Tradição cristã, A: uma história do desenvolvimento da doutrina - Vol. 4

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Sumário Prefácio .................................................................................................................. 7 Principais fontes ................................................................................................ 11 Reforma definida ............................................................................................... 57 1. O pluralismo doutrinal no final da Idade Média ................................ 65 Além da síntese agostiniana ............................................................................. 68 O plano da salvação .......................................................................................... 78 A transmissão da graça ..................................................................................... 94 A única fé verdadeira ...................................................................................... 117 2. Una, santa, católica e apostólica? .......................................................... 129 A unidade da igreja .......................................................................................... 132 A santa igreja .................................................................................................... 146 Concordância católica .................................................................................... 160 Em defesa da obediência apostólica ............................................................. 172 3. O evangelho como o tesouro da igreja .................................................. 191 A justiça divina e a retidão humana ............................................................... 192 A justificação pela fé ........................................................................................ 202 A teologia da cruz ............................................................................................ 220 A centralidade do evangelho .......................................................................... 231 4. A palavra e a vontade de Deus .................................................................. 247 Palavra e espírito ............................................................................................. 251 Obediência à palavra e à vontade de Deus ................................................... 268 A vontade eterna de Deus, velada e revelada ............................................... 282 A vontade de Deus para o mundo ................................................................. 297


5. A definição da particularidade do católico-romano ....................... 311 Os defensores da fé ........................................................................................ 313 O evangelho e a igreja católica ...................................................................... 329 Do pluralismo à definição .............................................................................. 343 A reafirmação da igreja e do dogma ............................................................. 359 6. Os desafios para a continuidade apostólica ........................................ 375 O humanismo cristão e a autoridade da revelação ...................................... 377 O espírito versus a estrutura .......................................................................... 384 Repúdio da doutrina trinitária ....................................................................... 393 7. O dogma confessional em um cristianismo dividido ......................... 403 A introdução aos dogmas .............................................................................. 406 A humanidade de Jesus Cristo ....................................................................... 421 A história da aliança ........................................................................................ 432 Os dons da graça ............................................................................................. 443 Obras secundárias selecionadas ................................................................. 455


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Durante os quatro séculos desde a morte de Tomás de Aquino e de Bonaventura em 1274 até o nascimento de Johann Sebastian Bach e de George Frederick Handel em 1685, o cristianismo ocidental vivenciou mudanças fundamentais e de longo alcance na intepretação — na verdade, na própria definição — da igreja e do dogma. A maioria das mudanças estava, de uma maneira ou de outra, conectada com a Reforma do século XVI que, por conseguinte, é em geral, por si mesma, o tópico do estudo acadêmico e da discussão teológica. Aquele século, desde a colocação das 95 Teses, de Lutero, em 1517 até a deflagração da Guerra dos Trinta Anos, em 1618, foi, na política e na sociedade não menos que na teologia e doutrina da igreja, um importante momento decisivo na história do Ocidente. No entanto, qualquer que seja a validade que possa haver nessa concentração no século XVI, o lugar da Reforma na história do desenvolvimento da doutrina cristã fica claro apenas no contexto dessa história completa. Uma vez que é nos conflitos do século XVI que a maioria das denominações cristãs no Ocidente, e não apenas o próprio catolicismo-romano, têm de traçar a origem de suas posições doutrinais atuais, com certeza, é compreensível, e provavelmente inevitável, que os leitores que permanecem em uma ou outra das tradições doutrinais oriundas do período da Reforma tenham um interesse especial nas porções deste volume e do seguinte, os quais lidam com seus próprios “pais da igreja”. Mas essas porções desses dois volumes, e, no que se refere ao assunto, esses dois volumes inteiros, são apenas uma parte de uma história completa que remonta aos pais de toda a igreja católica; e é na história completa que os “pais da igreja” de uma confissão ou denominação em particular têm de ser entendidos (como eles mesmos, na maioria dos casos, gostariam de ser entendidos). Há, e deve haver, livros sobre a doutrina


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e a história das várias denominações, bem como livros sobre “simbólicos comparativos”, que retratam o contraste e a afinidade entre as diversas confissões; alguns desses livros aparecem na bibliografia deste volume. Mas, neste presente livro, seria um erro e uma fonte de desapontamento para o leitor ir com pressa excessiva para os capítulos ou parágrafos individuais nos quais se espera que os nomes e questões familiares dessas denominações apareçam; pois alguns deles não aparecem de maneira alguma, e outros recebem atenção apenas à medida que pertencem à história do desenvolvimento da doutrina na tradição cristã como um todo. Por essa razão, o cerne desta narrativa, nos capítulos 3 a 6, continuará a prática usada nos volumes anteriores na organização com base nas doutrinas e na ênfase doutrinal, embora a preponderância de uma ou de outra doutrina e de uma ou de outra denominação signifique que os teólogos e os escritos confessionais dessa denominação predominarão no capítulo — a doutrina luterana no capítulo 3, a doutrina reformada no capítulo 4, a doutrina católica-romana no capítulo 5 e a doutrina radical no capítulo 6. Ainda assim, nesses capítulos, as fontes de outras tradições denominacionais que não a predominante serão proeminentes porque nenhuma denominação detinha o monopólio da doutrina: um teólogo reformado fornece a epígrafe para a apresentação da doutrina “luterana” da justificação pela fé (veja p. 203 abaixo). Além disso, a organização com base nas doutrinas, em vez de nas denominações ou confissões, significa que a doutrina de uma comunhão, como a Igreja da Inglaterra — luterana em sua origem intelectual, católica em sua política, reformada em suas declarações confessionais oficiais, radical em seu resultado puritano e, de acordo com o antigo ditado, “pelagiana em seu púlpito, mas agostiniana em seu livro de oração” — não está concentrada em nenhum capítulo, mas espalhada ao longo de diversos capítulos. Contudo, nossa atenção continua a ser dirigida à doutrina cristã, definida no início desta obra como “o que a igreja de Jesus Cristo acredita, ensina e confessa com base na palavra de Deus” (veja vol. 1, p. 25). Embora houvesse substancial documentação para essa definição ao longo dos períodos anteriores da história da doutrina, ela de fato entra por si só na história no período coberto por este volume. Marsílio de Pádua e Álvaro Pelágio estavam em lados opostos da controvérsia do século XIV a respeito da doutrina da autoridade papal e de sua relação com os poderes temporais; mas quando Marsílio falou da “fé católica” como “uma, e não muitas [...], a ser crida e confessada por todos os fiéis” (Mars. Pad. Def. pac. 2.18.8 [Previté-Orton, p. 310]), suas palavras encontraram um paralelo idêntico na fórmula de Álvaro:


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“A obediência, a fé e a fidelidade, a confissão do coração e da boca [...] da santa igreja católica e ortodoxa” (Alv. Pel. Ep. 15.5 [Meneghin, p. 144]; Alv. Pel. Planc. eccl. 1.60 [1560:65r]). Álvaro também invocou uma distinção entre “fé” definida como “o que é crido por todos os fiéis” e “fé” definida como “aquilo por meio do que se crê [fides qua creditur]” e definiu “a unidade da fé” como “a unidade da doutrina” (Alv. Pel. Planc. eccl. 1.63 [1560:74v]). “A verdade da fé”, explicou Gerson, em 1413, com base em romanos 10.10, “não consiste apenas em crer com o coração, mas consiste também em confessar com a boca”, bem como em condenar a “falsa doutrina” (Gers. Rep. cr. [Glorieux 7:216-17]); ou, conforme ele disse em outro lugar com base no mesmo texto, consistia em “confessar publicamente, defender, testificar e pregar” (Gers. Mat. fé 1 [Glorieux 6:155]; Gers. Serm. 237 [Glorieux 5:420]). Tomás de Kempis, seu contemporâneo mais jovem, também falou sobre acreditar, confessar e pregar (Tos. Kemp. Vit. Chr. 2.1.15 [Pohl 5:295]; Tos. Kemp. Serm. nov. 20 [Pohl 6:179]) e, às vezes, sobre acreditar, adorar e confessar (Tos. Kemp. Vit. Chr. 1.1.11 [Pohl 5:25]) — uma fórmula ecoada no século XVI por Filipe de Melâncton quando ele, com base na Shemá de Deuteronômio 6.4 e em uma explicação do Credo Niceno, definiu “adoração” como “confissão” (Mel. Explic. symb. Nic. [CR 23:358]). Melâncton, ao escrever em sua capacidade autorizada como o autor da obra Confissão de Augsburg e de Apologia da Confissão de Augsburg, recorreu com frequência ao tema da “confissão da doutrina” (Apol. Conf. Aug. 4.193 [Bek., p. 198]), uma vez que “nenhuma fé é firme se não se mostra em confissão” (Apol. Conf. Aug. 4.385 [Bek., p. 232]). A Confissão de Augsburg era “uma confissão da doutrina dos nossos pastores e pregadores e da nossa própria fé, expondo como e de que maneira, com base na Escritura divina e sagrada, essas coisas são pregadas, ensinadas, mantidas e transmitidas” (Conf. Aug. pr. 8 [Bek., p. 45-46]). Outras confissões do século XVI — reformada, católica-romana e luterana — todas usam o tema. A Confissão escocesa, de 1560, iniciava seu primeiro artigo com a declaração: “Confessamos e reconhecemos [...]. Confessamos e cremos” (Conf. escos. 1 [Niesel, p. 84]; Calv. Rom. 14:22 [Parker, p. 303]; Calv. Ep. du. 1 [Barth-Niesel 1:294]). No Concílio de Trento, o primeiro esboço do decreto sobre a justificação usou uma fórmula semelhante: “Cremos firmemente e simplesmente confessamos” (CTrid. Decr. just. I.1; 2 [CT 5:385]), enquanto o esboço final de seu decreto sobre o pecado original dizia: “O santo, ecumênico e geral Concílio de Trento [...] ordena, confessa e declara. [...] Esse santo sínodo confessa e acredita” (CTrid. 5. Decr. 1 [Alberigo-Jedin, p. 665-67]). E a luterana Fórmula de Concórdia, de 1577, começava sua introdu-


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ção com as palavras: “Acreditamos, ensinamos e confessamos” (Form. Conc. Epit. Sum. 1 [Bek., p. 767]), invocando as mesmas palavras em todas menos em duas das seções afirmativas de seus artigos subsequentes. O próprio uso do título “confissão” para a maioria das declarações da doutrina cristã do século XVI é evidência da centralidade da ideia. A confissão era essencial para a igreja porque ela, com a crença e o ensino, pertencia à doutrina cristã. Como foi lembrado em uma sessão anterior do Concílio de Trento, a reforma da estrutura ou a moral da igreja sem a reformulação da doutrina da igreja não satisfaria as objeções e exigências dos reformadores protestantes, para quem a doutrina era essencial (Bonuc. ap. CTrid. Act. 22.i.1547 [CT 4:572]). O teólogo anabatista Baltazar Hubmaier — embora algumas de suas ênfases, mesmo aqui, revelem que era um reformador radical para quem “a reforma da igreja e do dogma” significava de fato “re-forma da igreja e do dogma” (veja p. 377 abaixo) — falava por todos os reformadores quando escreveu: “Uma vida cristã tem de começar primeiro de tudo com a doutrina, da qual a fé flui. [...] É na confissão pública de sua fé que um homem faz sua primeira entrada na santa igreja católica e cristã e começa nela, à parte da qual não há salvação” (Hub. Lr. pr. [QFRG 29:307]). Ou no axioma do reformador suíço-alemão Henrich Bullinger: “A doutrina é a coisa mais importante que se destaca acima de todas as outras” (Blngr. Coen. [1558:3r]). Os reformadores protestantes, em vários graus, tendiam a querer dizer com “doutrina” um corpo de “artigos de fé” recebido, conforme contido nos ditos três credos ecumênicos: o Credo dos Apóstolos, o Credo Niceno e o Credo de Atanásio (Conf. Belg. 9 [Schaff 3:393]; Conf. Helv. post. 11 [Niesel, p. 238]; formm. Conc. S. D. Sum. 4 [Bek., p. 834]). Também em vários graus, eles, com Melâncton, podiam defender a ideia de “agarrar-se o mais possível às fórmulas doutrinais tradicionais” (Apol. Conf. Aug. pr. 11 [Bek., p. 143]), tanto assim que a teologia protestante, no conflito com Serveto, foi mais direta e mais lamentavelmente envolvida do que o foi a teologia católica-romana na defesa da ortodoxia nicena e calcedônia (veja p. 393-402 abaixo). Como, para a teologia católica-romana, qualquer “reforma” da doutrina ortodoxa estabelecida significava apenas “reafirmação”, a necessidade de “agarrar-se o mais possível às fórmulas doutrinais tradicionais” foi ainda mais pronunciada para seus “defensores da fé” que conseguiram encontrar no consenso da ortodoxia cristã da Antiguidade para sua oposição à negação de Lutero do livre-arbítrio (veja p. 324-27, 356-58 abaixo), mas se esforçaram em encontrá-lo também para o termo “transubstanciação” (veja p. 324, 36869 abaixo). Nesse assunto, eles tentaram seguir o precedente de um pensador


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como Gerson, que declarou sua intenção de “não dizer nada além do que os outros dizem, embora talvez dizer isso de outra maneira [non quidem alia dicturus quam alii, quamquam forte aliter]” (Gers. Vid. esp. 3 [Glorieux 3:143]; Gers. Teol. mist. 1.pr. [Combes, p. 6]). No entanto, às vezes, essa asserção defensiva do desejo de evitar a novidade podia dar lugar a um reconhecimento de que houvera autêntico desenvolvimento, se não mudança evidente, no entendimento da igreja do sentido do depósito original da revelação. Esse reconhecimento foi possível pela “grande distinção [...] entre os artigos de fé e as boas práticas da igreja” (Wic. Lut. art. [CCath 18:71]). Por exemplo, a igreja, “de acordo com a mudança dos tempos”, modificou sua posição sobre a pobreza; pois é Deus “que muda os tempos” e, por conseguinte, o sentido do imperativo evangélico da pobreza (Henr. Lang. Cons. paz 15 [Hardt 2:47]). Até mesmo a ordem na instituição da eucaristia: “Bebam dele todos vocês” (Mt 26.27), era suscetível de alteração pela autoridade da igreja (veja p. 186-88 abaixo), como o era o decreto do “concílio apostólico” de Jerusalém proibindo a ingestão de “animais estrangulados” (At 15.29; veja p. 345 abaixo). A possibilidade de algum desenvolvimento análogo nos próprios artigos de fé e doutrina era muito mais problemática; mas quando era reconhecido — e isso acontecia com frequência, apesar de não necessariamente —, era identificado com a visão de que nem toda tradição autêntica estava contida na Escritura e que a igreja, por conseguinte, tinha poder e autoridade para promulgar os ensinamentos (Jac. Vit. Reg. chr. 2.10 [Arquillière, p. 292-93]), por exemplo, a respeito da doutrina sobre a virgem Maria, sem justificativa escritural explícita (veja p. 99-101 abaixo). Mesmo no final do período coberto aqui, a posição dessa visão da tradição à parte da Escritura como uma fonte independente de revelação ainda era ambígua na doutrina oficial da Igreja Católica-romana (veja p. 345-46 abaixo), independentemente do que os teólogos individuais possam defender. A distinção entre o que os teólogos individuais defendiam e o que era crido, ensinado e confessado pela igreja, ou igrejas, foi em si mesmo interpretado de forma cada vez mais ambígua pelo cisma dos séculos XIV e XV e, acima de tudo, pela Reforma do século XVI. Mas a própria proliferação de documentos denominados “confissões”, paradoxalmente, mostra que a distinção, se houvesse alguma, estava se tornando mais importante que nunca. Também se torna mais importante para a estrutura da nossa narrativa e para nossa seleção das fontes de material nesta obra. É acima de tudo no tratamento dado à Reforma pelas histórias do dogma que o que denominamos de “o risco de exagerar a relevância do pensamento idiossincrático dos teólogos


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individuais à custa da fé comum da igreja” (veja vol. 1, p. 27) tem se manifestado. Por exemplo, depois de insistir em sua introdução que “nem o clero nem os teólogos [...], mas sim a comunidade cristã é seu assunto” (Seeberg [1953] 1:7), uma história, também em cinco volumes, dedicou todo seu quarto volume à teologia de Lutero como um pensador individual, guardando até mesmo a doutrina da “comunidade cristã” em particular e a confissão vinda da Reforma de Lutero para uma porção de seu quinto volume. A teologia de um gênio religioso como Martinho Lutero, (ou Agostinho ou Tomás de Aquino), a despeito de toda sua quase irresistível atração, merece atenção em uma história do desenvolvimento da doutrina cristã como “o que a igreja de Jesus Cristo crê, ensina e confessa com base na palavra de Deus” só por causa de sua quase inestimável importância para esse desenvolvimento, não por causa de seu apelo intrínseco. Para cada século sucessivo nos períodos a serem discutidos nos volumes 4 e 5 desta obra a quantidade de fontes sobreviventes de materiais é substancialmente maior que a para os séculos precedentes, até finalmente haver com certeza mais páginas de teologia disponível de qualquer década dos séculos XIX ou XX que as do século II em sua totalidade. A disponibilidade cada vez maior de textos do final da Idade Média esclarecem as ideias dos pensadores individuais dos séculos XIV e XV, por exemplo, Guilherme de Ockham, cujo lugar na história da teoria política, da lógica e da metafísica e da teologia doutrinal passa por reavaliações fundamentais enquanto a primeira edição crítica de suas obras está perto de ser concluída. Não obstante, para nosso propósito atual nesta obra, Ockham fornece documentação substancial da presença do “pluralismo doutrinal no final da Idade Média” em áreas da doutrina, como a predestinação e os sacramentos (veja p. 91, 110 abaixo), bem como para o aumento da atenção dada aos séculos XIV e XV para a doutrina da igreja. O pensamento político de Ockham, como o dos primeiros pensadores cristãos (veja vol. 1, p. 60-61; vol. 2, p. 164-66, 222-29; vol. 3, p. 84, 85, 353), incide sobre a história da doutrina principalmente porque ela forneceu o contexto para boa parte do ensinamento dele sobre a natureza da igreja (veja p. 171 abaixo). Pelo mesmo motivo, até mesmo os levantes políticos e sociais dos camponeses, dos nobres e das cidades no século XVI — aos quais grande parte do estudo acadêmico atual sobre a Reforma, quer no Oriente quer no Ocidente, se devota — aparecem aqui apenas à medida que afetaram as questões eclesiológicas como a continuidade apostólica (veja p. 384-93 abaixo). Por essa razão, também, nesse período, o tema “o nacionalismo e o cristianismo europeu” (Pauck [1939], p. 286-303]) será deixado para ser


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considerado em outro lugar. Quando o Concílio de Constança foi “dividido em quatro nações, com muitas divisões em cada uma destas” (Serm. conc. Const. 23.ii.1416 [Finke 2:430-31]); ou quando o dominicano João de Ragusa (Johannes Stojkoviº de Dubrovnik) lamentou, “com todo o sentimento e amor em [...] [seu] coração, a separação dos tchecos hussitas dos outros eslavos (Jo. Rag. Utraq. [Mansi 29:712]); ou quando Lutero, depois de sua confrontação com o estudioso tomista cardeal Tomás Caetano (Tommaso de Vio) advertiu: “Ele é italiano e é isso que ele continua a ser” (Lut. Ep. 18.x.1518 [WA BR 1:209]); ou quando Dionísio de Zanettini — bispo de Chironissa e de Milopótamos, apelidado de “o greguinho [Grechetto]” — no que quase com certeza foi o episódio mais tragicômico no Concílio de Trento e com nuanças étnicas, acabou envolvido em uma briga com gritos e puxões de barba na qual ele chamou um irmão bispo de “ou ignorante ou patife” (ap. CTrid. Act. 17.vii.1546 [CT 5:348]) — esse e outros incidentes desse tipo, por mais relevantes que possam ser para a história tanto do nacionalismo quanto do cristianismo europeu, não fazem parte desta história do desenvolvimento da doutrina. Por conseguinte, o critério de seleção, deixando de lado todas as preferências pessoais ou teológicas, é fundamentado na pertinência do desenvolvimento para a doutrina da igreja, e não de que teologia deixará Nicolau de Cusa mais central que Guilherme de Ockham na eclesiologia (veja p. 160-72 abaixo); o misticismo de Gerson (como o de Bernardo de Claraval e de Bonaventura) (veja vol. 3, p. 196-99, e p. 376-78 abaixo) mais apropriado à narrativa que o de Meister Eckhart (veja p. 76-78, 121-127 abaixo); e o radicalismo de Meno Simão mais relevante que o de Thomas Müntzer (veja p. 384-93 abaixo). O mesmo critério, mais uma vez a despeito das preferências pessoais e teológicas, determina o papel do pensamento renascentista na história. O humanismo, em vez de ser examinado em um ou mais capítulos distintos com seu inquestionável mérito em qualquer história intelectual abrangente desses quatro séculos, será representado aqui principalmente por suas realizações na área da “filologia sagrada” (veja p. 377-82 abaixo). A insistência dos estudiosos humanistas no entendimento do texto bíblico fundamentado em uma nova leitura dos originais hebraico e grego, mesmo que esse entendimento não se molde a algum pretendido consenso dogmático da tradição, agiu como um catalizador na reconsideração da doutrina da autoridade durante a época da Reforma. Por outro lado, o reavivamento do conhecimento patrístico, já no século XV e, depois, mais ainda no século XVI, forneceu boa parte do conteúdo para a discussão de diversas doutrinas em debate: a presença real


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na eucaristia, cuja história pluralista acabou ficando evidente por meio da pesquisa dos textos dos pais (veja p. 240-41, 260-63 abaixo); a predestinação, cujo lugar nos escritos de Agostinho (veja vol. 1, p. 300-1; vol. 3, p. 116-32), conforme publicados por Erasmo e outros estudiosos humanistas, incentivou João Calvino a afirmar que “Agostinho está completamente do nosso lado” (Calv. Praed. [CR 36:266]) a respeito dessa questão; e talvez, acima de tudo, a autoridade em que a consideração de Agostinho da relação entre a Escritura e a igreja estabeleceu os termos para os desenvolvimentos no século XV (veja p. 188-89 abaixo) e para os debates no século XVI (veja p. 331-32 abaixo). Também foi, pelo menos em parte, a antítese entre as duas formas de ler Agostinho que fundamenta a disputa entre o principal teólogo da Reforma e o principal estudioso do Renascimento sobre o livre-arbítrio (veja p. 203-5 abaixo). Pois, em um epigrama que pode ser um exagero, mas não é uma completa distorção, “a Reforma, considerada em seu interior, foi apenas o triunfo supremo da doutrina da graça de Agostinho sobre a doutrina da igreja de Agostinho” (Warfield [1956], p. 322). Da mesma maneira que é a centralidade da doutrina da igreja, e não a teologia, que modelará o tratamento aqui tanto dos dois séculos que precederam a Reforma quanto do próprio século da Reforma, ela também determinará o lugar nesta narrativa dos dois séculos que se seguiram à Reforma. Como o século XIII, ao qual produz determinadas analogias (veja vol. 3, p. 321-360), o século XVII, como “a era da ortodoxia”, deve em qualquer “estudo da história da teologia” (Pelikan [1950], p. 49-75) exigir a séria atenção acadêmica. No entanto, exatamente por ter sido uma “era da ortodoxia”, a atenção garantida em um estudo na história da doutrina da igreja deve ser bem distinta. Pois “ortodoxia” aqui significava a sistematização de uma doutrina que já fora promulgada nas definições confessionais e dogmáticas do século XVI, o esclarecimento da relação interna das doutrinas uma com a outra e da relação externa das doutrinas com a filosofia, além da documentação da validade delas com base na Escritura e na tradição. Não significava principalmente um desenvolvimento da doutrina, o próprio conceito do que era anátema para a maioria dos defensores de cada uma das versões de “dogma confessional”. Contudo, a “crise da ortodoxia Oriental e Ocidental” por vir, que dominou boa parte da doutrina da igreja durante o século XVIII, assumiria a forma que assumiu por causa da forma dessa ortodoxia no século XVII.




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