CLAUDE LÉVI-STRAUSS
MITO E SIGNIFICADO
COLETIVO SABOTAGEM
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Claude Lé v i- Strauss – M i t o e Signi f i c a d o
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Autor: Claude Levi-Strauss Título: Mito e Significado Título Original: Myth and Meaning Tradução: Antônio Marques Bessa Data Publicação Original: 1978
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ÍN D I C E
As Con f e rê n c i as Massey de 1977 .................................. 05 Intro d u çã o ...................................................................... 08 I. O Enco n t r o do M i t o e da Ciênc i a ............................... 10 II. Pensa me n t o «Pri m i t i v o » e M e n t e «Ci v i l i z a d a »......... 18 III. Láb i os Rachad os e Gê m e os: a A ná l ise de um M i t o.. 27 I V. Quan d o o M i t o Se Tor na Histó r i a............................ 34 V. M i t o e M ús i c a........................................................... 42
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A S CO N F E R Ê N C I A S M A S S E Y D E 1977 Desde o advento da Ciência, no século XVII, que rejeitamos a mitologia como um produto das mentes supersticiosas e primitivas. Contudo, só agora conseguimos ter uma perspectiva mais profunda e completa da natureza e do papel do mito na história do Homem. Nestas cinco conferências, o notável antropólogo Claude LéviStrauss oferece penetrantevisão que é fruto de uma vida dedicada a interpretar os mitos e a tentar descobrir o seu significado para o entendimento humano. As palestras intituladas «Mito e Significado», foram transmitidas no programa Ideas, da Rádio CBC, em Dezembro de 1977, sendo preparadas a partir de uma série de longas conversas entre o Professor Lévi-Strauss e Carole Orr Jerome, produtora da secção parisiense da CBC. A realização do programa esteve a cargo de Geraldine Sherman, diretora de Ideas , e Bernie Lucht foi responsável pela produção. As palestras foram desenvolvidas para efeitos de publicação, acrescentando-se algum material que, pelas limitações de tempo, não pôde ser utilizado na emissão original. As locuções oratórias sofreram também uma ligeira revisão, de modo a adaptarem-se às convenções mais rígidas do texto impresso. Carole Orr Jerome elaborou as questões a formular ao professor Lévi-Strauss, o que contribuiu para a forma definitiva das palestras. Os problemas e temas levantados por Carole foram os seguintes:
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CAPÍTULO 1 Muitos dos seus leitores pensaram que o senhor tenta fazernos voltar ao pensamento mitológico, que tem a idéia de que perdemos uma coisa muito valiosa e devemos tentar conquistá-la de novo. Significa porventura esta formulação que devemos pôr de lado a ciência e o pensamento moderno para regressar ao pensamento mítico? Que é o estruturalismo? Como é que chegou à conclusão de que o pensamento estrutural era uma possibilidade? É necessário haver ordem e normas para haver significado? Poderá haver significado no caos? Que pretende dizer quando afirma que a ordem é preferível à desordem?
CAPÍTULOS II E III Há escritores que afirmam que o pensamento dos chamados povos primitivos é inferior ao pensamento científico. Afirmam que é inferior não por causa do estilo, mas porque, cientificamente falando, está errado. Como é que compararia o pensamento «primitivo» com o pensamento «científico».? Aldous Huxley, na obra The Do o rs of Percepti o n , disse que a maioria das pessoas apenas usa uma pequena parte dos seus poderes mentais e que o restante não é praticamente utilizado. Pensa que com o tipo de vida que temos hoje em dia tendemos a usar menos as nossas capacidades mentais do que os povos acerca de quem escreve e que pensam de maneira mitológica?
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A Natureza mostra-nos um mundo variegado e nós tendemos a fixar-nos mais nas diferenças que nos separam do que nas semelhanças do desenvolvimento das nossas culturas. Acha que estamos a caminhar para um ponto em que poderemos começar a eliminar muitas das divisões que existementre nós?
CAPÍTULO IV Existe o velho problema de que o investigador altera o objeto da sua investigação pelo simples fato de estar no local. Considerando as nossas coletas de histórias míticas, acha que são elas que têm um significado e uma ordem próprias, ou essa ordem foi imposta pelos antropólogos que recolheram as histórias? Qual é a diferença entre a organização conceptual do pensamento mítico e a da História? A narração mítica de uma história, lida com fatos históricos, transformando-os e utilizando-os de outra maneira?
CAPÍTULO V Pode falar-nos de um modo genérico acerca da relação entre o mito e a música? Disse que o mito e a música provêm da linguagem, mas que evoluem em diferentes direções. Que quer dizer com isto?
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IN T R O D U Ç Ã O Em b o r a vá falar acerca do que escrev i – os meus livr os, os meus artig os e outros trabal h o s –, acontece que, infel i z m e n t e, esqueço o que escrev o quase imed ia ta m e n t e depois de acabar. Pro va v e l m e n t e, isso trará alguns proble m a s. Crei o, no entanto, que há algu m a coisa de signi f i c a t i v o no fato de eu nem sequer ter a sensação de haver escrito os meus livr os. Tenh o, ao contrári o, a sensação de que os livr os são escritos através de mi m, e, logo que acaba m de me atravessar, sinto- me vazio e em mi m nada fica. Estarão lem b r a d os de que eu escrev i que os mitos desperta m no Ho m e m pensa me n t os que lhe são desco n h e c i d o s. Esta afir m a ç ã o tem sido muit o debatida e até critica da pelos meus colegas de líng ua inglesa, porq ue entende m que, de um ponto de vista emp í r i c o, é uma frase que, em últi m a análise, não possui qualq u er signi f i c a d o. M as para mi m ela descre ve uma experiê n c i a vi v i d a, porq ue expri m e precisa m e n te o mod o co m o eu aperceb o a mi n ha própr i a relação com a mi n h a obra. Ou seja, a min h a obra desperta- me pensa m e n t o s descon h e c i d o s para mi m. Nu n ca tive, e ainda não tenho, a percepçã o do senti m e n t o da min ha identi d a d e pessoal. A p areç o perante mi m mes m o co m o o lugar onde há coisas que acontece m, mas não há o «Eu», não há o «mi m ». Cada um de nós é uma espécie de encruz i l h a d a onde acontece m coisas. As encruz i l h a d as são pura m e n t e passi vas; há algo que acontece nesse lugar. Outras coisas igual m e n t e váli das acontece m em outros pontos. Não há opção: é uma questão de proba b i l i d a d es. Não pretend o de for m a algu m a estar habil i ta d o a conc l u i r, lá porq ue penso deste mo d o, que toda a Hu m a n i d a d e pensa també m desta for m a. M as acho que o mo d o pecul i a r co m o cada investi ga d o r 8
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e escrito r pensa e escreve abre uma nova perspecti v a acerca da Hu m a n i d a d e. E o fato de eu, pessoal m e n t e, ter esta idi ossi n c rasia talvez me habil ite a apontar algu m a coisa de váli d o, enqua nt o o mo d o co m o pensa m os meus colegas abre diferen tes perspect i v as, todas elas igual m e n t e válidas.
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I O E N C O N T R O D O M I T O E D A CI Ê N C I A Dei x e m- me co me ça r co m uma conf issão pessoal. Há uma revista que leio fiel m e n t e todos os meses do princ í p i o ao fi m, apesar de não entende r tudo quanto diz: é o Scientific American. Em p e n h ome em estar tão be m info r m a d o quanto possí ve l a respeito de tudo quanto acontece na ciência mo de r n a e das suas mais recentes revelaç õ es. Por conseg u i n te, a mi n h a posição para co m a ciência não é de for m a algu m a negati v a. Em segun d o lugar, creio que há certas coisas que perde m o s e que devía m o s fazer um esforç o para as conq u istar de nov o, porq ue não estou seguro de que, no tipo de mu n d o em que vi ve m o s e co m o tipo de pensa me n t o cientí f i c o a que esta m os sujeitos, possa m os recon q u istar tais coisas co m o se nunca as tivésse m o s perdi d o; mas pode m o s tentar tornar- nos conscie n tes da sua existênc i a e da sua im p o r tâ n c i a. Em terceiro lugar, tenho a sensação de que a ciênc ia mo de r n a, na sua evolu ç ã o, não está se afastan d o destas matérias perdi das, e que, pelo contrári o, tenta cada vez mais reinteg rá- las no camp o da explic aç ã o cientí f i c a. O fosso, a separação real, entre a ciênc ia e aquil o que podería m o s deno m i n a r pensa me n t o mit o l ó g i c o, para encont rar um no me, emb o ra não seja exata m e n te isso, ocorreu nos séculos X V I I e X V I I I . Por essa altura, co m Bac o n, Descartes, Ne w t o n e outros, torno u- se necessári o à ciência levantar- se e afir m a r- se contra as velhas gerações de pensa m e n t o místi c o e míti c o, e pensou- se então que a ciência só podia existi r se voltasse costas ao mu n d o dos sentid os, o mu n d o que ve m o s, cheira m o s, saborea m o s e percebe m o s; o mun d o sensorial é um mu n d o ilusóri o, 10
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ao passo que o mun d o real seria um mu n d o de propr i e d a d es mate m á t i c as que só pode m ser descobertas pelo intelect o e que estão em contra d i ç ã o total com o teste m u n h o dos sentid os. Este mo v i m e n t o foi pro va v e l m e n t e necessári o, pois a experiê n c i a dem o ns t ra- nos que, graças a esta separaçã o – este cis ma, se se quiser –, o pensa me n t o cientí f i c o enco nt r o u condi ç õ es para se autoconstit u i r. Assi m, tenho a imp ressão de que (e, evide nte m e n t e, não falo com o cientista – não sou físic o, não sou biól o g o, não sou quí m i c o) a ciênc ia conte m p o r â n e a está no cami n h o para superar este fosso e que os dados dos sentid os estão sendo cada vez mais reinteg ra d os na explic aç ã o cientí f i c a co m o uma coisa que tem um signi f i c a d o, que tem uma verda de e que pode ser expl i c a da. To m e- se, por exe m p l o, o mu n d o dos cheiros. Nós estáva m o s habit ua d os a pensar que se tratava de uma coisa co m p l e ta m e n t e subject i v a e fora do mu n d o da ciênc ia. Pois agora os quí m i c o s estão habilita d o s a dizer- nos que cada cheir o e cada gosto têm uma deter m i n a d a co m p os i ç ã o quí m i c a e a expl i c ar- nos por que é que, subjeti v a m e n t e, certos cheiros e gostos nos parece m ter algu m a coisa em co m u m , enquant o acha m os outros mui t o diferentes. To m e m o s outro exe m p l o. Ho u v e na Fil os o f i a, desde o temp o dos Greg os até aos séculos X V I I I e mes m o X I X – e ainda hoje, em certo sentid o –, uma discussão tre me n d a sobre a orige m das ideias mate m á t i c as: a ideia de linha, a ideia de círc u l o, a ideia de triân g u l o. Ha v ia, funda m e n t a l m e n t e, duas teorias clássicas do m i n a n tes: a pri m e i r a era a da mente co m o uma tabula rasa, que nada tinha, no com e ç o, dentro de si; tudo lhe chega v a a partir da experiê n c i a. É por observa r m o s uma série de objetos redon d o s, nenh u m dos quais perfeita m e n t e redon d o, que som os capazes, apesar de tudo, de abstrair a ideia de círc u l o. A segun da teoria clássica remo n t a a Platão, que defen de u que essas ideias de círcu l o, de triâng u l o, de linha, eram ideias perfeitas, inatas à mente, e é por existire m na 11
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mente que somos capazes de as projectar, para o dizer de algu m mo d o, na realida de, embo ra a reali da de nunca nos ofereça um círcu l o ou um triâng u l o perfeit os. At ua l m e n t e, os investi ga d o r es conte m p o r â n e o s no camp o da neuro f is i o l o g i a da visão ensina m- nos que as células nerv osas da retina e os outros aparelh os por detrás da retina estão especial i z a d o s: algu m as células só são sensí ve is à direçã o em linha reta, outras à direção em sentid o vertica l ou horiz o n ta l ou oblí q u o, e outras, ainda, apenas são sensíve is à relação entre o fun d o e as figu ras destacadas, e assim por diante. Assi m – e eu simp l i f i c o demasia d o porq ue é para mi m muit o co m p l i c a d o expl i ca r tudo isto em inglês –, todo este prob le m a da experiê n c ia em oposiçã o à mente parece ter uma solução na estrutu ra do siste ma nerv os o, não na estrutu ra da mente nem na da experiê n c i a, mas nu m ponto inter m é d i o entre a mente e a experiê n c i a, no mo d o co m o o nosso siste ma nerv os o está constru í d o e na mane ira co m o se interp õe entre a mente e a experiê n c i a. É prov á v e l que haja qualq ue r coisa na prof u n d i d a d e da mi n ha mente que faça co m que eu semp re tenha sido o que hoje se desig na por estrutu ra l is ta. A min h a mãe conto u- me que, quand o eu tinha cerca de dois anos e era obvia m e n t e incapaz de ler, afir m e i que era de fato capaz de o fazer. E, quand o me pergu n ta ra m porq uê, disse que, ao olhar para as tabuletas das lojas – por exe m p l o boulanger (padeiro) ou boucher (talho) –, era capaz de entender qualq ue r coisa porq ue aquil o que era obvi a m e n t e semel h a n te du m ponto de vista gráfic o não poderia ter na escrita outro signi f i c a d o senão «bou», a pri m e i r a sílaba co m u m a boulanger e a boucher. É pro vá v e l que não haja mu it o mais que isto na aborda ge m estrutu ra l i sta; é a busca de invaria n tes ou de eleme n t os invar ia n tes entre difere n ças superf i c i a i s. Esta busca, durante a min h a vida, tem- se revelad o co m o um interesse predo m i n a n t e. Quan d o era ainda criança, a mi n ha curios i d a d e centro u- se durante algu m temp o na Geol o g i a. O prob le m a na Geo l o g i a é també m tentar co m p r ee n d e r o que é 12
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invaria n te na tre me n d a diversi da de da paisage m, ou seja, reduz i r a paisage m a um nú mer o finito de dados e operaç ões geol ó g i c as. M a i s tarde, co m o adolescente, gastei grande parte do meu temp o livre desenha n d o fatos e cenári os para a ópera. A q u i també m o prob le m a é exata m e n te o mes m o – tentar expri m i r nu ma ling u a g e m, isto é, na ling ua ge m das artes gráficas e da pintura, algo que també m existe na música e no libretto; ou seja, tentar expri m i r a propr i e d a d e invaria n te de um variad o e co m p l e x o conj u n t o de códi g os (o códi g o musica l, o códi g o literári o, o códi g o artístic o). O prob le m a é descob r i r aquil o que é co m u m a todos. É um prob le m a, poder- se-ia dizer, de tradu çã o, de traduz i r o que está expresso nu ma ling ua ge m – ou nu m códig o, se se prefer i r, mas ling u a g e m é sufic ie n te – nu m a expressão de uma ling ua ge m diferen te. O estrutura l is m o, ou o que quer que se desig ne por este no me, tem sido considera d o co m o algo co m p l e ta m e n te nov o e revo l u c i o n á r i o para a altura; ora, isto, segund o penso, é dupla m e n t e falso. Em pri m e i r o lugar, até no cam p o das hu ma n i d a d es o estrutura l is m o não tem nada de nov o; pode-se seguir perfeita m e n t e esta linha de pensa me n t o desde a Renasce nça até ao sécul o X I X e ao nosso temp o. M as essa ideia també m é errada por outro mot i v o : o que deno m i n a m o s estrutu ra l is m o no camp o da Li n g u í st i c a ou da A n tr o p o l o g i a, ou em outras disci p l i n as, não é mais que uma páli da imitaçã o do que as ciências naturais andara m a fazer desde semp re. A Ciênc ia apenas tem dois mo d os de proceder: ou é reduc i o n is ta ou é estrutu ra l ista. É reduc i o n i s ta quan d o descob re que é possí ve l reduz ir fenô m e n o s mui t o co m p l e x o s, nu m deter m i n a d o nível, a fenô m e n o s mais sim p l es, noutr os níve is. Por exe m p l o, há mu itas coisas na vida que pode m ser reduz i d as a processos físic oquí m i c o s, que expli ca m parcial m e n t e essas coisas, mas não total m e n t e. E, quand o somos con fr o n t a d o s co m fenô m e n o s demasiad o co m p l e x o s para serem reduz i d o s a fenô m e n o s de orde m inferi o r, só os pode m o s abordar estudan d o as suas relações internas, isto é, tentan d o co m p ree n d e r que tipo de siste ma orig i n a l for m a m no 13
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seu conju n t o. Isto é precisa m e n t e o que tenta m o s Lin g u ís t i c a, na A n t r o p o l o g i a e em mu it os outros camp o s.
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É certo – e va m os persona l i z a r a Natu reza para efeitos de racioc í n i o – que a Natu re za apenas dispõe de um nú me r o li m i ta d o de proced i m e n t o s e que os tipos de proced i m e n t o que utili z a a um certo nível da realida de são susceptí v e i s de aparecer a outros níve is. O códig o genétic o é um bo m exe m p l o; é sabido que, quan d o os biól o g o s e os genetic istas experi m e n t a ra m difi c u l d a d es em descre ve r o que tinha m descobe rt o, não enco nt ra ra m mel h o r soluçã o que pedir empresta da à Lin g u í s t i c a a sua ling ua ge m, e passar então a falar de palav ra, de frase, de acento, de sinais de pontua çã o, e assi m por diante. Não quero dizer que seja a mes ma coisa; é evide nte que não o é. M as é o mes m o tipo de prob le m a surgi n d o em dois níveis difere ntes da realida de. Lo n g e de mi m a idéia de tentar reduz i r a Cult u ra, co m o dize m o s no nosso calão antro p o l ó g i c o, à Natu re za; contu d o, aquil o que observa m o s ao nível da cultu ra são fenô m e n o s do mes m o tipo, se considera d os a partir de um ponto de vista for m a l (não quero de for m a algu m a dizer em substânc ia). Pode m o s, pelo menos, analisar ao nível da mente o mes m o prob le m a que obser va m o s na Natu re za, emb o ra, evide nte m e n t e, o cultura l seja mu i t o mais co m p l i c a d o e exija um maio r nú me r o de variá v e is. Não estou tentan d o for m u l a r uma filoso f i a ou mes m o uma teoria. Desde criança que me senti inco m o d a d o pelo irraci o n a l e, desde então, tenho tentado enco nt ra r uma orde m por detrás daqui l o que se nos apresenta co m o uma desorde m. E aconteceu que me tornei um antro p ó l o g o, não porqu e estivesse interessad o na A n tr o p o l o g i a, mas porq ue tenta va deixa r a Fil os o f i a. Sucedeu tam bé m que na estrutu ra acadê m i c a francesa desse temp o, em que a A n tr o p o l o g i a não se ensina va co m o uma disci p l i n a indepen de n te nas univ ers i d a d es, era possí ve l a uma pessoa co m for m a ç ã o em Filoso f i a passar para A n t r o p o l o g i a. Escapei- me para esse cam p o e enfren te i 14
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ime d iata m e n t e um prob le m a – havia uma grande quanti da d e de regras de casame n t o em todo o mu n d o que parecia m absol uta m e n te despro v i d a s de signi f i c a d o, e isso era ainda mais irritante quanto, se de fato não possuía m signi f i c a d o, deveria então haver regras difere ntes para cada pov o, emb o ra o nú me r o de regras pudesse ser mais ou men os finit o. Assi m, se o mes m o absurd o se viesse a repetir uma e outra vez, e outro tipo de absurd o també m noutro local, então isso seria uma coisa que nada teria de absurd o; se fosse absurd o não voltaria a aparecer. Esta foi a min h a pri m e i r a orientaçã o, e cifro u- se em descob r i r a orde m por detrás desta aparente desorde m. E quand o, depo is de ter trabalha d o nos siste mas de parentesco e nas regras de matri m ô n i o, voltei a min ha atenção, també m por acaso e não por opção, para a mit o l o g i a, o prob le m a de m o n st r o u ser o mes m o. As histórias de caráter mito l ó g i c o são, ou parece m ser, arbitrár i as, sem signi f i c a d o, absurdas, mas apesar de tudo dir-se-ia que reaparece m um pouc o por toda a parte. U m a criação «fantasi osa» da mente nu m deter m i n a d o lugar seria obrigat o r ia m e n t e única – não se esperaria enco nt ra r a mes m a criação nu m lugar co m p l e ta m e n t e diferen te. O meu prob le m a era tentar descob r i r se havia algu m tipo de orde m por detrás desta desorde m aparente – e era tudo. Não afir m o que haja concl us ões a tirar de todo esse materia l. Segu n d o penso, é absol uta m e n t e imp ossí v e l conce ber o signi f i c a d o sem a orde m. Há uma coisa mui t o curiosa na semânti ca, é que a palav ra «signi f i c a d o » é pro va v e l m e n t e, em toda a líng ua, a pala vra cujo signi f i c a d o é mais difí c i l de enco nt ra r. Que é que signi f i c a o term o «sign i f i c a r »? Parece-me que a única resposta que se pode dar é que «sign i f i c a r » signi f i c a a possib i l i d a d e de qual q ue r tipo de info r m a ç ã o ser tradu z i d a nu ma ling ua ge m diferen te. Não me refiro a uma líng ua diferen te, co m o o francês ou o alemã o, mas a difere ntes palav ras nu m nível difere nte. No fi m de contas, esta tradu çã o é a que se espera de um dici o n á r i o – o signi f i c a d o da pala vra em outras palav ras que, a um níve l ligeira m e n t e difere nte, 15
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são iso m ó r f i c as relati v a m e n t e à pala v ra ou à expressão que se pretende perceber. E porq ue não se pode substitu i r uma palav ra por qualq u er outra palav ra, ou uma frase por qualq ue r outra frase (arbitrárias), tem de haver regras de traduçã o. Falar de regras e falar de signi f i c a d o é falar da mes ma coisa; e, se olhar m o s para todas as realizaç ões da Hu m a n i d a d e, segui n d o os registr os dispo n í v e i s em todo o mu n d o, verif i c a re m o s que o deno m i n a d o r co m u m é sempre a intro d u ç ã o de algu m a espécie de orde m. Se isto representa uma necessida de básica de orde m na esfera da mente hu ma n a e se a mente hu ma n a, no fi m de contas, não passa de uma parte do univ ers o, então quiçá a necessida de exista porq ue há algu m tipo de orde m no uni ve rs o e o uni ve rs o não é um caos. O que tenho tentad o dizer até agora é que hou ve um div ó r c i o – um div ó r c i o necessário entre o pensa me n t o cientí f i c o e aquil o que eu cha me i a lógica do concret o, ou seja o respeit o pelos dados dos sentid os e a sua utiliza çã o co m o opostos às image ns, aos sím b o l o s e coisas do mes m o gênero. Esta m o s agora nu m mo m e n t o em que pode m o s, quiçá, teste m u n h a r a superação ou a inversã o deste div ó r c i o, porq ue a ciênc ia mo de r n a parece ser capaz de progre d i r não só segun d o a sua linha tradic i o n a l – pressio na n d o contin u a m e n t e para a frente, mas sempre no mes m o canal li m i ta d o – mas tam bé m, ao mes m o tem p o, alargan d o o canal e reinc o r p o r a n d o uma grande quanti d a d e de prob le m a s anteri o r m e n t e postos de parte. Por este moti v o, posso ficar sujeito à críti ca de «cientis m o » ou que me considere m um crente cego na ciênc ia que a julga capaz de resol v e r todos os prob le m as. Bo m, real m e n te não creio nisso, porq u e não conceb o que possa vir um dia em que a ciênc ia esteja co m p l e ta e acabada. Ha ve rá sempre nov os prob le m a s, e, ao mes m o rit m o co m que a ciênc ia foi capaz de resol ve r prob l e m as que se consi dera v a m filosó f i c o s há uma dúzia de anos ou há um sécul o, voltarã o a aparecer nov os prob le m as que não havia m sido aperceb i d os co m o tais. Ha v erá semp re um fosso entre as respostas que a ciência está habilita d a a dar-nos e as novas pergu n tas que essas respostas 16
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pro v o c a rã o. Portant o, não sou parti dár i o do «cient is m o ». A ciênc ia nunca nos dará todas as respostas. O que podere m o s tentar fazer é aume n ta r, lenta m e n te, o nú me r o e a quali da d e das respostas que esta m os capacita d os para dar, e isto, segun d o penso, apenas o conseg u i re m o s através da ciênc ia.
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II PE N S A M E N T O «PR I M I T I V O » E M E N T E «CI V I L I Z A D A » A manei ra de pensar dos pov os a que nor m a l m e n t e, e errada m e n te, cha ma m o s «pri m i t i v o s » –cha m e m o s- lhes antes «po v os sem escrita», por que, segun d o penso, este é que é o fator discri m i n a t ó r i o entre eles e nós – tem sido interp retada de dois mo d os difere ntes, amb os errados na mi n h a opin i ã o. O pri m e i r o conside ra que tal pensa me n t o é de quali da de mais grosseira do que o nosso, e na A n t r o p o l o g i a conte m p o r â n ea o exe m p l o que nos ve m ime d iata m e n t e à ideia é M a l i n o w s k i . A f i r m o , desde já, que tenho a maio r adm i ra çã o por ele, que o consi de r o um dos mai o res antro p ó l o g o s e que não pretend o co m esta obser va çã o di m i n u i r- lhe a sua contri b u i ç ã o para o cam p o da ciênc ia. Cont u d o, M a l i n o w s k i tinha a sensação de que o pensa me n t o do pov o que estava estuda n d o – e, de uma maneira geral, o pensa m e n t o de todas as popu la ç õ es sem escrita que eram o object o de estud o da A n t r o p o l o g i a – era ou é deter m i n a d o inteira m e n t e pelas necessi da des básicas da vida. Se se souber que um pov o, seja ele qual for, é deter m i n a d o pelas necessida des mais simp les da vida –enco nt ra r subsistênc i as, satisfazer as pulsões sexuais e assi m por diante- , então está-se apto a explic ar as suas institu i ç õ es sociais, as suas crenças, a sua mito l o g i a e todo o resto. Esta concep çã o, que se encon tra mu it o difu n d i d a, tem geral m e n te, na A n t r o p o l o g i a, a desig na çã o de funci o n a l i s m o . O outro mo d o de encarar o pensa m e n t o «pri m i t i v o » – em lugar de sublin h a r que e um tipo de pensa me n t o inferi o r, co m o o faz a pri m e i r a interpretaçã o – afir m a que é um tipo de pensa me n t o fun da m e n t a l m e n t e difere nte do nosso. Esta aborda ge m à questão 18
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concreti za- se na obra de Lé v y- Bru h l, que consi der o u que a difere n ça básica entre o pensa me n t o «pri m i t i v o » – ponh o semp re a palav ra «pri m i t i v o » entre aspas – e o pensa me n t o mo der n o reside em que o pri m e i r o é co m p l e ta m e n t e deter m i n a d o pelas representaç õ es místicas e emoc i o n a is. Enqua n t o a concep çã o de M a l i n o w s k i é utilitár ia, a de Lév y- Bru h l é uma concep çã o emoc i o n a l ou afecti v a. Ora, o que eu tenho tentad o mostrar é que de fato o pensa m e n t o dos pov os sem escrita é (ou pode ser, em mui tas circ u nstâ n c i as), por um lado, um pensa me n t o desinteressad o – e isto representa uma difere n ça relati v a m e n t e a Ma l i n o w s k i – e, por outro, um pensa m e n t o intelect ua l – o que é uma difere n ça em relação a Lé v y- Bru h l. O que tentei mostrar, por exe m p l o, em Totémisme ou La Pensée Sauvage, é que esses pov os que considera m o s estare m total m e n t e do m i n a d o s pela necessida de de não morrere m de fo me, de se mantere m nu m nível mí n i m o de subsistênc i a, em cond i ç õ es materiais mu it o duras, são perfeita m e n te capazes de pensa me n t o desinteressad o; ou seja, são mo v i d o s por uma necessida de ou um desejo de co m p r ee n d e r o mu n d o que os envo l v e, a sua natureza e a socieda de em que vive m. Por outro lado, para ating i re m este object i v o, agem por meios intelect ua is, exata m e n te co m o faz um filóso f o ou até, em certa medi d a, co m o pode fazer e fará um cientista. Esta é a min ha hipótese de base. M as desde já quero esclarecer um mal- entend i d o. Di ze r que um mod o de pensa me n t o é desinteressado, e que é um mo d o intelect ua l de pensar, não signi f i c a que seja igual ao pensa me n t o cientí f i c o. Evi de n te m e n t e que conti n u a a ser diferen te em certos aspectos, e que lhe é inferi o r noutr os. E conti n u a a ser difere nte porq ue a sua finali d a d e é ating i r, pelos mei os mais di m i n u t o s e econô m i c o s, uma co m p ree nsã o geral do uni ve rso – e não só uma com p r ee nsã o geral, mas sim total. Isto é, trata-se de um mod o de pensar que parte do princ i p i o de que, se não se co m p re e n d e tudo, 19
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não se pode expl ica r coisa algu m a. Isto está inteira m e n t e em contrad i ç ã o co m o mod o de proceder do pensa m e n t o cientí f i c o, que consiste em avançar etapa por etapa, tentan d o dar expl i ca ç õ es para um deter m i n a d o nú me r o de fenô m e n o s e progre d i r, em segui da, para outros tipos de fenô m e n o s, e assi m por diante. Co m o já disse Descartes, o pensa me n t o cientí f i c o div i d e a difi c u l d a d e em tantas partes quantas as necessárias para a resol ve r. Assi m, esta amb iç ã o totali tá ri a da mente selva ge m é bastante difere nte dos proced i m e n t o s do pensa me n t o cientí f i c o. Na verdade, a grande diferen ç a é que esta ambi çã o não tem êxito. Poré m, nós, por meio do pensa m e n t o cientí f i c o, somos capazes de alcançar o do m í n i o sobre a Natu re za – creio que não há necessida de de desen v o l v e r este ponto em concret o, já que isto é sufic ie n te m e n t e eviden te para todos –, enquant o o mit o fracassa em dar ao ho me m mais poder materia l sobre o meio. A pesar de tudo, dá ao ho me m a ilusão, extre m a m e n t e imp o r ta n te, de que ele pode entender o univ ers o e de que ele entende, de fato, o uni ve rs o. Co m o é evidente, trata-se apenas de uma ilusão. De v e m o s notar, no entanto, que, com o pensado res cientí f i c o s, usa m os uma quanti da d e mu i t o li m i ta d a do nosso poder mental. Uti l i z a m o s o que é necessári o para a nossa prof issão, para os nossos negóc i os ou para a situaçã o partic u l a r em que nos encontra m o s envo l v i d o s na altura. Portant o, se uma pessoa merg u l h a, durante vinte anos ou mais, na investi ga çã o do mod o co m o opera m os siste mas de parentesc o e os mit os, util i za essa porção do seu poder mental. Mas não pode m o s exig i r que toda a gente esteja interessada precisa m e n te nas mes mas coisas; daí que cada um de nós util i ze uma certa porção do seu poder menta l para satisfazer as necessida des ou alcançar as coisas que o interessa m. Ho je em dia usam os mais – e ao mes m o temp o men os – a nossa capaci da de mental que no passado. E não se trata precisa m e n te do mes m o tipo de capaci da d e mental em amb os os 20
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casos. Por exe m p l o, utiliza m o s conside ra v e l m e n t e men os as nossas percepç ões sensoria is. Quan d o estava escreven d o a pri m e i ra versão de Mithologiques, me deparei co m um prob le m a extre m a m e n t e misteri os o. Parece que havia uma deter m i n a d a tribo que conseg u i a ver o planeta Vê n us à luz do dia, coisa que para mi m era imp oss í v e l e inacre d i tá v e l. Pus o proble m a a astrôn o m o s prof issi o n a i s; eles dissera m- me que efetiv a m e n t e nós não o conseg u i m o s, mas que, atenden d o à quanti da d e de luz emit i da pelo planeta Vê n u s durante o dia, não é real m e n te inco n ce b í v e l que algu m a s pessoas o possa m detectar. M a is tarde consu lte i velh os tratados sobre navega çã o pertence n tes à nossa própr i a civi l i z a ç ã o, e tudo indica que os mari n h e i r o s desse temp o eram perfeita m e n t e capazes de ver o planeta à luz do dia. Prova v e l m e n t e, tam bé m nós sería m o s capazes de o ver se tivésse m o s a vista treinada. Passa-se precisa m e n t e o mes m o co m os nossos conhec i m e n t o s acerca das plantas e dos ani ma is. Os pov os sem escrita têm um conhec i m e n t o espantosa m e n t e exato do seu mei o e de todos os seus recursos. Nós perde m o s todas estas coisas, mas não as perde m o s em troca de nada; estam os agora aptos a guiar um auto m ó v e l sem correr o risco de serm os esmagad os a qualq ue r mo m e n t o, e ao fi m do dia pode m o s ligar o rádio ou o telev is o r. Isto imp l i c a um trein o de capaci da d es menta is que os pov os «pri m i t i v o s » não possue m porq ue não precisa m delas. Pressinto que, co m o potenc ia l que têm, poderia m ter mo d i f i c a d o a quali d a d e das suas mentes, mas tal mo d i f i c a ç ã o não seria adequa da ao tipo de vida que leva m e ao tipo de relações que mantê m co m a Natu re za. Não se pode m desen v o l v e r ime d iata m e n t e e ao mes m o temp o todas as capaci da des mentais hu ma n as. A pe nas se pode usar um setor di m i n u t o, e esse setor nunca é o mes m o, já que varia em função das culturas. E isto é tudo. Pro va v e l m e n t e, uma das mu itas concl u s ões que se pode m extrair da investig aç ã o antro p o l ó g i c a é que a mente hu ma n a, apesar das diferen ças cultu ra is entre as diversas fracç ões da Hu m a n i d a d e, é 21
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em toda a parte uma e a mes ma coisa, co m as mes m as capaci d a des. Creio que esta afir m a ç ã o é aceite por todos. Não julg o que as culturas tenha m tentad o, siste má t i c a ou meto d i c a m e n t e, diferen c i a r- se umas das outras. A verdade é que durante centenas de mil ha res de anos a Hu m a n i d a d e não era nu me r o sa na Terra e os peque n os grup os existentes vi v ia m isolad os, de mo d o que nada espanta que cada um tenha desenv o l v i d o as suas próp r ias caracter íst icas, tornan d o- se diferen tes uns dos outros. M as isso não era uma finali d a d e sentida pelos grup os. Foi apenas o mero resulta d o das cond i ç õ es que preva lecera m durante um perío d o bastante dilatad o. Chega d os a este ponto, não queria que pensasse m que isto é um perig o ou que estas diferen ças deveria m ser eli m i n a d as. Na realida de, as diferen ças são extre m a m e n t e fecun d as. O progresso só se veri f i c o u a partir das difere n ças. At ua l m e n t e, o desafi o reside naqui l o que podería m o s cha ma r a super- co m u n i c a ç ã o – ou seja a tendênc ia para saber exata m e n te, nu m deter m i n a d o ponto do mu n d o, o que se passa nas restantes partes do Glo b o. Para que uma cultura seja real me n te ela mes m a e esteja apta para prod u z i r algo de orig i na l, a cultu ra e os seus me m b r o s têm de estar con ve n c i d o s da sua orig i n a l i d a d e e, em certa medi d a, mes m o da sua superi o r i d a d e sobre os outros; é somen te em condi ç õ es de sub-co m u n i c a çã o que ela pode prod u z i r algo. Ho j e em dia estam os ameaçad os pela perspecti v a de serm os apenas consu m i d o r e s, indi v í d u o s capazes de consu m i r seja o que for que venha de qualq ue r ponto do mu n d o e de qualq u er cultu ra, mas despro v i d o s de qualq ue r grau de orig i na l i d a d e. Pode m o s entretant o facil m e n t e conceber uma época futura em que haja apenas uma cultu ra e uma civ i l i z a çã o em toda a superf í c i e da Terra. Não creio que isto venha a acontecer, porq ue estão semp re surgin d o diversas tendênc i as contrad i t ó r i as – por um lado, em direção à ho m o g e n e i d a d e e, por outro, a fav or de novas 22
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difere n c ia ç õ es. Quant o mais ho m o g ê n ea se tornar uma civi l i z a ç ã o, tanto mais visí ve is se tornarã o as linhas internas de separação; e o que se ganho u a um nível perde- se ime d i ata m e n t e no outro. Esta é uma crença pessoal, e não tenho pro vas claras que assegure m o func i o n a m e n t o desta dialéti ca. Mas, na reali da de, não consi g o entende r co m o é que a Hu m a n i d a d e poderá viver sem algu m tipo de divers id a d e interna. Va m o s agora conside rar um mito do Canadá Oci d e n ta l sobre uma raia que tentou contro l a r ou do m i n a r o Ven t o Sul e que teve êxito na empresa. Trata- se de uma históri a de uma época anteri o r à existên c ia do Ho m e m na Terra, ou seja, de um temp o em que os ho me ns não se diferen c ia v a m de fato dos ani m a i s; os seres era m meio hu ma n o s e meio ani ma is. Tod os se sentia m mui t o inco m o d a d o s co m o vento, porq ue os ventos, especial m e n t e os ventos maus, sopra va m durante todo o temp o, impe d i n d o que eles pescasse m ou que proc u rasse m conc has co m mo l us c os na praia. Portant o, decid i ra m que tinha m de lutar contra os ventos, obri ga n d oos a co m p o r ta re m- se mais decente m e n t e. Ho u v e uma exped i çã o em que partic i p a ra m vários ani ma i s hu ma n i z a d o s ou hu ma n os ani m a l i z a d o s, incl u i n d o a raia, que desem p e n h o u um imp o r ta n te papel na captura do Ve nt o Sul. Este só foi libertad o depois de pro m e te r que não voltaria a soprar constante m e n t e, mas só de vez em quand o, ou só em deter m i n a d o s perío d o s. Desde então, o Ve nt o Sul só sopra em certos perío d os do ano ou, então, uma única vez em cada dois dias; durante o resto do tem p o a Hu m a n i d a d e pode dedicar- se às suas ativ i d a d es. Bo m, esta história nunca aconteceu na reali da de. Mas a nossa posição não se pode li m i ta r a consi derar m o s esta história com p l e ta m e n t e absurda e a ficar m o s satisfeit os ao taxá-la de uma criação ima g i n o sa de uma mente entreg ue ao delíri o. Te m o s de a tom ar a sério e fazer a segui n te perg u n ta: porq uê a raia e porq uê o Vent o Sul? 23
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Quan d o se estuda mi n u c i o sa m e n te o materia l mit o l ó g i c o na for m a exata em que é narrad o, veri f i c a- se que a raia atua co m base em deter m i n a d as característi cas, que são de duas espécies. A pri m e i r a, é que a raia é um peixe, com o todos os seus congê ne res espal m a d o s, escorrega d i o por baix o e duro por ci ma. E a outra característ ic a, que per m i te à raia escapar co m sucesso quan d o tem de enfrentar outros ani m a is, é que parece mui t o grande vista de baix o ou de cima e extre m a m e n t e fina vista de lado. U m adversári o poderia pensar que seria mu it o fácil disparar uma seta e matar uma raia, por ela ser tão grande; mas, enquant o a seta se diri ge para o alvo, a raia pode virar- se ou deslizar rapida m e n t e, oferecen d o apenas o perfi l, que, evide nte m e n t e, é imp oss í v e l de ating i r; e é assim que pode escapar. Portant o, a razão por que se escolhe u a raia é que ela é um ani ma l que, consi dera d o de um ou outro ponto de vista, é capaz de respo n d e r – empre ga n d o a ling u a g e m da cibernét ic a – em ter m os de «si m» ou «não». É capaz de dois estados que são descon t í n u o s, um positi v o e o outro negati v o. A funçã o que a raia dese m p e n h a no mit o é –ainda que, evide nte m e n te, eu não queira levar as semel ha n ç as de masia d o longe– pareci da co m a dos eleme nt o s que se intro d u z e m nos co m p u t a d o r es mo der n o s e que se pode m utiliza r para resol ve r grandes prob l e m as adici o n a n d o uma série de respostas de «sim » e «não». A p esar de ser obv ia m e n t e errad o e imp ossí v e l (dum ponto de vista emp ír i c o) que um peixe possa lutar contra o vento, du m ponto de vista lógic o pode- se co m p re e n d e r por que razão se utili z a m imagens tiradas da experiê n c i a. Esta é a orig i n a l i d a d e do pensa me n t o mit o l ó g i c o – dese m pe n h a r o papel do pensa m e n t o conce pt u a l: um ani ma l suscetí v e l de ser usado co m o, diria eu, um operad o r binári o, pode ter, du m ponto de vista lógi c o, uma relação com um prob le m a que tam bé m é um prob le m a binári o. Se o Ve nt o Sul sopra todos os dias do ano, a vida torna- se imp oss í v e l para a Hu m a n i d a d e. M as. se apenas soprar um em cada dois dias – «si m » um dia, «não» o outro dia, e assi m por diante –, torna- se então 24
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possí ve l uma espécie de co m p r o m i s s o entre as necessi da des da Hu m a n i d a d e e as condi ç õ es predo m i n a n t es no mu n d o natura l. Assi m, du m ponto de vista lógi c o, há uma afini d a d e entre um ani m a l co m o a raia e o tipo de proble m a que o mito tenta resol ve r. Du m ponto de vista cientí f i c o, a histór ia não é verdade i ra, mas nós some nte pude m o s entender esta propr ie d a d e do mit o nu m temp o em que a cibernéti ca e os co m p u t a d o r es aparecera m no mu n d o cientí f i c o, dando- nos o conhec i m e n t o das operaç ões binári as, que já tinha m sido postas em prática de uma manei ra bastante difere nte, com objetos ou seres concretos, pelo pensa me n t o míti c o. Assi m, na realida de não existe uma espécie de div ó r c i o entre mit o l o g i a e ciênc ia. Só o estado conte m p o r â n e o do pensa m e n t o cientí f i c o é que nos habil ita a co m p r ee n d e r o que há neste mito, perante o qual per m a n e c ía m o s co m p le ta m e n t e cegos antes de a idéia das operações binárias se tornar um conce it o fam i l i a r para todos. Neste mo m e n t o não queria que julgasse m que estou coloca n d o em pé de igual da de a expli c a çã o cientí f i c a e a expl i ca çã o míti ca. O que afir m o é que a grandeza e a superi o r i d a d e da expl i c aç ã o cientí f i c a reside m não só nas realizaç õ es práticas e intelect ua is da ciênc ia, mas també m no fato, que teste m u n h a m o s cada dia co m mais clareza, de que a ciênc ia se encont ra não só preparada para expl i ca r a sua própr ia vali da de co m o també m o que, em certa med i d a, é válid o no pensa me n t o mit o l ó g i c o. O que é imp o r ta n te é que com e ça m o s a nos interessar cada vez mais por este aspecto qualitati v o e que a ciênc ia, que tinha uma mera perspecti v a quantitat i v a desde o sécul o X V I I até ao sécul o X I X , co me ça a integrar agora també m os aspectos qualitati v o s da reali da de. Esta tendênc ia nos habil itará, indu b i ta v e l m e n t e, a entender uma grande quanti da d e de coisas presentes no pensa me n t o mit o l ó g i c o e que no passado nos apressáva m o s a pôr de parte co m o coisa careci da de signi f i c a d o e absurda. E o desen v o l v i m e n t o desta linha nos levará a ver que entre a vida e o pensa m e n t o não há aquele fosso absol ut o que foi toma d o co m o uma realida d e concreta pelo dualis m o 25
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filosó f i c o do século X V I I . Se for m o s levad os a pensar que o que ocorre na nossa mente é algo em nada diferen te, nem substanc i a l nem funda m e n t a l m e n t e, do fenô m e n o básico da vida, e se chegar m o s à conc l usão de que não existe esse tal fosso imp ossí v e l de superar entre a Hu m a n i d a d e, por um lado, e todos os outros seres viv os (não só ani ma is, co m o també m plantas), por outro, talvez então chegue m o s a ter mais sabedo r ia (faland o franca m e n t e) que aquela que julga m o s possív e l algu m a vez vir a ter.
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III L Á B I O S R A C H A D O S E GÉ M E O S : A AN Á L I S E DE U M MI T O A q u i, o nosso ponto de parti da vai ser uma enig m á t i c a observa çã o registada por um missi o n á r i o espanh o l, o padre P. J. de Arr ia g a, nos finais do sécul o X V I , e publ i c a da na sua obra Extirpación de la Idolatría del Peru (Lima, 162 1). O missi o ná r i o notou que em certa parte do Peru do seu temp o, nas épocas de frio mais intenso, o sacerdote con v o c a v a todos os habitantes que se sabia tere m nascid o co m os pés para a frente, ou que tinha m um lábio rachad o, ou que fosse m gêmeos. Era m então acusad os de sere m respo nsá v e is pelo frio, porq ue, dizia- se, tinha m co m i d o sal e pi me n ta, e ordena v a- se-lhes que se arrepen d esse m e con fessasse m os seus cri m es. Ora, que os gême os seja m relaci o n a d o s co m as desorde ns atm os fé r i cas, é um fato geral m e n te aceite em todo o mun d o, inclu i n d o o Canadá. É bem sabid o que na costa da Col ô m b i a britân ic a, entre os índios, pensa va- se que os gê me os tinha m poderes especiais para orig i n a r o bo m temp o, afastar as tempestades e assi m por diante. Poré m, não é este o prob le m a que eu queria consi de rar agora aqui. O que me espanta é que todos os investi g a d o r es do mit o – por exe m p l o o mit ó g ra f o Sir James Frazer, que cita várias vezes Arr ia g a – nunca perg u n tasse m por que é que as pessoas co m lábios rachad os e os gême os, pelo men os em certos aspectos, eram conside ra d os semel ha ntes. Parece-me que o cerne do proble m a consiste em descob r i r: porq uê os gême os? Porquê os de lábi os rachad os? E porq uê associar gême os e lábios rachad os? 27
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Para resol v e r o prob le m a, temos, co m o às vezes acontece, de dar um salto da A m é r i c a do Sul para a A m é r i c a do No rte, porq ue será um mito norte-america n o que nos dará a chave para o mit o da A m é r i c a do Sul. Crit ic o u- me mu ita gente por este méto d o de procede r, afir m a n d o que os mit os de uma deter m i n a d a popu l açã o só pode m ser interp reta d os e entend i d o s no quadr o da cultu ra dessa mes m a popu laçã o. Há mui tas coisas que posso dizer, em jeito de resposta, a prop ós it o dessa objeção. Em pri m e i r o lugar, parece-me bastante óbv i o que, co m o dem o ns t r o u em anos recentes a cha ma d a Escola de Ber ke le y, a popu la çã o das A m é r i c as pré-colo m b i a n a s era mu it o mai o r do que se supun ha. E, co m o era mu i t o mai o r, é óbv i o que estas popu l a ç õ es estava m de certo mod o em contato umas co m as outras e que as crenças, as práticas e os costu m es se difu n d i a m . Qual q u e r popu l açã o estava semp re em posição de saber o que acontec ia na popu la çã o vizin h a. O segun d o ponto, no caso que estam os aqui a consi derar, é que estes mitos não existe m isolad os, por um lado no Peru, e por outro no Canadá, antes surge m repeti da m e n t e nas áreas inter m é d i a s. Na verdade, são mais mit os pan-ameri ca n os que mit os dispersos por difere ntes partes do conti ne n te. Ora, entre os Tup i n a m b á s, os antig os índi os da costa do Brasi l ao tem p o da descoberta, co m o també m entre os índi os do Peru, há um mito que fala de uma mul h e r que um indi v í d u o pobre consegu i u seduz ir de uma maneira tortu osa. A versão mais conhec i d a, registada pelo mon ge francês A n d ré The ve t no sécul o X V I , explic a v a que a mul h e r seduzi d a deu à luz gême os, um deles nascid o do pai legíti m o , e o outro do sedutor, que é o Bur lã o. A mu l he r ia encont rar- se co m o deus que seria o seu mari d o, mas no cami n h o inter vé m o burlão e lhe faz crer que ele é o deus; então ela concebe do burlão. Quan d o, mais tarde, encontra aquele que deveria ser o legíti m o mari d o, conce be també m dele, e depo is dá à luz gê me os. E, uma vez que estes falsos gême os têm difere ntes pais, possue m característ ic as antitéticas: um é coraj os o e o outro covar de; um dá 28
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bens aos índi os, enquant o o outro, pelo contrári o, é respo nsá ve l por uma série de desgraças. Ac o n t e ce que na A m é r i c a do Norte encontra m o s també m exata m e n te o mes m o mito, especial m e n te no Nor o este dos Estados Uni d o s e no Canadá. Toda v i a, em co m p a ra çã o co m as versões sulamerica nas, as pro ve n i e n tes da área do Canadá apresenta m duas difere n ças imp o r ta n tes. Por exe m p l o, entre os K o o t e n a y, que vive m nas M o n ta n h as Roch osas, há apenas uma fecun da çã o, a qual tem com o conseq uê n c ia o nasci m e n t o de gê me os, que mais tarde se torna m, um, a Lua e, o outro, o Sol. E entre outros índi os da Colô m b i a britân i ca – os índi os Th o m p s o n e os Oka na ga n – há duas irmãs que são enganadas aparente m e n t e por dois indi v í d u o s difere ntes, dando cada uma à luz um filh o; não são real m e n te gême os, porq ue nascera m de mães difere ntes. M as, dado que nascera m precisa m e n te de circ u nstâ n c i as semel ha n tes, pelo men os du m ponto de vista psicol ó g i c o e mora l, são em certo senti d o semelh a n tes a gême os. Estas versões são, do ponto de vista que preten d o mostrar, as mais imp o r ta n tes. A versão dos Tho m p s o n e dos Oka na ga n debil i ta o caráter gê me o do herói, porq ue os gêmeos não são irmã os, mas pri m o s. E apenas as circu nstâ n c i as do seu nasci m e n t o são estreita m e n te paralelas – amb os nascera m em conseq uê n c i a de um engan o. Cont u d o, a intençã o básica é a mes m a: em parte algu m a serão os heróis real m e n te gême os: nascera m de pais difere ntes, mes m o na versão sul-ameri ca na, e têm caracteres opostos, característ ic as que se revelarã o na sua cond u ta e no co m p o r ta m e n t o dos seus descende n tes. Portant o, podería m o s dizer que em todos os casos as crianças gêmeas, ou que se acredita sere m gêmeas, co m o na versão K o o te n a y, terão mais tarde aventuras diferen tes, que as separarã o. E esta div isão entre indi v í d u o s que ao prin c í p i o fora m apresentad os com o gêmeos, gême os reais ou equi v a l e n tes a gême os, é uma 29
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característ ic a básica de todos os mitos da A m é r i c a do Sul e do Norte. No versão dos Tho m p s o n e dos Oka na ga n há um por m e n o r mu it o curios o e que é muit o im p o rta n te. Le m b r a m- se de que nessa versão não existe m gême os de qualq ue r espécie, porq ue se trata de duas irmãs que viaja m para encon trar, cada uma delas, um mari d o. Foi- lhes dito por uma avó que elas recon h ec er i a m os seus mari d o s por tais e tais característ ic as, e elas depo is fora m ambas enganadas por burlões que encont rara m no seu cami n h o e que as fizera m crer que eram eles os mari d o s co m que m deveria m casar. Passara m a noite co m eles e de cada uma delas nasceu depois uma crian ça. Ora, depois dessa desgraçada noite passada na cabana do burlão, a irmã mais velha deixa a mais nova e parte para visitar a sua avó, que é uma cabra de mon ta n h a e també m uma espécie de mag o; com o já sabe que a sua neta ve m a cami n h o, envia- lhe uma lebre para lhe dar as boas-vin das na estrada. A lebre escon de u- se debai x o de um tronc o que tinha caído no mei o do cami n h o e, quan d o a moça levant o u a perna para passar por ci ma do tronc o, a lebre pôde ver suas partes genitais e lanço u uma piada mu it o pouc o aprop r i a d a. A moça fico u furiosa e bateu- lhe co m um pau, fende n d o- lhe o nariz. E eis a razão por que os ani ma is da fam í l i a lepor i n a têm agora um nariz rachad o e um lábio superi o r, que nas pessoas se deno m i n a lábio lepor i n o, por causa desta pecul ia r i d a d e anatô m i c a dos coelh os e das lebres. Por outras palav ras, a irmã mais velha co me ça por div i d i r o corp o do ani ma l; se esta div isão fosse levada até ao fi m – se não parasse no nariz mas conti n u asse por todo o corp o até à cauda, ela transf o r m a r i a um indi v í d u o em dois gêmeos, ou seja dois indi v í d u o s absoluta m e n t e semelh a n tes ou idênti c os, porq ue era m amb os parte de um todo. A este respeito, é extre m a m e n t e imp o r ta n te descob r i r a conce pçã o que os Índ i os ameri ca n os, por toda a A m é r i c a, desen v o l v e r a m acerca da orige m dos gê me os. E o que encontra m o s 30
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é uma crença geral em que os gê me os são o resultad o de uma div isão interna dos flui d o s do corp o, que depo is soli d i f i c a m e se torna m nu ma criança. Por exe m p l o, entre algu ns índi os norteamerica n os a mul h e r grávi d a está proi b i d a de se voltar brusca m e n te quand o se encontra dor m i n d o na cama, porq ue, se o fizer, os flui d o s do corp o pode m se div i d i r em duas partes, dando orige m a gême os. Há també m um mito entre os índi os K w a k i u t l, da ilha de Van c ô v e r, que se tem de referi r. Di z respeito a uma meni na que toda a gente odeia por ter o lábio rachad o. A pa rece então uma ogra, uma mu l he r caniba l sobrenat u ra l, que rouba todas as crianças, inclus i v a m e n t e a men i na de lábi o rachad o. Põe-nas todas nu ma cesta para as levar para casa e co mê- las. A men i n a que foi captura da em pri m e i r o lugar fico u nu ma ponta da cesta e consegue fazer uma abertura co m uma conc ha que tinha apanha d o na praia. O cesto vai às costas da ogra e a meni n a consegue saltar e fug i r pri m e i r o que todas as outras. Ela sai da cesta co m os pés para a frente. Esta posição da rapari ga de lábi o rachad o é mu i t o simétr i ca relati va m e n t e à posição da lebre no mito que anteri o r m e n t e menc i o n e i: agachan d o- se debai x o da heroí na quand o se escon de sob o tronc o que lhe barra o cami n h o, a lebre está em relação a ela exata m e n te na mes ma posiçã o co m o se tivesse nascid o da moça co m os pés para a frente. Veri f i c a m o s deste mo d o que em toda esta mit o l o g i a há de fato uma relação entre gê me os, por um lado, e o nasci m e n t o co m os pés para a frente ou posiç ões que, metaf o r i c a m e n t e falan d o, são idênti cas, por outro. Estes dados clari f i c a m evide nte m e n t e as cone x õ es de que parti m o s ao consi derar as relações descritas pelo padre Ar r i a ga, no Peru, entre gê me os, pessoas que nascera m co m os pés para a frente e pessoas co m lábi os rachad os. O fato de o lábio rachad o ser consi dera d o co m o uma geme i da de incip ie n te pode ajudar- nos a resol ve r um prob le m a que é fun da m e n t a l para os antrop ó l o g o s que trabal ha m especia l m e n t e no 31
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Canadá: porq ue é que os índi os Oji b w a e outros grup os da fam í l i a ling u íst i ca algon k i a n a escol hera m a lebre co m o a mais alta deidade em que acredita v a m? A p resen tara m- se já várias expl i c aç ões: a lebre era um ele me n t o imp o r ta n te, mes m o essencial, da sua dieta; a lebre corre co m grande rapidez, e era um exe m p l o dos talentos que os índi os deveria m possuir; e assi m por diante. Nen h u m a destas explic aç ões é sufic ie n te m e n t e con v i n c e n te. M as, se as mi n has anterio res interpreta ç ões são corretas, me parece mu i t o mais con v i n c e n t e dizer: 1) entre a fam í l i a dos roedo res, a lebre é o mai o r, o mais notá ve l, o mais imp o r ta n te, e pode ser toma d a co m o o representan te da fam í l i a dos roedo res; 2) todos os roedo res exibe m uma pecul ia r i d a d e anatô m i c a que os torna gême os inci p i e n tes, pois estão, de certo mo d o, div i d i d o s em duas metades. Quan d o há gême os, ou até mais crianças, no ventre da mãe, o mit o reflete nor m a l m e n t e conseq uê n c i as mui t o sérias, porqu e, mes m o que só haja dois fil h os, as crianças co me ça m a lutar e a com p e t i r para decid i r que m terá a honra de nascer em pri m e i r o lugar. E uma delas, a má, não hesita em fazer um corte, se é que posso falar assi m, para nascer pri me i r o; em vez de seguir o cami n h o nor m a l, div i de o corp o da mãe a fi m de se escapar para fora dele. A q u i reside, segun d o penso, a expl i ca çã o para o fato de o nasci m e n t o co m os pés para a frente ser assi m i l a d o à geme i da de, pois é no caso de geme i da de que a pressa co m p et i t i v a de uma das crianças para nascer pri m e i r o destró i a mãe. Ge me i d a d e e nasci m e n t o co m os pés para a frente são sinais de um parto perig os o ou de um parto heróic o, porq ue a criança toma rá a inic iati v a e tornar- se-á uma espécie de herói, um herói assassino em certos casos; mas de qualq ue r mo d o ela realiza uma façanha mui t o im p o r ta n te. Penso que isto expli ca a razão por que em várias trib os se mata m os gêmeos, be m co m o as crianças que nasce m co m os pés para a frente. 32
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O real me n t e imp o r ta n te é que em toda a mit o l o g i a ameri ca na, e tam bé m na mit o l o g i a do mu n d o inteiro, há deidades ou persona ge ns sobrenatu ra is que dese m pe n h a m o papel de inter m e d i á r i o s entre os poderes de cima e a Hu m a n i d a d e em baix o. Pode m ser representa das de difere ntes manei ras: há, por exe m p l o, persona ge ns do tipo de um M essias e gême os de caráter celeste. Pode-se ver que o papel da lebre na mito l o g i a algon k i a n a se enco nt ra precisa m e n te entre o M essias – ou seja o inter m e d i á r i o únic o – e os gême os de caráter celeste. A lebre não é um par de gê me os, mas um par de gêmeos incip ie n te. E m b o r a seja um indi v í d u o co m p l e t o, tem um lábi o rachad o e está a mei o cami n h o de se tornar em gê me os. Isto expli ca a razão por que nesta mit o l o g i a a lebre, enquant o deus, possui um caráter amb í g u o – o que tem preoc u p a d o os com e n ta d o res e antro p ó l o g o s. Às vezes é uma deidade mu i t o sábia que tem a seu cargo a orde m do uni ve rs o, outras aparece co m o um palhaç o ridíc u l o que vai de contrate m p o em contrate m p o. E este fato tam bé m se poderá entender mel h o r se se expl i c ar a escol ha da lebre por parte dos Índi os Al g o n k i a n o s por ser um indi v í d u o entre as duas cond iç õ es: a) uma deidade sing u la r benéfi ca para a Hu m a n i d a d e; e b) gême os, um dos quais é bo m, e o outro mau. Não estand o ainda total m e n t e divi d i d a em duas metades, não sendo ainda gême os, as duas característ ic as opostas pode m per ma n e c er fund i d as nu ma única e mes m a pessoa.
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IV Q U A N D O O M I T O SE T O R N A H IS T Ó R I A O tema apresenta dois prob le m a s para o mito l o g i s ta. O pri m e i r o é um prob le m a teóric o de grande imp o r tâ n c i a, porq ue, quand o se exa m i n a o material publ i ca d o na A m é r i c a do Sul, na A m é r i c a do No rte e em outras partes do mu n d o, parece que esse material é de duas espécies. As vezes os antrop ó l o g o s recol he ra m mit os que se asseme l h a m mais ou menos a frag m e n t o s e reme n d o s, se assim me posso expri m i r. Trata- se de histórias descone x as, que se segue m umas às outras sem qual q u e r tipo de relaci o n a m e n t o eviden te entre elas. Outras vezes, co m o na região dos Va u p és, na Colô m b i a, encontra m- se históri as mit o l ó g i c a s mu it o coerentes, todas div i d i d as em capítu l o s, que se segue m uns aos outros nu ma orde m mu it o lógica. Assi m, chega m o s a uma pergu n ta decisi v a: que signi f i c a d o têm estas histórias recol h i d as? Pode m signi f i c a r duas coisas difere ntes. Pode m signi f i c a r, por exe m p l o, que a orde m coerente, com o uma espécie de saga, é a cond i çã o pri m i t i v a, e, semp re que se encont re m mitos em ele me n t os descone x o s, há-de tratar- se do resulta d o de um processo de deteri o raç ã o e desorga n i za çã o; neste caso, apenas se encont ra m eleme n t os dispersos do que anteri o r m e n t e foi um todo signi f i c a n te. Pode-se també m apresentar a hipótese de que o estado descone x o é o arcaico, e que os mitos fora m reuni d os e postos em orde m por alguns nati v os sabedo res e filóso f o s, que nem semp re aparece m em toda a parte mas apenas em deter m i n a d o tipo de sociedade. Te m- se precisa m e n te o mes m o prob le m a co m a Bíb l ia, porq ue parece que o seu material de base era for m a d o por eleme nt o s desco ne x o s que depo is fora m reuni d os por fil óso f o s conhece d o r es para tecer uma história contí n u a. Seria extre m a m e n t e 34
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im p o r ta n te descob r i r se a situação entre os pov os sem escrita que fora m estuda d os pelos antro p ó l o g o s é a mes ma que a da Bí b l i a ou outra co m p le ta m e n t e diferente. O segun d o proble m a, emb o ra ainda teóric o, é de natureza mais prática. No passado, diga m o s nos fins do sécul o X I X e nos prin c í p i o s do século X X , o materia l mito l ó g i c o era recol h i d o prin c i p a l m e n t e pelos antro p ó l o g o s, isto é, pessoas do exteri o r. Claro que em muit os casos, e especia l m e n t e no Canadá, eles contara m com a colab o ra ç ã o de nativ os. Dei x e m- me por exe m p l o citar o caso de Franz Boas, que tinha um colabo ra d o r k wa k i u t l, Georg e Hu n t (de fato, ele não era real m e n te k wa k i u t l, porqu e nasceu de pai escocês e de uma mãe tling it, mas foi criad o entre os K w a k i u l e identi f i c o u- se com p l e ta m e n t e co m a sua cultura). E, para o estudo dos Tsi m s h i a n, Boas tinha Henr y Tate, que era um tsi ms h i a n culto, e M a r i u s Barbea u conto u co m W i l l i a m Ben y o n, que també m era um tsims h ia n culto. Assi m se assegur o u, desde o co me ç o, a cooperaçã o nativ a, mas a verdade é que Hu n t, Tate ou Ben y o n trabal ha ra m sob a direção dos antro p ó l o g o s, ou seja, tornara m- se eles própr i o s també m antro p ó l o g o s. Con he c ia m, co m certeza, as mel h o res lendas, as tradiç ões do seu própr i o clã, a sua linha ge r n, mas apesar de tudo mostra v a m- se igual m e n t e interessad os em obter info r m a ç ã o de outras fam í l i as, outros clãs, e assi m por diante. Quan d o olha m o s para este enor m e corpo de mit o l o g i a amerí n d i a que é o Tsimshian Mythology, de Boas e Tate, ou para os textos k wa k i u t l colig i d o s por Hu nt, e organ i z a d o s, publ i ca d o s e tradu z i d o s també m por Boas, encon tra m o s mais ou men os a mes m a organi za çã o da info r m a ç ã o, porqu e é a reco m e n d a d a pelos antro p ó l o g o s: por exe m p l o, ao princ í p i o, mitos cos m o l ó g i c o s e cos m o g ô n i c o s, e depois o materia l que se pode consi derar co m o tradiçã o lendária e histórias de fa m í l i a. Co m e ç a d a esta tarefa pelos antro p ó l o g o s, foi depois desen v o l v i d a pelos Índi os, e para diferentes objeti v o s: por exe m p l o, 35
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para que a sua líng ua e a sua mito l o g i a seja m ensina das na escola eleme nta r às crianças índias. Parece-me que hoje em dia isso é mui t o im p o r ta n te. Outra final i d a d e é util i za r as tradiç ões lendárias para fun da m e n t a r reiv i n d i c a ç õ es contra os branc os – reiv i n d i c a ç õ es territo r ia is, reiv i n d i c a ç õ es polít i c as e outras. Assi m, é extre m a m e n t e imp o r ta n te veri f i c a r se há diferen ças (e, se hou v e r, que tipo de diferen ças) entre as tradiç ões recol h i d as do exterio r e as colig i d as do interi o r como se tivesse m sido recol h i d as do exterio r. De v o dizer que o Canadá tem sorte em que os livr os sobre a sua mit o l o g i a e tradiç õ es lendárias haja m sido organ i z a d o s e editados pelos especial istas indí ge nas. Este processo co me ç o u cedo: há o livr o Legends of Vancouver, por Pauli ne Johnso n, editad o antes da Pri me i r a Guerra M u n d i a l. Ma is tarde, temos os livr os de Ma r i u s Barbea u, que não era evide nte m e n te indí ge na, mas que tentou colig i r material históri c o ou semi- histór i c o, tornan d o- se o porta- voz dos seus info r m a d o r es nati v o s; prod u z i u, por assi m dizer, sua próp r ia versão daquela mito l o g i a. M a is interessantes, mui t íssi m o mais interessantes, são liv ros com o Men of Medeek, publ i ca d o em K i t i m a t em 1962, que segun d o se supõe é o relato textua l das pala vras do Che fe Wa l te r W r i g h t, um chefe tsims h ia n da região do curso méd i o do rio Skeena, relato colig i d o por outra pessoa, um investi ga d o r de cam p o branc o que nem sequer era um prof issi o n a l. E ainda mais imp o r ta n te é um livr o recente do Chefe Ke n n et h Harr is, que també m é um chefe tsi msh i a n, e publi ca d o por ele em 1974. Co m este materia l, pode m o s procede r a uma espécie de experiê n c i a, co m p a ra n d o o materia l recol h i d o pelos antro p ó l o g o s com o direta m e n te recolh i d o e publ i ca d o pelos Índi os. Não deveria na verdade dizer «recol h i d o », porq ue em vez de apresentar as tradiç ões de diversas fam í l i as, diversos clãs, diversas linhage ns, reuni das e justap ostas umas às outras, o que se vê nos dois livr os é 36
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real m e n t e a histór ia de uma fam í l i a ou de um clã, publ i ca da por um dos seus descende n tes. O prob le m a é este: onde acaba a mito l o g i a e onde co me ça a Histó r ia? No caso co m p le ta m e n t e nov o para nós de uma Histór i a sem arqui v o s, sem docu m e n t o s escritos, apenas existe uma tradição verba l, que aparece ao mes m o temp o co m o Histó r i a. Ora, se com p a ra r m o s essas duas histór ias, a pri m e i r a obtida na região do curso méd i o do rio Skeena, do Chefe W r i g h t, e a outra escrita e publi ca d a pelo Che fe Harris, de uma fa m í l i a da região do curso superio r do Skeena, da área de Haze lt o n, acaba m o s por encontra r semelh a n ças e diferen ças. No relato do Che fe W r i g h t temos o que eu poderia cha ma r a gênese de uma desorde m: toda a históri a tem por object i v o explic ar co m o, depois do seu co me ç o, um deter m i n a d o clã, linhage m ou grup o de linha ge ns atravessou uma série de grandes pro va ç õ es, perío d os de sucessos e perío d o s de fracassos, cam i n h a n d o progressi v a m e n t e para um fi m desastros o. É uma história tre me n d a m e n t e pessi m i s ta, na verdade a história de uma queda. No caso do Chefe Harris, há uma perspect i v a bastante difere nte, porq ue o livr o parece princ i p a l m e n t e orienta d o para explic ar a orige m de uma orde m social que era a orde m social daquele perío d o históri c o, e que ainda é evide nte, se assi m se pode dizer, nos vários no mes, títul os e pri v i l é g i o s que um deter m i n a d o indi v í d u o que ocupa um lugar proe m i n e n t e na sua fa m í l i a ou clã acu m u l o u por herança à sua volta. Tud o se passa co m o se se projectasse sim u lta n ea m e n t e no écran do presente um sucessão diacrô n i c a de acontec i m e n t o s para reconsti t u i r, peça por peça, uma orde m sincrô n i c a que existe e é ilustrada pela lista de no mes e priv i lé g i o s de um dado indi v í d u o. Os dois livr os, as duas histórias, são positi v a m e n t e fascina n tes, e grandes peças do ponto de vista literári o. M as, para o antro p ó l o g o, o seu princ i p a l interesse está em ilustrar as característ i cas de um tipo de Histó r ia ampla m e n t e difere nte da nossa. A Histó r i a tal qual a escreve m o s é pratica m e n t e, e inteira m e n t e, baseada em docu m e n t o s 37
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escritos, enqua nt o no caso destas duas histórias não há docu m e n t o s escritos ou, se os hou ve r, são mu i t o pouc os. Ora, o que me espanta, quan d o os tento co m pa ra r, é que ambos prin c i p i a m co m o relato de um tem p o míti c o ou talvez históri c o – não sei se um, se outro, ou quiçá arqueo l ó g i c o seja o mais adequa d o –, quan d o na região do curso superi o r do Skeena, perto do que agora é Hazelto n, havia urna grande cidade gire Barbeau referi u co m o no me de Tenla ha m, narran d o o que aí acontece u. Trata- se pratica m e n t e da mes m a histór ia em amb os os livr os: expl i c a m que a cidade foi destru í d a, que os sobre v i v e n t es deixara m o local e com e çara m a sua peregri n a ç ã o ao long o do Skeena. Na verdade, isto pode ser um relato histór i c o, mas, se se analisar mais de perto o mod o co m o o fato é expl i ca d o, veri f i c a- se que o tipo de acontec i m e n t o é o mes m o, mas que difere quanto aos por m e n o r es. Por exe m p l o, conf o r m e a versão, na orige m pode estar uma luta entre duas aldeias ou duas cidades, uma luta que se desenca de o u por causa de um adultéri o; finas a históri a tem várias possib i l i d a d es: o mari d o mato u o amante de sua mul h e r, ou os irmã os matara m o amante da ir mã, ou, ainda, o mari d o mato u a sua mu l he r porq ue ela tinha um amante. Co m o se vê, temos uma célula explic at i v a. A sua estrutura básica é a mes m a, mas o conteúdo da célula já não é o mes m o e pode variar; é, portant o, uma espécie de min i m i t o, se assi m se pode dizer, porq ue é mui t o curto e mu it o conde nsad o, mas tem ainda a propr ie d a d e de um mito; na med i da em que o pode m o s seguir sob diferen tes transfo r m a ç õ es. Quan d o se transf o r m a um eleme n t o, então os outros eleme n t o s têm de ser forç osa m e n t e readaptad os às muda n ç as sofri das pelo pri m e i r o. O que me interessa nestas histórias de clãs é este pri me i r o aspecto. O segun d o aspecto é que são histórias alta me n te repetiti v as; o mes m o tipo de ele me n t o pode ser util i za d o diversas vezes, na explic aç ã o de vários acontec i m e n t o s. Por exe m p l o, é interessante veri f i c a r que nas histórias da tradiçã o partic u l a r do Chefe W r i g h t e 38
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da tradição partic u la r do Chefe Harr is se enco nt ra m acontec i m e n t o s semelh a n tes, mas que não têm lugar no mes m o sítio, que não dize m respeito às mes mas pessoas e que, pro va v e l m e n t e, não se passa m no mes m o perío d o históri c o. O que se desco bre ao ler estes livros é que a oposiçã o – a oposiçã o sim p l i f i c a d a entre M i t o l o g i a e Histó r i a que estam os habit ua d os a fazer – não se encont ra bem defi n i d a, e que há um níve l inter m é d i o. A M i t o l o g i a é estática: encontra m o s os mes m o s eleme nt o s mito l ó g i c o s co m b i n a d o s de infi n i t as manei ras, mas nu m siste ma fechad o, contra p o n d o- se à Histó r i a, que, evide nte m e n t e, é um siste ma aberto. O caráter aberto da Histó r i a está assegura d o pelas inu m e rá v e i s mane iras de co m p o r e reco m p o r as células mito l ó g i c as ou as células explic at i v as, que eram orig i n a r i a m e n t e mito l ó g i c as. Isto dem o nst ranos que, usand o o mes m o materia l, porq ue no fun d o é um tipo de material que pertence à herança co m u m ou ao patri m ô n i o co m u m de todos os grup os, de todos os clãs, ou de todas as linhage ns, uma pessoa pode toda v ia consegu i r elaborar um relato orig i na l para cada um deles. O que era engan os o nos antig os relatos antro p o l ó g i c o s era a mistu ra que se fazia das tradiç ões e crenças pertence n tes a divers íssi m o s grup os sociais. Isto fez que se perdesse de vista uma característ ic a funda m e n t a l de todo o materia l – que cada tipo de Histó r ia pertence a um dado grup o, a uma dada fa m í l i a, a uma dada linha ge m, ou a um dado clã, e tenta expl i c ar o seu destin o, que pode ser desgraçad o ou triu n f a l, ou justi f i ca r os direitos e pri v i l é g i o s tal com o existe m no mo m e n t o presente, ou, ainda, tenta vali da r reiv i n d i c a ç õ es de direitos que já há mu it o desaparecera m. Quan d o tenta m o s fazer Histó r i a cientí f i c a, faze m o s porve n t u r a algo cientí f i c o ou adopta m o s també m a nossa própr i a mit o l o g i a nessa tentati v a de fazer Histór i a pura? Parece-me mui t o interessante conside rar o mo d o co m o, quer no No rte quer no Sul da A m é r i c a, e 39
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na realida d e em todas as partes do mun d o, um indi v í d u o que recebeu, por direit o e herança, um certo relato da mito l o g i a ou da tradiçã o lendária do seu própr i o grup o reage ao ouv i r outra versão difere nte, contada por algué m pertence n te a um clã ou linha ge m difere nte, a qual é semel h a n te em certa med i d a mas, noutra perspecti v a, é també m extre m a m e n t e difere nte. Quant o a este ponto, podería m o s pensar que é imp ossí v e l que dois relatos que não são idêntic o s, nem o mes m o, possa m ser verda de i r o s ao mes m o temp o, mas apesar de tudo eles parece m ser aceites co m o verdade em algu ns casos, co m a única difere n ç a de que um relato é consi dera d o melh o r e mais por m e n o r i z a d o do que o outro. No u t r os casos, os dois relatos pode m ser conside ra d os igual m e n t e váli d os, porq ue as difere n ças entre eles não são perceb i d as co m o tais. Na nossa vida diária també m não temos consciê n c i a de que nos encont ra m o s precisa m e n te na mes ma situação relati va m e n t e a divers os relatos histór ic os, escritos por difere ntes historia d o r es. Só presta m o s atenção ao que é basica m e n t e semel ha n te, e esquece m o s as diferen ç as devi d as ao fato de que os histori a d o r es proc u ra m e interpreta m os dados de for m a substanc i a l m e n t e difere nte. Assi m, se se tomare m dois relatos de historia d o res, de difere ntes tradiç õ es intelect ua is e com alinha m e n t o s polít i c o s divers os, de acontec i m e n t o s co m o a Rev o l u ç ã o A m e r i c a n a, a guerra Franc o- Inglesa no Canadá ou a Rev o l u ç ã o Francesa, não fica m o s de fato nada espantad os ao constatar que eles não nos conta m exata m e n te a mes ma coisa. Portant o, a mi n h a imp ressão é que, estudan d o cuidad osa m e n t e esta Histó r ia, no sentid o geral da palav ra, que os autores indí g e n as conte m p o r â n e o s nos tenta m dar do seu passado, não a consi de ra n d o com o um relato fantástic o, mas antes investi ga n d o co m bastante cuidad o, co m a ajuda de uma arqueo l o g i a de salva m e n t o – escavan d o os sítios referid os nas histór ias –, e tentand o, na medi d a do possív e l, estabelecer corresp o n d ê n c i as entre difere ntes relatos, 40
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veri f i c a n d o o que corresp o n d e e o que não corresp o n d e, talvez possa m o s no fi m deste processo chegar a uma mel h o r co m p r ee nsão do que é na realida d e a ciênc ia históri c a. Não ando longe de pensar que, nas nossas socieda des, a Histó r ia substit u i a M i t o l o g i a e dese m p e n h a a mes m a funçã o, já que para as socieda des sem escrita e sem arqui v o s a M i t o l o g i a tem por final i d a d e assegurar, co m um alto grau de certeza – a certeza com p l e ta é obvia m e n t e im p ossí v e l –, que o futu ro per ma n e ce rá fiel ao presente e ao passado. Cont u d o, para nós, o futur o deveria ser semp re diferente, e cada vez mais difere nte do presente, depen de n d o algu m as diferen ç as, é claro, das nossas preferên c i as de caráter políti c o. M as, apesar de tudo, o mur o que em certa medi d a existe na nossa mente entre M i t o l o g i a e Histó r i a pode pro va v e l m e n t e abrir fendas pelo estud o de Histó r i as conceb i d as não já co m o separadas da M i t o l o g i a, mas co m o uma conti n u a çã o da mit o l o g i a.
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V MITO E MÚSIC A
A relação entre mito e música, em que tanto insisti na parte inicia l de Le Cru et le Cuit e també m na parte final de L’Homme, é talvez o tema que deu orige m à mai o r parte dos mal- entend i d o s, especial m e n t e no mu n d o de líng ua inglesa, mas també m em França, porq ue se pensava que essa relação era bastante arbitrár ia. Eu, pelo contrár i o, tinha a ideia de que não havia uma única relação, mas dois tipos de relação – uma de simi l a r i d a d e e outra de conti g u i d a d e – e de que, na realida de, eles eram de fato o mes m o. M as não com p r ee n d i ime d iata m e n te esta relação, e foi a relação de sim i la r i d a d e que me cha m o u em pri m e i r o lugar a atenção. Tentarei explic ar co m o isso se passou. Relati v a m e n t e ao aspecto da simi l a r i d a d e, a mi n h a con v i c ç ã o era que, tal co m o sucede nu ma partitu ra musi cal; é imp ossí v e l com p r ee n d e r um mit o co m o uma sequên c i a contí n u a. Esta é a razão por que deve m o s estar conscie ntes de que se tentar m o s ler um mit o da mes ma maneira que lem os uma novela ou um artig o de jornal, ou seja linha por linha, da esquerda para a direita, não podere m o s chegar a entende r o mito, porq ue temos de o apreender co m o uma totalid a d e e desco br i r que o signi f i c a d o básico do mito não está ligad o à sequênc ia de aconteci m e n t o s, mas antes, se assi m se pode dizer, a grup os de acontec i m e n t o s, ainda que tais aconteci m e n t o s ocorra m em mo m e n t o s diferen tes da Histó r i a. Portant o, temos de ler o mito mais ou men os co m o lería m o s uma partit u ra musica l, pond o de parte as frases musica is e tentand o enten der a pági na inteira, co m 42
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a certeza de que o que está escrito na pri m e i r a frase musi ca l da página só adquire signi f i c a d o se se consi de ra r que faz parte e é uma parcela do que se enco nt ra escrito na segund a, na terceira, na quarta e assim por diante. Ou seja, não só temos de ler da esquerda para a direita, mas simu lta n ea m e n t e na verti ca l, de ci ma para bai x o. Te m o s de perceber que cada página é uma totali da de. E só consi de ra n d o o mit o co m o se fosse uma partit u ra orquestral, escrita frase por frase, é que o pode m o s entender co m o uma totali da de, e extrai r o seu signi f i c a d o. Co m o é que isto acontece e porq uê? Na mi n h a opin iã o, é o segun d o aspecto, o aspecto da conti g u i d a d e, que nos dá a chave para este prob le m a. Na verdade, foi só quand o o pensa m e n t o mito l ó g i c o, não digo se dissip o u ou desapareceu, mas passou para segun d o plano no pensa me n t o ocide ntal da Renascen ça e do sécul o X V I I I , que com e çara m a aparecer as pri m e i r as novel as, em vez de histórias ainda elabora das segun d o o mode l o da mito l o g i a. E foi precisa m e n t e por essa altura que teste m u n h a m o s o apareci m e n t o dos grandes estilos musica is, característ i c os do sécul o X V I I e, princ i p a l m e n t e, dos séculos X V I I I e X I X . Foi co m o se a música mu dasse co m p l e ta m e n t e a sua for m a tradic i o n a l para se apossar da funçã o –fun çã o intelect u a l e també m emot i v a que o pensa me n t o mito l ó g i c o aband o n o u mais ou menos nessa época. Quan d o falo de músi ca, devia, co m certeza, quali f i c a r o term o. A música que assu m i u a funçã o tradic i o n a l da mito l o g i a não é um deter m i n a d o tipo de músi ca, mas a músi ca tal co m o surgi u na civ il i z a ç ã o ocide nta l, nos pri m e i r o s quartéis do século X V I I , co m Fresco ba l d i, e nos pri m e i r o s anos do século X V I I I , co m Bach, música que ating i u o seu má x i m o desen v o l v i m e n t o co m M o z a rt, Beeth o v e n e Wa g n e r, nos sécul os X V I I e X I X . O que eu gostaria de fazer a fi m de clari f i c a r estas afir m a ç õ es era oferecer um exe m p l o concret o, que to mare i da tetral o g i a O Anel 43
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dos Nibelungos, de Wa g n e r. U m dos temas mais imp o r ta n tes das tetralo g ia é o que em francês se cha ma «le thè me de la renun c i at i o n à l’a m o u r » – a renún c ia ao amor. Co m o se sabe, este tema aparece pela pri m e i r a vez na co m p o s i ç ã o O Ouro do Reno, no mo m e n t o em que Al b e r i c h sabe pelas nin fas do Reno que só pode conq u istar o ouro se renun c ia r a todas as espécies de amor hu ma n o. Este assustado r mot i v o musica l é um aviso a Al b e r i c h, dado no preciso mo m e n t o em que ele diz que fica co m o ouro e que renun c i a ao amor de uma vez por todas. Tud o isto é muit o claro e simp l es; é o sentid o literal do tema: A l be r i c h está a renun c i a r ao amor. Ora, o segun d o mo m e n t o, imp o r ta n te e surpreen d e n te, em que o tema reaparece é nas Val q u í r í as, em circu nstâ n c i as que torna m extraor d i n a r ia m e n t e difíc i l entender porq uê. No mo m e n t o em que Sieg m u n d descob re que Siegl i n d e é sua irmã e se apai x o n a por ela, e precisa m e n te quan d o iam inicia r uma relação incestu osa, graças à espada que se encon tra espetada na árvore e quand o Sieg m u n d a tenta arrancar – nesse mo m e n t o, reaparece o tema da renú nc i a ao amor. Isto parece um mistéri o porq ue, nesse mo m e n t o, Sieg m u n d não está de for m a algu m a renun c i a n d o ao amor – está fazend o exata m e n te o contrári o, e conhece n d o o amor pela pri m e i r a vez na sua vida, co m a sua irmã Siegl i n d e. O terceiro mo m e n t o em que o tema aparece é tam bé m nas Valquírias, no últi m o ato, quan d o W o ta n, o rei dos deuses, conde na a sua filha Bru n i l d e a um long o sono mág i c o, rodean d o- a co m uma barreira de fogo. Poderia se pensar que W o ta n estava renun c i a n d o tam bé m ao amor, porq ue renu nc i a v a ao amor pela sua filha; mas tal interp retação não é muit o con v i n c e n te. Vê- se, assim, que enfre nta m o s aqui prob le m a que na mit o l o g i a. Ou seja: temos um tema musical em lugar de um tema mit o l ó g i c o mo m e n t o s diferen tes nu ma histór ia bastante prin c i p i o, outra vez no mei o, e outra ainda
um mes m o tipo de tema – neste caso um – que aparece em três longa: uma vez ao no fi m, se para esta 44
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análise nos li m i ta r m o s às duas pri m e i r as Nibelungos. O que eu gostaria de mostrar é entende r estas reapariç õ es misteri osas do acontec i m e n t o s, ainda que pareça m mu it o uns por cima dos outros, a ver se poderão únic o e o mes m o aconteci m e n t o.
obras d’ O Anel dos que a única manei ra de tema é juntar os três diferentes, empi l h á- los ser tratados co m o um
Pode m o s constatar que nas três ocasiões difere ntes há um tesouro que tem de ser afastado ou desvia d o daqu i l o, para que está destina d o. Há o ouro, que se enco nt ra enterra d o nas prof u n d e z as do Ren o; há a espada, que está enterra da na árvore, que é uma árvore sim b ó l i c a, a árvore do uni ve rso ou a árvore da vida; e há a mu l h e r cha m a d a Bru n i l d e, que tem de ser tirada do círcu l o de fogo. A repetição do tema sugere-nos que, na verdade, o ouro, a espada e Bru n i l d e são a mes ma coisa: o ouro co m o um mei o para conq u is ta r o poder, a espada co m o um mei o para conq u i sta r o amor, se assi m se pode dizer. E o fato de haver uma espécie de união entre o ouro, a espada e a mul h e r é, real me n te, a mel h o r expl i ca çã o que podere m o s ter para que no final d’ O Crepúsculo dos Deuses seja através de Bru n i l d e que o ouro volte ao Reno. Eles são uma e a mes ma coisa, mas consi de ra d os de diferentes pontos de vista. Por este processo se torna m claros outras peças do quebracabeças. Por exe m p l o, ainda que A l b e r i c h renun c i asse ao amor mais tarde, graças ao ouro, poderi a seduzi r uma mu l h e r que lhe daria um filh o, Hage n. É graças à conq u i sta da espada que Sieg m u n d alcança tam bé m um filh o, que será Sieg f r i e d. Assi m, a reapari çã o do tema mostra- nos algo que nunca foi expl i ca d o nos poe mas, isto é, que há uma espécie de gemei d a d e entre Hage n, o traid o r, e Siegf r i e d, o herói. Estão nu m estreito paralel is m o. E isto expl i ca també m por que razão será possíve l a Siegf r i e d e a Hagen, ou mel h o r, a Siegf r i e d, pri m e i r o co m o ele mes m o e depo is sob o disfarce de Hage n, conq u istar Bru n i l d e em diferen tes mo m e n t o s da histór ia.
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Poderia contin u a r co m temas deste gênero durante bastante tem p o, mas talvez seja m sufic ie n tes estes exe m p l o s para expl i ca r a sim i la r i d a d e de méto d o entre a análise do mito e a co m p re e nsã o da música. Quan d o ouv i m o s músi ca, esta m os ouv i n d o, afinal de contas, algo que vai de um ponto inic ia l para um term o final e que se desen v o l v e através do tem p o. Ouça m uma sinf o n i a: uma sinf o n i a tem um princ í p i o, um meio e um fi m; contu d o nunca se enten derá nada da sinf o n i a nem se conseg u i rá ter prazer ou escutá-la se se for incapaz de relaci o n a r, a cada passo, o que antes se escuto u co m o que se está a escutar, mante n d o a consciê n c i a da totali da d e da música. Se se retiver por exe m p l o a fór m u l a musica l do tema e das variaç ões, só se pode enten der e sentir a músi ca se para cada variação se tiver em mente o tema que se ouv i u em pri m e i r o lugar; cada variaçã o tem um sabor musi ca l que lhe é própr i o, se se conseg u i r relaci o n á- la inconsc ie n te m e n t e co m a variação escutada anterio r m e n t e. Há, pois, uma espécie de reconstru çã o contí n u a que se desen v o l v e na mente do ouv i n te da músi ca ou de uma história mit o l ó g i c a. Não se trata apenas de uma simi l a r i d a d e global. É exata m e n te co m o se, ao inven tar as for m as musica is especí f i c as, a música só redesco b r isse estrutu ras que já existia m a níve l mit o l ó g i c o. É, por exe m p l o, extraor d i n á r i o que a fuga, co m o foi for m a l i z a d a no temp o de Bach, seja a representaçã o ao vi v o do desen v o l v i m e n t o de deter m i n a d o s mit os que têm duas espécies de persona ge ns ou dois grup os de persona ge ns. Di ga m o s: um bo m e outro mau, emb o ra isto constit ua uma super-simp l i f i c a ç ã o. A história inven tar ia d a pelo mito é a de um grup o que tenta escapar ou fug ir do outro grup o de personag e ns. Trata- se então de uma persegu i ç ã o de um grup o pelo outro, chegan d o às vezes o grup o A a alcançar o grup o B, distanc i a n d o- se depois nova m e n t e o grup o B – tudo co m o na fuga. Te m- se o que se cha ma em francês «le sujet et la répo nse». A antítese ou antif o n i a conti n u a pela história fora, até 46
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amb os os grup os estare m quase mistu ra d os e conf u n d i d o s – um equi v a le n te da stretta da fuga; final m e n t e, a soluçã o ou clí m a x deste con f l i t o surge pela conju g a çã o dos dois princ í p i o s que se tinha m oposto durante todo o mito. Pode ser um con f l i t o entre os poderes de cima e os poderes de baix o, o céu e a terra, ou o sol e os poderes subterrâ ne os, e assi m sucessi v a m e n t e. A soluçã o míti ca de conju g a ç ã o é mu it o semel ha nte em estrutu ra aos acordes que resol v e m e põe m fi m à peça musica l, porq ue també m eles oferece m uma conj u g a çã o de extre m o s que se junta m por uma e últi m a vez. Ta m b é m se poderia mostrar que há mit os, ou grup os de mitos, que são constru í d o s co m o uma sonata, uma sinf o n i a, um rond ó ou uma tocata, ou qualq ue r outra for m a que a música, na realida d e, não inve nt o u, mas que foi inco ns c i e n te m e n t e buscar à estrutura do mito. Há uma histór ia que gostaria de lhes contar. Quan d o andava a escreve r Le Cru et le Cuit, deci d i dar a cada, seção do livr o o caráter de uma for m a musica l e cha ma r, a uma, «sonata», a outra, «ron d ó », e assi m sucessi va m e n t e. Depare i- me então um mit o cuja estrutu ra com p r ee n d i a perfeita m e n t e, mas o qual não encontra v a uma for m a musica l que corresp o n d esse à estrutu ra mit o l ó g i c a. Cha m e i então o meu amig o, o co m p o s i t o r René Lei b o w i t z, e expl i q u e i- lhe o meu prob le m a. Descre v i- lhe a estrutu ra do mito: ao co me ç o duas histórias co m p l e ta m e n t e difere ntes, sem relação aparente uma co m a outra, mas que progressi v a m e n t e se mistu ra m e conf u n d e m, até que no fi m acaba m por for m a r um só tema. Co m o se cha ma r i a uma peça musica l co m a mes ma estrutu ra? Ele pensou no assunto e disse-me que em toda a históri a da música não existia, que ele soubesse, uma peça musi ca l co m tal estrutura. Assi m, não há no me para ela. É evide nte m e n te possí v e l com p o r uma peça musica l co m esta estrutu ra; e passadas algu m as semanas ele envio u- me uma partit u ra que tinha co m p o s t o co m base na estrutu ra do mito que eu lhe contara.
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A co m p a ra çã o entre a músi ca e a ling ua ge m é um prob le m a extre m a m e n t e espinh os o, porqu e, em certa medi d a, a co m pa ra çã o faz-se co m materia is muit o pareci d os e, ao mes m o temp o, tre me n d a m e n t e difere ntes. Por exe m p l o, os ling u i stas conte m p o r â n e o s dissera m- nos que os ele me n t os básicos da ling ua ge m são os fone m as – ou seja, aqueles sons que nós inco rreta m e n te representa m o s por letras –, que em si mes m o s não têm qualq u er signi f i c a d o, mas são co m b i n a d o s para difere n c i a r os signi f i c a d o s. Pode-se dizer pratica m e n t e o mes m o das notas musica is. U m a nota – A, B, C, D e assi m por diante – não tem signi f i c a d o em si. mes ma; é apenas uma nota. É só pela co m b i n a ç ã o das notas que se pode criar música. Podería m o s dizer perfeita m e n t e que, enquan t o na ling ua ge m tem os fone m as co m o material eleme nta r, na música temos algo que eu poderia cha ma r «sone m as» – em inglês, talvez que a palav ra mais adequa da fosse «tone m as ». Isto é uma simi la r i d a d e. M as, se se pensar no nível segui nte da ling ua ge m, se veri f i ca rá que os fone m as se co m b i n a m de mod o á for m a r palav ras; e as pala vras, por sua vez, co m b i n a m- se para for m a r frases. M as na música não há palav ras: os eleme nt o s básicos – as notas – quan d o se com b i n a m dão imed iata m e n te orige m a uma «frase», uma frase meló d i c a. Assi m, enquant o na ling ua ge m se tem três níve is mu i t o bem defin i d o s – fone m as que, co m b i n a d o s, for m a m palav ras, e pala vras que, co m b i n a d as, for m a m frases –, na músi ca tem- se co m as notas uma coisa pareci da aos fone m as do ponto de vista lógic o, mas perde- se o nível da palav ra e passa-se imed i ata m e n t e ao do m í n i o da frase. A g o r a pode- se co m p a ra r a mito l o g i a quer co m a ling ua ge m , quer co m a música, mas há uma difere n ç a: na mit o l o g i a não há fone m as; os ele me n t os básicos são as palav ras. Assi m, se se to mar a ling ua ge m com o um paradi g m a, é constit u í d o por, em pri m e i r o lugar, fone m as; em segun d o lugar, palav ras; em tercei ro lugar, frases. Na música há o equi v a l e n te aos fone m a s e o equi v a l e n te às 48
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frases, mas falta o equi v a le n te às pala vras. No mito há um equi v a le n te às palav ras, um equi v a le n te às frases, mas não há equi v a le n te para os fone m as. Há, portant o, em ambos casos, um nível que falta. Se tentar m o s entende r a relação entre ling ua ge m, mit o e música, só o pode m o s fazer util i za n d o a ling ua ge m co m o ponto de partida, poden d o- se depois demo n st ra r que a músi ca, por um lado, e a mito l o g i a, por outro, têm orige m na ling u a g e m, mas que ambas as for m as se desenv o l v e ra m separada m e n te e em difere ntes direções: a música destaca os aspectos do som já presentes na ling u a g e m , enquant o a mito l o g i a subli n h a o aspecto do senti d o, o aspecto do signi f i c a d o, que també m está prof u n d a m e n t e presente na ling ua ge m. Foi Ferd i na n d de Saussure que m nos mostr o u que a ling u a g e m é feita de ele me n t os indisso c i á v e is, que são, por um lado, o som, e, por outro, o signi f i c a d o. E o meu ami g o Ro m a n Jakobs o n acaba de publi ca r um peque n o livr o intitu la d o Le Son et le Sens, co m o as duas insepará ve is faces da ling ua ge m. Te m o s o som, e o som tem um signi f i c a d o, e não há signi f i c a d o sem som para o veic u l a r. Na música, é o eleme nt o sonor o que predo m i n a, e no mito é o signi f i c a d o. Desde criança que tenho sonhad o ser co m p o s i t o r ou, pelo men os, um chefe de orquestra. Quan d o ainda era criança tentei ardua m e n te co m p o r a músi ca para uma ópera, para a qual escre v i o libretto e pintei os cenários, mas fui incapaz de a co m p o r porq ue me falta va algo no cérebro. Penso que só a músi ca e a mate m á t i c a é que real m e n t e exige m quali da des inatas e que uma pessoa tem de possui r herança genética para trabal har em qualq ue r um destes dois camp os. Le m b r o- me mu it íssi m o be m, quand o viv i em No v a Y o r k co m o refug ia d o durante a guerra, que alm o ce i uma vez co m um grande com p o s i t o r francês, Dari us M i l h a u d. Pergu n te i- lhe nessa altura: «Quan d o é que se con ve n c e u de que iria ser um co m p o s i t o r?» Disseme que já quand o era crian ça, na cama, quase a dor m i r, ouv ia uma 49
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espécie de música sem relação algu m a co m qualq u er tipo de música por ele conhec i d a; descob r i u mais tarde que essa era já a sua própr i a música. Quan d o me deparei co m o fato de que a músi ca e a mit o l o g i a eram, se assim se pode dizer, duas irmãs geradas pela ling u a g e m que seguira m cami n h o s diferen tes, escol he n d o cada uma a sua direção – com o na mito l o g i a, em que um personag e m vai para o No rte, enquant o o outro se diri ge ao Sul, e nunca mais se encont ra m –, pensei que, se não era capaz de co m p o r co m os sons, talvez o pudesse fazer co m os signi f i c a d o s. O tipo de paralelis m o que tentei esboçar – já o disse, mas gostaria de o voltar a subli n h a r mais uma vez – só se aplica, tanto quanto sei, à música ociden ta l tal co m o se desenv o l v e u nos últi m o s séculos. M as, atual m e n t e, esta m os perante algo que, do ponto de vista lógic o, é bastante semel ha n te ao que acontece u quand o o mito desapareceu co m o gênero literári o, para ser substitu í d o pelo ro ma n c e. Esta m o s teste m u n h a n d o o desaparec i m e n t o do próp r i o ro ma n c e. E é bastante pro v á v e l que o que aconteceu no sécul o X V I I I , quan d o a música assu m i u a estrutu ra e a funçã o da mito l o g i a, esteja se passand o nova m e n t e agora, agora que a deno m i n a d a música serial substitu i u o ro ma n c e co m o gênero, no mo m e n t o em que este está desaparece n d o da cena literária.
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