.1 Maria Inês Franzen de Lima de Abreu __ 97 2.2 Mariana Franzen de Lima de Abreu Fonseca __ 98 2.3 Cecília Abreu Canaan __ 99 2.4 Thiago Franzen de Lima de Abreu __ 100 2.5 José Francisco Bias Fortes de Abreu Filho __ 100 2.6 Patrícia Passos de Guimaraens __ 101 2.7 Carlos Anibal Fernandes de Almeida __ 102 2.8 Romualda Modesta Vieira__ 105 2.9 Rosamara Araújo de Carvalho __ 105 2.10 Maria Ângela Assumpção Bicalho __ 106 2.11 Marly Guedes Couto __ 107 2.12 Diva Moreira __ 109 2.13 Ana Lúcia Gazzola __ 112 2.14 Reynaldo Ximenes Carneiro __ 113 2.15 Elizabeth Curi __ 115 2.16 Maria Cristina Vianna Figueiredo __ 116 2.17 Ricardo Arnaldo Malheiros Fiúza __ 117 2.18 Maria Helena Guimarães de Carvalho Pereira __ 118 2.19 Rita Andréa Guimarães de Carvalho Pereira __ 120 2.20 Jane Bonome __ 121


22

Prefácio EDÉSIO FERNANDES JÚNIOR

Maria Iphigênia (Vianna) de Lima Fernandes foi uma mulher discreta e viveu discretamente, mesmo quando exposta ao olhar público, dada a maior visibilidade de seu marido, Edésio Fernandes. Quando da comemoração do centenário dele, em 2013, juntamente com meus irmãos, organizei uma publicação contendo notas biográficas, depoimentos de familiares, colegas e amigos, assim como um texto com o resultado de uma pesquisa histórica sobre sua excepcional carreira de magistrado.* Ao editar esses ricos materiais e ao trazê-los para o mundo digital, além de prestar uma homenagem a ele, nossa intenção era garantir que as novas e futuras gerações da família Lima Fernandes pudessem saber um pouco sobre suas origens. Cinco anos mais tarde, quando comemoramos o centenário dela, meus irmãos e eu achamos que, mesmo sem ter sido uma personalidade pública, a vida dela merece um registro especial - por ter nos marcado profundamente, assim como marcou a vida dele. Ele certamente não teria realizado o tanto que conseguiu se não fosse pelo companheirismo, pelo trabalho e pelo amor dela. Como da outra vez, nossa intenção, ao homenageá-la, é deixar um registro com notas biográficas e depoimentos de familiares e amigos para as novas e futuras gerações da família - para que os que não a conheceram possam saber um pouco sobre essa mulher sábia que, do seu jeito discreto, também viveu uma vida excepcional.

* FERNANDES JÚNIOR, Edésio (Org.), Edésio Fernandes: um homem simples a serviço da justiça [1913-1980]. Belo Horizonte: Ed. Gaia Cultural, 2013.

23


24

I Depoimentos de familiares

1.1 H ELOISA FERNANDES CARVALHO 100 anos de Maria Iphigênia (1918-2018)

Em minha memória, ainda guardo bem nítidas as comemorações dos 70 e 80 anos de minha Mãe. Ela ficava feliz em poder reunir os filhos, netos, parentes e amigos para a celebração de sua data magna -19 de novembro - que começava com uma missa em ação de graças, seguida de um almoço festivo. Adentrava pela nave principal da igreja, precedida dos filhos e netos, e a aparição dessa mulher elegante, de bela cabeleira branca, a todos encantava.

25


Maria Iphigênia chegou a pisar no século XXI, tendo vivido 84 anos. Em maio de 2003, despediu-se da vida. O tempo corre veloz e eis que nos preparamos para celebrar o centenário do seu nascimento. E, para homenageá-la, na tentativa de expressar minha admiração por sua trajetória de mulher, esposa e mãe exemplar, as lembranças mais remotas, arquivadas no coração de filha primogênita, vão emergindo e traduzindo-se em palavras.

26

Sua história de vida, propriamente dita, começa em 10 de novembro de 1938, quando se casa com Edésio Fernandes, jovem Promotor de Justiça, ocupando seu primeiro posto em Elói Mendes (MG). Parte, então, para o sul de Minas Gerais, rumo ao desconhecido, a filha de Luiz Franzen de Lima e Maria Eugênia Vianna, com 20 anos incompletos. Nove meses depois, Maria Iphigênia e Heloisa nasce a primeira filha, que será secundada por outras seis crianças: cinco meninos e uma menina. Nesse tempo de espera e nascimento, de 1939 a 1958, não havia recursos, tais como se conhecem hoje os exames de pré-natal e as imagens de ultrassonografia. Mulher saudável, os filhos nasceram a termo e de parto normal. “Tive os filhos que Deus quis”, ela dizia. Enquanto a família crescia, Edésio, agora Juiz de Direito itinerante, construía sua carreira, passando por seis cidades do interior das Gerais, até chegar à capital. Tinha a seu lado o apoio incondicional da companheira, sua incansável admiradora, esposa amorosa e mãe dedicada. Homem silencioso e caseiro, passava as manhãs no escritório, decifrando a pilha de autos, os processos que lhe chegavam diariamente. Enquanto isso, no seu dia a dia, nossa Mãe, que gostava de ler e tricotar casaquinhos e sapatinhos de bebê, não negligenciava a educação dos filhos, imprimindo-lhes muito de seu caráter e de sua firme personalidade. Boa economista, dividia, parcimoniosamente, em caixinhas, o dinheiro destinado às despesas domésticas de cada mês. Naquele tempo, o Judiciário era mal remunerado e nós sabíamos esperar o momento propício para ganhar uma roupa ou um sapato novo.

Maria Iphigênia

A Mãe se encarregava de nos educar, supervisionar os estudos, nos corrigir. Às vezes alguém ficava de castigo. Eu mesma, com 14 anos, tive vetado um baile de carnaval! Quando pleiteávamos algo mais sério, consultava o marido. Decidiam tudo de comum acordo. Serenamente. Ela nos transmitia a resposta, era nosso porta-voz, brincávamos de telefone.

27


28

Mulher de fé, profundamente religiosa, sua enorme devoção a Maria ajudou-a a suportar os golpes terríveis que se abateram sobre sua família, de novembro de 1947 a junho de 1949. Nesse período, ela perdeu Júnia, a jovem irmã, sua mãe Maria Eugênia e o irmão caçula, Cândido Luiz, vítima de acidente aéreo, aos 22 anos. A família esfacelada, ela, com quatro filhos, morando no interior com o marido Juiz, não podia estar junto ao pai amado. Foi um tempo de muito sofrimento até Luiz recompor a vida ao encontrar Maria Augusta, sua incansável companheira da maturidade, que lhe deu Maria Inês, e lhe devolveu o sorriso e o bom humor. Em Belo Horizonte, já tendo o marido alcançado o maior posto da magistratura estadual, em tempos de calmaria, muitas alegrias familiares encheram a casa da Rua Caraça e o apartamento da Rua Espírito Santo, como a formatura e o casamento dos filhos e o nascimento dos netos, em número de quinze. Entretanto, anos depois, maus ventos começaram a soprar e, em dezembro de 1980, Edésio, que já apresentava sérios problemas de saúde, é vitimado por um aneurisma de aorta. Uma

difícil transmitir-lhe a notícia logo cedo, me contaram os irmãos. Que mulher corajosa, todos diziam, a dor de um filho que se vai é imensurável! “É um pedaço arrancado de mim”, exclamava a “mater dolorosa”! Ela tentava disfarçar a tristeza que lhe doía fundo, mas, a partir dessa perda, começou o seu declínio. Teve o alento do nascimento do primeiro bisneto, Lucas, que a encantou, mas sua saúde se ressentiu com tantos baques que a vida lhe trouxe. Com o coração fragilizado, exigindo passagens por hospitais e a mobilidade comprometida, aquela mulher especial não descuidava de sua aparência. Aos sábados, recebia a cabelereira e a manicure para os cuidados que a dignidade impunha à sua pessoa. Eu e meu irmão caçula moramos fora de Belo Horizonte há muitos anos, ele inclusive no exterior, mas, por acaso, naquele dia estava em Brasília. Na manhã de sua piora nos encontramos no aeroporto da Pampulha, eu vinha do Rio; ele, da capital federal. Nosso sobrinho Dino estava à nossa espera. Mas não chegamos a tempo de nos despedir. Ao chegarmos à porta do hospital, soubemos que ela acabara de entrar para a eternidade...

tristeza sem fim se abateu sobre nossa Mãe - a mulher forte - que se viu próxima de uma depressão. Ela dizia: “minha vida perdeu a cor”, não via sentido em prosseguir vivendo. Encontrou um pouco de conforto na sua fé, no carinho dos filhos e amigos e no trabalho social. Inicialmente, quis ler para os cegos, na Biblioteca Pública Estadual. Depois, convidada pela Associação das Voluntárias da Santa Casa - AVOSC, foi voluntária dedicada na Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte. Na enfermaria feminina, ajudava a mitigar o sofrimento das mulheres ali internadas. Tantas horas trabalhadas lhe renderam algumas estrelinhas no crachá. Em meio ao sofrimento alheio, solidarizou-se com os demais comparando-o ao seu. Na Rua Espírito Santo, a vida seguiu seu ritmo. Na companhia da fiel Romualda, dedicava suas manhãs ao cultivo de orquídeas e bromélias em placas de xaxim, que decoravam um enorme muro divisório do lado esquerdo do apartamento. Na sua solidão, ela se transformara na matriarca sábia, discreta, independente e respeitada. Administradora perfeita da casa, controlava as finanças, ia aos bancos aplicar suas economias e ajudava os filhos em suas necessidades, sempre justa e generosa. Não interrompeu a tradição dos almoços de Natal, a distribuição de presentes aos pequenos por Papai Noel e, nos domingos, com a maior alegria, recebia, de portas abertas, filhos e netos para os lanches preparados com carinho por Romualda, um tesouro de 50 anos dedicados à família. Em dezembro de 1998, repentinamente, outro rude golpe a atingiu. Marcos, seu terceiro filho, não resistiu àquela madrugada e, vítima de um violento AVC, partiu com apenas 53 anos. Foi

Maria Iphigênia e seus sete filhos: Heloisa, Luiz Anibal, Marcos, Eduardo, Cândido Luiz, Maria Eugênia e Edésio Júnior

29


30

Essa foi uma história real, de muito amor, sofrimento, sabedoria, dedicação e generosidade, cuja protagonista estaria completando um século em 19 de novembro de 2018. Há pessoas privilegiadas que chegam lá. Ela, porém, não conseguiu... E assim, nossa amada e admirada Maria Iphigênia, escolheu o mês de maio, o mês de Maria, para fechar os olhos, bem devagar, suavemente, indo ao encontro dos entes queridos que a antecederam. Seu último desejo foi cumprido: ela quis ser sepultada com o vestido azul, o uniforme de voluntária da Santa Casa, do qual tanto se orgulhava. Foi velada no salão principal daquele prédio enorme. Um verdadeiro jardim se formou em torno dela com a chegada de tantos buquês e coroas. Singela homenagem dos amigos e parentes àquela que tanto amou as flores...

1.2 L UIZ ANIBAL DE LIMA FERNANDES (in memoriam) Maria Iphigênia (Vianna) de Lima Fernandes (19/11/1918 – 08/05/2003)

que temeu aproximar-se do Cartório de Registro devido à sua proximidade com um posto de socorros que atendia os atingidos pela gripe espanhola, preferindo pagar a multa por fazer registro fora do prazo legal. Foi batizada no dia 27/12/1918 na Igreja de Santa Iphigênia dos Militares, no Quartel, sendo seus padrinhos os avós Esther Leopoldina Franzen de Lima e Coronel Cândido da Fonseca Vianna (chovia a cântaros no dia do batizado). Foi crismada no dia 8/9/1919, na Capela do Palácio Episcopal, por D. Antonio dos Santos Cabral, Arcebispo Metropolitano, tendo como madrinha Hercília Oswaldo Cruz. Residiu com seus pais em Santa Luzia, onde fez o primeiro aniversário. D. Syria de Castro e Silva conta a história da coroação de que participava Maria Iphigênia, quando o altar pegou fogo. Mudando a família para Sabará, começou a aprender a ler em 9/1/1925, aos seis anos de idade, no externato mantido pela professora Dolores Augusta de Carvalho Azevedo.

Maria Iphigênia Vianna de Lima é a filha mais velha de Luiz (Gonzaga) Franzen de Lima e Maria Eugênia Vianna de Lima, figuras de relevo da nascente sociedade de Belo Horizonte, com origens em tradicionais famílias de Nova Lima, Ouro Preto, Santa Luzia e Pedro Leopoldo, em Minas Gerais, e de São Paulo (SP). Nasceu às 7h45 do dia 19/11/1918, na residência de seus avós Bernardino Augusto de Lima e Esther Leopoldina Franzen de Lima, à Rua da Bahia 1.313, em Belo Horizonte. Foi registrada em 17/12/1918, com atraso, conforme admitiu seu pai, Luiz Franzen de Lima, então Promotor de Justiça de Santa Luzia do Rio das Velhas, no "Livro de Bebê" de Maria Iphigênia, explicando

Normalista, em 1934. O bisneto Lucas, de três anos, vendo a foto, comentou: “Parece um anjo!”

Já residente em Belo Horizonte, concluiu o curso primário no Grupo Escolar Barão de Macaúbas, em novembro de 1929, com onze anos de idade. Em 1931, aos doze anos, entrou para o 2º ano do Conservatório de Música de Belo Horizonte, no curso geral de teoria e solfejo. Ingressou no Colégio Sagrado Coração de Jesus, em Belo Horizonte, onde estudou por dois anos, transferindo-se depois para o Colégio Sacré-Coeur de Marie, onde recebeu o grau de Normalista na data de 6/12/1934. Dentre outras, foram suas colegas Stella Assumpção, Myriam Assumpção, Maura Dias, Dalva Dias, Elza Soares Martins, Maria do Carmo Lobo, Maria do Carmo, Sara Bhering Pinto Coelho e Beatriz Drummond. O paraninfo da turma foi o Monsenhor João Rodrigues de Oliveira, Vigário Geral. O jornalzinho Lumiar, editado pelo Centro de Estudos Jean Gaillac do Colégio Sacré-Coeur de Marie, em novembro de 1934, falava sobre os "Typos especiaes" da turma do terceiro ano,

31


32

dizendo: "Iphigênia, nosso enigma. Anda com a alma abalada por alguma cousa estranha, pois vive sobressaltada". E mais: "Realçam, dentre todas, da turma da santidade, Iphigênia, Isa França, Carmo Lobo e Dag Andrade". Muito religiosa e demonstrando a fé inabalável que a tem acompanhado a vida inteira, Maria Iphigênia, naquela época, pensou em tornar-se missionária na África. Conheceu em 1935, no footing da Praça da Liberdade, o futuro advogado Edésio Fernandes, com quem viria a casar-se em 10/11/1938 na capela do Palácio Episcopal Cristo Rei, com celebração do Arcebispo Metropolitano D. Antonio dos Santos Cabral. Iniciou desde então sua jornada de mãe de sete filhos e de esposa de Juiz de Direito, acompanhando a longa carreira do marido até mesmo em lugares difíceis: Elói Mendes, Mutum, Três Pontas, Muzambinho, Três Corações, Lavras e Ponte Nova, antes de poder voltar à metrópole, Belo Horizonte. Sempre com seu sentimento de missão terrena a desempenhar. Sempre com seu perfeccionismo e a frase símbolo de autocrítica: "Onde foi que errei? "

simples, igualitário, por longos anos dedicou-se como Voluntária pelos corredores e enfermarias da Santa Casa de Misericórdia, com disciplina em seus horários, superando as próprias dificuldades físicas, levando sua serena solidariedade às pessoas carentes que encontrou neste lado sombrio da vida. A África de sua vontade juvenil de servir, afinal, ficava por aqui mesmo. Faleceu em 8 de maio de 2003, uma quinta-feira ensolarada, depois de uma crise da qual sua saúde débil não mais se recuperou. Foi sepultada no dia 9, no mesmo túmulo do marido Edésio e do filho Marcos, no Cemitério do Bonfim, trajando, conforme sua determinação, aquele que considerava seu melhor vestido: o uniforme azul-turqueza de quase vinte anos do serviço voluntário da Santa Casa. Ao peito, o crachá com as quatro estrelas douradas de que se orgulhava, cada uma delas representando mil horas de dedicação e assistência aos deserdados da sorte.

O falecimento do marido Edésio em 1980 colocou-a face ao mundo, tendo de descobrir por si só as necessidades do dia a dia. “Recomeçar, sozinha, aos sessenta anos. Aprender práticas, corriqueiras para os outros. Entrar em um banco, pela primeira vez. Trocar por contas bancárias, talões de cheques, surrealismo dos fundos, overnight, cadernetas, as suas caixinhas de dinheiro carimbado. Do pão, do leite, do açougue, das empregadas, dos extras. Vasos não comunicantes da sábia administração da carência de recursos”, escreveu mais tarde o filho-poeta Marcos. A missão terrena de âncora da família, de seus valores, de sua coesão, ficou ainda mais nítida. A preocupação com os filhos, quase obsessiva e de forma rotativa, contemplava indistintamente os próximos e os mais distantes. A grande medida de seu êxito foi a deferência, o respeito e a admiração com que a trataram os da segunda geração, os quinze netos, diferentes entre si, mas unânimes em reconhecer e venerar a Vó Gegena como o referencial familiar. Tal como disse Seu Roberto, o motorista: “Os netos da Dona Iphigênia tratam ela como se fosse um suspirinho”.

1. Referente aos 15 netos, registre-se o falecimento do Henrique (Henrique Fernandes Carvalho) em 31/3/2006;

Preencheu também sua vida com o serviço voluntário, a assistência aos desvalidos, o contato diário com a pobreza, a doença, a solidão, a inexplicável diferença de sorte dos humanos. Vestida com seu uniforme azul-turqueza,

2. Referente aos três bisnetos, registre-se que se somam outros 19, totalizando 22, a saber: do Luiz Renato: Lucas, Pedro (da Ana Florença) e Miguel, Gabriel (da Isabel); do Rodrigo: Rafael, André, Giovana (da Sofia); do Marcos: Isabela (da Raquel); do Bernardo: Catarina, Bernardo (da Marcela); do Leonardo: Theo, Thor (da Olívia); do Bruno: Maria, Sofia (da Clara); da Marina: Camila (do Gustavo); do Armando Filho: Theo, Felipe (da Julia); da Juliana: Julia, Gabriel (do Alexandre); do Daniel: Anna, Rafael (da Fernanda); da Renata: Catarina (do Pedro).

D. Dedélia, a sogra querida

Edésio e Maria Iphigênia

33


34

1.3 MARCOS DE LIMA FERNANDES (in memoriam)

Ministrei justiça, por igual, acusam-me de preferências. Esforcei-me tanto para transmitir-lhes religião. E o que dela fizeram? Hoje, ninguém para me acompanhar à missa. V Nos recônditos da vida, procura. Nos desvãos do passado, pesquisa. Nas fragilidades da personalidade, rebusca motivos para entender, explicar. Onde teriam ocorrido as fraturas? Quais seriam as cicatrizes? Porque chagas ainda abertas? VI Seria o colégio interno de uma? Mas só lhe queria o melhor. O cabelo cacheado do outro? Era moda, todo mundo usava. O peso do nome do menor? Pois julguei que era grande honra. Repassa todas as hipóteses, em vão. E só encontra tanta ingratidão. Imerecida.

Heloisa, Luiz Anibal, Marcos e Eduardo

DONA IPHIGÊNIA (Poema de Marcos de Lima Fernandes, em 12/10/1990)

I Onde foi que errei? Como é que vou prestar contas? Eu só queria entender! II Custa-lhe, à noite, o sono a chegar, a casa, agora vazia. Os filhos, espalhados pela vida. III Os parentes que restaram, distantes. Sozinha no leito, ausente, o grande companheiro. O véu da dúvida envolvendo os cabelos, cada vez mais brancos, sem a paz tranquila que merecia gozar. IV E se inquire, severamente: Desdobrei-me tanto, e, agora, me cobram carinho. Ensinei retidão, pois me julgam severa. Entreguei-me diuturnamente, mas me pecham distante.

VII Imerecida. Pois poderíamos dizer-lhe que está errada. Deveríamos dizer-lhe que está errada. Como julgar-se culpada alguém que sempre agiu certo? Como dar explicações, alguém que deveria recebê-las? Poderíamos cobri-la de carinho, deveríamos compreender suas carências. Aqui, agora, em sua hora crepuscular. VIII Mas como fazê-lo, se somos inibidos? Difíceis os gestos, trôpegas as palavras ditas. Afinal, os problemas são mútuos. Ao menos, façamos justiça. Tentemos, protegidos pelas palavras escritas, Creditar-lhe fatos, momentos, exemplos que claramente demonstram Sua constante coerência, sua enorme coragem, seu imenso amor. IX E poderíamos dizer-lhe que não há razões para dúvidas. Nem há que se buscar culpas, expiações. Não há mais contas para prestar. Foram todas já tomadas, aprovadas com louvor, transitadas em julgado. Também não há mais erros para achar, tantos os acertos, no atacado, mínimas hesitações, no varejo. E, nos nove céus das bem-aventuranças, Deus a espera, em oito portas, Vedada, apenas, a dos pobres de espírito.

35


36

X E deveríamos tentar explicar-lhe que existem muitas coisas que não são para se entender. Antes, devemos apenas aceitar que dar é muito maior que receber. E quem dá, desprendida, não espera reconhecimento. E por ser mãe, paga-se um preço, vida afora: Ter posto no mundo alguém que não pediu para nascer. E, não sabendo sobreviver sozinho, vai trilhar caminhos há muito mapeados. Se fraco, buscar culpados por suas fragilidades. Atirar, para trás, pedras de frustração. Se forte, não saber controlar o poder. Propagar, para frente, os mesmos bloqueios, tão antigos, dos choques das gerações, Recorrentemente, freudianamente XI Abandonar, aos 18 anos, a suavidade das noites de Belo Horizonte, O footing da Praça da Liberdade, o folclore da Rua da Bahia, os bondes fechados do Colégio Santa Maria, A nobreza do nome Franzen de Lima. E, casada, transmutar-se para o faroeste de Mutum, onde uma vida pouco mais valia que uma bala. Assassina. XII Escalar tantas comarcas. Subir a via-crucis dos degraus das entranças e instâncias. Vida sempre provisória. Suas casas, alugadas, sem seu toque especial. Caixotes de mudanças se abrindo e fechando. Mulher de juiz, patrulhada pela comunidade. Falta de recursos para gerar seus filhos. Carência de retaguarda familiar. Absurda distância de Belo Horizonte. Separada, nas noites frias, por intermináveis baldeações dos trens, sempre atrasados, da Rede Mineira de Viação. XIII Ver a família destruída em seis meses. O raio da morte, sucessivamente, colhendo Mãe, Irmã, Irmão. Levados tão cedo. O pai, náufrago, perdido entre destroços e delírios. Reassumir sua vida no interior. Reafirmar, na tragédia, sua opção maior. XIV Dedicar seu corpo e mente aos filhos: sete vezes nove, sessenta e três meses de gravidez. Sete vezes quatro, vinte e oito vezes de amamentação. Sete vezes doze, oitenta e quatro meses de colo.

Cinquenta anos vezes doze meses, seiscentos meses. Agora, não mais multiplicados só por sete filhos (todos únicos). Agregados a noras, genros, netos, sobressaltando-lhe o sono, implorando-lhe ajuda, cobrando-lhe atenção. Uns, exigindo-lhe equanimidade. Outros, disputando-lhe prioridades. Dias, meses, anos, toda uma vida. (E a sua, que passou?) XV Ser sombra. Ou a força? Do marido ilustre. Telefone dos filhos para falar com o pai, distante em seu Olimpo. Mas era frágil, assustando-a, por anos, com seus sintomas. Apavorando-a, com a perda anunciada. Acompanhando-o, em suas consultas. Sofrendo, em suas internações. Assistindo, desesperada, à sua partida. Presidindo, altivamente, sua despedida. Zelando, austeramente, sua memória. XVI Recomeçar, sozinha, aos sessenta anos. Aprender práticas, corriqueiras para os outros. Entrar em um banco, pela primeira vez. Trocar por contas bancárias, talões de cheques, Surrealismo dos fundos, overnight, cadernetas, as suas caixinhas de dinheiro carimbado. Do pão, do leite, do açougue, das empregadas, dos extras. Vasos não comunicantes da sábia administração da carência de recursos. XVII Chegar aos setenta anos, olhar para trás, para a frente, E, sem medo, ver sete filhos formados, quinze netos florescendo. Ser a âncora familiar, onde os diferentes se encontram. Sogra, que não faz jus à má palavra. Avó querida dos aniversários, da Páscoa, Dia das Crianças, Natal. Sete filhos, complicados, mas corretos. Nenhum desviado de seus conselhos. Nem mesmo da religião, que todos professam, no mandamento síntese de todas as religiões: Não fazer ao próximo aquilo que não quer a si mesmo XVIII E, exorcizados esses fantasmas, lembrarmos tantas coisas bonitas, vividas em conjunto. Momentos de infância, adolescência, maturidade. Gestos, diálogos, lições, apoios, socorros. Incompreensão, reaproximações, intimidades, que ficarão guardadas, orgulhos, que deveriam ser expostos, Tantas coisas a dizer, mutuamente. Tantas coisas a reviver, ternamente. Tantas coisas a fazer, carinhosamente. Tantas coisas.

37


38

XIX

RUA CARAÇA, 527, SERRA

Tantas coisas e poderíamos dizer tudo isso a ela. Deveríamos

(Poema de Marcos de Lima Fernandes, Belo Horizonte, 25.10.1989)

dizer tudo isso a ela. Mas não iremos fazê-lo. Algo estranho nos paralisa. Não sabemos como fazê-lo. Tentaremos chegar perto, mas não o suficiente. Pouco ela ouvirá dessas bocas, sepulcralmente lacradas, injustamente caladas, perplexamente mudas. Que só depois se abrirão para, amarguradamente, chorar : Amávamos tanto nossa mãe! Quando será tarde.

Passo sempre por lá A rua não mudou muito O quarteirão ainda é quase o mesmo Principalmente o lado esquerdo O casario é quase igual O lote murado na esquina de Oriente As mesmas casas, apenas com mais grades As cores, pouco diferentes A casa, 527, também é a mesma O passeio, grades, jardim, fachada Do lado de cima, as manilhas na parede Cortada, porém, a acácia imperial. Paro no portão, penso em entrar Rever aqueles tempos Está tudo ali à mão Basta pedir ao novo dono Mas me dou conta de que ali mudou muito Falta tudo E estremeço.

Luiz Anibal, Marcos, Sérgio Monteiro de Andrade e Eduardo

Faltam o bar do Abílio Os sons do troleibus A fila da viação Kik, na esquina As pessoas que subiam e desciam As vizinhas: Dona Emilinha Dona Belmira Dona Regina Dona Floripes Dona Doca Dona Neca Ti’ Aurea

39


40

Dona Natalina

Também não se veem mais crianças na rua

Dona Lizete descendo sempre sorrindo

Com medo, talvez dos pivetes

Dona Vanda já não sobe mais, falando sozinha

Que antes eram quase que nossos irmãos.

As portuguesas da esquina de Santa Helena Os vizinhos: Dr. Luiz Gonzaga, chegando de Kombi Seu Diogo, com a perna mecânica Seu Nico, sempre viajando no interior Seu Ari, das máquinas Singer Seu Gil, do laboratório Seu Helvécio, da Mate Couro O Alcides, com o caminhão verde, Não parava de fazer filhas, até, na nona vez Acertar num menino (que nasceu bichoso).

Mas que vontade enorme de entrar na casa Devagarinho, abrindo o portão de altas grades, antes baixas e azuis Subir para a garagem Onde ficava sempre um DKW: Sedan ou Vemaguete Chegar à varanda Cheia de plantas: espadas de São Jorge, antúrios, samambaias choronas Sentar nas cadeiras de bambu Olhar o movimento da rua (como meu pai, às tardes) Abrir a porta de vidro, quadriculada, E penetrar no passado. Na sala, a radiola com o olho mágico, verde

Também não perturbam mais a rua

O relógio de pêndulo, pé alto, no canto

Os escolhidos por Deus para serem seus filhos mais frágeis

A TV americana, importada, um luxo

(talvez seus prediletos)

As mesinhas de mármore, branco

Gregório, louco manso

Os sofás, recém-reformados pelo Seu Diogo, da Barroca

Célio, repetitivo

O espelho dourado sobre o console

Luciano, estropiado

O potiche de porcelana Amigd:amar:

Gilson, bicha louca

O quadro de uma casa decrépita numa ruela do interior

Os fregueses da boca de fumo dos irmãos Biagio

(François, 949).

Os frequentadores da casa suspeita número 486.

Passar para a sala de jantar

Já não se vê mais

As porcelanas chinesas na parede

O muro cheio de rapazes, no 508 Vendo passar as moças, os ônibus, o mundo Hoje espalhados, mas os verdadeiros amigos

O filtro de barro, num canto sempre úmido O telefone preto na parede A porta de sanfona, para a cozinha

O jipe francês do Fórum não vem mais buscar o juiz

A mesa posta para nove

Dona Floripes não aluga mais quartos para moças

Se fosse domingo, seria frango ou empadão

Nem sempre de fino trato

Nas sextas, dia de feira

É possível que a Dona Belmira continue retendo as bolas

Seria salsicha, mandioca, couve frita

Do futebol de crianças que caiam em seu jardim

(o pai, na cabeceira, sempre em regime de sal).

41


42

Virar para o escritório, ao lado direito As estantes de aço, até o teto Cheias de livros vermelhos Da Editora Forense Da Jurisprudência Mineira Da Revista dos Tribunais No meio das quais, garimpavam-se pérolas Como os “Brocardos Jurídicos”, de citações em latim A máquina Remington de escrever cinza E ler os processos Vindos do Tribunal, em grandes malas Acompanhar as tragédias dos desquites Das falências, fraudes, favorecimentos (naquele tempo, não se usava a palavra corrupção). Depois, seguir pelo corredor Enorme Abrindo-se para múltiplos quartos Cada um com seus segredos Abrigando duplas ou trincas de irmãos A estante baixa, no lado esquerdo

O revólver 32, no alto no armário A espingarda de chumbinho A Cadeira do Papai O quadrado de crianças, Júnior brincando. À esquerda, o banheiro Onde se formavam filas, na hora da saída para as aulas A cortina de plástico estampado, do box O cesto de vime de roupa suja O armarinho na parede, cheio de vidros: O Linimento de Sloan O Elixir Paregórico O Leite de Magnésia de Philips O Frasco de Coramina O Bálsamo de Bengué O Bastão do Inalador Vick O Pote de seu irmão, o Unguento Vaporub Os Vidrinhos de Mercúrio Cromo A Lata de Polvilho Antisséptico Granado A Emulsão de Scott O Sal de Frutas Eno.

A Nossa Senhora do Perpétuo Socorro

Sair para fora da casa Pequena escada, para a área coberta O aquário de peixes japoneses (morriam toda vez que se trocava a água) As cadeiras brancas de ferro Andar pelo jardim lateral As roseiras, bonitas, cheias de espinhos O barracão, no fundo Num quarto, a despensa

O Santo Antônio de marfim

Pacotes, latarias, sacos

Os retratos da avó, tia, tio

Comprados no Serviço de Subsistência da Polícia Militar

Mortos tão cedo

Sempre uma saca de café, presentes do Sul de Minas

A Oração de São Francisco

Um saco de açúcar, Ponte Nova

Sobre a coragem, a sabedoria, a resignação e suas diferenças

Como as latas de goiabada cascão

A coleção do “Tesouro da Juventude” A de Monteiro Lobato (Faltava um, “A Criação do Mundo para Crianças”, incluído no Index Librorum Prohibitorum familiar) À direita, o quartos dos pais A cama, onde, de manhã O pai, ao acordar, estalava as juntas e os dedos

43


44

A caixa d’água subterrânea

Vovô Luiz, alfinete de pérola na gravata

Cuja laje era um bom quarador

Inflamado com a UDN

Roupas brancas, ao sol, polvilhadas de anil Colman

Tios Célio e Geraldo

A outra área coberta

Vovó Dedélia, suave, de preto e branco

Piso vermelhão, bom de se jogar botão

Calada, mas com uma frase especial para cada um

A rede de balanço, rangendo

O Promotor Paulo César, timidíssimo

E sentir de novo os mesmos cheiros

Talvez os dominicanos, Frei Martinho ou Frei Mateus

Mingau de aveia

Dr. Luiz Gonzaga

O frango frito

(que fazia aniversário no dia seguinte)

Empadão

Tiago Bicalho, Tó Araújo

Rosca da Rainha, da Padaria Rex, nos sábados

Todos os vizinhos que sumiram

E ouvir os mesmos sons

Todos os amigos que se separaram.

As conversas nos quartos

Está tudo ali, à mão

A música na sala

Basta pedir ao novo dono

O acordeon da vizinha de baixo

Tateio a campainha, vou tocá-la

(sempre treinando “A Cerejeira”)

No último momento, desisto

As eternas brigas dos vizinhos de cima O croar dos periquitos australianos O trinar dos canarinhos roller O bicudo, marrom e preto O barulho da bomba d’água, sempre ligada (eram tantos os banhos) E rever pessoas queridas Papai de robe, no escritório Babá Elvira, no quintal (Maria Eugênia, menina, no colo) Ana lavadeira Romualda mocinha, recém-chegada de Peçanha Seu José, jardineiro Dona Joviana. E se fosse um 3 de julho Reencontrar na sala cheia Os desembargadores Furtado, Ferraz, Santiago, Mello Júnior

Talvez, para não ser incômodo Provavelmente, pela minha natural timidez Certamente, por medo De, reencontrando aqueles tempos, Não querer mais voltar ao presente Tão mais sem graça Olho, pela última vez, as espadas de São Jorge na varanda Agora cortando fundo na alma Dou as costas e afasto-me Parto De volta a esta concha Onde, por proteção, Me recolhi no resto da vida.

45


46

1.4 E DUARDO DE LIMA FERNANDES Mamãe, do lar, da família! Desde os seus tempos de criança e de juventude, Maria Iphigênia era considerada como pessoa de uma doçura incomparável, de fina educação, de alta sensibilidade. Nasceu em Belo Horizonte, na casa de seus avós paternos, teve a primeira infância em Santa Luzia e Sabará, cidades nas quais seu pai era Promotor de Justiça, e aos 10 anos, em 1929, já estava em Belo Horizonte, onde seus pais passaram a residir - o pai, Procurador do Estado. Normalista, formou-se em 1934 no Colégio Sacré-Couer de Marie, onde se destacou em sua classe na avaliação de todos os seus professores de então, pela austeridade, pelo perfeccionismo e pela responsabilidade com que encarava seus estudos e obrigações escolares, a par da dedicação ao colégio, às suas freiras dirigentes e às suas colegas, dentre as quais fez amigas para toda a vida, como Stella Assumpção. Em 1935 iniciou namoro com o Papai, o seu Edésio Fernandes, que foi o amor de toda a sua vida, casando-se em 1938, aos 20 anos incompletos, fazendo a opção de vida de ir para o interior seguir o Promotor de Justiça, inicialmente para Elói Mendes. Ele se se tornou Juiz de Direito, Desembargador do TJMG – sendo seu Presidente –, Professor Emérito da UFMG, e passou na sua carreira por mais seis comarcas, voltando para Belo Horizonte, comarca especial, em 1954, já com seis filhos, tendo nascido mais tarde em BH, em 1958, seu filho caçula, nosso irmão Edésio Júnior. Teve, na juventude, muitas amigas também para toda a vida, como Nilce Velloso, e, dentre suas cunhadas, sua amiga Eurydice Fernandes, que assim se expressou à época em relação a ela: “Maria Iphigênia, querida, Você traz para o caminho dos que se encontram com o seu destino duas festas lindas: a graça, que é a festa dos olhos, e a bondade, que é a festa do coração.” (Eurydice Fernandes, em 29/7/1936)

Sempre olhei para Mamãe e a vi como uma mulher forte, mesmo quando fisicamente debilitada antes de seu falecimento; dignidade, caráter, sabedoria, generosidade, humildade, doação, dedicação, além de sua sensatez, inteligência e discrição, foram traços marcantes de sua personalidade, reconhecidos por todos que a cercaram em toda a sua vida. Tendo vivido 84 anos, foi o esteio da nossa família Lima Fernandes, a guia, a educadora, a protetora, nos ensinando a trilhar o caminho do bem, a buscar no seu exemplo nosso comportamento de vida.

Convivi com ela 55 anos, guardo de sua figura doce e carinhosa tênues lembranças desde os quatro ou cinco anos de idade, em Lavras e Ponte Nova, e fortes lembranças desde os sete anos em Belo Horizonte: Floresta - Av. Tocantins, depois, Serra - Rua Caraça, até o fim de sua linda trajetória, em Lourdes - Rua Espírito Santo, além dos momentos inesquecíveis na casa de seus pais, nossos avós Lulu e Voinha, em Lourdes - Rua Tomaz Gonzaga. É indescritível sua presença em cada um de nós, sete irmãos, cuidando de cada um e de todos, a par de um apoio incondicional ao Papai ao longo de sua carreira na magistratura, a qual exigiu dele intensa devoção, e lhe custou a vida partindo tão cedo, na plenitude de sua vida profissional, decano do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, aos 67 anos. Quanto ao Papai, o consolo da Mamãe, que viveu mais 23 anos após seu falecimento em 1980, foi a obra que ele deixou, de tanto reconhecimento, e que está descrita no livro em que o homenageamos por ocasião da comemoração de seu centenário de nascimento, em 2013: “Edésio Fernandes, Um Homem Simples a Serviço da Justiça”. E quanto a nós, a partir de então, só intensificamos a devoção e a admiração àquela que tanto se doou para cuidar do lar e da família!

47


48

A família cresceu, noras, genros, netos, bisnetos, novidades que nossos pais foram experi-

em Belo Horizonte, a Babá Elvira, a querida Elvira Campolina, por quase 40 anos cuidando

mentando a cada dia, e que os enchia de orgulho, foram se multiplicando, e a Mamãe, sem

dela e de todos nós, e que repousa no túmulo do Bonfim junto com a Mamãe. Gratidão! E

o Papai, foi preenchendo a sua vida com ainda mais dedicação e interesse pelo bem-estar e

também à querida Romualda, a Romualda Modesta Vieira, que, menina, chegou à casa da

pelo desenvolvimento de todos nós.

Serra e tanto ajudou a Mamãe e todos nós, por quase 50 anos, e que, graças a Deus, está em

A Mamãe nasceu em 19 de novembro de 1918, “Dia da Bandeira, Dia das Orquídeas, Dia de Maria Iphigênia”, algum de nós escreveu na celebração do que seriam os seus 89 anos, e complementei: “Também nosso dia! Dia da nossa família, em homenagem a quem sempre

sua morada de Betim, com saúde, junto de seus familiares queridos, nos seus 81 anos, e que tem para sempre o nosso agradecimento. Como a Mamãe gostava e confiava nas duas, cada uma a seu tempo!

cuidou de preservar nossa amizade, nossa união, nossa fraternidade. Contaríamos hoje 89

Voltada para o lar e para a família, as viagens, depois que voltou para Belo Horizonte, não

anos, contamos até 84. E que contagem fantástica. Que legado tivemos. Que maravilha ter

foram um ponto forte em sua vida, talvez porque tenha viajado tanto pelo interior do estado,

podido conviver com ela por 55 anos. Que vida rica, quanta sabedoria, quanta meiguice. Não

mas, principalmente, porque não havia a ânsia de viajar como hoje em dia. Eu me lembro de

vamos perdê-la nunca. Não há como. Sua marca está em todos nós”. Assim, como uma luz

nossas viagens com a Mamãe, até mesmo quando morava no Sul de Minas, para as tempo-

que não se apaga, está firme e forte entre nós, que lhe dedicamos a gratidão eterna por tudo

radas nas estâncias hidrominerais, especialmente Poços de Caldas e Caxambu, depois saindo

o que ela foi, e é, para todos da familia Lima Fernandes.

de Belo Horizonte, também para aquelas estâncias do sul, às quais adorávamos, e o Papai

Herdamos sua paixão pelas plantas e pelas flores, orquídeas e bromélias em especial. Sou herdeiro de parte de suas lindas e tão bem cuidadas orquídeas e bromélias, que, passados 15 anos, renovadas, ainda estão na minha casa, a me lembrarem sempre da Mamãe cuidando delas. E no meu jardim, um Manacá que floresce e perfuma todos os anos, e uma Dama da Noite, de encantar com o perfume que exala em várias épocas do ano, são preciosidades que transplantei da sua “jardineira” do apartamento da Rua Espírito Santo, também

descansava de sua labuta judiciária, incluindo Cambuquira, e Rio de Janeiro, umas poucas vezes. Só isso! Com o Papai, talvez tenha ido uma vez à Bahia e outra a São Paulo, além de também por algumas vezes tê-lo acompanhado nas visitas que fez pelas cidades em que havia morado, recebendo homenagens e reafirmações das amizades que fez por todo lado onde esteve. Sobre viagens, a preocupação era com as de seus filhos e depois as de seus netos: “nossa, eles não param quietos, todo dia tem um viajando” - era sua inquietação. E como nos aproveitamos de sua bondade para olhar nossos filhos nas mais longas viagens para o exterior, nas quais os meninos ficavam com ela, e assim viajávamos tranquilos, cumprindo obrigações profissionais, ou mesmo emendando nas viagens de lazer. São inesquecíveis para

para minha casa. Só boas recordações!

nós, e creio, para nossos filhos, essas temporadas vividas com ela.

Na história da Mamãe – filha, irmã, esposa,

Com a morte do Papai, em 1980, ela, com 62 anos, teve de se reinventar, termo da moda que

mãe, avó, bisavó, como muito poucas pes-

ela adotou já naquele tempo. Assumiu mais do que os afazeres domésticos, a obrigação e a

soas que conhecemos dedicadas à família -

função de gerir os recursos financeiros da casa. Aprendeu a usar os bancos, a aplicar suas

não cansamos de lembrar e agradecer a duas

economias, sempre que podia, ajudando os filhos em suas necessidades, numa generosida-

pessoas tão queridas a nós, que foram suas

de ímpar, com justiça e equidade. E na sua necessidade de continuar a praticar o bem, daí

guardiãs em toda a sua vida. Uma, que ten-

preenchendo o grande vazio que teve em sua vida, ingressou no Serviço Voluntário da Santa

do ajudado a cuidar dela menina, na casa do

Casa de Misericórdia de Belo Horizonte – AVOSC, onde permaneceu até seu falecimento, em

Vovô Lulu, a acompanhou depois de casada

8 de maio de 2003. Com justificado orgulho carregava no peito quatro estrelas douradas,

na sua peregrinação com o Papai pelo inte-

significando cada uma 1.000 honrosas horas de trabalho dedicadas aos carentes da Santa

rior das Minas Gerais, e até a casa da Serra,

Casa, e bordadas em seu uniforme azul-turqueza, que fazia questão de usar, impecável em

49


50

sua aparência, aliás, como foi sua elegância ao se vestir ao longo de toda a sua vida, com simplicidade, sobriedade, mas com um bom gosto de fazer inveja. Como todos os irmãos sempre

1.5 C ÂNDIDO LUIZ DE LIMA FERNANDES Em louvor ao centenário de nascimento de minha mãe

apontaram em seus relatos sobre a Mamãe, em seu velório no Salão Nobre da Santa Casa, ela recebeu incontáveis e belíssimas homenagens de tantos que com ela conviveram em seus 84 anos, que a viram descansando solene e eternamente no meio de um verdadeiro jardim de flores que a cercavam, a lembrar sua paixão por elas.

Para Sempre “Por que Deus permite que as mães vão-se embora?

Então, os revezes, em 1989, a partida do Marcos, nosso irmão, marcante, aos 53 anos, na

Mãe não tem limite,

plenitude de sua vida, uma inversão que ela nunca aceitou, e daí começou a sua debilitação

é tempo sem hora,

física, com a lembrança dolorosa da perda de sua família, mãe, irmã e irmão, num curto perío-

luz que não apaga

do, entre 1947 e 1949, arrasando seu pai, o Vovô Lulu, que ficou só, com a Mamãe seguindo

quando sopra o vento

o Papai em seu périplo na magistratura mineira, vivendo no interior, nas então longínquas

e chuva desaba,

comarcas do interior do Estado.

veludo escondido

Vovô, também ele um homem tão forte que conseguiu superar esse drama familiar, de ma-

na pele enrugada,

neira altiva, e graças a outra vida dedicada a ele, a da querida “tia” Maria Augusta, nossa

água pura, ar puro,

Vodrasta, com a qual convivemos muitos bons anos, e com tanto carinho dela recebido. E a

puro pensamento.

Mamãe sempre nos dizendo como sua Madastra, que se tornou sua amiga, foi importante

Morrer acontece

para o Vovô, e como elas se deram bem durante suas vidas. Maria Augusta, ainda ficou

com o que é breve e passa

conosco mais quatro anos depois da partida de Maria Iphigênia. E aproveitamos muito

sem deixar vestígio.

bem esse tempo!

Mãe, na sua graça,

Tanta coisa a mais para lembrar, dizer, escrever, mas sei que todos da família vão dar seu depoimento sobre a Mamãe, assim, tudo, todas as sensações de cada um serão expressas neste livro de celebração do seu centenário de nascimento, que, tenho certeza, comtemplará de forma extensa e completa a riquíssima história da vida de Maria Iphigênia Vianna de Lima, que se tornou Maria Iphigênia de Lima Fernandes.

é eternidade. Por que Deus se lembra - mistério profundo de tirá-la um dia? Fosse eu Rei do Mundo, baixava uma lei:

E, para finalizar, não podia deixar de registrar aqui a oração que a inspirava, de São Francisco

Mãe não morre nunca,

de Assis, exposta toda a vida na sua cabeceira:

mãe ficará sempre

“Senhor, dai-me força para mudar as coisas que posso mudar, resignação para aceitar aquelas que não posso mudar, e sabedoria para ver a diferença”.

junto de seu filho e ele, velho embora, será pequenino

E foi assim toda a vida de Maria Iphigênia, nosso maior orgulho, nosso exemplo, nossa guia,

feito grão de milho”.

nossa MÃE!

(Carlos Drummond de Andrade, em Lição de Coisas: poesia, 1962)

Cândido, Maria Iphigênia e Heloisa

51


cabeça erguida na superação da dor da perda. Devo dizer que minha fé, que tem seus alicerces na dela, muito me ajudou nas dificuldades por que passei nos últimos anos.

52

Muitas são as lembranças que tenho de minha mãe, desde a infância. Das férias que passei com ela, meu pai e os irmãos mais novos, Maria Eugênia e Edésio Júnior, nas estâncias hidrominerais do sul de Minas. Das visitas semanais às casas do avô materno, da avó paterna e das tias da Floresta. Das tias de minha mãe, de seu amor pela música e sua religiosidade. Das festas de aniversário que preparava para o meu pai no seu 3 de julho. Das festas de seu aniversário em 19 de novembro, Dia da Bandeira, e do bolo feito com as cores nacionais. Das festas de meu aniversário (“No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, eu era feliz e ninguém estava morto“ - Fernando Pessoa).

Maria Augusta, Maria Iphigênia e Cândido Luiz

Hoje faz 15 anos que minha mãe, Maria Iphigênia, foi-se embora. Fui uma das últimas pessoas da família que esteve com ela, na véspera do seu falecimento. Ao ser levada para o CTI, ela olhou firmemente para mim, Maria Eugênia e Maria Inês, como quem dissesse: “Vocês vão me deixar ir?”. Às 11h30 do dia 8 de maio de 2003 recebi o telefonema de Maria Eugênia avisando que mamãe tinha morrido. Ela se foi no mês de Maria, sua devoção, numa manhã de infinito azul. Pediu para ser sepultada com o seu uniforme azul de voluntária da Santa Casa, com cinco estrelas bordadas, representando, cada uma, mil horas de trabalho voluntário. Treze anos depois, quando o túmulo da família foi aberto para receber o corpo de seu filho Luiz Anibal, foi encontrado um pedaço de pano azul com as estrelas bordadas, que indicavam tantas horas de devoção aos pobres e doentes. Sou o quinto filho de uma família de sete. Quando nasci, meu pai me deu o nome do irmão de minha mãe, Cândido Luiz, que tinha falecido dois anos antes, aos vinte e dois anos, vítima de um acidente aéreo. No espaço de um ano e meio antes desse trágico acidente, mamãe perdeu a irmã Júnia, ainda jovem, e, poucos meses depois, sua mãe, Maria Eugênia. Essas perdas marcaram muito sua vida. A elas se somariam, anos mais tarde, a perda de meu pai, Edésio, de seu pai, Luiz e de Marcos, seu terceiro filho. No entanto, sua fé inabalável a manteve de

Os tempos passados na Rua Caraça, 527, no Bairro da Serra, foram inesquecíveis. Em 1979, a casa foi vendida e meus pais passaram a morar em um espaçoso apartamento à Rua Espírito Santo, em Lourdes. Tinha uma grande área privativa, onde minha mãe cultivava belas orquídeas e meu pai tratava dos passarinhos. Ali, junto com Denise e meus filhos, Bruno e Marina, nos encontrávamos aos domingos com os irmãos, cunhados e sobrinhos. Era uma enorme alegria compartilhar aqueles momentos domingueiros de união familiar, que tinham minha mãe como centro. Meu pai morou pouco tempo ali, pois faleceu em dezembro de 1980. Minha mãe sempre contou com a companhia dessa pessoa maravilhosa que é a Romualda, que trabalhava na casa dela e ficou com ela até sua partida. Depois da morte do meu pai, mamãe teve de aprender a viver sozinha e se tornar independente. A partir de então, passou a administrar muito bem sua vida e suas finanças pessoais, sempre aberta a apoiar filhos e netos em suas dificuldades (como diz o poeta, “mãe é sem limite, é tempo sem hora”). Sua mente se abriu, ela passou a olhar o mundo com mais realismo e menos preconceitos. Tínhamos longas conversas e me impressionavam sua perspicácia, sua inteligência e sua visão do mundo. Minha mãe muito me ajudou nas minhas dificuldades financeiras e meus problemas pessoais. Ficamos mais amigos ainda na maturidade. Era sua companhia nas missas de domingo, na Igreja do Belvedere de que ela tanto gostava. Hoje, no silêncio das lembranças, quando sopra o vento e chuva desaba, sinto a presença dessa luz que não se apaga. Sou imensamente grato à minha mãe pelo dom da vida, pelas inúmeras lições de vida que nos deixou, por sua presença nos momentos alegres e tristes, pelo carinho com que sempre me tratou – e também minha mulher e meus filhos –, pelo seu amor, desapego, generosidade e bondade. Descanse em paz, mamãe! Saudades eternas.

53


54

1.6 M ARIA EUGÊNIA FERNANDES COURI Um raio de sol Penso nela todos os dias. Sem faltar um. Com saudade, respeito, entendimento e admiração crescentes. Constato com alegria o quanto dela carrego, ao me ver tentando desempenhar, da melhor maneira possível, a pluralidade de papéis que a vida me trouxe. Busco e encontro sinais da sua presença de várias formas e em diversas situações, o que me conforta, norteia e direciona. Encanta-me reconhecê-la nas minhas memórias afetivas docemente cultivadas; a emoção flui, quando ouço o Rêve d’Amour, de Liszt, ou o Noturno nº 2, de Chopin; diante de copos-de-leite e orquídeas, camélias em lapelas, casaquinhos e sapatinhos de tricô. As receitas culinárias familiares acalentam a minha alma: tanto a “Torta da Americana” quanto a “Gelatina de Mosaicos” ou a “Montanha Russa” estão para mim como a “madeleine”, para Proust. Ditados como “A cada dia basta o seu mal” e orações, especialmente a que pede “coragem para mudar o que pode ser mudado, serenidade para aceitar o que não pode ser mudado e sabedoria para ver a diferença”, evocam lembranças preciosas. A fé, a devoção por Nossa Senhora, o voluntariado, o gosto pela leitura, o prazer de reunir a família e o encantamento pelos netos, tudo isto, orgulhosamente, herdei dela. Recebi de suas mãos dois dos seus bens materiais que considero os mais preciosos: a aliança de casamento e o uniforme azul de Voluntária da Santa Casa, par do que foi com ela. Mamãe, querida Mamãe… Invoco seu exemplo e inspiração para sabiamente conduzir uma numerosa prole. Quando ela se foi, uma parte da minha história se perdeu para sempre; há respostas para fatos da minha vida que só ela saberia me dar.

Em uma afetuosa carta, datada de 1953, em resposta à que lhe fora enviada pela cunhada que, apreensiva, lhe comunicava a sexta gravidez aos 35 anos -, Eurydice Fernandes Goyatá, minha doce Tia Eurydice, escreveu: “tenha certeza de que essa criança será um raio de sol em sua vida, querida Maria Iphigênia!” Penso que fui.

55


56

1.7 E DÉSIO FERNANDES JÚNIOR Comemorando a vida de Maria Iphigênia Tive com minha mãe uma das relações mais completas que já experimentei, e sou muito grato à vida por ter tido tempo de construir uma relação madura e um diálogo aberto com ela – a ponto de ela dizer que, apesar da distância física entre nós, eu estava sempre presente. Acho que, além da relação de família, éramos, nos tornamos amigos. Sinto uma saudade incomensurável dela. Estava organizando memórias e sentimentos, procurando as palavras para falar sobre ela, quando me lembrei vagamente de que havia escrito um texto que li durante a Missa de 7o dia dela, em 2003. Ao relê-lo, percebi que estava tudo ali, tudo o que eu queria dizer sobre ela – e assim vou reproduzi-lo abaixo. “Estamos aqui reunidos para comemorar a vida de Maria Iphigênia de Lima Fernandes, no momento em que seu ciclo se encerrou. Comemoremos, então, no sentido mais profundo da palavra: vamos lembrar juntos o que foram os 84 anos de sua vida, vamos reconstituir juntos, no domínio infinito de nossa memória, o tecido tão precioso da sua bela vida pessoal. Quando Maria Iphigênia fez 70 anos, morando longe e querendo participar de alguma forma da comemoração de então, escrevi para ela dizendo: “A imagem que tenho de você revela tantos desafios, sempre um caminho a construir entre rupturas e perdas, uma identidade a construir entre as referências tão fortes das pessoas que aconteceram na sua vida. De tudo, o que a cada dia admiro mais é o vigor com que você colocou a marca de sua verdade nessa obra. Para além da metáfora da ‘mulher forte do Evangelho’, o que sempre tentei, ao longo da minha vida, foi perceber as emoções da mulher frágil, que mora tão sozinha por trás dessa aparência de quem tudo suporta.

Porque na vida, eu aprendi, os contrários nunca se excluem, mas se integram numa síntese que se oferece às variações do nosso olhar. E o meu olhar hoje, mais velho, mais calmo, aqui tão longe e tão só, me revela uma mulher muito bonita e digna, um ser humano que sempre se colocou na vida de uma maneira intensa e apaixonada, até mesmo quando o chão pareceu fugir dos seus pés…” 14 anos mais tarde, eu lhes peço licença para lhes contar agora um pouco da trajetória dessa mulher. Maria Iphigênia Vianna de Lima nasceu em 1918, no seio de uma tradicional família mineira, não exatamente rica, mas certamente privilegiada em termos sociais e culturais. Sobretudo, nasceu no seio de uma família amorosa, onde cresceu feliz com seu pai Luiz, sua mãe Maria Eugênia e seus irmãos Júnia e Cândido Luiz. Depois de uma breve passagem por Sabará e Santa Luzia, foi em Belo Horizonte que foi educada e onde, ainda muito jovem, conheceu o também jovem jurista Edésio Fernandes, com quem iria se casar aos 19 anos, e a quem dedicaria, de maneira sempre apaixonada, quase 50 anos de sua vida. Nas palavras do registro do jornal local acerca de seu casamento, a “linda senhorinha do jet-set de Belo Horizonte e seu esposo embarcaram para a lua-de-mel no comboio destinado ao Rio de Janeiro”. Sua vida, contudo, não foi esse prometido mar de rosas. Logo depois de seu casamento, o destino lhe reservou – em um período muito breve de tempo – a dor imensa e inesquecível da perda de sua mãe, sua irmã e seu irmão, todos em circunstâncias trágicas. Já mãe de família, Maria Iphigênia, o juiz de direito Edésio e seus seis filhos peregrinaram por mais de 15 anos pelo interior de Minas Gerais afora – no tempo em que o interior era muito longe, a vida, difícil, e as comunicações, tão precárias.

Casamento dia 10 de novembro de 1938

57


58

Por onde passou, ela deixou sua marca. Em especial, as mulheres das comarcas admiravam não apenas a beleza e a elegância natural da jovem esposa do juiz, mas, sobretudo, sua generosidade e sua conduta digna e discreta, sempre balizadas por sua fé religiosa, por seu código firme de valores morais, e por seu inabalável sentido de família. Ainda que fragilizada pela dor de tantas perdas, a tenacidade de Maria Iphigênia encontrou, além do apoio amoroso do esposo e dos filhos, suporte em dois fatores importantes que certamente lhe trouxeram grande estabilidade emocional. Em que pesem todas as muitas dificuldades e os desafios da vida precária pelo interior afora, a trajetória de Maria Iphigênia se tornou mais suave dada a presença fiel da Babá Elvira Campolina, que, depois de vê-la crescer, ajudou-a a criar seis de seus sete filhos. Além disso, o vazio deixado no seu núcleo familiar original pela tragédia foi aos poucos sendo preenchido pela renovação da família, com o casamento de seu pai, Luiz, com Maria Augusta, de quem se tornou amiga e companheira inseparável ao longo de tantas décadas de convivência. A chegada da irmã-filha Maria Inês veio completar esse novo quadro familiar. Com a chegada da família Lima Fernandes a Belo Horizonte, em meados dos anos 1950, a vida de Maria Iphigênia e Edésio ganhou outra dimensão. A carreira brilhante do juiz o levou a ocupar com brilhantismo ainda maior uma posição no Tribunal de Justiça de Minas Gerais. A família se consolidou com a chegada de mais um filho. Depois de tantos anos de viagens, a família finalmente se fixou na tranquila Rua Caraça, onde Maria Iphigênia fez um círculo precioso de amizades duradouras, onde viu seus filhos crescer e, aos poucos, tomar rumos e constituir as próprias famílias.

A Babá Elvira já não a acompanhou nesse estágio e deixou muita saudade, mas a vida de Maria Iphigênia e sua família se tornou melhor e mais confortável graças ao trabalho e à dedicação incomparáveis de Romualda Modesta Vieira. Ainda adolescente, Romualda se juntou à família Lima Fernandes, e desde então, por quase 50 anos, tem cuidado de todos nós com desprendimento e amor, sempre do seu jeito silencioso, discreto e profundamente sábio. Muitos dos anos da Rua Caraça, contudo, foram marcados pela longa história de doenças do esposo, Edésio. Mais uma vez, Maria Iphigênia conheceu a dor e o medo, e mais uma vez sua tenacidade prevaleceu. A sombra da morte anunciada, porém, rondou sempre por perto de todas as histórias de sucesso profissional do esposo e dos filhos, da chegada dos netos, e das realizações de várias ordens. Mais de 20 anos depois da chegada à Rua Caraça, com a família já ramificada, Maria Iphigênia e Edésio se mudaram para a segurança do apartamento na Rua Espírito Santo, levando consigo para esta quase-casa um filho e muitas gaiolas de passarinhos. Edésio viveu muito pouco tempo nessa nova morada, deixando Maria Iphigênia viúva em 1980, ainda tão jovem. O filho logo tomou rumo, os passarinhos, também. Por um tempo, Maria Iphigênia se dedicou a acompanhar os processos de doença e morte de seu pai, Luiz, e de sua tia Laurita, mas logo se viu sozinha.

Babá Elvira

Foi então que, já depois dos 60 anos, Maria Iphigênia começou a construir de maneira ainda mais notável uma nova dimensão de sua personalidade – e de sua existência. Depois de ter sido filha exemplar, esposa apaixonada, agora que os filhos já tinham traçado seus caminhos, confrontada com a solidão, Maria Iphigênia preferiu o caminho da doação generosa de si. Maria Iphigênia, Edésio e Maria Augusta

Por cerca de 20 anos trabalhou como Voluntária da Santa Casa de Misericordia.

Sr. Roberto

59


Cuidou da própria vida, de suas contas e suas obri-

60

gações, sem jamais incomodar ninguém. Dedicou-se ainda mais a seus filhos e netos, familiares e amigos, sempre com delicadeza, presença e respeito. Durante todo esse tempo, teve do seu lado sua fiel escudeira, Romualda, e também o Seu Roberto, que por 12 anos a conduziu pelas ruas de Belo Horizonte com segurança e extremo cuidado e carinho. Mulher inteligente, leitora voraz, Maria Iphigênia se tornou cada vez mais aberta, acompanhando com curiosidade e algum desconforto as mudanças do mundo, dos costumes e da política. Tornou-se uma Maria Iphigênia e Romualda

cidadã, no sentido mais forte da palavra.

Vibrando sempre com o sucesso e com a saúde dos filhos e netos, em 1998 Maria Iphigênia chegou aos seus 80 anos, celebrados com uma grande festa. Contudo, apenas uma semana após a festa, mais uma vez a face trágica do seu destino se impôs, desta vez proferindo o golpe mais cruel. Depois de levar sua mãe, sua irmã, seu irmão, seu esposo, seu pai, familiares e tantos amigos e amigas queridos, a morte lhe roubou repentinamente o seu filho poeta. Foi então que a fragilidade de Maria Iphigênia começou a se impor sobre sua tenacidade. A dor visceral da perda do filho foi por um tempo confortada com a chegada do primeiro bisneto, mas pouco a pouco o seu corpo físico foi tomado por um processo de autoboicote, levando a uma perda progressiva de sua qualidade de vida cotidiana. Depois de uma longa vida extremamente privilegiada em termos de sua saúde pessoal, no ano passado Maria Iphigênia enfrentou uma grave crise de saúde. Desde então, ao longo deste último ano, seu mundo foi ficando cada vez mais restrito, sem sabor, sem tato, sem nuance de luz, sem movimento livre, a vida cada vez mais difícil e penosa. Em que pese toda a enorme dedicação dos médicos, das acompanhantes Juraci, Mariinha e Vanda, e da fisioterapeuta Bárbara, e do cuidado ainda mais redobrado da Romualda, a verdade é que Maria Iphigênia foi aos poucos perdendo a graça de viver.

Sua principal fonte de alegria, sempre renovada, se tornou o seu belo orquidário. Cada movimento das folhas e raízes era notado, cada botão que se anunciava, cada flor que se abria… Durante todo o seu processo de decadência física, Maria Iphigênia manteve aquela que, no meu entender, era sua característica principal: uma profunda lucidez – lucidez que é sempre, ao mesmo tempo, bênção e maldição. Sofria ao se ver perdendo o controle de si mesma, sofria com a ideia de que teria que incomodar a família. Nesse ano de doença e sofrimento, acho que Maria Iphigênia foi aos poucos se reconciliando com a ideia de sua partida iminente, sempre buscando força e coragem na sua fé. Sua hora chegou na semana passada, e, por mais que tivéssemos sido avisados, estávamos tão despreparados – e aqui estamos tão desolados. Mas sabemos que Maria Iphigênia se foi em paz, porque completou seu ciclo de vida com sabedoria, generosidade, honestidade e, sobretudo, com muito amor. Deixou sua bela marca, deixou seu notável exemplo, cumpriu o seu dever, iluminou e vai iluminar sempre os nossos caminhos. Se sua vida não foi um mar de rosas, preparamos para ela, para seu repouso final, uma cama de rosas, e a cobrimos com as orquídeas de seu jardim querido. Em nome da família Lima Fernandes, muito obrigado a todos e todas que, ao longo de toda essa trajetória, de alguma forma fizeram a vida de Maria Iphigênia melhor e mais suave.”

61


62

1.8 ERTON CARVALHO

Essa estreita convivência fez com que os netos aprofundassem os laços de amor e amizade com a avó. Ela não gostava de viajar, mas visitou-nos algumas vezes no Rio de Janeiro. Sua vida foi marcada pela perda sucessiva de sua mãe, Maria Eugênia, e dos ainda jovens irmãos, Júnia e Cândido Luiz. Quando da partida para a eternidade do Dr. Edésio, ela enfrentou este golpe com grande tristeza e serenidade, buscando forças em sua fé profunda e na maior integração com os filhos. Promoveu mudanças no cotidiano de sua vida, administrou contas bancárias e assumiu, na Santa Casa de Misericórdia, um voluntariado devotado às pobres mulheres enfermas que necessitavam de ajuda e carinho. São inesquecíveis as reuniões natalinas que Dona Iphigênia organizava com os filhos e netos, marcadas pela harmonia familiar, criando um ambiente de paz e alegria naquela casa. Na ocasião, o meu cunhado Marcos, poeta da família, apresentava lindos textos, que mereceram uma publicação especial após sua morte.

Maria Iphigênia foi a mulher, que no seu tempo, venceu os obstáculos para formar e educar uma família de sete filhos. Percorreu, por mais de 15 anos, uma boa parte do interior mineiro, superando o impacto de uma mudança brusca, deixando para trás a vida confortável que tinha na capital. Acompanhando o marido em todas as comarcas que embasaram o seu crescimento, até a presidência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, Maria Iphigênia superou todas as dificuldades relativas à educação de sua família. A convivência com os filhos sempre foi aberta, colocando-a, também, como um canal de comunicação junto ao Dr. Edésio, pessoa de temperamento reservado. Mulher bonita, elegante e educada, esboçava sempre atitudes firmes no enfrentamento dos problemas do cotidiano. Na sua residência da Rua Caraça, 527, no ano de 1965, deu-se o nosso primeiro encontro, quando comecei a namorar Heloisa, minha querida esposa, a quem devoto amor e uma profunda admiração. Acompanhei, desde então, a família Lima Fernandes, aumentando minha consideração e meu respeito por Dona Iphigênia, como eu a chamava. Pelo seu caráter, sua liderança e sua postura perante a vida, cresceu e fortificou entre nós uma respeitosa amizade, que mantenho até hoje nas minhas lembranças. Meus dois filhos nasceram em Belo Horizonte e, durante seu primeiro mês de vida, contaram com o suporte de minha sogra em sua acolhedora residência. Foi madrinha de batismo de Cristiana, a filha primogênita, e meu filho Henrique morou em sua casa por quase dois anos.

Dona Iphigênia sempre esteve atenta às dificuldades da família, ajudando quem precisasse. Quando comprei o apartamento em que moro atualmente, houve um atraso no recebimento do meu fundo de garantia por tempo de serviço. Ela, generosamente, se prontificou a me emprestar a importância que faltava para que a compra fosse realizada. Negou-se a receber a correção monetária, que lhe propus, dizendo “não sou agiota!”. Apresentei-lhe, então, os meus sinceros agradecimentos. Afirmou que ficava feliz em nos ver bem instalados. Na comemoração do centenário de nascimento de Dona Maria Iphigênia, apresento este singelo texto em homenagem à mulher que marcou e deixou como símbolo para toda a família - seus filhos, noras, genros e netos - as diretrizes que têm norteado nossas vidas.

1.9 C RISTIANA FERNANDES CARVALHO E HENRIQUE FERNANDES CARVALHO (in memoriam) Ternas recordações de minha avó Maria Iphigênia Como primeira neta e afilhada de batismo de minha avó Maria Iphigênia – e coincidentemente fazíamos aniversário em datas muito próximas, com diferença de dois dias, ela em 19 e eu em 21 de novembro, sob o mesmo signo de escorpião –, tínhamos várias afinidades e características pessoais. Várias são as minhas memórias, pois, apesar de morarmos em cidades diferentes, minha avó sempre foi muito presente em minha formação, educação, meus princípios morais, éticos e religiosos.

63


64

Desde pequenos, eu e meu ir-

De aparência frágil, mas muito forte inte-

mão Henrique (in memoriam)

riormente, teve várias perdas familiares e

passávamos as férias escolares

superou-as com muita dignidade. Começou

em Belo Horizonte, na casa dos

a se dedicar em suas tardes semanais às en-

avós. Era uma grande expecta-

fermarias femininas e masculinas da Santa

tiva terminar o ano letivo, via-

Casa de Misericórdia, onde fazia um belo

jar de avião desacompanhados

trabalho social como voluntária. A cada mil

para BH e chegar a tempo de

horas de dedicação recebia em seu crachá

ajudar a vovó a arrumar a bela

uma estrelinha.

árvore de Natal. Colocávamos

Guardo, também, a lembrança de vê-la

alguns enfeites antigos de fa-

sentada na sala de televisão tricotando

mília e outros mais novos, além do maravilhoso presépio que tinha areia, vegetação, bichi-

maravilhosos sapatinhos, casaquinhos e

nhos e belas imagens, as quais me deixavam fascinada. Era a época - e a data - do ano predileta e inesquecível: o Natal! Casa lotada, reunião de família com oportunidade de encontrar

macacões para os primos mais novos que

todos os tios, tias, primos e primas. A comida deliciosa feita com tanto carinho e amor pela

estavam para nascer.

querida Romualda, escudeira fiel e anjo da guarda da vovó. Como eu adorava ficar na cozinha aprendendo e ajudando... Vovó fazendo a tradicional e familiar receita da Torta da Americana, com nozes, geleia de damasco e vinho moscatel e a Gelatina de Mosaico colorida. Infelizmente, depois da morte do meu irmão, Henrique, passei a não gostar mais da festa de Natal. É muito triste a ausência dele nessa data. Muito forte, também, na minha vida, foi o legado religioso que minha avó me transmitiu. Sempre me levava para assistir às missas dominicais na Igreja de Lourdes. Após a missa, visitávamos a gruta e acendíamos velas. Ela também me passou sua devoção ao Menino Jesus de Praga e à Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Sua fé inabalável, sua religiosidade e devoção eram um exemplo para mim. Boas lembranças ainda guardo das nossas idas ao mercado do Cruzeiro para comprar frutas, hortaliças, legumes, biscoitos, queijos, doces e sua carne preferida, miolo de alcatra. Depois do falecimento do meu avô, Romualda se incumbiu dessa tarefa, auxiliada pelo motorista.

Minha avó gostava de ficar a par do que se passava no mundo, no Brasil e em sua cidade. Tinha o hábito de ler, todas as manhãs, ainda na cama, o jornal Estado de Minas. Também gostava de ver as novelas da Globo e alguns programas e filmes. Era uma pessoa que apreciava ter sua casa bem arrumada, florida, receber visitas dos amigos e parentes, oferecendo-lhes lanches deliciosos. Vovó era sempre elegante, vaidosa e bem cuidada. Seu cabelo era impecável, prateado e brilhante e com bastante laquê, penteado por sua cabelereira preferida, D. Neusa, do salão do Minas Tênis Clube. Suas roupas prediletas eram de tons pastel, blazers, tailleurs e saias abaixo dos joelhos. Suas pernas eram roliças, lindas, sem varizes. Era muito recatada, orgulhava-se de nunca ter usado um maiô na vida. Por isso, acho que não gostava de passear no Rio de Janeiro, preferia passar férias nas estâncias hidrominerais. A preferida do meu avô Edésio era Caxambu, hospedados no Grande Hotel. Desejando prestar à vovó Maria Iphigênia uma homenagem por ocasião da comemoração do

Minha avó era uma mulher forte, sábia, imparcial, justa e muito discreta, não se intrometendo

centenário de seu nascimento, transcrevo aqui algumas memórias dessas ternas lembranças

na vida conjugal dos filhos. Tinha um grande ditado, que me repetia sempre: “Minha filha, o

que afloraram à mente, ressaltando a profunda saudade das férias passadas em sua compa-

verbo mais difícil de se conjugar é CONVIVER!”.

nhia, na casa da Rua Caraça e no apartamento da Rua Espírito Santo.

65


66

1.10 LUCY PAIM FERNANDES Dona Maria Iphigênia, Sogra e Mãe

Muitas saudades.

67

Pequena lembrança póstuma por seu centenário em 19 de novembro de 2018.

1.11 LUIZ RENATO PAIM FERNANDES Perto do centenário do seu nascimento, não é difícil falar ou escrever sobre minha avó, Vovó Gegena, como eu a chamava. A facilidade vem da presença constante dela em minha vida, desde muito pequeno até os dias atuais. Relacionamento pautado pelo respeito mútuo, diálogo, amizade, companheirismo, confidências e cumplicidade, alguns dos itens que permearam nossa convivência sogra/nora.

Como fui o primeiro neto de uma avó muito jovem, na casa dos 50 anos, tive o privilégio de muita convivência, ensinamentos, conversas e amizade.

Valores inerentes à minha educação - éticos, morais, religiosos, sociais, firmeza de caráter, entre outros - foram ampliados e fortalecidos pela convivência com D. Maria Iphigênia, mulher de princípios e conduta ilibada que nortearam nosso bem viver Por que Mãe? Perdi precocemente minha Mãe. Na minha fase adulta, com marido, filhos e trabalho, houve momentos em que buscava seus conselhos de mãe, mulher e filha. Desamparada, perguntei à D. Maria Iphigênia: “A Senhora quer ser minha Mãe?” E ela, sem titubear, respondeu-me: “Ja’ sou, MINHA FILHA”! Surpresa e feliz, dei-lhe um abraço e a vida continuou. Que delicadeza de sentimentos! Se possível fosse, não deixaria “Palavras por Dizer” - título de um livro de que gostei muito, de Marie Cardinal -, mas, se continuasse nas tantas lembranças, este texto se tornaria um compêndio.

Com ela aprendi as primeiras lições de uma educação formal, religiosa, repleta de valores éticos e morais. Mais do que isso, aprendi a compreender as pessoas, como elas se relacionam, como harmonizar situações complexas, que era o que ela fazia de melhor. É impressionante como ela está presente em cada ato meu, cada ação, cada enfrentamento de todas as situações ao longo da vida. Desenvolvi com ela uma relação de amizade na adolescência, que teve muita cumplicidade e muito amor, apesar de ela ser “durona”, o que o tempo cuidou de amaciar. Na fase adulta, o fato marcante foi o nascimento do Lucas, primeiro bisneto, que reacendeu sua vontade de viver já na fase de decadência física. Pôde ainda conhecer o Pedro, segundo bisneto, já na fase da maior fragilidade. Obrigado, Vovó Gegena! Por eu ser quem sou!


68

1.12 RODRIGO PAIM FERNANDES Tive o prazer de conviver diariamente com minha avó, durante quase um ano, quando meus pais moravam em Brasília e eu cursava o primeiro ano de Faculdade em Belo Horizonte. Pude, a cada dia, conhecer melhor, no horário do almoço e no lanche da tarde, os seus valores e pensamentos. Tenho ótimas lembranças da Vovó Gegena! Dentre inúmeros pensamentos que me vêm à cabeça, sempre me recordo daquela mesa, bem farta, com vários tios e primos conversando alegremente, normalmente aos domingos. Nesse clima ameno e prazeroso, ficávamos sabendo das “boas novas” de cada um, uma namorada nova, um novo local para sair, a faculdade que cada um cursava. Sempre sob o olhar atento de nossa avó, que contava “causos” memoráveis, cheios de nuances e detalhes curiosos. Sophia, Maria Iphigênia e Rodrigo

Sempre se mostrou ser uma pessoa muito forte – firme e delicada ao mesmo tempo. Transmitia os valores familiares com muita precisão, contando histórias da família. Sempre preocupada e atenta para que os filhos e netos seguissem a conduta e o caráter familiar e ao mesmo tempo fossem pessoas próximas e conectadas uns aos outros. Estava sempre bem informada. Não deixava de ler diariamente o Jornal do Brasil – JB – se informando de detalhes da política e dos acontecimentos no Brasil e no mundo. Gostava também de ver na televisão o Jornal Hoje, se preocupando e comentando com todos sobre as notícias. Enfim, vovó foi um exemplo de esposa, avó, irmã, mãe - um ser humano inigualável, que serve de exemplo para todos nós. Um verdadeiro pilar para a formação de nossa família.

1.13 VERENA SILVIANO BRANDÃO AHOUAGI FERNANDES Sinto assim, ainda, sempre, a presença dela. Aquele amor imenso, muito discreto, muito verdadeiro, muito solidário.

Preocupada com tudo e com todos. Reservada. Delicada. Respeitosa e respeitada. Queria se inteirar de tudo. Sempre. Queria estar presente. Sempre. Só para ajudar. De verdade! Amor imenso e doce. Sabia falar sem palavras. Ou com muitas palavras também. Suave. Incisiva. Amorosa. Guerreira. Silvia, Maria Iphigênia e Verena Venceu desafios inimagináveis. Pelos filhos. Pelo marido amado. Pela família unida. Atenta. Assertiva. Sensível. Coração sempre disponível. Amparando filhos, noras, netos, marido, família, amigos. Todo mundo. Discretamente. Distribuiu amor, compreensão, solidariedade e compaixão pelos corredores e leitos doloridos da Santa Casa. Orgulho do dever cumprido. Estrelinhas brilhando em seu uniforme azul. Orgulho meu também, nora agradecida, que a ama muito. Sinto uma falta imensa daquelas nossas conversas diárias, quando meu telefone tocava de manhã: "Minha filha, como você está?" Muita saudade das notícias fresquinhas da família, dos amigos, dos desabafos do coração. Das ponderações sábias. Grande alegria conviver com ela! Minha sogra maternal. Minha sogra solidária e generosa. Sempre pronta a apaziguar. Minha sogra amorosa. Muito amada. Sempre lembrada. Por seu caráter firme e sua fé.

69


70

Por sua delicadeza. Por sua presença envolvente e doce. Por construir com meu sogro uma família exemplar de princípios elevados, correção e lisura a toda prova. Qualidades raras, nestes tempos de agora. Culta. Antenada. Presente. Reservada. Envolvente. Sábia. Determinada. Cumpriu sua missão à risca. E nos deixou assim tão saudosos. Do seu sorriso. Da sua presença. Do seu amor.

1.14 SILVIA AHOUAGI FERNANDES Entre Marias, Orquídeas e um Vestido Azul “Vó é mãe da mãe, é mãe do pai. Vó é mãe duas vezes!”. Cresci ouvindo isso. A minha, além disso, exerceu esta paternidade – maternidade quando a gente se viu, muito cedo, sem o elo que nos unia. E assim, nos unimos ainda mais. O universo que ela me apresentou criava pontes seguras entre força e delicadeza. Entre espiritualidade, amor pelas flores e pelo trabalho voluntário. Havia os filmes de tribunal também, mas já falamos disto em outro momento. Onde ela morava, neste reduto, um porto seguro de todas as horas, tinha um orquidário sempre florido. De lá, vinha um telefonema constante que tocava e dizia: “Silvinha, tá boa? Sua avó pediu para te chamar para almoçar com ela aqui. Você vem? Vou preparar sua comida preferida“. No dia marcado, a porta abria, a avó se surpreendia. “Não sabia que você viria, que surpresa boa!”. Por trás daqueles telefonemas, mais amor, dos mais puros, o da Romualda, um

anjo guardião que foi enviado para derramar ternura e fazer parte de nossa reservada família mineira. Aquela casa tinha a capacidade de parar o tempo, fazer recobrar a paz. Ainda tem. Esses encontros vieram merecidos. Foram muitos anos sonhando vividamente, repassando na mente cada um desses momentos como seriam. Os anos morando longe eram repletos de sonhos de esse dia chegar, poder ir e vir para a casa da avó. Pois ali, além dela, da Romualda, tinha um tesouro, uma grande família, entre eles, 18 primos que faziam o coração pular de alegria. Sentia por ela grande sintonia, uma amizade mesmo. Gostava de estar com ela, passar tempo juntas, sempre um grande encontro. Tínhamos muito a conversar. Tão diferentes, eu era a mais moleca, perdia os laços de fita, os sapatos de verniz ficavam nos cantos, escalava portas, chegava correndo, com os cabelos já desalinhados e as bochechas vermelhas. Ela era linda, elegante e discreta. Tinha cheiro de lavanda, com mãos bonitas, muito macias, esmalte nude ou rosado, falava baixo e usava meia fina. Na lapela de suas roupas em tons pastel ou marinho e branco, muitas vezes, uma camélia como broche. Seus cabelos ondulados, muito bem arrumados, brilhavam como a cor das nuvens num dia bonito. Quando criança, passávamos as férias na sua casa. Quando um pouco maiores, ficávamos, meu irmão e eu, somente com ela e Romualda. Ao acordar, vitamina de banana com gotinhas de baunilha, nossa favorita, acompanhada de biscoitos de polvilho. Não tinha cardápio melhor. À noite, aprendíamos a rezar. Meus pais, os dois vindos de famílias muito religiosas, passaram um tempo ateus. Muito fiéis à moral e à ética recebidas em suas formações, não nos impuseram o aprendizado religioso. O importante era sermos pessoas de bem. Mas a mágica se fazia nas férias. Quando descobríamos com a Vovó esse momento tão sublime de conversar com Deus. Era tão simples e tão bom. Íamos com ela à missa aos sábados e isto plantou as melhores sementes em nós. No seu silêncio, uma fé emocionante, verdadeira. Descobrimos que isso existia com ela, que nos mostrou o caminho. Passar pelas provas da vida sem perder a leveza. Para ser forte, não tinha que deixar de ser frágil nem suave. Tinha, apenas, que confiar e seguir. A oração preferida, para a Mãe de todos, a outra Maria, primeira delas, para quem cantava “Nossa Senhora, me dê a mão, cuida do meu coração, da minha vida, do meu destino”. Música adorada, tocada para ela em seu aniversário de 80 anos. Melodia que se repete em minha mente em alguns momentos e nos encontramos por lá. O orquidário chegou depois, mas marcou demais. Nem sei quanto tempo durou, eterno para mim. Era o primeiro assunto: “Você viu a flor que abriu?”. Descobri as Cattleyas, Laelias, Ondiciuns, Dendrobiuns, Phalaenopsis, Bromelias e tantas outras. Não eram muitas pessoas que tinham orquidários em casa, uma grande novidade. Tinha orquidófilo e tudo mais. A beleza

71


72

das flores nos fazia, mais uma vez, elevar o pensamento embevecido. “Como poderiam existir, serem criadas assim tão belas? Quem cria flor só pode ser muito bom”. Falávamos disso. E a partir daquele orquidário, muito da vida era ensinado. Para plantar, é importante preparar o terreno, o substrato. Para cultivar, ajudar a crescer, tinha que se dedicar, se doar. O tempo, as regas nos dias e horários certos, adubos para cada ocasião. Para florescer, o mais importante, o milagre do sol. Fora isso, a mão boa da Romualda, que ensinava ainda mais. Poderia não saber de orquídeas, mas sabia demais sobre amor, em transmitir este amor a tudo o que tocava. Era preciso observar os ciclos, ter paciência, esperar até um ano para rever a flor. Respeitar a natureza, que tem seu tempo próprio. Descobrir que, mais bonito que as flores, são as raízes, que sustentam a vida. Ou os brotos, que são o prenúncio da continuidade. Quando vem a flor, ficamos felizes, mas o importante é o processo, é cultivar. No pé de Roma, uma Laelia se aclimatou. Sabia que era querida. Formou touceira e respondia com belas flores. Brancas, com labelos amarelos. Lindas e chiques como a sua dona. Para completar esse presente, desabrochavam pontualmente às vésperas de seu aniversário. Ela dizia assim: “Já viu que minhas convidadas chegaram?“. O presente era completo, pois vinham sete flores. Segundo ela, uma para cada um de seus filhos. Quando ela se foi, o orquidário foi partilhado entre a família. As placas de xaxim, hoje tesouros, são mantidas nas casas de vários de seus descendentes. Na minha, resolvi há tempos me aventurar e assumir os cuidados com as orquídeas. Eram as janelas de uma reconexão muito sublime. Mergulhei fundo em materiais de botânica, procurei livros, cursos, vídeos, grupos de orquidofilia. Para minha surpresa, as orquídeas respondem bem aos meus cuidados. Devem sentir a herança de amor que corre entre nós. As histórias se repetem. E se tornaram a primeira coisa do meu dia, para onde retorna sempre minha mente. A próxima data da adubação, a mudança de vaso, a nova espécie, os cuidados com as pragas. A mente se limpa, a alma fica leve. O encantamento com as orquídeas, com a avó nunca se perdeu. Hoje repito a frase para todos que chegam. Uma frase que é incontrolável, inevitável: “Já viu a flor que abriu?”. E o pensamento que acompanha: “Quem criou algo tão lindo só pode ser bom”.

O tempo dela chegou, a flor mais bonita daquele orquidário, um dia, como tinha de ser, após cumprir com louvor seu ciclo, feneceu. Já enfraquecida, pressentiu algo, chamou a filha mais nova, Tia Maria Eugênia, e disse: “O Vestido Azul”. Ela não deixaria para trás seu jardim, seu orquidário familiar, sem um último grande exemplo, sem nos colocar o melhor adubo. Pediu que sua última veste fosse aquela pela qual mais se orgulhava. O uniforme azul que vestiu por décadas, como voluntária da Santa Casa de Misericórdia, onde também recebeu as últimas homenagens. Que não poderíamos esquecer o broche com seu nome e as estrelinhas, uma carreira delas, que correspondiam às centenas de horas acumuladas ao serviço ao próximo, sua maior doação pessoal. Tive a honra de acompanhá-la em várias tardes por aqueles imensos corredores da Santa Casa. Ela me ensinou a pegar na mão das pessoas, a olhar com carinho, conversar, ouvir e percorrer o maior número de leitos. Essa última imagem tão cuidada, que não nos aponta o fim, mas o começo, o meio, a continuidade. Aponta o caminho do trabalho constante, do melhoramento, do cuidado, o cultivo do amor. A repensar que o que verdadeiramente importa no saldo da vida são nossos gestos, nossas atitudes corretas, as escolhas, os laços que criamos durante nossa caminhada. Persigo até hoje aquela Laelia branca. Já adquiri algumas semelhantes, mas não a mesma. Talvez porque aquela more ali, no meu coração, na mais doce lembrança. Ou ainda, porque a foto que temos dela, muito orgulhosa ao lado das orquídeas no pé de Roma, não esteja com ótima resolução, assim como a memória. Depois dela, nunca mais vi uma flor sem pensar em Deus. Toda orquídea que me apareceu desde então foi uma oração, um agradecimento à vida e à lembrança de um sorriso. A partir dela, nunca mais passaram despercebidas a dor do próximo, as causas sociais. Com compromisso, parte do meu tempo durante todo o ano é dedicado a quem mais precisa. Com ela, continuo a traçar meu caminho, tentando seguir os exemplos e acertar a hora de plantar, adubar e colher. Seguindo até hoje entre Marias, Orquídeas e um Vestido Azul.

Se nas orquídeas os brotos que surgiram depois permanecem após o enfraquecimento do bulbo anterior, que lhes deu origem, o ciclo da Vovó se inverteu. Um dia, uma de suas sete

1.15 MARCOS AHOUAGI FERNANDES

flores, meu pai, fisicamente o mais parecido com ela, se foi. Antes dela, sem aviso. Vi a sua bravura em seguir seus dias, em nos confortar. Foi mãe do pai, foi pai e mãe de minha mãe, de meu irmão e de mim. Não fosse ela, essa prova tão dura não teria sido aliviada. Nós estivemos ainda mais próximas.

Já se passaram 15 anos desde a sua partida! Com muita emoção e alegria celebramos a importante data do centenário de nascimento dessa mulher admirável que tantas saudades deixou.

73


Era uma pessoa única, em diversos sentidos. A começar pelo nome, Maria Iphigênia, com I e PH. Por trás da aparência frágil, voz mansa e do jeito suave, exercia forte presença em nossas vidas, mas sempre de forma natural e sutil.

74

Marcos e Isabela Ahouagi Fernandes

75

Pelo seu exemplo, nos transmitiu os mais ricos ensinamentos cristãos. Sempre admirei a sua devoção e seu exemplo de caridade. Considero que a exemplificação da fé cristã talvez seja o mais importante legado que D. Maria Iphigênia tenha nos deixado. Enquanto o Dr. Edésio nos deixou um inquestionável exemplo de conduta moral e probidade profissional, alcançando

destaque e reconhecimento, a Vovó Iphigênia nos mostrou qual o caminho para que sejamos bem-sucedidos nos assuntos relacionados às nossas obrigações como cristãos. Sua fé e sua fibra moral foram testadas severamente ao longo de sua vida, com inúmeras adversidades, em especial as perdas sucessivas de entes muito queridos e próximos. Contudo, se levantou, superou os

Maria Iphigênia e netos

Após o fatídico e precoce falecimento do meu pai, passei a frequentar mais a sua casa durante a semana. Sempre arrumava um jeito de dar uma escapada do trabalho para ir almoçar com ela, que sempre demonstrava grande alegria em me receber. Sua companhia foi muito impor-

percalços e “deu a outra face” à vida, retribuindo com caridade e muito trabalho voluntário.

tante para mim naquele momento tão turbulento, pois me sentia acolhido e amado. Por outro

Tive o privilégio de ter um convívio cotidiano muito próximo com ela, pois durante os oito

querido. Ao contrário das outras perdas que teve na vida, foi notório que após esse ocorrido

anos em que vivi em Brasília ficava hospedado em sua residência durante todo o período de

sua resiliência foi se esvaindo aos poucos. Senti que, após esse baque, sua saúde começou a

férias. Assim que retornei a Belo Horizonte, permanecemos em seu apartamento por quase

piorar e em poucos anos os problemas se agravaram, culminando em sua partida.

quatro meses, aguardando o término das reformas em nosso apartamento na Rua Muzambinho. Acredito que essa experiência tenha sido fundamental para que tivéssemos uma relação

lado, me sentia impotente em tentar confortar a sua dor, de perder um filho tão jovem e tão

Eu sentia que tinha com ela uma relação especial. Mas, hoje, tenho a convicção de que ela

próxima até a sua partida. Foram momentos especiais em minha vida, doces lembranças de

tinha esse dom de fazer todos se sentirem desse mesmo modo.

uma convivência extremamente agradável e leve. Como era gostoso tomar café da manhã

São 15 anos de muitas saudades, mas também de muita gratidão por ter tido a sorte de ter

desfrutando da sua companhia. Lembro-me que em sua mesa nunca podiam faltar o tradi-

sido neto de uma mulher tão especial como ela!

cional pão com manteiga, coalhada e as deliciosas torradinhas feitas pela Romualda. O apartamento da Vovó era o palco especial para o sagrado encontro semanal da família nas tardes de domingo. Para nós, os netos, era o momento mais aguardado da semana, rever os primos e

1.16 ELIZABETH LOBATO

orquestrar bagunças homéricas, quase sempre realizadas no espaçoso escritório do Vovô Edésio. Apesar do caos, Vovó sempre achava graça e nunca nos repreendeu. Era momento também de

Meu ex-marido, Eduardo, era o quarto filho dela na sucessão de sete.

nos empanturrarmos com as maravilhas gastronômicas da querida Romualda. Dentre os pratos

Dona Iphigênia era doce, mas enérgica,

que são o sabor da minha infância estão os famosos: salpicão, torta de nozes e gelatina colorida.

disciplinada e organizada para conseguir manter a ordem daquela casa florida de filhos.


76

Para mim, ela foi um exemplo de como manter a ordem dentro de casa e como ser esposa

1.17 BERNARDO LOBATO FERNANDES

cuidadosa. Adorava as flores.

Sinto-me um privilegiado por ter lembranças tão vivas de uma avó tão presente e carinhosa. É impossível pensar na minha infância e juventude sem me lembrar da Vovó. Os lanches de domingo à noite, quando os primos e tios se encontravam eram momentos de grande alegria. As datas comemorativas em sua casa eram ansiosamente aguardadas, não tenho nenhuma dúvida de que o coelhinho da Páscoa e o Papai Noel realmente passavam por lá.

Sempre me levava ao jardim e mostrava a mais nova florzinha nascendo. Os almoços domingueiros eram o encontro de todos ao redor da mesa e cada um contava sua semana ou seus projetos. Natal era na casa dela. No meio dessa tradição, sentava-se no chão para brincar com os netos. Eu gostava de ver aquilo. Era feminino. Muita fé, muita religião. Ela era muito doce no falar. Peço a Deus para me manter conectada a essa imagem que me deixou. Acho importante ser mulher. Ser mulher e ter força discreta.

Sua casa era nossa segunda casa. Foram muitas temporadas lá durante as viagens longas dos nossos pais ao exterior, cuidando com carinho e rigor de mim e dos meus irmãos, em uma época em que o máximo que se conseguia era um breve telefonema de vez em quando. Vovó Iphigênia era um exemplo de avó e de pessoa. Além de carinhosa, sua calma, seu senso de justiça e seus princípios morais eram absolutamente inabaláveis. Sem nunca ter alterado o tom de voz e de forma leve e natural, ela influenciava todos à sua volta, era a representação da nossa família. Certamente vou levar o seu exemplo para meus filhos. Saudades.

1.18 EDUARDO LOBATO FERNANDES Não há como falar de minha avó sem me lembrar de sua impecável apresentação em seu uniforme azul de voluntária na Santa Casa de Belo Horizonte, lugar no qual se dedicou tantos anos a ajudar.

Beth, Maria Iphigênia, Lucy e Armando

Tenho fortes memórias, pois por vários anos de minha vida eu passava temporadas em sua casa quando meus pais estavam em viagem a trabalho no exterior. Naquela época não havia as facilidades de comunicação de hoje, portanto eu ficava semanas sem falar com meus pais, o que me fez estar mais presente junto à Vovó Gegena, que assumia toda a

77


78

função/“obrigação” de me assistir. Tive assim uma oportunidade única de conviver com seu dia a dia, observar sua maneira mais introspectiva, e sua calma de viver e de se relacionar. Sempre muito atenta, cuidadosa, e o mais interessante: como conseguia ser liberal, mas rígida, mantendo sempre a situação sob seu total controle, jamais por autoritarismo, mas por sua sutileza.

a família, desde a deliciosa comida da Romualda até a balinha jujuba que os netos ganhavam e que eram entregues em mãos pela Vovó.

Há uma lembrança direta de Romualda, pessoa que a ajudou a comandar aquela movimentada casa que recebia continuamente seus filhos e netos. Foram vários almoços juntos, e lembro que ela nunca abriu mão de uma mesa posta, e de seu bife com cebolas e tomates grandes. À noite, sempre um lanche, e depois assistia à sua novela fazendo tricô. Ela adorava ler a Bíblia para mim quando eu ia dormir, transformava tudo numa interessante história para criança. Falava muito do meu avô, me mostrava suas medalhas e honrarias recebidas comentando uma a uma. Enfim, sempre foi uma casa com muitas histórias...

Vovó também me ensinou a rezar. Lembro com muita clareza na minha infância todas as vezes em que meus pais viajavam e eu passava dias em sua casa, e ela carinhosamente me confortava ao deitar, sempre com uma bela oração.

Tudo isso foi em minha infância. Quando cresci um pouco e já não havendo mais a necessidade de ficar em sua casa na ausência de meus pais, eu sempre a visitava rigorosamente aos domingos no final do dia, hábito de toda a família que perdurou até o final de sua vida. São inenarráveis momentos e recordações, vejo todos com muita nitidez, não dá pra acreditar que foram tantos anos atrás.

Na casa da Vovó tivemos uma deliciosa convivência com os primos, Natais e comemorações inesquecíveis! Tradição que cultivamos, agora bem representada por seus filhos.

Só tenho a agradecer a Vovó por ter me proporcionado esses momentos em minha vida, por ter me ensinado o verdadeiro valor de uma família, por ter sido um grande exemplo de afeto, bondade e de fé espiritual. Sem dúvidas, o maior exemplo de ternura que tive em minha vida.

Fica a eterna gratidão, o respeito e a saudade de seu neto, que tem imenso orgulho e privilégio de ter tido a Vovó Genena em sua vida!

1.19 LEONARDO LOBATO FERNANDES Lembranças da Vovó Gegena. Tive o privilégio de conviver com a Vovó até os meus 25 anos, início da vida adulta, e, quanto mais o tempo passa, mais eu consigo perceber seus valores, sua extrema delicadeza e bondade – e como estes traços estão presentes em nossa família, nos seus filhos, netos e passando para os bisnetos. As melhores lembranças estão nos encontros familiares aos domingos, em seu apartamento na Rua Espírito Santo, onde toda a família se reunia em um ambiente aconchegante, acolhedor, que era carinhosamente preparado para receber

Maria Iphigênia e netos

1.20 ADRIENE SOUZA MENDES Infelizmente, pouco convivi com D. Maria Iphigênia, mas o suficiente para sentir o carinho e o cuidado dela com toda a família e comigo.

79


80

Lembro-me perfeitamente da primeira vez em que nos vimos, no aniversário do Eduardo, quando fomos oficialmente apresentadas como nora e sogra, eu aos 40 e ela aos 83, muito elegante, ao lado da D. Maria Augusta, em um dia frio de novembro. Naquele dia, senti a responsabilidade e a sorte de entrar para sua família, que tão bem me acolheu. Recordo-me também do primeiro dia em que fui à sua casa, na Rua Espírito Santo, quando me mostrou as orquídeas e bromélias de que tanto gostava, depois nos sentamos lado a lado e ficamos alguns minutos de mãos dadas num gesto de carinho inesquecível. Pouco convivemos, mas a vejo na decoração da casa do Miguelão, nas mesas muito bem postas pelo Eduardo para os almoços de domingo, no prazer que a família tem em presentear. Não há como negar sua presença na educação e na formação da família que criou, deixando fortes traços de sua personalidade e zelo, tão comentados por pessoas que a conheceram bem. A mim resta agradecer a Deus a sorte de ter entrado para sua família e lamentar o pouco tempo que tivemos juntas.

1.21 DENISE PORTELA DE LIMA FERNANDES D. Iphigênia: convivi com ela por 28 anos. Tímida, reservada, falava com os olhos. Mulher forte, corajosa, criou (e bem!) sete filhos. Companheira inseparável do Dr. Edésio, muito jovem enfrentou com ele pequenas cidades, algumas sem conforto nenhum. Não era de dar grandes risadas e o sorriso mostrava toda a sua timidez. O afeto vinha sempre com uma palavra, solidariedade ou mesmo um sapatinho de tricô feito por ela. Aprendi muito com ela sobre família, generosidade, compaixão e principalmente a fazer do exemplo Casamento de Cândido e Denise

o melhor conselho. Esteve a meu lado em todos os

momentos, nos alegres e nos difíceis. Admirava muito seu trabalho voluntário, primeiro na Igreja São João Evangelista e depois na Santa Casa. Respeito foi o que sempre senti por ela, por sua história de tantas perdas em curto espaço de tempo, por sua coragem em enfrentar o mundo, por não desistir nunca. Avó presente e amorosa, orgulhava-se igualmente dos 15 netos. E os filhos... Ah, os filhos! Esses eram merecedores do seu amor incondicional. Gostaria de ter dado mais abraços, de ter dito que a amava. Aproveito para fazê-lo aqui.

1.22 B RUNO PORTELA DE LIMA FERNANDES Memórias de casa de Vó Um domingo qualquer. Sete da noite. No apartamento da Rua Espírito Santo. Damas da noite perfumavam a entrada. Chegávamos, os netos, como príncipes e princesas. Banho tomado, penteados, vestidos com a roupa mais chique do guarda-roupa. Era o dia de ver a avó elegante, do encontro da família, de beijar a madrinha – quem não beija madrinha não cresce, dizia minha mãe – da empadinha de queijo, da bala jujuba, da coca sem gás, de encerrar o fim de semana com chave de ouro. A trilha sonora era o tema de abertura dos Trapalhões mesclado com o do Fantástico. E realmente era fantástico. Como meus domingos se tornaram vazios desde que ela se foi... Durante anos da minha infância, os fins de semana eram dedicados às casas das avós. Na casa da avó Cely eu já tinha até um guarda-roupas. Era o lugar do pode tudo, das experiências, das provações, e também das visitas póstumas ao pronto-socorro. Já saía da aula de sexta-feira na espreita de rumar para esse playground semissupervisionado. Ficava lá até domingo, quando costumava ir ao estádio com meu padrinho, que morava convenientemente no mesmo prédio, mas tinha a incumbência de me devolver a tempo em casa para um banho rápido, um trato, e a ida à casa da Avó Iphigênia. Nas minhas lembranças, o apartamento dela deveria ter uns mil metros quadrados. O longo hall espelhado da entrada, com as pedras de ardósia verde musgo, o porteiro sisudo, um estranho jardim interno que intercalava a passagem cheia de sofás, almofadas e assentos inúteis, diga-se de passagem, até o elevador pantaneonicamente pintado de verde água. Era apenas um andar de subida, mas eu adorava o som que ele fazia – blim, blom, tchaca tchaca, tchaca...

81


82

Eu me lembro também do som da campainha. Do lado de dentro, começava uma ansiedade: “quem será agora”? Torcíamos para que todos comparecessem. Ninguém usava a primeira sala. Tinha dois longos bancos e uma passagem para a área privativa que desconfio que jamais havia sido usada. Tenho uma linda foto com a prima Juliana, nós dois com dois anos, dividindo a mesma cadeira, justamente nessa passagem, mas não me lembro de ter frequentado esse lugar depois. Mentira. Marquinhos e eu usávamos essa sala em nossas intermináveis partidas de futebol de botão, logo que ele e a família retornaram de uma temporada vivendo em Brasília, e moraram na casa da Vovó por um tempo. A segunda sala era usada apenas em ocasiões especiais. Abrigava um belíssimo e austero relógio de corda, que quando badalava às vinte e duas horas despertava a senha no Tio Marcos, que puxava a fila das despedidas com um “vamos chegando” que desesperava Marquinhos e Silvinha. Era o sinal de que faltaria uma semana inteira para começar tudo aquilo de novo. A partir dali, íamos todos embora. Essa sala mudava de figura quando chegava o Natal. A começar pelo passarinho robô que cantava na árvore gigantesca, cercada de uma infinidade de presentes. Eu me recordo da Tia Helô tocando o sino pra juntar a turma, meu pai no violão, minha mãe no coro, e nosso coral, ah, nosso belo e destemido coral de Natal, com o Guga na primeira geração e o Rô na segunda como os papais noéis mais magros que o mundo já viu. A sala se enchia de tios e primos e até a primeira sala era usada como abrigo dos presentes. Todos esses momentos eram registrados pela Cris em filmes Kodak asa 400 de 36 poses. A copa, ou sala de jantar, era estranhamente protegida por uma parede inteira de uma espécie de cobogó de madeira e uma porta. Dali, também tínhamos acesso a uma das áreas privativas, onde ficavam as orquídeas intocáveis da Vovó, e onde, lá no fundo, já ficaram os passarinhos do Vovô Edésio, e cujo muro era dividido com a clínica veterinária São Francisco de Assis. Não me esqueço de um dia em que um cachorro tentou escapar pelo muro e se deparou com oito crianças afoitas por uma mascote. As vacinas e a pequena jaula em que habitava temporariamente nunca haviam lhe parecido tão acolhedoras. Por ali, gostávamos também de cortar caminho para os quartos, pulando as janelas e deixando pegadas na parede que nos entregariam no dia seguinte. No domingo, a sala de jantar abrigava as mulheres, a Vovó, o lanche, e quem estivesse com fome. O cardápio continha as disputadas empadinhas de queijo da Romualda, pães diversos da saudosa padaria Trigais, frios, lagarto ao vinagrete, pão de queijo, coca sem gás e uma

infinidade de doces, passando pela tradicional torta quatro leites, gelatina colorida de guaraná, torta de nozes, todo o arsenal que a Romualda deixava pronto e alguma novidade que a Tia Maria Eugênia sempre costumava trazer para contribuir. Para as crianças, copos e pratos verdes de acrílico, todos conjuntados. O próximo espaço era a sala de televisão, habitada pelos homens adultos. Nela, com o Fantástico de pano de fundo, se falava de economia, moderamente de política, e quase nunca sobre futebol, a não ser quando o América ganhava, para alegria dos tios Eduardo e Marcos. Ou seja... O quarto anexo a essa sala já ficava reservado para o primo Daniel. Aquele menino alegre, risonho, curioso e apaixonado por animais simplesmente desabava de sono. E ai de quem tentasse acordá-lo. Tio Armando penava para levá-lo embora. Que inveja tinha daquele sono profundo. Dormia na Avó e acordava em casa no dia seguinte. Foi nesse quarto que vi e ouvi o Guga ensaiar os primeiros acordes no saxofone e o Dudu deixar cair um vidro com uma aranha caranguejeira em conserva no álcool. Talvez por estar tão próximo dos adultos, esse recinto permanecia intocável por nós, para a sorte do Daniel, que podia dormir em paz. Da sala de televisão, ao lado do simpático móvel em que constava um telefone e um banco para as longas conversas da Vovó, afinal, eram sete filhos, outros tantos irmãos e muita gente para tomar conta, havia a passagem para a outra área privativa. Lá, vi uma memorável partida de tênis improvisada entre as samambaias, em que a dupla Kiko e Dino bateu a dupla Be e Dudu, arbitrada parcialmente pelo Léo, que deixou a fraternidade de lado, e deu o match point para os primos. Deve ter custado caro depois. O quarto seguinte, que um dia foi habitado pelo Tio Edésio (Júnior), era agora habitado pela ala jovem. Rodrigo era o zelador. Tinha uma TV lá e, nós, do meio da hierarquia para trás, podíamos frequentar de vez em quando. Eu, como décimo neto, até que frequentava bastante, mas a entrada dos mais novos era condicionada. Na parede, havia quinze quadrinhos com fotos de todos os netos, delicadamente produzidos no Foto Studio Sonora, ou no Foto Elias. Os mais velhos tinham quadros maiores. Nossa diversão era deixar todos tortos. Minha foto tinha um reluzente fundo azul que harmonizava com minha camisa amarela pedindo Diretas Já. Esse cômodo também serviu de aposento do Kiko no curto período em que ele morou em Belo Horizonte. Já mais velho e agora com livre acesso, pude desfrutar de diversas discussões e aplicações musicais com o tão saudoso e querido primo radicado no Rio de Janeiro. Foi lá também que, por coincidência, conheci e li o livro que a Cristiana escreveu tão jovem sobre nosso Avô Edésio. Era também o quarto em que Marina e eu dormíamos quando pernoitávamos na casa da Vovó. Numa dessas, após o toque de recolher, catei os manuscritos da Cris e devorei tudo com uma lanterna, embaixo do cobertor.

83


84

O corredor era cercado por robustos armários. Anos depois, graças ao Tio Luiz Anibal, descobrimos ali o esconderijo das desejadas balas jujubas. Ele era o primeiro a se servir, com as vermelhas, e passava as demais para a criançada – justo. Quando a Vovó falava “só uma para cada um”, já não havia espaço em nossas bocas. O último quarto à esquerda era o da Vovó. Um santuário. Acho que nunca entrei lá. Nem no mais remoto desafio de esconde-esconde. Na minha cabeça, nosso respeito por ela começava justamente ali. Em sua intimidade preservada. Já o último quarto da casa era nossa Disney. Vovô Edésio não tem ideia do que fizemos do antigo escritório dele. Mas tenho certeza de que ele teria aprovado a algazarra. Quantas vezes o imaginei sentado na cadeira de couro marrom, com os pés esticados, óculos na ponta do nariz, fingindo ler o jornal, mas observando os quinze netos aprontarem ali em um lugar em que produziu tantas leis, mas havia se tornado uma terra de ninguém. Na ausência do Vovô, a lei era a Vovó. Não me esqueço de um episódio em que, subitamente, ela abriu a porta e encontrou a seguinte cena: Léo e eu fazendo rapel nas estantes. Dudu, Dino e Be esticando a Marina para ver se ela crescia. Silvinha e Ju tentando se equilibrar em pernas de pau compradas na saudosa loja do João Ternura, Marquinhos catando os cacos (ele havia derrubado todas as placas e os troféus do Vovô com uma almofadada), Daniel dormindo no sofá e Renata, a caçula, escondida dentro do frigobar. É claro que isso não aconteceu em um só dia, mas resume bastante o que fazíamos lá todo domingo. E não parava por aí. Na segunda-feira ela ligava para a casa de cada um perguntando onde estavam as chaves das portas e dos armários, queria saber quem havia guardado um livro na geladeira, o porquê de a TV do quarto não mudar de canal, quem havia mordido uma naftalina, por que a porta do armário estava empenada e quem havia desarrumado os quadros.... Tudo com um singelo humor, mas com a autoridade de quem precisava mostrar que não era certo. Mas, lá, podia. E Vovó sempre conseguia controlar a gente no olhar. Só isso já bastava. Eu me lembro dela com muita saudade. Aquela senhora elegante, sempre pronta para receber visitas (até do Papa, talvez), que falava baixo, começava as frases sempre com “Ó...”, um amor de pessoa, que conversava também pelo olhar, uma avó com cara e jeito de avó, que cuidava da gente, que rezava por nós, que acompanhava os passos de cada um e agia à sua maneira. Um dia, quando me encontrava perdido, aos 21 anos, fui almoçar em sua casa e ela me deu o mais precioso dos conselhos. Somente ela e eu, após um banquete, frango assado e aquela

farofinha que só a Romualda sabia fazer, ela segurou minhas mãos e falou: “Ó, meu filho, estou vendo você aí, triste, perdido, doente, vai ser feliz, vai tocar, vá aproveitar sua vida, não se leve tão a sério”. Aquilo, vindo de quem sempre viveu uma vida regrada, criou sete filhos, pajeou 15 netos, foi esposa de juiz, desembargador, viajou por todo o estado, geriu lares e lares, virou um mantra para mim. E foi isso que eu fiz, Vó. Segui seu conselho à risca. Não me tornei músico profissional, mas fiz da música pano de fundo do meu cotidiano. Através dela conheci a Clara, o amor da minha vida, me casei com ela, e como eu gostaria que você a tivesse conhecido, Vó. Vocês certamente teriam se dado muito bem. Ela também sabe me controlar no olhar. Aprendeu com a senhora sem a conhecer. E depois tivemos suas bisnetas Maria e Sofia, que certamente aprontariam no quarto do fundo, mas correriam para abraçar a bisa chique. Tudo o que fiz, Vó, foi fazer da minha vida o que fazíamos no escritório do Vovô, me levando pouco a sério e, na ausência da senhora para me dar mais conselhos como este, olho pra foto abaixo, que ilumina minha sala, e penso: é assim que ela gostaria que eu fizesse. E faço. E funciona. Eternas saudades, deliciosas lembranças e a gratidão por ter tido a senhora, mesmo que por pouco tempo, mas, em compensação, por todos ainda termos um tanto da senhora em nossas vidas. As melhores memórias de casa de vó.

85


86

1.23 MARINA PORTELA FERNANDES RODARTE Minha Avó, É curioso como nós seres humanos temos a tendência de valorizar mais as pessoas na perda. Tal fenômeno pode ser notado desde artistas que só alcançaram a devida fama após sua morte, até nos nossos entes mais queridos que pensamos sempre o quanto mais poderíamos ter feito quando os tínhamos entre nós. Ao sentar para escrever para você (me desculpe! Apesar de toda a minha boa educação, não consigo chamá-la de senhora), pensei no quanto de gratidão sempre tive por tudo o que me proporcionou e o quão pouco dei conta de falar isto no tempo em que estivemos juntas. Na minha imensa dificuldade de expressar sentimentos, eu poderia ter dado um jeito de te dizer o quão agradecida sou por ter me proporcionado um dos meus maiores valores: a educação acadêmica. Ninguém nunca soube muito bem o porquê disso, mas desde que eu iniciei na escola, você fez questão de financiar meus estudos, ainda que meus pais pudessem arcar com tal custo. Assim foi e, mesmo depois de sua precoce partida, meus estudos universitários ficaram garantidos. Ainda que o real motivo desse ato tão generoso não seja conhecido, eu gosto de pensar que você viu nessa neta específica uma paixão incomum pelo ambiente escolar e, para ela, entendeu que a melhor forma de demonstrar seu amor era dar justamente o que lhe seria mais caro. Não devia ser fácil conhecer as especificidades dos seus sete filhos, 15 netos e todos genros e noras. Mas, eu acredito que a mulher que você sempre foi sabia fazer isso com graça, delicadeza e a seu próprio modo. Por isso, Vó, muito obrigada! Espero que minha dedicação e valor ao que me deu tenham sido suficientes em vida para te retornar esse amor. Se não foram, ainda em tempo na conexão emocional póstuma, te agradeço mais uma vez. Obrigada! Na verdade, eu tenho muitos motivos para ser grata a você. Um dos maiores é por ter trazido ao mundo meu pai, que também me é tão valioso. Por tê-lo criado, educado e o transformado num homem bom o suficiente para chamar a atenção da minha mãe um dia, para que os dois formassem nossa família. Também agradeço por todos ensinamentos de modos e de vida,

que ainda permanecem em mim em pequenas coisas, como correr na “Alfazema” quando não encontro uma roupa adequada para uma ocasião especial. Além de me salvar no estilo, é gostoso entrar lá e ouvir da vendedora “de sempre” que eu aprendi com você a gostar da loja e perpetuo essa tradição. Se eu pensasse e elucubrasse mais, teria sem dúvidas milhares de motivos e lembranças de gratidão. Porém, acho que nessa homenagem muito merecida, eu devo fazer um pouco mais que isso, eu preciso falar de VOCÊ. Nós, nos papéis de filhos ou netos, nunca pensamos nos nossos pais e avós como seres humanos com vontades, desejos e vida própria. Egoisticamente, pensamos mais no que eles nos proporcionam e entendemos que a nossa simples existência para eles basta. Ainda que seja mesmo prazeroso para os pais e avós fazer as vontades dos filhos e netos, eu, particularmente não queria nunca me esquecer ou não conhecer de alguma forma a mulher que você foi. Ainda que eu tenha visto e até falado nesse texto algumas pinceladas do que acredito serem suas qualidades, agora me pareceu a hora de ir um pouco além. E aí, tentando pensar no que fazer nesse sentido, voltei ao que falei nesse início de texto e foi justamente em um episódio após sua partida que eu encontrei o que falar. Ainda que pareça que eu vá seguir o clichê da valorização na perda, quero fazer disso mais, justamente para retribuir, mais uma vez, o tanto que merece. E contar de algo que eu, secretamente, gosto de pensar que só eu tenha visto, ainda que estivesse aí para o mundo ver. Logo após sua partida, vieram as dolorosas burocracias e providências que quem fica deve tomar. Entre elas, um dia nos reunimos todos na sua casa para, entre outros assuntos, discutir o que seria feito dos objetos materiais que deixara nesse mundo. Entre as discussões, em um certo ponto, me perguntaram com o que eu gostaria de ficar. Eu não tenho essa relação de apego com objetos de uma pessoa perdida, acabo guardando minhas memórias mais no coração. Porém, meu primeiro impulso foi pedir algo bobo, que era seu abridor especial de latas. Aleguei que já que eu tinha nascido com o mesmo defeito motor que você, eu também queria a sua solução para o problema. Recebi o objeto de bom grado, mas, logo depois, eu percebi o que eu queria de verdade. E aí, perguntei se eu podia ficar com os seus livros. Porém, eu queria os SEUS livros e não aqueles que ficavam na imensa biblioteca do vovô. Queria aqueles que pudessem ter sido seus maiores companheiros nos momentos alegres e difíceis, aqueles que diziam algo sobre você. Meu pedido foi prontamente atendido e achamos, no quarto em frente à sala de televisão, o que eram meus objetos de desejo. Assim, recebi uma boa coleção de livros, todos (talvez não por acaso), da Rosamunde Pilcher. Confesso que não era meu tipo de leitura e a autora, até então, não havia me chamado muito a atenção, a não ser pelo premiado “Os Catadores de Conchas”, que eu conhecia, mas não

87


88

havia lido. Porém, na minha missão de tentar te conhecer mais através deles, comecei pelo mais conhecido e li um a um, prestando atenção no que as histórias poderiam ter em comum. O que pude perceber, na minha rasa interpretação, é que talvez seu gosto por essa escritora fosse não só por sua boa escrita e narrativa envolvente, mas por que ela parecia com a mulher que você era e ainda é nos corações de quem teve o privilégio de conhecê-la. Ao ler tudo, percebi uma narrativa extremamente detalhista em que tudo tinha um significado. Isso me fez lembrar da sua casa, com tantos pequenos objetos perfeitamente encaixados e harmoniosos, que sempre pareceram contar uma história maior do que simplesmente estarem ali. Muitas vezes, o que lia me parecia ter cheiros e aromas especiais, como o doce odor da dama da noite quando chegávamos na sua casa mais à noitinha. Em cada delicadeza de gestos e atos que a autora narrava, eu te imaginava frágil e delicada cuidando das suas orquídeas. Porém, a cada obstáculo superado dos personagens principais, eu me lembrava da sua própria história de vida, de tantas mudanças, dificuldades com os filhos, adaptações, perdas e superação. Quando consegui finalmente caracterizar a autora após ler boa parte da sua obra, percebi que eu, então, conhecia um pouco mais de você. Para mim, Rosamunde Pilcher é bela, corajosa, firme, tradicional e à frente da sua época ao mesmo tempo, além de delicada, afetuosa e preocupada com trazer, ao seu leitor, uma experiência agradável e verdadeira. É alguém que soube viver uma vida de dificuldades, mas transformá-las em presentes ao mundo. Então, a meu ver, vó, essa é uma boa parte de quem você quis ser e mostrar nessa vida. Tenho certeza de que tem muito mais e que ainda vou descobrir isso, seja em novas leituras descobertas, neste livro sobre você e nos olhares dos meus familiares. Porém, eu, sua “neta da vida acadêmica”, espero ter utilizado o privilégio de saber e gostar de ler, que me proporcionou com tanto afeto, para me aproximar de você. Onde quer que esteja, espero que veja seu legado em mim, nos seus filhos, netos, bisnetos e em todas as gerações que ainda estão por vir. Espero que saiba quem foi e tudo que nos deixou de grandioso, além da saudade. Você, como eu, não parecia ser tão afeita a fotos. Para esta homenagem, achei apenas essa tão antiga, em que estou inquieta no seu colo e você me olha tranquilamente. Mas achei também que ela ilustra bem nós duas: eu, em minha inquietude eterna, e você, com a paz que sempre quis nos transmitir. Por isso, por tudo, obrigada, Vó! Que ainda nos encontremos na literatura, nos pensamentos e no que existir além desta vida Da sua neta, Marina

1.24 ARMANDO CARMO COURI Há 46 anos conheci essa pessoa marcante, que, desde o primeiro dia em que fui à sua casa, sempre me recebeu de braços abertos. Todos os dias conversávamos sobre os mais variados assuntos, logo que chegava para namorar sua filha Maria Eugênia. Nossas conversas eram muito agradáveis; vejo hoje que, além de expor minhas ideias, serviam para conhecer seu futuro genro e ver se estava apto para “levar embora” uma das suas mais preciosas joias. Dentre as várias qualidades de Maria Iphigênia, gostaria de destacar a pessoa caridosa que, após a morte de Dr Edésio, se dedicou de corpo e alma ao serviço voluntáCom os genros Armando e Erton rio da Santa Casa; destaco também a dedicação aos seus netos, em que não media esforços para ajudar em sua educação, seja ocupando o lugar dos pais em suas viagens, seja recebendo os mesmos em seu aconchegante apartamento, onde todos os domingos havia uma reunião de toda a família. Como mãe, desempenhou um papel ímpar, haja vista os filhos maravilhosos que deixou, e como soube carregar com dignidade uma pesada cruz, com a morte do filho Marcos. Como minha sogra, só tenho dela lembranças boas e agradáveis: as de uma mulher que me deu carinho, conselho, ajuda e solidariedade, a quem só tenho a agradecer. Maria Iphigênia era uma mulher de personalidade, religiosa, caridosa e amorosa; dedicou muito fervor à causa beneficente, haja vista seu último pedido para encontrar-se com Deus vestida de voluntária da Santa Casa. Enfim, Maria Iphigênia deixou muita saudade, seja pela dignidade, pelo caráter, pela probidade, pela benemerência e, principalmente, pelo jeito simples de entrelaçar todas estas qualidades, nos transmitindo carinho e amor.

1.25 A RMANDO CARMO COURI FILHO Vovó Maria Iphigênia D. Maria Iphigênia era o que melhor se poderia encontrar em termos de definição do conceito de avó que se possa imaginar e que todos gostariam de ter. Com seus cabelos

89


90

branquinhos como algodão, o carinho e o amor da matriarca dos Lima Fernandes por sua família eram enormes, conseguindo distribuir todo esse afeto igualmente por todos. Principalmente depois da partida de seu querido marido, Dr. Edésio Fernandes, ela soube muito bem como conduzir seus entes queridos. A real definição de “casa de vó”, seja nos encontros de família aos domingos à noite, nos deliciosos almoços da Romualda (sua fiel escudeira) ou nos felizes encontros de Natal, era sempre sentida por todos os seus quinze netos. E ela ainda fazia o papel de mãe, na falta da minha, quando a mesma viajava com meu pai, se prontificando a tomar conta dos quatro irmãos com muito zelo, às vezes até em excesso... Certa vez, numa dessas viagens em que ela foi pra nossa casa, eu ainda adolescente fui convidado pelo primo mais velho, Rodrigo Fernandes, que também passava essa temporada lá em casa, para dar uma saída à noite. Quando fomos pedir sua permissão, fomos surpreendidos com a pronta resposta: “Além de estar muito frio, a Febem pode pegar vocês na rua!”. É claro que na hora não gostei nada, mas era somente um excesso de proteção e zelo pelos netos sob sua responsabilidade. Ah, quantas saudades dessa avozinha tão querida... Muitas lembranças incríveis junto a ela, seja nos inúmeros momentos em sua casa, nas viagens que fazia conosco, dentre tantos outros! Mas uma delas em especial me marcou muito. Justamente no dia de seu falecimento, fui visitá-la no hospital, e ela, já sem conseguir mais falar, apertou fortemente a minha mão e me olhou fixamente por alguns minutos. Na hora tive a plena certeza de se tratar de um adeus... Te amo, Vó!

escutava histórias diversas da sua infância feliz, das aventuras vividas ao acompanhar meu Avô pelo interior de Minas Gerais, das alegrias que cada filho e cada neto trouxeram à sua vida, das perdas que sofreu ainda tão jovem, das pessoas necessitadas que eram amparadas por ela na Santa Casa. Minha avó foi uma mulher de fé inabalável, coragem admirável, conduta impecável e elegância sem igual. Além da saudade e das doces lembranças, o que ficou, para mim, foi a gratidão por tê-la tido na minha vida.

1.27 DANIEL FERNANDES COURI Tive o prazer de conviver com a Vovó ao longo de 23 anos da minha vida. Ela me ensinou muitos valores que eu pratico todos os dias e que levarei para o resto da minha vida. A imagem que eu guardo dela na minha memória é de uma senhora muito elegante, discreta, educada, carinhosa, religiosa, correta e, acima de tudo, muito humana. Tenho muita saudade dos lanches nas noites de

1.26 JULIANA FERNANDES COURI TASSINI VITORIA Quanta saudade tenho da minha querida Avó Maria Iphigênia... Naqueles cabelos brancos eu encontrava paz, serenidade, amor e sabedoria. Era na casa dela, nos deliciosos almoços preparados por sua fiel escudeira, Romualda, que eu

domingo no apartamento da Rua Espírito Santo, das inúmeras viagens que fizemos juntos e das temporadas que ela passava lá em casa na minha infância, durante as viagens dos meus pais. Enfim, as lembranças que eu guardo da Vovó Maria Iphigênia são as melhores possíveis!

91


92

1.28 RENATA FERNANDES COURI PENNA

Iphigênia’s children and grandchildren in London, and now I would meet all of the others, then seven of

Como a mais nova dos 15 netos, convivi com Vovó Maria Iphigênia por 20 anos, e lembro com muito carinho de sua forte presença em minha vida... Os lanches de domingo à noite em sua casa sempre voltam à memória: a família reunida, a mesa farta, o pote de jujubas sempre cheio, a bagunça dos primos no quarto dos fundos, o grande relógio badalando - e Vovó sentada à cabeceira da mesa. Que saudade das viagens ao Rio, nas quais ela sempre nos acompanhava e dormia comigo em meu quarto, que saudade de tê-la morando em minha casa quando meus pais viajavam, que sauVovó Maria Iphigênia e netos dade de ter sua companhia ao tomar chá com biscoitos, que saudade de buscá-la na Santa Casa e contar as estrelas de seu crachá, que saudade de ver sua alegria com as nossas doações de revistinhas em quadrinhos ao hospital, enfim... que saudade dela! A maior herança da Vovó Maria Iphigênia foi a compaixão. Durante todos esses anos ela nos ensinou e deu o grande exemplo de cuidar do próximo, dedicou-se e doou-se ao marido, aos filhos, aos netos, ao hospital, às amigas, à Romualda, às orquídeas, aos necessitados... Também sempre fizeram parte dela o carinho com as pessoas, a doçura e a serenidade, a calma e a leveza, a presença suave e o cheirinho gostoso do talco perfumado. Esses são os seus legados, e certamente ela se alegra, pois suas ações reverberam pelo tempo, seguindo fortes com os membros da família. Que privilégio ter tido uma Avó tão querida e especial!

her sons and daughters, and fifteen grandchildren, and the matriarch of a large and beautiful family. She was at her door when we arrived, elegant, welcoming, glowing with happiness to see her youngest son back from London, and graciously Com Robert Annibale e Humberto Passeado

receiving me, the American friend, with curiosity and hospitality.

Her home was spacious, comfortable and filled with memories and photographs, but I was immediately drawn and in awe of her outside verandah and walls of beautiful orchids and bromelias. I had never seen so many kinds of bromelias before and was fascinated. She was deservingly so proud of them and spoke softly and slowly of them to me with Edésio translating. We made our way to the end of that cool and shaded walled garden where there was a settee and next to it a huge and flourishing Portuguese Lace fern. I would gravitate to that garden, that she so enjoyed and that I admired, over many years and enjoy watering the plants before being called in for another delicious lunch. I think of her when I admire the orchids and bromelias, so far away, in our own home in London. Many asked me how I was received by Dona Maria Iphigênia, as to many she was always elegant, somewhat formal, and as someone I met referred to her at a reception, as being from an “illustrious family.” Having come from an accomplished and established family, she spent decades as the wife of a judge who was posted across the huge State of Minas Gerais and would end his career as the President of the High Court, so she must have learned to be gracious and engaging, but neutral of many issues in public, to be wary of politicians and the press, which I believe she did for the rest of her life. However, she was very much aware

1.29 ROBERT A. ANNIBALE It was on July 1st, 1994, the day the Real was launched, that I made my first visit to Brazil and, after a few days in Rio, we travelled to Belo Horizonte. I had met with some of Dona Maria

of political and economic events and issues, and her discretion and quiet style should not be confused with her conversations around her so often full dining room table. Whenever I went to Belo, even without Edésio, I would have lunch at Dona Maria Iphigênia’s house, as Romualda’s wonderful cooking and a table with family was always welcoming.

93


94

My Portuguese has always been terrible and minimal, though we would sometimes speak in a collage of largely unconjugated sentences comprised of Portuguese words that I knew, usually food related as I adore Mineiro cooking, Portuguese words she would teach me, and French, as Dona Maria IphigĂŞnia studied as a young girl under French nuns. Thankfully, we usually had one of her many grandchildren, all gifted English speakers, or her children, who were French and English speakers, to complete our sentences and train of thought. I think of her often, at the head of the table, facing out to her garden, orchestrating wonders as they came out of the kitchen, and surrounded by family. I was privileged to have been made to feel a part of her family, over many meals, at many weddings, Christmas celebrations, and during more difficult and intimate times of loss. I miss her when I return to Belo, her warm reception at the door when we arrived, all the activity as she, Romualda and Roberto went about their day, the coming and going of family, delicious meals, her shady garden and, most movingly, when she saw us off at her front door before our return to London, with an embrace, kiss and blessing....vĂĄ com Deus.

95


96

II Depoimentos de outros familiares e amigos

2.1 MARIA INÊS FRANZEN DE LIMA DE ABREU

“Maria Iphigênia, com ph”, dizia papai - em homenagem à Santa Iphigênia, minha irmã-mãe. Quando nasci, você já era casada e mãe de cinco filhos. Companheira inseparável de Edésio, seu tão amado e querido marido, com quem desbravou esse interior das Minas Gerais. Você sempre dizia: “Você não é irmã, é filha, está entre Cândido e Maria Eugênia”. Quantas vezes tomamos o lanche da tardinha em sua casa, para conversarmos. Algumas vezes, um puxãozinho de orelha, com carinho, mas com firmeza, o que lhe era muito peculiar. Adoração do Santíssimo na Boa Viagem, inesquecível, livrinho Santa Maria Eterna que você me deu. Sinto você me questionando: “Precisa fazer adoração”... Faço, nem sempre na igreja, lendo no livrinho, a de 15 minutos. Seus lanches, almoços, aniversários, Natais, mercado das flores na sexta-feira depois da AVOSC, para enfeitar sua casa, que era como seu coração: aberta, onde nos recebia sempre com muito carinho, junto à Romualda, sua fiel escudeira de tantos anos. Ambas sabiam transmitir muito bem esse amor. Sua força, coragem e sabedoria me marcaram muito. Aquele 14 de dezembro de 1980, tão triste para todos nós - perdemos o nosso tão querido Edésio, pouco antes do Natal, e você,

97


98

firme, nos deu este exemplo: e a vida continua. Por tudo que você passou, sabia com galhardia agir dessa forma, fez o nosso almoço de Natal no dia 24. Mais uma vez, em 7 de dezembro de 1998, perdemos o nosso querido Marcos, seu terceiro filho, inesperadamente, e você, firme, novamente, repetiu o almoço de Natal no dia 24. Sempre presente na minha vida e na da minha família, como uma mãe-irmã. Em todos os momentos, alegres e tristes. “Meu Pai”, assim você chamava o nosso pai. Maria Iphigênia, a sua relação com a minha mãe era linda. Sua boadrasta e você eram irmãs cúmplices. Duas MARIAS, tão importantes na minha vida! Não me esqueço, no dia da sua morte, mamãe, inconsolável, me disse: “Isto não está certo, eu que tinha que ter ido antes dela”. Você no CTI, de máscara, com dificuldade de falar, olhou para mim e perguntou: “E sua mãe?” Como sofri com sua morte, mais uma grande perda na minha vida. Mas você deixou um belo exemplo de vida e meus sobrinhos, que são os irmãos que tenho. Maria Iphigênia, guardo você dentro do meu coração, com muito amor e muita saudade.

2.2 MARIANA FRANZEN DE LIMA DE ABREU FONSECA Nasci em uma família cercada de amor, respeito e união. Uma família pautada pelo desejo de felicidade mútua. Quando pequena não entedia bem a relação da minha Avó Maria Augusta com minha Tia Maria Iphigênia, só conseguia sentir que ali existia uma relação de cumplicidade, amizade e troca difícil de se ver. Tia Maria Iphigênia para mim sempre foi um exemplo de retidão, tranquilidade, serenidade e resiliência. Tenho as lembranças mais doces de uma tia maravilhosa que ora era tia, ora era avó. Sempre carinhosa e receptiva, corri várias vezes para seu colo em busca de explicações para

minhas aflições familiares. Nunca imaginei nenhum momento importante da minha vida, seja bom ou ruim, sem a presença dela. Muitas vezes ela não dizia nada, mas o seu olhar dizia muito mais que as palavras. Acarinhava e aliviava da maneira mais sutil e grandiosa. Quantas vezes ela percebia minha inquietação e segurava minha mão com uma ternura ímpar. Isso me aliviava tanto e me dava a sensação de que poderia sempre correr para aquele colo. Lembro-me como se fosse hoje do Natal de 1998 que, para toda a nossa família, foi talvez o mais doído de todos. Era o primeiro Natal sem meu pai e sem Tio Marcos. Quando cheguei para o tradicional almoço do dia 24/12, deparei com uma mulher grandiosa, forte, segura e firme. É claro que dilacerada por dentro, normal para uma mãe que acabara de perder um filho. Mas ela não transpareceu, cumpriu toda a tradição familiar, distribuiu um envelope para cada um de nós, fez sua oração e a tradicional gelatina colorida. Confesso que senti vergonha por não conseguir reagir ao meu sofrimento pessoal, senti vergonha em ver aquela mulher resistindo à dor em prol da união e da preservação da família. Saí de lá com minha filha nos braços agradecendo a Deus por ter me dado presente tão abençoado e agradecendo mais ainda por ser sobrinha de alguém que tanto me ensinava. No dia em que Tia Maria Iphigênia partiu, vi minha Avó chorar pela primeira vez, no corredor do Prontocor. Apertou minha mão e me disse: “Perdi uma irmã, minha cúmplice, minha companheira. Não sei como vou fazer sem ela”. Logo ela, minha Avó tão reservada, com tanta dificuldade em expor seus sentimentos. Minha reação foi abraçá-la, nem tentei consolá-la, não tinha consolo. Tia Maria Iphigênia para sempre estará no meu coração, nas minhas melhores lembranças. Para sempre, será um exemplo de filha, mãe, avó, tia, irmã e enteada. Para sempre, me lembrarei da sua elegância, da sua generosidade, do seu desprendimento, da sua simplicidade. Para sempre, sentirei muitas saudades!

2.3 CECÍLIA DE ABREU CANAAN Era tia, mas na verdade parecia avó. De um carinho enorme, Natais inesquecíveis, de uma elegância ímpar, com pernas lindas de dar inveja em muitas meninas. Muitas saudades.

99


100

2.4 THIAGO FRANZEN DE LIMA DE ABREU

2.6 PATRÍCIA PASSOS DE GUIMARAENS

Primeiramente, gostaria de agradecer a oportunidade de escrever sobre Tia Maria Iphigênia, uma pessoa tão abençoada, querida e iluminada. Falar sobre ela é como falar de uma terceira avó. Sempre me lembro dela nos recebendo em sua casa, com muito carinho e um olhar extremamente alegre e meigo. Sua fé inabalável e a forma como tratava as pessoas em sua casa são os maiores legados que ela deixou para mim.

Maria Iphigênia, tia muito querida, era irmã mais velha de minha mãe, Júnia. Há pessoas que despertam sentimentos, os mais diversos - amor, respeito, admiração. Marcam nossas vidas pelos exemplos, atitudes e escolhas. Assim foi a nossa relação. Maria Iphigênia teve grande influência na minha formação. Nossos encontros eram próximos, alegres e afetuosos.

Os maravilhosos Natais em sua casa, quando o espírito natalino sobressaía ao valor dos bens materiais.

Falávamos sobre tudo e todos, e aprofundei as minhas raízes mineiras.

Eu sabia que, para ela, o mais importante era a reunião da família.

Aprendi muito sobre Minas. Ela foi, sem dúvida, minha maior referência sobre os hábitos, o jeito mineiro de ser e viver.

Como eram puros, divertidos e abençoados aqueles dias 24/12 que ela, com tanto amor, nos proporcionava.

Gostava de ouvir as histórias das famílias Vianna e Franzen de Lima, contadas com humor. Durante minha infância e juventude, passava as férias escolares em Belo Horizonte.

Muito obrigado por tudo, Tia.

Dividia-me entre a residência de meu Avô Luiz e o lar dos Fernandes, tanto em cidades do interior mineiro quanto na Rua Caraça.

2.5 JOSÉ FRANCISCO BIAS FORTES DE ABREU FILHO Tia Maria Iphigênia era uma mulher doce, de fala mansa, calma e carinhosa.

Os tios e primos eram excelentes anfitriões. A convivência era fácil e suave, permeada pela afetividade e empatia. Já adulta, confidenciava apreensões e problemas à tia-amiga. E era retribuída. Havia confiança. Havia a segurança de ser ouvida, compreendida e aconselhada.

Só tenho a agradecer, o tempo que convivi com ela: as boas lembranças de carinhos e as explicações de suas histórias com minha avó e com a minha mãe.

Logo após o falecimento do Tio Edésio, conversamos longamente.

O carinho permanece até hoje, bem como a saudade.

Maria Iphigênia, de aparência física frágil, era uma mulher forte que enfrentou enormes perdas familiares.

Disse-me: “A vida perdeu a graça, o colorido”. Fiquei preocupada com a sua imensa tristeza e seu abatimento pela perda do companheiro amado. Tola preocupação!

101


102

Aos vinte anos, deixou o conforto da casa dos seus pais para iniciar uma nova etapa - viver ao lado de Edésio em várias cidades do interior.

A amizade entre elas, toda a vida, foi muito grande. Escutei, amiúde, Tia Iphigênia dizer que Nilde era a cunhada preferida.

Formaram uma linda e numerosa família de sete filhos.

Em 1952, aos nove anos de idade, em companhia da Tia Gegena, eu e Paulinho fomos a Lavras, de avião, para o aniversário de Marcos. Lembro-me bem da nossa chegada ao aeroporto, sendo recebidos alegremente por Tia Iphigênia e Tio Deco.

Lembrando-me desses fatos, tive a certeza de que Maria Iphigênia conseguiria dar novo sentido à vida.
Com o apoio carinhoso dos filhos, genros, noras e netos, além dos cuidados permanentes da dedicada Romualda, iniciou uma nova fase. Cuidava das plantas, particularmente das belas orquídeas que decoravam a varanda do seu apartamento. Reunia amigos e familiares para lanches deliciosos. Iniciou, na Santa Casa de Misericórdia, trabalho voluntário, exercido com dedicação e muito prazer. Sr. Roberto, motorista antigo da família, deu a definição perfeita sobre a relação entre mãe e filhos: “Dona Maria Iphigênia é tratada como se fosse um delicado suspiro…”. Tive o privilégio de conviver com Maria Iphigênia. Uma mulher linda, elegante nos gestos e atos, digna e generosa. Viveu os anos de viuvez não como um arco-íris de cores vibrantes, mas como uma paleta de tons e nuances suaves - como ela desejava. Saudades e gratidão.

2.7 C ARLOS ANIBAL FERNANDES DE ALMEIDA Os olhares de Tia Iphigênia Com muita alegria, recebi do primo Eduardo, na condição de sobrinho mais velho, o convite para escrever algumas palavras para a comemoração do centenário de sua mãe, minha Tia Iphigênia. Minha satisfação é ainda maior porque minha mãe, Nilde, completou também seus cem anos no mês de agosto. Na genealogia da família Vianna elas são primas, seus bisavós maternos eram irmaõs gêmeos, nascidos em 5 de agosto de 1819, na fazenda Maçarico, em Santa Luzia (MG).

Tia Iphigênia preparou, à tardinha, uma mesa com doces caseiros, brigadeiros, canudinhos e um bolo com a vela de sete anos para a comemoração com os irmãos Heloisa, Luiz e Eduardo.

103

A cunhada Nilde

Os anos se passaram e devido às mudanças de Tio Deco para outras cidades, ficaram mais raros os encontros com os primos e tios. No entanto, as lembranças permaneceram presentes em nossas vidas. Em 1954, a família veio para Belo Horizonte, morando na Avenida Tocantins, perto de Vó Dedélia e de minha casa. Os encontros tornaram-se mais frequentes e tenho na memória o jeitinho carinhoso de Tia Iphigênia nos receber.

DC 3, vôo para Lavras, anos 1950

Logo se mudaram para a Serra, onde fomos vizinhos novamente. Eram constantes as comemorações dos aniversários dos filhos sob o comando de tia Iphigênia. Lembro-me bem da alegria e do orgulho de Tia Iphigênia quando da nomeação de Tio Deco para presidente do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Mantinha, na ocasião, o semblante simples a despeito da importância da posse do cargo. Registro também a dedicação de Tia Iphigênia acompanhando Tio Deco nos 10 anos de sua doença até o falecimento. Nas reuniões comemorativas, Tia Iphigênia esbanjava simpatia, como pode ser conferido nas fotos do batizado e aniversário de minha neta Victória.


2.8 R OMUALDA MODESTA VIEIRA A vida da D. Maria

104

Ela foi uma pessoa maravilhosa para mim e minha família. Não me considerava como empregada e, sim, como amiga.

Batizado de Victória (Tia Iphigênia e D. Carola)

Tia Iphigênia e Patrícia Menezes (1 ano de Victória )

Em março de 2003, no lançamento do livro Vó Donana e suas raízes, liguei para convidar Tia Iphigênia. Ela respondeu que estava um pouco debilitada, mas faria o possível para comparecer. Esteve conosco manifestando sua alegria ao rever os parentes, sendo que alguns não via há muito tempo. Agradeci muito sua valiosa presença.

A vida dela com Dr. Edésio: pareciam dois namorados, viviam felizes e amorosos. Eu acho que eles foram partir o queijo lá no céu. Ela era uma mãe exemplar e criou os sete filhos com todo amor, carinho e dedicação. Cuidou do esposo com todo amor até o fim, depois ele veio a falecer e com isso ela ficou muito triste. Um tempo depois veio a ter outra perda, o filho Marcos. Foi aí que começou a ficar doente e mais triste, e um tempo depois ela se foi para os braços de Deus. Eu sei que ela está lá, feliz, junto de todos que já se foram. Com carinho.

2.9 ROSAMARA ARAÚJO DE CARVALHO

Para minha tristeza, esse foi o último encontro, pois dois meses depois – em 3/5/2003 – ela veio a falecer.

A convivência do Tó, da Nylce e família com a muito querida Gegena, “Maria Iphigênia Franzen de Lima”, filha do nosso querido Dr. Luiz, e seu esposo, Dr. Edésio Fernandes, sempre foi motivo de admiração pela esmerada educação, religiosidade, maturidade, justiça, garra e desprendimento ao conduzir sua família.

Afirmo que fui agraciado com a possibilidade de escrever sobre momentos inesquecíveis passados ao lado de Tia Iphigênia que ficarão registrados no livro de comemoração do seu centenário.

Nunca nos esquecemos das visitas do casal à Rua São Paulo que eram sempre motivo de muita alegria e prazer.

D.Eni e Tia Iphigênia

Os olhares

Março de 2003 (última foto)

105


106

2.10 MARIA ÂNGELA ASSUMPÇÃO BICALHO Que grande honra ser parte desta grande família de admiradores da D. Maria Iphigênia! No primeiro momento, quando a Maria Eugênia me pediu para escrever uma mensagem sobre a amizade da mamãe, Stella, com a mãe dela, D. Maria Iphigênia, achei que fosse uma missão impossível. Foi pensando nas lições de simplicidade, alegria, disposição, discrição, persistência e garra sempre, que decidi aceitar o desafio e fazê-lo da melhor maneira possível.

Frequentavam a “missa das viúvas” na Igreja do Sagrado Coração de Jesus... Esse era um compromisso sagrado, aos sábados às 12h15, lá estavam as colegas do Sacré Coeur de Marie: Stella, Maria Iphigênia, Maura, Dalva e Mirtes - as Dias do Dr. Juventino - juntas de novo, sem perder a alegria de viver e conviver bem. Depois da missa, um bom bate-papo para atualizar as notícias; que, então, já eram as realizações de filhos, netos e bisnetos! Como eu sempre acompanhei a mamãe, pude apreciar muito essa rica amizade e desenvolver por elas um grande amor, que enchia o meu coração de alegria e hoje ficaram o vazio, o aprendizado, a admiração e a saudade de um tempo lindo que não volta mais...

2.11 M ARLY GUEDES COUTO Como conheci Dona Maria Iphigênia de Lima Fernandes

Lembro-me dela contando, quando Voluntária da Santa Casa, já idosa, que tinha que enfrentar aqueles longos correCom a comadre e amiga Stella dores do hospital para fazer o seu trabalho. Achava difícil e nem por isso desistia. Seguia com todo vigor!

Foi com muita satisfação que recebi um telefonema do

Era pura dedicação e muito amor ao próximo.

100 anos de nascimento. Como havíamos sido vizinhos

Nada mais lindo e puro do que a amizade das duas. A mamãe sempre contava sobre os laços das nossas famílias e a amizade, que só se fortaleceu ao longo da vida. Quando adolescentes, foram longos anos de convivência como colegas no Colégio Sacré Coeur de Marie; depois, ambas casadas com advogados, que seguiram carreiras e rumos diferentes. A mamãe, sempre dedicada, cuidando dos filhos em Belo Horizonte, e a D. Maria Iphigênia, sempre disposta, acompanhando o Dr. Edésio na carreira jurídica, vivia mudando de cidade e dando notícias das aventuras com os filhos... e a família, que só aumentava... Mas, nada disso abalou a amizade fiel dos dois casais. Até, muito pelo contrário, serviu para fortalecer, pois, apesar da distância, as cartinhas chegavam, sempre recheadas de notícias da vida nova e dos filhos; que, por coincidência, nasciam na mesma época e foram sete em cada família. A mamãe recebeu com muito orgulho a Heloisa como a primeira afilhada! Que alegria ao mencionar “a Heloisa, minha afilhada”! Mais tarde vieram as perdas, ficaram viúvas, perderam filhos, mas a amizade e o companheirismo só aumentavam... sem deixar de lado a poesia da vida.

Cândido Luiz dizendo que, em novembro próximo, Dona Maria Iphigênia de Lima Fernandes, sua mãe, completaria na Rua Caraça, Serra, ela no 527 e nós no 515, lado a lado, por longos anos (de dezembro de 1954 a 1979), solicitou-me que participasse do livro comemorativo que estavam preparando. Trabalhava eu no IPASE, onde conheci Maria Eugênia Fernandes, irmã do Dr. Edésio Fernandes, pai do Cândido Luiz. Ela contou-me que seu irmão e a família estavam vindo de mudança para Belo Horizonte e procuravam uma casa para morar. Foi então que lhe disse: “Há uma casa recém-construída ao lado da minha, na Rua Caraça, acho que está à venda!”. Foi o ponto de partida do nosso relacionamento! Viram a casa, gostaram, procuraram o proprietário, Dr. Luiz Gonzaga Monteiro de Andrade, que, após alguns meses, passou a morar com Dona Milinha e seus filhos em frente às nossas casas, e, logo depois, a família já era nossa vizinha... Dona Maria Iphigênia, comunicativa, educada, de uma fineza sem par, logo se aproximou da nossa família, na época composta por minha mãe (Belmira), meu pai (Ary) e as três filhas (Marly, Marcy e Martha). Como tinham filhos pequenos, a aproximação foi ainda mais fácil,

107


108

uma vez que os mais novos, Cândido Luiz e Maria Eugênia, frequentavam sempre nossa casa. Cândido tornou-se o AMIGO DO PEITO. Chegava a dormir durante o dia em nossas camas, o

2.12 D IVA MOREIRA Dona Iphigênia e Romualda – duas amigas a despeito de raça e classe

que levava a babá Elvira a lhe dizer: - “Que absurdo, você dormindo na cama das moças...!”. Falar de Dona Maria Iphigênia de Lima Fernandes é um prazer enorme, porque a conheci e guardo dela as melhores lembranças. Escolhi abordar um aspecto da vida dela que para mim é muito significativo: suas relações com as empregadas domésticas. Vou falar da Romualda Modesta Vieira, que eu conheço e admiro por seu inarredável compromisso de amar e de servir às pessoas.

Maria Eugênia, que estava sempre conosco, no colo da babá, foi, anos mais tarde (em 1961), convidada por minha irmã Martha, para ser “madrinha de carregar” no batizado de sua primeira filha, Heloisa. Das crianças o relacionamento passou para os demais membros da família. Dona Maria Iphigênia logo se entrosou com Dona Belmira e suas filhas. Minha mãe era muito expansiva e logo, logo, estavam as duas amigas. Uma ajudava ou acudia a outra quando necessário, trocavam receitas, contavam casos, etc. A esse respeito, lembro-me de duas situações especiais: 1) Em 1961, Luiz Anibal, o segundo filho, foi aprovado no vestibular para Engenharia na UFMG. O trote que lhe foi dado excedeu os limites e todas as maldades possíveis: deram-lhe muito álcool para beber, pintaram seu corpo com tinta metálica e, quando ele já estava quase desmaiando, jogaram-no em um dos lagos da Praça da Estação! Socorrido por um motorista de táxi e trazido para casa, Dona Maria Iphigênia ficou desorientada, horrorizada, ao vê-lo naquele estado! A primeira pessoa a quem ela recorreu foi minha mãe, que se apressou em lhe dar apoio. Eu fiquei apavorada, pois havia feito vestibular para Medicina, aguardando o resultado e pensando o que fariam comigo se passasse... 2) Em 1971, o Dr. Edésio sofreu um acidente vascular cerebral (AVC). Dona Maria Iphigênia entrou em contato conosco, a ambulância foi chamada, e eu, já formada, acompanhei Dr. Edésio ao hospital. Foi atendido pelo Dr. Guilherme Cabral, neurologista de renome. Ajudei-o a puncionar a medula espinhal para certificar-se que tipo de AVC havia ocorrido. Como não havia sangue no material apurado, o diagnóstico foi de um AVC isquêmico. Como sempre, na aflição que essas duas situações ocasionaram, Dona Maria Iphigênia se manteve firme, forte, controlada, mantendo a tranquilidade perante os filhos. Nós, os vizinhos, agradecendo a Deus por ter podido ajudá-los. Como já disse, esse entrosamento permaneceu por muitos anos, até que a família, com quase todos os filhos casados, mudou-se para um apartamento na Rua Espírito Santo, em Lourdes. Como sentimos falta dos vizinhos, mas é a vida nos levando...

Diva e Cândido

A minha mãe, Maria de Jesus Moreira, veio de Bocaiuva em 1950 para trabalhar como empregada doméstica numa casa enorme que era uma pensão, na Rua Cláudio Manuel, no Bairro da Serra. Esse era e ainda continua a ser o emprego mais acessível para as mulheres negras, analfabetas, e empobrecidas. Como acontecia durante o período de escravização no País, as crianças eram aproveitadas para o trabalho desde a mais tenra idade. Assim, eu fui trabalhadora infantil no emprego doméstico na década de 1950 e início dos anos 1960. Recebia algum pagamento? Nunca; se até a comida era vigiada! Em consequência da falta de tempo para estudar, tomei bomba em matemática duas vezes. No decorrer de 13 anos de árduo trabalho, com folga semanal no domingo de tarde e escassos dias de férias (no caso da minha mãe), nós saímos de lá com uma mão na frente e a outra atrás. Literalmente! Fomos morar em uma casa cedida no caminho que ia para o Clube dos Caçadores, no que hoje se tornou o Minas Tênis Clube II, em área gentilmente cedida pelos poderes públicos para um clube privado, elitista e racista. Foram retiradas as moradoras que ali residiam há décadas e que foram para a periferia de Belo Horizonte, na época. Quando a dona da casa voltou a BH, tivemos que ir morar em um cortiço na Rua do Ouro, lugar que me dava muita vergonha e humilhação. Lá cozinhávamos em lata e em fogareiro de querosene e passávamos fome porque era tempo em que o governo de Magalhães Pinto pagava aos servidores de seis em seis meses.

109


110

Fiz essa introdução para jogar mais luz sobre o contraste entre as duas realidades: a de minha mãe e a da Romualda! No meio da trajetória, tem também a Elvira Campolina, que foi babá de Dona Maria Iphigênia, e a acompanhou depois que ela se casou com o Dr. Edésio, sendo também babá de seis dos seus sete filhos. Vale fazer um parêntese para falar da Elvira, também uma mulher negra. Falo do caso dela porque acredito que não se fazem juízes como o Dr. Edésio. A Babá Elvira morreu em 1956 e foi enterrada em uma sepultura adquirida para ela pelo Dr. Edésio no Cemitério do Bonfim, quando já existia o Cemitério da Saudade destinado aos pobres. Na mesma democrática tumba estão enterrados ao seu lado o próprio Dr. Edésio, sua companheira de vida, Dona Iphigênia, e dois filhos já falecidos: Marcos e Luiz Anibal. Voltemos à Romualda, que foi trabalhar como cozinheira na casa de Dona Iphigênia e Dr. Edésio em 1956, com então 20 anos, após a morte da Babá Elvira. Na época, patroa e empregada tinham uma diferença de 18 anos de idade. Ficaram muito amigas, o que não era incomum numa profissão em que se trabalhava e vivia no mesmo espaço, todo santo dia. Amizade muitas vezes cercada de ambiguidades, de acréscimo de exploração, de demarcação sutil (ou até ostensiva) de espaços, como o tristemente famoso quarto de empregada, retratado pelo talento de Carolina Maria de Jesus (1960) em Quarto de despejo. Quis saber, então, sobre “a verdadeira adoração pelos patrões e seus filhos” e se estava diante de uma via de mão única ou de mão dupla. Se teria estudado, namorado, ou seja, tido algum espaço de privacidade. Para autenticidade deste meu relato, fiz aquelas perguntas para a Romualda e soube que ela namorou e chegou a noivar, mas desistiu de se casar com um homem que bebia muito para continuar morando com a família. Também me disse que viera do interior com o ensino primário completo, mas que não teve vontade de continuar a estudar. Com a morte de Dr. Edésio, em 1980, Romualda se apegou mais ainda à Dona Iphigênia, tornando-se sua fiel escudeira. Era comum, em muitos finais de semana, Romualda não ir para casa, mas preferir ficar fazendo companhia à amiga Dona Iphigênia, apesar da insistência desta em querer que a Romualda estivesse na casa dela com seus familiares. Esse desvelo incluía não apenas o cuidado com a patroa, mas também com as plantas, a casa, com destaque para a comida deliciosa que fazia e que era admirada por todas as pessoas que visitavam a família. Foi assim até 2003, quando Dona Iphigênia deixou Romualda e todo mundo para migrar para a casa de Deus e de Nossa Senhora, de quem era muito devota. Mais um parêntese para tratar de outra faceta da história das empregadas domésticas no Brasil: a aprovação em 2015 do Projeto de Lei do Senado, que tramitava desde 2013 no Congresso Nacional. Finalmente regulamentada, a lei concedeu a essa categoria de trabalhadoras direitos elementares e que faziam parte da carta de direitos de outras categorias

de trabalhadores. A partir daí, as empregadas passaram a ter direito à Carteira de Trabalho e Previdência Social, ao 13º salário e às férias, ao pagamento de hora extra e adicional noturno, bem como ao seguro-desemprego, entre outros, 83 anos depois que Getúlio Vargas havia assegurado o direito à Carteira do Trabalho aos demais trabalhadores. Houve um clamor muito grande contra a regulamentação dessa lei. Patroas brancas de classe média e mesmo ricas e da “sociedade” atacaram a lei como sendo excesso de direitos para uma categoria constituída por mulheres negras, marcada pela informalidade e pela precarização. E a retaliação de imediato aconteceu: demissões e contratações apenas por dois dias na semana para fugir às exigências legais, além de ameaças de descontos pela comida e pelo “aluguel” do quarto de despejo. Na casa da Dona Iphigênia e do Dr. Edésio esses direitos já eram assegurados à Romualda há muitos anos. E teve mais: a empregada amiga foi incluída como beneficiária do inventário de Dona Iphigênia, que lhe deixou dinheiro suficiente para comprar um pequeno apartamento, mas ela preferiu reformar a casa. Herdou também muitos móveis, objetos, fotografias da casa da patroa, reproduzindo na decoração de sua casa o espaço de acolhimento onde morou por quase meio século. Dona Iphigênia sempre se preocupou com a saúde e bem-estar de Romualda e pagava para ela o plano de saúde. Deixou recomendação expressa de que os filhos e filhas continuassem a pagar o plano após sua morte, o que é feito religiosamente por eles, mesmo que Romualda prefira o SUS. Outro aspecto da história de Romualda com a família de Dona Iphigênia é a continuidade dos laços de afeto para além da geração que já se foi. Filhos e filhas, netos e netas têm um carinho imenso por ela que se traduz nos telefonemas e nas visitas em sua casa de Betim, enquanto ela retribui com afeto e as deliciosas tortas natalinas. Minha mãe e eu nada herdamos da casa onde trabalhamos tantos anos: nem mesmo algum laço de amizade. Ao saber deste livro sobre Dona Iphigênia, eu me ofereci para escrever este singelo relato em homenagem a uma família tradicional, branca, rica para os meus padrões e os de Romualda, mas que deu conta de superar tantas barreiras segregacionistas para inserir um capítulo de respeito aos direitos fundamentais das empregadas domésticas, que desde a escravização até nossos dias foram tratadas como cidadãs de segunda classe. Parabéns, Dr. Edésio e Dona Iphigênia, por terem escrito esse belo capítulo! Parabéns, Romualda, com seus 82 anos, por essa história de cuidado e afeto para com a família Fernandes!

111


112

2.13 ANA LÚCIA ALMEIDA GAZZOLA Lembrança de Dona Maria Iphigênia

Hospital Felício Rocho, e com Edésio brevemente numa viagem a Londres. Recentemente conheci Eduardo, e qual não foi minha alegria ao encontrar seu santinho de Primeira Comunhão entre os guardados de minha mãe! Ao entregar a ele o santinho, senti a emoção de reiterar, Há pessoas que passam pela vida de forma suave, tocando aquelas que as rodeiam com imensa

Ana Lúcia Gazola com a sua família na comemoração dos 90 anos de sua mãe D. Irene.

em nome dela, a amizade que teve tão grande significado em sua vida! Participar desta homenagem a Dona Maria Iphigênia me emociona profundamente! Às vezes,

delicadeza. Esta é a imagem que

só celebramos as ações e conquistas masculinas, realizadas na esfera pública, por serem vi-

tenho de Dona Maria Iphigênia:

síveis e mais fáceis de aquilatar. Mas é necessário restaurar a importância da ação de nossas

discreta, fina, sensível, ela com-

mães na esfera doméstica, na construção da família, na vida em seu entorno. Só assim po-

plementava de maneira perfeita a

deremos reafirmar o legado de amor e valores que elas nos passaram, resgatando o bordado

solidez e a firmeza do Dr. Edésio e

silencioso que teceram no dia a dia. Por isso a memória de Dona Maria Iphigênia tem a força

agregava família e amigos em tor-

de seu toque delicado e inspirador, que marcou para sempre sua família. Celebremos, pois, o

no do casal e de sua casa. Sei que

centenário de seu nascimento, e toda a sua vida.

ela e minha mãe ficaram amigas nos anos em que o Dr. Edésio - assim era chamado naquela época -

foi juiz em nossa cidade, Três Corações. Papai e ele se tornaram muito próximos a partir das afinidades jurídicas e de princípios, e as esposas consolidaram uma amizade que continuou ao

2.14 R EYNALDO XIMENES CARNEIRO Maria Iphigênia de Lima Fernandes (Cem Anos)

longo do tempo, seja como presença, seja como afeto distante depois que seus caminhos se bifurcaram. Na verdade, foi uma surpresa para mim verificar que a permanência deles em Três Corações foi anterior a meu nascimento: seria capaz de jurar tê-los conhecido naquela época, de tão vívida que era a memória de suas pessoas nas conversas e reminiscências de meu pai, Astolpho e minha mãe, Irene. Sempre ouvi falar do Dr. Edésio como um juiz exemplar, um modelo de competência e retidão; e de Dona Maria Iphigênia como o centro da família, a mão delicada que tudo organizava e todos acolhia, e cuidadosamente se integrou à vida da cidade como se lá tivesse nascido! Naqueles anos, de 1946 a 1950, eles foram realmente parte de Três Corações. Na Escola Estadual onde o Dr. Edésio atuou como professor (hoje Escola Estadual Américo Dias Pereira), vários de meus primos foram seus alunos. Anos depois, fomos reencontrando seus filhos em diferentes circunstâncias: meu irmão Guilherme foi, junto com Luiz Anibal, conselheiro da Companhia Siderúrgica de Tubarão - CST, e depois era com ele, já então presidente da Acesita, que negociava aço especial; meu irmão Eduardo trabalhou sob a chefia de Marcos na Rio Doce Engenharia e Planejamento; eu convivi com Maria Eugênia nos eventos da Cultura Inglesa, com Cândido na UFMG, com Luiz Anibal no Conselho do

A família Lima Fernandes, que tem presença marcante e exemplar em Minas Gerais, distingue-me com a honra de trazer modestas anotações sobre a consular figura de Dona MARIA IPHIGÊNIA DE LIMA FERNANDES, ao ensejo de seus cem anos de nascimento. A incumbência, bem o sei, representa uma homenagem a ELÓI MENDES, minha cidade natal, que foi a primeira Comarca do interior a recebê-la, após seu casamento com o então Promotor de Justiça da Comarca, o Doutor EDÉSIO FERNANDES, em 10 de novembro de 1938. A jovem, pertencente a família tradicional e influente de Minas Gerais, e seu ilustre marido se instalaram na cidade e por três anos conviveram com a comunidade eloiense, onde deixaram lembranças inesquecíveis.

Desembargador Reynaldo Ximenes Carneiro, tendo ao fundo o selo comemorativo da “ Escola Judicial Desembargador Edésio Fernandes”

113


114

O registro que fiz à época em que foi comemorado o centenário do Desembargador Edésio Fernandes, referente à despedida do então Promotor de Justiça que se afastou para iniciar uma carreira vitoriosa como magistrado, um dos mais conhecidos e queridos de Minas Gerais, deve ser lembrado para mostrar a importância de Dona MARIA IPHIGÊNIA em consolidar o prestígio e o reconhecimento do povo de Elói Mendes ao casal:

no caso, a figura humana de Dona MARIA IPHIGÊNIA LIMA FERNANDES sobressaía por sua

“Por motivo de sua transferência desta cidade para a cidade de São Manoel de Mutum, onde vai ocupar o elevado cargo de Juiz de Direito, os operários de Elói Mendes promoveram, no dia 4 do corrente, uma tocante manifestação de despedida ao Dr. Edésio Fernandes, que, durante quase três anos, ocupou com rara eficiência e brilhantismo o cargo de Promotor de Justiça da Comarca. Pelo grande conceito de que goza em nosso meio o ilustre homenageado, todo o povo de Elói Mendes numa solidariedade concreta aderiu satisfeito à manifestação idealizada pelos operários. Assim é que, às 19 horas, acompanhada pela Banda de Música Municipal, uma multidão incalculável, tendo à frente as autoridades locais, operários e

Minas muito deve a ela, pois, com o marido, formou uma família que se projetou e se projeta

preocupação em participar dos acontecimentos comunitários, envolvendo-se intensamente nos assuntos mais significativos com objetivo de alcançar o bem-estar social. Granjeou a simpatia e o respeito de todos pela forma prestante com que tratava o povo, especialmente os mais humildes.

no estado e no País, nos vários campos da atividade humana, como exemplo de honra, dignidade, descortino e eficiência! É por isso que me sinto sumamente honrado em representar meus conterrâneos neste momento de recordação e de regozijo em que se comemora a vida de uma virtuosa e especial figura mineira, em seus cem anos, a vida de MARIA IPHIGÊNIA DE LIMA FERNANDES. * Desembargador Aposentado do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais

grande número de famílias de nossa sociedade, dirigiu-se à casa de residência do Dr. Edésio Fernandes, onde o mesmo se achava em companhia de sua Exma. Snra. D. Maria Iphigênia Lima Fernandes e amigos particulares.

2.15 ELIZABETH CURI

Foi então dada a palavra ao Dr. Milton Mendes dos Reis, que, em belo improviso e com a sua proverbial eloquência, traçou em linhas fortes o perfil simpático do Dr. Edésio Fernandes, deixando transparecer a funda lacuna que o homenageado iria deixar no seio, não só da sociedade, como no meio de seus amigos, que é toda a população do município. Falou a seguir o Dr. Carlos Dayrell França, que, em palavras buriladas, traçou a figura não menos simpática da Exma. Snra. D. Iphigênia, terminando por ofertar à ilustre senhora uma corbeille de flores em nome das senhoras da nossa sociedade.” (Semanário ELOY MENDES, edição de 11 de maio de 1941)

Em encontros que Dona IPHIGÊNIA mantinha com minha mãe, com minha avó, com outras amigas que lá deixou e, nas oportunidades em que eu a encontrava, era lembrança permanente dela o relacionamento que teve com as amigas e amigos que deixou em Elói Mendes, lembrando sempre da sua inexperiência com os assuntos domésticos e da colaboração prestada pelos vizinhos, entre os quais destacava, sempre, o saudoso amigo do casal, o então jovem HELI XIMENES PADILHA. É normal que fique a marca do titular do cargo do Ministério Público ou do Juiz de Direito, nas passagens dos que exercem as importantes funções, sem que se lembrem os cônjuges, mas,

Maria Iphigênia e Edésio com José Norberto Vaz de Melo

Foi com muita emoção que recebi o convite da minha ilustríssima amiga Maria Eugênia, para falar sobre sua querida mãe, Dona Maria Iphigênia. Sempre fui muito querida e muito bem recebida em sua família. Lembro-me de chegar à sua residência com meu querido pai e sempre ser recebida com um grande sorriso.

115


116

Papai, que guardo em memória, sempre gostou muito de prosear com a Dona Maria Iphigênia e seu marido, o Desembargador Edésio Fernandes. Eu me recordo de inúmeros cafés de fim de tarde em que o acompanhei. Muito generosa, sempre foi um exemplo de mulher para mim, guardo-a na lembrança e em meu coração. Eu acho muito bom ter crescido vendo a amizade do casal com meu pai, o que me deu um bom exemplo de como as amizades verdadeiras existem e florescem, tanto que sempre mantive contato não só com eles, mas também com seus filhos: Maria Eugênia, Heloisa, Luiz Anibal, Marcos, Eduardo, Cândido Luiz e Edésio Júnior. Saudades da Dona Maria Iphigênia e do Desembargador Edésio Fernandes, uma família muito estimada.

2.16 MARIA CRISTINA VIANNA FIGUEIREDO Mulher-Jardim Há pessoas que vêm a este mundo com a bonita e rara missão de SER FLOR... Ou, quando nada, com a capacidade de se misturar a elas, a tal ponto que, ao pensarmos na pessoa, vêm a nossa mente as flores.

Maria Iphigênia com Cristina e Francisco Figueiredo

Assim vejo Maria Iphigênia Franzen de Lima Fernandes – amiga-flor, mulher-jardim, a partir da beleza das orquídeas que cultivava em seu espaço contíguo à sala de visitas e da camélia que sempre usava na lapela...

Mais que isso, Maria Iphigênia soube ser flor na vida de tantos que com ela conviveram. Com o falecimento de meus pais e sogros, eu e meu esposo pudemos sentir o aroma de mãe-flor no carinho e na atenção que sempre nos propiciou. Amiga-flor, com sensibilidade bastante para tomar como suas as dores de pessoas amigas como eu, que tive a felicidade de sê-lo.

Foi flor como mãe, sogra, avó e bisavó, alegrando com seu perfume os bons momentos em família e consolando, com aroma-bálsamo, os que atravessavam fase de agruras... No ponto mais recôndito de seu jardim, mas, a um só tempo, bastante visível para todos enxergarem como testemunho de vida, ela cultivou a mais bela e intensa flor-do-amor por Edésio Fernandes. Hoje, passados os tempos do falecimento de ambos, ouso imaginar Maria Iphigênia e Edésio Fernandes num cantinho especial do céu, onde há um lindo jardim... Maria Iphigênia cuida dele com a ajuda de uma legião de anjinhos, sob o olhar encantado de seu grande amor, Edésio... Se ficarmos carentes de alguma flor específica aqui na Terra, peçamos a ela que interceda por nós... MULHER-JARDIM é assim: perfuma, ajuda e floreja por toda a eternidade!...

2.17 RICARDO ARNALDO MALHEIROS FIUZA Dona Maria Iphigênia “Quero, também, homenagear minha AVÓ, que sempre foi uma esposa, mãe e avó muito dedicada, companheira inseparável de seu marido nos momentos de alegria e sofrimento.”(Cristiana Fernandes Carvalho, neta de Dona Maria Iphigênia)

Esse é o depoimento terno, carinhoso, saudoso mesmo, de uma jovem que teve a felicidade de ser neta de Edésio Fernandes e Maria Iphigênia. Consta do magnífico livro comemorativo do centenário do grande homem e juiz. No mesmo livro, em sua página de abertura, do qual tive a honra de participar, encontra-se a profunda frase:

117


118

Mulher fina, educadíssima, discreta, amável, gentil, afável, cortês, delicada, polida, doce e atenciosa. Uma verdadeira aristocrata!

Qualquer celebração justa da vida do homem e da trajetória do magistrado Edésio Fernandes tem que começar por uma homenagem àquela que sempre esteve ao lado dele e ao longo desse caminho, ela que com seu amor incondicional tornou o caminho dele possível e melhor: Maria Iphigênia de Lima Fernandes.

Desempenhou como ninguém a função de Primeira Dama do Tribunal de Justiça, sempre

Ao reler esses dois amorosos e verdadeiros textos, pensei comigo, quando fui convidado pela família para participar, também, deste novo livro, comemorativo do centenário de Maria Iphigênia, o que mais posso dizer? Sim, posso dizer que trabalhei com o inesquecível Edésio no TJMG. Ele, Presidente da Corte, e eu, Diretor Geral.

preocupada em auxiliar os mais necessitados.

Viajei várias vezes com o casal (ela sempre com ele), em missões oficiais por estas terras mineiras.

rentes. Foi um sucesso, em especial, pelo ine-

E digo, então, com grande e amena saudade daquele homem simples e respeitado, nobre por natureza, que tantos benefícios prestou ao Judiciário, com relevo para a criação da primeira escola oficial de magistrados e servidores judiciários: a Escola Judicial “Des. Edésio Fernandes” – a querida EJEF, nome dado à instituição como certíssima homenagem póstuma ao seu patrono.

Lembro-me bem de uma campanha feita por ela para recolher gêneros de primeira necessidade e produtos de beleza para mulheres ca-

Maria iphigênia com Maria Helena e José Arthur

ditismo! José Arthur sempre me dizia para ter D. Maria Iphigênia como exemplo e modelo.

Todas essas características, virtudes e qualidades demonstram a figura humana que foi D. Ma-

Naquelas viagens pelas diversas regiões de Minas, vi, de perto, o homem “público e pessoal” que soube, ao lado de sua inseparável Maria Iphigênia, dama da sociedade, do estado e da própria casa, de sua família exemplar.

ria Iphigênia. Dona de um coração generoso, me fez sentir acolhida como uma filha, desde os

Ela ajudou o trabalho do marido, no dia a dia, marido que se preocupava com a situação pessoal de cada um, Juiz, Servidor ou seu unido clã. Todos, enfim, que se agrupavam sob sua paternal chefia.

semana, na companhia do Des. Edésio e dos filhos. A partir de então, nossos laços se fortale-

E tudo que aquele homem, sereno e firme, fez pela comunidade deve-se muito, sem dúvida, ao amor, firme e romântico, de sua companheira, a inesquecível Maria Iphigênia O casal continua unido em sublimes espaços. Ricardo Arnaldo Malheiros Fiuza Ex-Diretor do TJMG e 1º coordenador da EJEF. Membro da Academia Mineira de Letras

idos anos 1950, quando, ainda menina e estudante do Colégio Sion, de Campanha, a conheci. Como interna, ficávamos longe da família e eu costumava almoçar em sua casa nos fins de ceram, fazendo-me sentir parte integrante dessa bonita família. Não poderia deixar de registrar que sempre tive o colo da saudosa e inesquecível D. Maria Iphigênia, esposa devotada ao marido e aos filhos, aglutinadora e pacificadora das relações familiares, exemplo de mulher, mãe e esposa. Mais tarde, viemos a nos reencontrar quando meu marido, José Arthur, então Procurador Geral de Justiça, pleiteou promoção pelo quinto ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais – isto em 1977.

2.18 MARIA HELENA GUIMARÃES DE CARVALHO PEREIRA

Naquela oportunidade, pedi que nos auxiliasse e, sem vacilar, ela se prontificou a interceder junto ao Des. Edésio, em prol de José Arthur. Sou muito grata por isso, também.

Falar de D. Maria Iphigênia é tarefa fácil e difícil ao mesmo tempo. Sem esforço, por suas inúmeras qualidades e capacidade de marcar a minha vida e, extremamente penoso, por receio de não retratar, com fidelidade, a sua pessoa.

Poderia contar inúmeros casos e vivências que tive com essa formidável mulher que tinha como marca a polidez, a discrição e o espírito nobre. Sensata, altiva e prudente, sempre nos ensinava algo.

119


120

Grande educadora, soube transmitir aos filhos virtudes encantadoras e todos, sem exceção, se tornaram grandes figuras humanas. Seu desapego e o amor ao próximo a fizeram trabalhar na Santa Casa de Misericórdia, quando já estava com os filhos criados, deixando um lindo legado aos que a conheceram. Um fato que merece destaque foi quando recebi das mãos de Maria Eugênia uma linda joia pertencente à D. Maria Iphigênia, gesto que me levou às lagrimas e que guardarei para eternidade.

2.20 JANE BONOME

121

A distância não me impediu de o chamar de Edesinho. Na minha idade, não poderia imaginar ser capaz de escrever sobre sua mãe. Falar dela é sempre ter agradáveis lembranças.

A vida é uma cadeia de elos irmãos e contínuos intensamente ligados que não há como separá-los.

Associação das Voluntárias da Santa Casa – AVOSC. Maria Iphigênia de Lima Fernandes ingressou nesse voluntariado em 1982.

Com ela, reafirmei o verdadeiro sentido de família, percebi que amar é finalidade, é condição, é força-motriz, e que nada há neste mundo que possa perpetuar-se se não for pela via do que significa amar.

Em seu nome ficou faltando uma letra que para mim era muito importante: phD.

Assim, agradeço pelo amor que me envolveu ao longo dessa caminhada e que ainda me envolve, pois volto a afirmar: Nada há neste mundo que possa perpetuar-se se não for por amor. Meu terno e eterno agradecimento.

D de dedicada, D de bondosa, D de amiga, D de companheira, D de paciente, D de discreta, D de doação, e tantos mais Ds que não são poucos. O D de doação foi muito importante para os pacientes carentes da Santa Casa. Não sou chegada a superlativos que, no caso dela, não seriam suficientes.

2.19 RITA ANDRÉA GUIMARÃES DE CARVALHO PEREIRA

No momento me encontro batalhando com a perda da visão, não que esteja cega, mas está difícil. Um abraço saudoso da Jane.

Evocar Dona Maria Iphigênia é passear no espaço das palavras que emergem em um contexto histórico, revelando um pensamento que nos remete a um tempo de nossas vidas. O tempo da delicadeza! Do alto dos meus 15 anos, fui acolhida como adulta, no que diz respeito à inteireza e à igualdade, tendo a alteridade como condição.

Maria Helena e Rita Andréa

Gestual comedido e grandes gestos eram a sua marca! Os fios platinados e impecáveis não apenas adornavam seu rosto, inscreveram presença serena na vida de cada um de nós.

PS: Sempre às sextas-feiras era comum eu chamá-la: “Maria Iphigênia! Olha lá, hoje é sexta-feira, portanto, sexo seguro!”.


122

FICHA TÉCNICA

123

Organização: Edésio Fernandes Júnior Aquarela da Capa: Sandra Bianchi Design Gráfico: Lúcia Nemer • Martuse Fornaciari Produção Gráfica: Nemer Fornaciari Design Revisão de Textos: Trema Textos Impressão: Rona Editora

Maria Iphigênia de Lima Fernandes (1918- 2003). Duas festas lindas: a graça e a bondade. Uma homenagem por ocasião dos 100 anos de seu nascimento / Organização de Edésio Fernandes Júnior. – Belo Horizonte : Gaia Cultural – Cultura e Meio Ambiente, 2018. 124 p. : il., fotos., color. ; 24 cm. ISBN 000-00-00000-00-0 1. Fernandes, Maria Iphigênia de Lima, 1918-2003. 2. Biografia. I. Fernandes Júnior, Edésio. II. Título.

CDD 920


9 788566 99611 1


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.