C A P Í T U LO U M
O POTE DE MEL
N
ão reparei logo de cara, mas havia algo entre o caixa e a pilha de comandas. Talvez estivesse ali havia horas ou mais, apenas esperando, enquanto eu passava mais um dia de verão morrendo
de tédio na lanchonete Gracewell. Estávamos só nós duas fechando o restaurante. Eu, plantada ao lado do caixa, tamborilava as unhas no balcão, enquanto Millie, minha melhor amiga e parceira de bandejas, deslizava pela lanchonete cantando para um cabo de vassoura como se fosse um microfone. Todo mundo já tinha ido embora, e meu tio Jack — o gerente nada extraordinário — tinha ficado em casa de ressaca. As mesas estavam enfileiradas, rodeadas por cadeiras de encosto reto cor de vinho e algumas plantas artificiais. A porta já tinha sido trancada, as luzes estavam baixas e as cabines perto da janela, limpas. Eu me esforçava para não ouvir Millie destruindo uma música da Adele quando reparei: um pote de mel. Eu o peguei e o analisei. — Acho que estou melhorando — gritou Millie enquanto assassinava a música do outro lado da lanchonete. O único acerto dela foi o leve sotaque britânico, mas apenas porque ela realmente era britânica. — Já consigo alcançar aquele agudo! — Uma melhora e tanto, Mil — menti, sem levantar os olhos. O pote era pequeno e cilíndrico. Quando eu o balancei de um lado para o outro, o mel salpicado de cristais dourados se movimentou preguiçosamente. Um pedaço de tecido desgastado cobria a tampa do pote,
e no lugar do rótulo, amarrada em um laço elaborado, havia uma fita de veludo preta. Artesanal? Estranho. Não conhecia ninguém que fizesse o próprio mel em Cedar Hill, e eu conhecia quase todo mundo da cidade. Cedar Hill é esse tipo de lugar — uma pequena comunidade nos arredores de Chicago, onde todo mundo conhece da vida do outro; onde ninguém perdoa nem esquece. Eu sabia bem disso. Depois do que aconteceu com o meu pai, virei a filha da desonra, e a desonra tem o poder de grudar na pessoa como uma grande placa de neon na testa. Millie atingiu a última nota da música com um vigor de rachar os ouvidos e então pulou para trás do balcão e guardou a vassoura. — Está pronta? — De onde veio isso? — Equilibrei o pote de mel na palma da mão e estendi o braço. Ela deu de ombros. — Não sei. Estava aqui quando comecei o turno. Eu observei, através do prisma dourado, seu rosto se distorcer. — É estranho, não acha? Millie ajustou sua expressão para a clássica “eu realmente não dou a mínima para o que você está falando”. — O mel? Não achei. — É artesanal — falei. — É, percebi. — Ela franziu as sobrancelhas e estendeu a mão para tocar no vidro. — O laço é meio estranho. Talvez um cliente tenha deixado como gorjeta. — Que tipo de cliente deixa um pote de mel como gorjeta? Millie ficou boquiaberta, o rosto se iluminando. — Você... — Ela inspirou de forma dramática. — Por acaso... — Ela suspirou. — Atendeu... Inclinei o corpo, em expectativa. — ... um ursinho amarelo... Não acredito que caí nessa. — ... chamado Pooh? A risada dela me fez rir, como sempre. Aquele som — parecendo um pato sendo estrangulado — foi o que me chamou atenção quan10
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do ela se mudou para Cedar Hill cinco anos atrás. Na escola, a gente percebeu que sempre ríamos das mesmas coisas. Foram coisas bobas — caretas, risadas impróprias quando alguém tropeçava e caía, o prazer de longas conversas sem sentido e discussões ridículas sobre situações hipotéticas — que nos aproximaram. Naquela época eu não sabia que seria a única amizade a sobreviver ao que aconteceu à minha família um ano e meio atrás, mas não fazia mais diferença, porque Millie era a melhor amiga que eu poderia ter, e a única de que eu realmente precisava. Rimos o tempo inteiro enquanto fechávamos a lanchonete, até estarmos do lado de fora, no clima agradável da noite. Localizada na esquina da Foster com a Oak, a lanchonete ficava em um prédio baixo e modesto com paredes de tijolos desgastadas. Era perfeitamente simétrico, o formato quadrado evidenciado pelas grandes janelas que dominavam a fachada e pelo estacionamento modesto que cercava o restaurante. Na marquise ficava o letreiro tosco com a palavra “Gracewell”, semi-iluminado pelos postes da rua ao redor. Do outro lado, o prédio da antiga biblioteca se misturava ao céu escuro, parcialmente encoberto por uma fileira de árvores bem podadas que passava pela sede do correio e seguia calçada abaixo. Eu ainda segurava o pote de mel cuidadosamente embalado quando passamos pelo estacionamento vazio. Não era como se alguém fosse se importar, disse a mim mesma — meu tio Jack estava em casa esperando a ressaca passar, então não havia ninguém com autoridade oficial para reclamar a posse do mel. Fiz apenas o que qualquer funcionário cansado e mal pago faria na mesma situação — tomei para mim um brinde que não teria qualquer utilidade prática e saí da lanchonete me sentindo vitoriosa. — Sabe, eu estava pensando. — Millie diminuiu o passo para me esperar. — Cuidado com isso — provoquei-a. — Talvez eu devesse ficar com o mel. — Achado não é roubado — cantarolei. — Sophie, Sophie, Sophie. — Ela passou o braço em volta dos meus ombros e me puxou em direção a ela. Éramos quase da mesma altura, Vingança
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mas Millie era voluptuosa, enquanto eu era magrela, feito um menino, e bochechuda igual ao meu pai, embora pelo lado positivo também tivesse herdado suas covinhas. Millie esmagou a bochecha na minha, como se quisesse me lembrar disso. Senti seu sorriso. — Minha melhor amiga no mundo inteiro. Quão chata seria a minha vida sem você? As estrelas não brilhariam com tanta força, a lua não seria nada além de uma sombra de si mesma. As flores murchariam e... — De jeito nenhum! — Me desvencilhei do seu abraço. — Não vai conseguir o mel me elogiando. Sou imune ao seu charme. Millie coçou os olhos e soltou um gemido de cortar a alma. — Você já tem a lanchonete inteira. Não posso ficar com o mel? Embora ela estivesse certa, herdar a lanchonete quando fizesse 18 anos estava longe de ser a maior ambição da minha vida. Essas haviam sido as instruções do meu pai antes de partir, e não havia dúvida de que meu glorioso e mal-humorado tio Jack, com sua forte aura autoritária, iria obedecer. De qualquer forma, não importava. Millie e eu sabíamos que a lanchonete não era nada empolgante e sim apenas uma dor de cabeça sem fim à espreita na minha vida. Mas o pote de mel com o laço preto? Era algo bonito — uma surpresa para quebrar a monotonia do dia. Millie parou atrás de mim. — Sophie, quem fala é a sua consciência — sussurrou por cima do meu ombro. — Sei que faz uma semana desde que nos falamos pela última vez, mas está na hora de fazer a coisa certa. Millie é tão legal e bonita. Não quer dar o mel para ela? Pense em como ela ficaria feliz. — Eu não sabia que a minha consciência tinha um sotaque britânico. — É, bem, não pense muito nisso. Só passe o mel para ela. Parei na saída do estacionamento, onde cada uma prosseguiria sozinha pela noite. Antes de a renda dos meus pais ser reduzida pela metade, Millie e eu caminhávamos na mesma direção, para a avenida Shrewsbury, onde tínhamos empregados e jardineiros, piscinas gigantes e lustres de cristal pendurados em halls de verdade. Agora minha caminhada para casa era bem mais longa do que antes. — Millie nem gosta de mel — retruquei. — E ela não respeita as abelhas. Eu a vi pisar numa abelha três vezes na semana passada para garantir que estava morta. 12
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— Não é culpa minha que esse país esteja sendo tomado por insetos desagradáveis. — O que você queria? Estamos em pleno verão! — É uma maldição. — E você estava usando um perfume floral. — Ela estava sendo inconveniente. — Então você simplesmente a matou? Millie estendeu a mão dramaticamente. — Apenas me dê o maldito mel, Gracewell. Eu preciso dele para negociar o fim do meu castigo. Levantei as sobrancelhas. Havíamos acabado de completar um turno de oito horas juntas e ela não havia mencionado nada disso. — Castigo? — Uma completa injustiça. Um completo mal-entendido. — Pode continuar... — Alex me chamou de sorriso metálico. — Millie fez uma pausa dramática. — Dá pra acreditar nisso? Bem, ela realmente usava aparelho. E ele estava tecnicamente nos seus dentes. Mas não falei isso. Fiz uma cara de revolta e fingi concordar que seu irmão “não muito maduro, porém gostoso” era um tirano grosseiro. — Ele é tão idiota — afirmei. — Ele é literalmente o pior ser humano do planeta. Enfim, uma coisa levou à outra e o iPhone dele caiu da janela... Bem, meio que caiu das minhas mãos... que estavam coincidentemente pra fora da janela do quarto dele na hora... Ele surtou completamente comigo. — Irmãos... — Bem, você tem sorte de não precisar dividir sua casa com nenhum rei da babaquice — vociferou ela. — Que cara de 19 anos grita com a irmã mais nova? Quer dizer, onde está a honra dessa pessoa? Ele é uma vergonha para a família Parker. E como eu podia saber que o telefone ia quebrar? — Que estranho. — Ainda com o mel na mão, eu me apoiei em um poste próximo e observei minha sombra se curvar dentro da poça de luz. — Eu poderia jurar que os iPhones mais recentes vinham com um microparaquedas. Vingança
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Millie começou a golpear o ar, como se o problema pairasse à sua volta. — Se eu der esse simpático pote de mel para minha mãe usar em uma das suas receitas, ela vai olhar para mim como a filha carinhosa e doce que sou e acabará com esse castigo injusto, que foi imposto a mim injustamente por causa do porco ignorante do meu irmão. Eu me ajeitei. — Isso nunca vai funcionar. Vou ficar com o mel. — Tanto faz — disse ela, jogando o cabelo castanho liso para trás dramaticamente. — Deve estar envenenado mesmo. Ela botou a língua para fora e saiu pisando duro em direção à escuridão, deixando-me sozinha com minha recompensa conquistada com tanta luta. Botei o pote na bolsa, observando os cachos da fita preta sumirem lá dentro. Atravessei a rua e parei, tentando decidir para que lado seguir. Depois de seis turnos seguidos, as solas dos meus pés latejavam e, como Millie e eu havíamos enrolado por tanto tempo, já estava mais tarde que o normal. O caminho mais longo para casa era geralmente a minha opção favorita — era bem-iluminado e bem-frequentado — mas o atalho era bem mais curto, sem passar pelo centro da cidade, subindo a ladeira e dando a volta por trás da mansão assombrada no final da avenida Lockwood.
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