Para os iludidos.
e ela amava o menino, muito, muito mesmo – atÊ mais do que ela amava a si mesma.
Shel Silverstein
Eu estava desesperada
Então é isso, me rendo. Resolvi escrever para você.
Não que isso seja alguma grande novidade, até porque o Sam
falou que uma hora ou outra eu acabaria pegando um caderno e escrevendo alguma coisa. E ele estava tão certo.
Para você, então, eu peguei um caderno totalmente novo, porque
a nossa história foi longa (isso para mim, porque para os seus olhos estupidamente lindos foi apenas um borrão).
Acontece que eu estava desesperada.
Tentei assistir um filme, mas estava passando um documentário
sobre músicos famosos, e isso inevitavelmente lembrou você (mesmo que você não seja famoso). Decidi, então, ir comprar alguma coisa para comer, mas até aquela cafeteria guardava alguma lembrança sua. Ir para a faculdade, então, estava fora de cogitação. Eu evitei o quanto pude, mas nada que eu fizesse me afastava da ideia de pegar uma folha e vomitar tudo que você me fez sentir naqueles meses.
Então está aqui tudo o que eu guardei por algum tempo. A partir de
agora eu pretendo escrever, desde o começo, a nossa história (se é que eu posso chamar assim). Acho que a melhor maneira de se livrar de alguma coisa (neste caso, de alguém) é colocando para fora. Então é isso que eu vou fazer. Eu vou te “exorcizar” de mim.
Ai, credo.
Vou escrever aqui as minhas confissões. Aquelas sobre o quanto
eu gostei de você, ou sobre o quanto eu te odiei. Estarão aqui as confissões de quando eu não pude mais ignorar aquela... Coisa. Registrarei os momentos que para mim foram encarados como romance incondicional, daqueles que te fazem cair na estrada sem saber se ela tem fim. Talvez 9
eu escreva sobre alguns dias que você lembre de um jeito, mas que eu os tenha visto totalmente diferente.
Eu vou escrever sobre a maneira como descobri que seus olhos
azuis-quase-esverdeados escondiam algo. Isto é, existia alguma coisa dentro deles. Quer dizer, com certeza existia algo dentro de mim todas as vezes em que eu olhava para eles. Era como um tornado passando por mim, como um caminhão atropelando gatinhos num cesto, como uma enchente na colina mais alta. Devastador. É, acho que essa é a palavra certa.
Que droga.
Que droga, Gabriel Vegas.
Eu gostava de você pra caramba.
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Idiota, idiota, idiota Não quero começar preenchendo essas folhas com “tudo começou quando...”, mas realmente tudo começou quando eu te vi pela primeira vez. E, bem, isso é óbvio. Acho que era uma terça. Tá, admito. Tenho certeza. Era terça. Eu tinha saído um pouco antes da minha aula, por volta das 18h, e ainda precisava terminar uns 32 trabalhos até o fim daquela semana. Sabe, início de semestre é uma droga. Os professores pensam que precisam dar uma espécie de aperitivo sobre os próximos meses e aí todos eles passam trabalhos e mais trabalhos como se você só fizesse isso da vida. Como se você não trabalhasse em uma agência de notícias todos os dias, das 8h às 16h, onde os telefones não param de tocar. Como se você não tivesse um gato gordo em casa para cuidar. Como se você não pensasse toda hora em largar tudo e virar ilustradora de uma vez (porque todo mundo diz que é exatamente isso que faço melhor).
Porque eu tenho tudo isso. Voltando àquela terça: Sam teve que continuar na faculdade por-
que tinha aula noturna. Na verdade, ele tinha se matriculado em alguma disciplina que eu não havia escolhido. E, quanto a isso, eu não parava de culpá-lo.
– Espero que a sua aula seja uma droga – reclamei.
– Você vai me odiar até o fim do semestre?
Encarei os olhos escuros do meu melhor amigo.
– Provavelmente. Quem sabe assim você aprenda a não fazer
nenhuma disciplina sem mim.
– É só TV, Lola.
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– E é aí que está todo o problema! – falei, alto demais para aqueles corredores. A secretária do prédio onde fazíamos as aulas do nosso curso de Comunicação me olhou em reprovação. – Não é só TV. É tê-vê! Sam arqueou os ombros, em um dos únicos gestos que o faziam parecer gay. – Estou tentando entender a diferença – sussurrou. Suspirei desapontada. Depois, tentei explicar: – Como você acha que eu vou conseguir fazer programas de TV e trabalhos em frente às câmeras sendo que eu não vou conhecer ninguém na sala de aula? Ele soltou um risinho. – Meu Deus, como você é dramática. – Meu Deus, você diz isso todos os dias. – Meu Deus, vai ver que é verdade. Cruzei os braços. Sam riu de mim. – Gay – falei, como se o estivesse xingando da pior maneira. Pegando no meu pulso, em um gesto importado diretamente do MDM (Mundo das Mães), meu amigo baixou a voz e disse: – Vou ignorar a última palavra. Lola... – ele me olhou fundo. – Sua... Estranha... – falou, logo se apressando em completar: – Sua estranha incrivelmente legal... Er... Acontece que até o próximo semestre você vai conhecer gente nova. A gente sempre conhece. Não funcionou. – Ai. Meu. Deus – gesticulei até não poder mais, afastando-me do meu amigo. Ele largou meu pulso. – Ai, meu Deus! – O que houve? – perguntou, olhando para os lados, procurando qualquer fato mais importante que o meu drama pessoal. – Quem é você, e o que fez com o meu melhor amigo? Sam revirou os olhos, aproximando-se. – O seu melhor amigo está aqui, exatamente na sua frente, de sapatos novos que até o momento não foram notados, pedindo desculpas pelas 26ª vez por ter escolhido uma disciplina sem você. 13
Olhei para os dois lados, mexi no meu cabelo cor de chocolate,
fingi indiferença.
– Lola.
– Tá, tá. Você está desculpado. Mas se isso voltar a acontecer...
– Não vai.
Dei um beijo na bochecha de Sam. Ele tinha a pele negra mais
linda dentre todas as que eu já havia visto.
– A propósito... Bonitos sapatos.
Dei uma piscadinha e deixei o prédio em seguida. Antes que você
possa cogitar a hipótese, Gabriel, essa história não acaba comigo e meu amigo descobrindo que, na verdade, nos amamos e devemos ficar juntos porque fomos feitos um para o outro. Não, não mesmo.
Até porque o meu melhor amigo é gay.
E disso todo mundo sabe. Até a minha mãe sabe. Mas não. Essa história é sobre você e eu. Estrelando: a tonta e o
esperto. A idiota e o gênio. A desesperada e o nem-ligo-para-isso.
Você e eu. Ha-ha.
Do lado de fora, o sol ia se escondendo aos poucos, longe de
mim, atrás dos prédios no horizonte. Caminhei vasculhando a minha bolsa, tentando encontrar o cartão do ônibus ao mesmo passo que procurava ignorar a inutilidade daquele dia. Quando cheguei à parada, sentei no banco ao lado de uma senhora que comia um pacote do meu biscoito recheado favorito. Ela tinha uns, sei lá, 137 anos e meio. E eu pensando que gente daquela idade não comia besteira.
Quer dizer, é uma teoria lógica: chega uma hora na vida em que
temos de virar adultos e passar a não gostar de coisas como biscoito recheado. Não sei, acho que é um tipo de regra estabelecida por alguma espécie de entidade superior ou sei lá. Eu nunca vi alguém de 60 anos indo ao mercado só para comprar Cheetos, por exemplo. E eu, no auge dos meus 18 anos, simplesmente não me vejo chegando a tal idade sem comer besteira alguma. Quer dizer... Desculpa galera, quebrarei essa re14
gra. Não dá pra ser velho e só comer coisas de velho. É pedir muito ao mesmo tempo.
Passaram-se dez minutos e nada do ônibus. Desisti até mesmo da
minha postura-de-garota-que-tentava-parecer-elegante. Curvei as costas e apoiei o queixo com o punho fechado, parecendo uma idiota.
E foi aí que eu te vi.
Bem quando eu parecia uma idiota.
E isso sim foi uma prévia do que aconteceria nos próximos me-
ses. Você lá longe e eu aqui parecendo uma idiota.
Idiota, idiota, idiota.
O negócio foi o seguinte: você estava do outro lado da rua, Ga-
briel. É certo que você também não lembra disso, como muitas das coisas que vou escrever nessas folhas. E, naquele fim de tarde, a minha pseudomiopia mal podia te enxergar. Então tive que desenhar as partes de você que os meus olhos não conseguiam definir. Sim, eu pincelei o resto de você em minha mente. E, misturado ao todo, você ficou perfeito. O seu cabelo, loiro como nunca, brilhava com os rastros de sol que ainda existiam naquela rua. O corpo, magro como sempre, girava e girava. Acho que a distância me impedia de mensurar, mas você era um pouco alto. Um metro e setenta e poucos, por aí, alguns bons centímetros a mais do que eu (não que isso fosse difícil de acontecer). Você estava sentado na parada de ônibus do outro lado da rua, aquela que levava os passageiros para o sentido contrário. Eu deveria ter reparado, já de cara, que esse era o nosso destino: lados opostos, ruas contrárias, linhas diferentes. Mas eu estava muito ocupada tentando decifrar que banda a sua camiseta estampava. Será que era a mesma que saía pelos fones de ouvido que rodeavam o seu pescoço?
Você era a coisa mais linda daquela terça-feira feia, Gabriel.
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A partir daquele momento, colei os meus olhos pretos em você
e não te abandonei. Meu olhar perseguiu seu corpo, a começar pelas mãos que você escondia nos bolsos. Eu lembro ainda da barra da sua calça que, apesar de ligeiramente justa, balançava com o pouco de vento daquele fim de verão. Lembro da minha dificuldade de distinguir o seu sorriso dentre tantas coisas que aconteciam. Era a sua camiseta justa, era a novidade, era algo pulsando dentro de mim, era a rua, era o som das mastigadas da velha ao meu lado, era você.
Quem é você? – perguntei a mim mesma.
Sabe, aquilo era algo consideravelmente estranho. Em uma ci-
dade tão pequena e interiorana quanto Porto Tempestade, encontrar alguém que você nunca tinha encontrado era quase o mesmo que Harry Potter ter ficado uma semana em cartaz no Chatô: um milagre (pois lá só passam filmes desconhecidos – ou, para a maioria do pessoal, filmes cult). E eu realmente nunca havia te visto. Tudo bem que existia todo o lance do meu problema parcial de visão, porém, eu estava certa. Você era novo para mim – e eu amava aquilo.
Mas, então, resumindo e voltando para aquele anoitecer, você foi
atropelado.
Ok, não exatamente. Mas foi o que pareceu.
Enfim o meu ônibus tinha chegado, parando exatamente em mi-
nha frente, matando a visão privilegiada, quase de camarote, que eu tinha de você. Olhei desapontada para a lata velha parada ali, de portas abertas, e quase cogitei a ideia de ignorar e esperar para pegar o próximo. Mas, ao lembrar que o ônibus para o meu bairro passava por ali de década em década, engoli a certeza de que aquela seria a última vez que eu veria você e pulei para dentro dele. Tentei te encontrar assim que entrei, mas o motorista deu a partida e eu até me desequilibrei. Se Sam estivesse por ali, ele diria que eu tinha acabado de cair por amor – literalmente.
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Passei pela catraca e sentei próximo à janela, tentando rebobinar
o que tinha acabado de acontecer. Mal percebi que, ao meu lado, havia se sentado a senhora velha com os biscoitos. Naquele fim de tarde, fui para casa escutando ela mastigar.
De olhos fechados, vi você.
Impregnado em mim Parecia que eu tinha sido atingida por uma bola de canhão quando acordei no dia seguinte, e isso por dois motivos:
1. Eram 6h09. 2. Você não tinha me deixado dormir. Acho que aquela noite eu dormi uns 43 minutos e 7 segundos. Foi essa a minha conta. Eu virei para um lado na cama, e depois pro outro. Tentei pegar no sono olhando para a parede, mas aí lembrei que devia fechar os olhos. Certo, fechei. Aí eu virei para o outro lado e não adiantou. Deitei de barriga para cima, mas era impossível daquele jeito. De bruços, então, tudo piorou. Sentei na cama, respirei o mais fundo que pude, e então deitei outra vez. Contei carneirinhos, mas aí pensei em ovelhas, e depois em cordeiros. Lembrei da discussão que eu e Sam tínhamos travado algumas semanas antes sobre 17
a diferença entre cordeiros e borregos. Eu estava certa de que cordeiros eram os filhotes de ovelha com menos de um ano, mas o meu amigo dizia que era o contrário. E, como sempre, ele estava certo. Os carneirinhos que tentei contar pulavam uma cerca, como deveria ser. Porém, eu pouco me importava, pois no meu pensamento aparecia você, correndo de um lado para o outro, e os carneiros ficavam em segundo plano. Aquela camiseta de banda, os cabelos dourados. Sai daqui! Bati na minha cabeça e percebi que isso só dificultava as coisas. Pensei em levantar, preparar uns 10 litros de café para aguentar o dia e desistir de dormir de uma vez, mas continuei ali em minha cama, pensando em você. Quando me rendi, passaram-se os tais 43 minutos e o despertador tocou, dando início a um dia que já era cansativo logo nos primeiros segundos. Na faculdade, eu participava de uma aula de Política. Quer dizer, eu figurava, pois naquele momento eu estava dividida entre o sono exagerado e você. – Lola, você parece o trailer de Madrugada dos Mortos 2. Não olhei para Sam após a sua gentil colocação na carteira ao lado. Curiosa, só questionei: – 2? Por que não Madrugada dos Mortos 1? – eu olhava fixamente para o quadro negro como se fosse um ponto de fuga. – Porque continuações sempre são piores – explicou. Se não fosse o sono, ele estaria ferrado. – Quero dormir – reclamei. – Pre.ci.so. – Há boatos de que o horário entre as 23h e as 6h serve para isso. – Há boatos de que eu estou caindo fora. Espera. Boatos confirmados. Agarrei a bolsa e o notebook e saí da sala. Se eu amava a faculdade, o motivo era aquele: sair da sala sem explicar o porquê, sem
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pedir permissão. Até porque eu já tinha idade suficiente para... Ir para a biblioteca dormir. O corredor escolhido foi o dezessete, onde ficavam os exemplares de História. Certamente naquela hora da manhã ninguém se importava com o que tinha acontecido 500 anos antes, o que tornava aquele local perfeito para eu arrastar uma das poltronas e dormir por uma meia hora. Aquele lugar, na verdade, era quase como um dormitório da faculdade mesmo. Os corredores de História disputavam com os de Política Educacional para ver quais recebiam mais alunos sonolentos. Eu não era, com toda a certeza do mundo, a primeira a fazer aquilo.
Acontece que eu acabei dormindo por duas horas. E, quando
acordei, percebi o quanto aquele lugar funcionava, uma vez que ninguém tinha aparecido para me expulsar. Provavelmente a senhora velha da recepção tinha percebido a minha intenção ao entrar na biblioteca, mas ela não quis caminhar apenas para me tirar de lá. Era muito esforço para alguém tão velho (Sam e eu havíamos apelidado ela de Jurassic Park – sim, nós sabíamos ser malvados). Levantei da poltrona e soltei um gritinho, tampando a boca logo em seguida. Parecia que eu tinha sido atropelada por um caminhão gigante, daqueles que levam troncos de árvore de um lado para o outro. O meu pescoço estalou e eu pensei que ele estava quebrado. Minhas pernas eu nem sentia mais. Eu estava destruída. O meu sonho, como esperado, foi você. Gabriel, você estava impregnado em mim. Cheguei até a pensar que você fazia parte de uma daquelas seitas, e assim eu havia sido atraída até você de alguma forma. Mas, não. Besteira. Eu era apenas uma idiota-que-gostou-do-que-tinha-visto. Aliás, até demais. Porque não tirar alguém desconhecido da cabeça por horas estava se tornando patético. Não vou te contar como foi meu sonho, Gabriel. Não vou contar porque eu não lembro. Mas sei que você estava nele, e é só isso que me recordo. 19
Quando levantei, caminhei até o fim do corredor e trombei com Sam. – Sessão de História – apontou ele, com a sua mão cheia de anéis dourados de formatos esquisitos. – Clássico. – Já posso dizer que dormi entre Lady Di e John F. Kennedy. O meu amigo sorriu e depois me olhou por inteiro. Da cabeça aos pés com o pior dos olhares. – Ei, ei, que julgamento explícito é este? – quis saber. – Olha, eu até ia falar alguma coisa antes, mas percebi que você estava com sono e isso te deixa mais chata do que nunca. Mas, agora que você já dormiu... Que diabo de roupas são essas, Lola? Investiguei o meu jeans mais velho e o moletom com o logo da Pentagramas, mais conhecida como a MBTT (Melhor Banda de Todos os Tempos). – O que é que tem? – Ué, cadê aqueles cardigans de lã europeia com estampas de girafas e os sapatinhos e pulseiras e toda aquela coisa pseudocult? – Quem te disse que eu sou uma pseudocult? – Suas roupas...?! Inclinei o pescoço para a esquerda, na minha melhor indagação ao estilo “isso é sério?”. – Se eu sou uma pseudocult você é um hipsterzinho qualquer. – Hm, gostei. – Shhhh! – exclamou a senhora Jurassic Park que, antes tarde do que nunca, apareceu para nos pedir silêncio. Deixamos a biblioteca e fomos para o Granada, a melhor lanchonete do campus inteiro. Pedi 20
tudo o que tinha direito, porque eu não havia comido desde que tinha visto você. E quanto a isso eu não sei explicar o porquê. – O que está acontecendo com você, Lola Tavares? – perguntou Sam quando sentamos na mesa de sempre, no outro extremo da porta. Fiz cara de desentendida porque eu realmente não havia entendido. – Qual é – ele apontou para a minha bandeja. – Você pediu hambúrguer duplo com fritas e milkshake grande. E hoje é quarta-feira. Se tudo estivesse normal, a essa hora você estaria se culpando por ter escolhido salada lá no restaurante, enquanto apertaria as suas gorduras, obviamente. – Eu tenho gorduras? – me aproximei dele para descobrir. Sam revirou os olhos. – Quem é o cara? Comecei a rir. Joguei meu corpo de volta no encosto confortável do assento e olhei para os lados. Sem saber o que fazer, agarrei o porta canudos em minha frente e peguei dois deles. Fiz um nó. – Cara? – repeti. – Do que diabos você está falando, Samuel L. Jackson? Sam odiava ser chamado assim, e isso era outra coisa que eu não entendia, porque para mim o Samuel L. Jackson era um ator rico, musculoso e famoso. O que não era nada mal. – Você pediu comida demais. Provavelmente quer comer até ficar obesa e não ser notada pelo carinha que está te fazendo ficar assim. E aí, quando estiver bem gorda, você vai dormir o dia inteiro com o seu gato que também é gordo e nunca mais vai sair de casa. Pelo menos foi esse o seu plano no ano passado, quando o Ian S. era o homem da sua vida. “Evitar o amor para evitar problemas”. – Ei, pode parar! – interferi. – O que o meu gato tem a ver com isso? O Estopa não fez nada! – relutei. – Então me diz: quem fez? 21
– Ahn? – Quem é o cara? Cerrei os dentes e suspirei. Olhei para os lados novamente, procurando a comida que não chegava nunca. Fiz mais um nó com os dois canudos. – Olha só pra você... Lola Tavares está apaixonada – ele soltou uma risadinha malvada e irônica. – Eu o quê?! – quase gritei, batendo as palmas das mãos na mesa. – Os seus dedos... – Sam apontou para baixo. – Você acaba de fazer um nó com dois canudos. Sabe o que nós significam? Que existe alguém – ele mesmo respondeu. – Segue o meu pensamento: você é esse canudo – e os tirou de minha mão – e o fulano é esse. Você os juntou, o que significa que isso é um claro sinal de que você quer ficar junto com o fulano! O meu melhor amigo ficava animado com teorias. Do tipo, muito. – Agora só falta saber quem é o fulano – ele perdeu a motivação logo em seguida, fazendo um biquinho estranho. Repousei as duas mãos na mesa, debruçando-me para dormir de novo. – Qual é a droga do seu problema? – questionei desanimada. – Bem, eu tenho bronquite crônica e a minha infância foi traumatizada pelo fato de eu preferir o Brad Pitt à Angelina Jolie, o que foi uma droga. Mas pelo menos, no fim das contas, eu não estou apaixonado. Levantei-me em um pulo, olhando-o com fúria nos olhos. Joguei o pano, entreguei o jogo. Abri as portas da verdade e uma cascata de sentimentos saiu de dentro de mim: – Eu não sei o nome dele, mas ele é o cara mais perfeito que eu já vi na vida! – falei tão rápido que comi a metade de todas as palavras.
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Sam se aquietou, satisfeito com a resposta. Sorriu discreto, ajeitando a sua camisa branca com botões fechados até o pescoço, parecia que ia estrangulá-lo. Enquanto houve um pouco de silêncio, a garçonete colocou dois pratos em nossa frente. O meu amigo pegou uma batata e esticou para mim. – Engorde, Lola.
Gina gorda Eu comi tudo que estava no prato. Exatamente como uma criança obediente às ordens da mãe. Pronto, foi isso. Um prato vazio, um estômago cheio. Tudo estava dentro de mim. Incluindo a maldita lembrança de você, Gabriel, um estranho presente. – Já posso ser considerada oficialmente obesa mórbida. – E exagerada também. – Eu comi, tipo, meio quilo de batata, 2 hambúrgueres maiores que os meus peitos e um milkshake que já posso sentir indo direto para as minhas coxas. – Isso é bom – apontou Sam. – Homens gostam de mulheres com coxas grandes. – Sério? Sam assentiu. – Eu pensei que ser magra estivesse na moda. – Ter gordura localizada é ser gostosa agora – ele explicou. – Você não lê nenhuma revista feminina? Cosmopolitan? Elle? Marie Claire? – forçou o sotaque na última. – Er... Não?! Por que leria essas besteiras que você lê? Sam me encarou. Ele tem cabelos escuros e cacheadinhos muito bonitos, parecendo aquelas massas de restaurante chinês (acho que foi 23
uma metáfora meio ruim). Mas Sam é lindo, a meu ver. Não sei por que nenhum garoto ainda não se interessou por ele. Quer dizer, ele não é extravagante nem nada. É bem discreto, apesar de declaradamente gay. Às vezes ele se veste melhor do que eu, e esse “às vezes” é equivalente a um “quase sempre”. Qual é, porque diabos eu estou descrevendo Sam? Você se lembra dele. Aliás, você se lembra de alguma coisa, Gabriel? – Não, sua trouxa. Vou apenas te dizer que essas revistas, ou besteiras, como você diz, te contam o que você tem que saber. Se as lesse, você saberia e eu não precisaria desperdiçar minha saliva te repassando informações do mundo da moda. Olha só, você não soube da Gina Gorda? Ela emagreceu, mas não ficou seca. Sobraram alguns... Vestígios. E todos os caras passaram a olhar para ela. – Você está querendo me engordar. Ele deu de ombros. – Então você não sabe o nome do seu novo príncipe – Sam voltou ao assunto que, aparentemente, me deixava constrangida. – Ele não é um príncipe... – retruquei. – Ele é um... Cara. Só isso. – Eu sabia que tinha um cara! – comemorou. – Eu acabei de te contar! – Na verdade você contou para o Granada inteiro. O restaurante todo ouviu. Mas, enfim. Onde você viu esse cara? Arfei um pouco, mas dei o braço a torcer: – Na rua. Ontem, saindo daqui. Na parada de ônibus. – Você sabe que provavelmente nunca mais vai ver ele na vida, certo? – Eu... Baixei os olhos. Percebendo o erro, meu amigo emplacou uma ideia: – Acho que você precisa de um outro milkshake.
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Todo mundo gosta de festa Uma semana tinha se passado e admito que fiquei tentando repassar a cena de você em minha mente. Porém, com o tempo a gente se esquece de muita coisa, assim como você hoje em dia já esqueceu de mim. Mas, bem, eu ainda pensava em você, Gabriel. Exatamente como aquelas crianças-que-não-param-de-pensar-em-um-brinquedo-até-conseguir-ganhar. Era uma quinta-feira qualquer e os meus dedos estavam cheios de cola. Sam e eu estávamos acabando alguns preparativos para uma festa que o diretório de comunicação faria no fim de semana, e a minha tarefa era a de colar papel crepom em volta de alguns tubos de batata Pringles, os quais serviriam como decoração de alguma forma estranha. Eu queria mesmo era ter feito alguns painéis com aquarela e desenhado alguns arabescos para espalharmos pelo local da festa. Quanto a isso, Sam não gostou muito da ideia. “Em que ano você acha que nós estamos?” – foi o que ele me perguntou. – Então, o que faz exatamente um diretório acadêmico? – eu quis saber. – Er... Isso?! Sam apontou para tudo que estava em nossa volta, o que significava um porão no bloco mais antigo da faculdade, onde o diretório estava instalado. Era uma sala muito pequena, abafada e escura, mas que de algum jeito engraçado tinha ficado legal após as paredes terem sido pintadas e alguns objetos esquisitos terem sido pendurados por todos os cantos. – Qual é, não pode ser só isso. Quer dizer, vocês só têm que organizar festas? 25
– Não, Lola. Eu quis dizer que organizamos todas as coisas que o pessoal que trabalha mesmo na faculdade não teria saco para organizar. E nós buscamos melhorias para o curso também, mas isso é o que menos se consegue. Então a gente faz festas. Todo mundo gosta de festa. Olhei para os meus dedos, que estavam nojentos. – Eu não gosto de festa – falei séria. Senti aquele par de olhos me fitar. – Você não gosta de dançar. É diferente. – Eu não sei dançar. É diferente. – Peter Parker também não sabia que podia saltar de prédios e salvar a cidade de Nova Iorque quando foi picado por uma aranha, mas ele aprendeu a fazer tudo isso. Sam apontou para o espaço entre os meus dedos que parecia formar diversas teias. – Você está dizendo que eu devo aprender a dançar? – Estou dizendo que você deve ir à festa. Balancei a cabeça, em negação.
– Eu ir a festas é tão nada a ver quanto você fazer parte do dire-
tório acadêmico. Meio que não faz sentido.
– Ah, nem vem, Lola.
Levantei e caminhei pelo porão.
– Sabe, não sei se é uma boa ideia.
– E o que seria uma boa ideia? Ficar em casa assistindo Pretty
Little Liars?
Após fazer a pergunta, Sam a corrigiu:
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– Ok, isso também seria uma ótima ideia, mas você entendeu o
que estou querendo dizer. Não banque a velha chata.
– É só que... – comecei sem saber direito qual era o meu ponto.
– Bem, você já reparou que...
A palma da mão de meu melhor amigo apareceu do nada, tapando
a minha boca, me impedindo de continuar. Ele me olhava entusiasmado.
– Espera, é uma teoria?
Analisei o que eu estava pensando e o que eu pretendia falar.
– Bem, acho que é... – falei, com a voz abafada atrás de sua mão.
Samuel tirou a mão da minha boca e largou qualquer coisa que
estivesse fazendo. Ajeitou-se em sua cadeira e olhou para mim, curioso.
– Pronto, pode continuar.
Sam sempre fazia isso quando eu surgia com teorias, o que ele
amava. Era preciso que toda a sua concentração estivesse presente. Acho que você nunca nem reparou que o meu melhor amigo gostava de teorizar várias coisas, Gabriel.
– Você já se deu conta que em todos os filmes ou livros de ado-
lescentes idiotas alguma coisa acontece nessas festas? – incitei. – Quer dizer, em primeiro lugar, sempre tem uma festa. É clássico. Tipo em The O.C., que todo episódio tem uma festa. Ou em Gossip Girl. Não existe filme, série ou livro de adolescente idiota se não existir uma festa.
– Espera – pediu Sam. – Você está querendo dizer que os filmes,
séries e livros de adolescentes são idiotas ou que os adolescentes são idiotas?
– Os adolescentes. Porque existem vários filmes, séries e livros de
adolescentes que não são idiotas. Tipo Pretty Little Liars, né.
Sam inclinou a cabeça.
– Estou confuso, mas continue.
– Você não assistiu Sorte no Amor? É durante uma festa que a
Lindsay Lohan conhece o cara que vai fazer ela perder toda a sorte que ela tem e se ferrar dali em diante. 27
– Tá explicado porque ela foi presa mil vezes – Após a piadinha,
meu amigo riu. Fiquei séria.
– O que eu estou falando, enfim, é que não acho uma boa ideia.
Ajeitei atrás da orelha uma mecha de cabelo que havia escapado
do meu rabo de cavalo. Acabei sujando tudo com cola.
– Você está com um pressentimento, Lola? Sei lá, de que algo vai
acontecer?
Eu não tinha parado para pensar desse jeito.
– É, talvez seja isso.
– E se acontecer algo de bom?
E eu também não havia pensado nisso.
Mamãe
Acontece que eu acabei decidindo ir à festa.
Sam havia combinado de que passaria lá em casa para me pegar
às sete. Ainda faltavam duas horas, mas eu já estava começando a me arrumar. Mamãe estava sentada em minha cama, olhando para mim, e naquele tempo ela ainda não te conhecia, Gabriel. Então, a única coisa que ela fazia era me perguntar se eu estava de olho em algum garoto.
– Para, mãe.
– Lola, deixe de ser tão fechada. Abra-se para mim.
Eu estava feliz por ela ainda não chegar ao ponto de dizer que eu
deveria me abrir para algum garoto.
– Não existe nenhum garoto, pois são todos uns idiotas, mamãe.
A metade estuda demais e a outra metade só pensa em beber. E eu tenho dezoito anos, já passamos da fase em que você tenta descobrir sobre os meus namorados. Quando eles baterem na minha porta, você vai saber. Até porque vai ser você quem provavelmente vai correr para abrir. 28
Eu estava parada em frente ao guarda-roupa, ana-
lisando todos os vestidos que eu tinha acumulado e que eu raramente usava por faltarem ocasiões adequadas.
Mamãe sempre soube muito bem de minha
vida amorosa, se é que posso chamá-la assim. Se bem que, na verdade, ela nunca teve muito o que saber. A única coisa de realmente “espetacular” que havia acontecido envolvendo eu e o meu coração tinha sido o meu amor-enlouquecido-por-Ian-S., um dos calouros. Eu tinha ficado completamente apaixonada pelos piercings e tatuagens dele, e saímos algumas vezes. Quer dizer, a gente foi no cinema. Mas, no fim, pra variar nada deu certo. Ele gostava de Trisconauta e eu de Pentagramas. E você tem que saber que gostos musicais são um ótimo termômetro em qualquer relação. Estopa entrou tímido no quarto, indo até a cama e sentando com mamãe. Ele miou ao me encarar. Olhei para o espelho, segurando um vestido azul em frente ao meu corpo, mas eu não gostava nada do que via.
– É Sam, não é? Eu sei que ele é gay, mas você pode
estar gostando dele. Querida, é natural!
Virei para a minha mãe esboçando a minha melhor feição de ok
-eu-não-escutei-o-que-acabei-de-escutar.
A senhora Tavares é o meu oposto fisicamente: seios turbinados
e madeixas alisadas ao extremo (o meu cabelo é naturalmente ondulado), com luzes nas pontas. Estou descrevendo-a porque acaba de passar pela minha mente a ideia de que, talvez, você preferisse muito mais aquele tipo de mulher do que o meu tipo. Sabe, eu mal tenho seios. Eu sou uma tábua e homem simplesmente não gosta de passar roupa.
– Lola, vocês estão sempre juntos! – ela estava tão entusiasmada
quanto o meu amigo quando começa a teorizar. – E vocês são fofinhos! 29
– Mãe... – cheguei perto da beirada da cama. – Sam está namo-
rando – menti, aquela era a única sentença que faria ela ficar quieta e desistir da ideia.
– Ah – ela ficou sem reação naquele primeiro momento. – E não
é você?
Revirei os olhos. – Não, mãe, não sou eu. E gostaria de deixar claro duas coisas,
pode ser? Sentei na cama. – Primeiro... Eu não estou querendo encontrar ninguém neste momento. E, segundo, quando encontrar, você será a primeira a ficar sabendo. Ela balançou a cabeça para ambos os lados.
– Não minta para a sua mãe, Lola Tavares. É óbvio que você vai
contar para o Sam primeiro.
Momento realidade: os nossos pais sempre tem razão de tudo,
né?
– Então você será a segunda a ficar sabendo – sorri. Quando mamãe sorriu de volta, perguntei: – O que você acha desse? – apontei para o vestido azul. Após um breve período de pensamentos e inclinações de cabeça,
ela opinou: – Você parece uma caloura com ele. Sabe, daquelas que querem engravidar. Quando foi que eu deixei você comprar um vestido tão curto? Fui até o guarda-roupas outra vez e escolhi um novo vestido. Dessa vez, vermelho. – Quando você me liberou o cartão de crédito depois que eu fiz dezoito – brinquei.
32
Papai noel No fim das contas, apareci na festa de vermelho. – Ótimo. As probabilidades de eu ser confundida com os extintores de incêndio são inúmeras – reclamei ao chegarmos no Karavana para a festa. – Cale a boca, você está ótima. Olhei para Sam na tentativa de descobrir se ele estava brincando comigo. Meu amigo ainda vestia as tradicionais camisas-de-gola-abotoada-que-pareciam-sufocar. – É sério, Lola. Você fica bem de vermelho. – “Bem” no sentido “bonitinha” ou “bem” no sentido “gostosa”? – Os dois. Abracei-o e ele me deu dois tapinhas nas costas. – O que estamos esperando para entrar? – eu quis saber. – O certo seria quem – ele corrigiu. – Estamos esperando Noel. – Quem? – É. Quem e não o quê. – Não. Eu perguntei quem porque não faço ideia de quem seja Noel. A não ser que... É meio cedo para o Natal, você sabe. – Ah. Sam olhou para mim. Ele estava escondendo alguma coisa. – O Noel. O meu... Parceiro de diretório. – Parceiro? – questionei. – Essa é a pior palavra que você poderia ter escolhido para usar. Vamos, me diz quem é ele de verdade. Presidente desse clubinho? Tesoureiro? – Clubinho? – fez cara feia. – Ele é do diretório, Lola. – E...? 33
– E o quê? – Vocês estão ficando? – perguntei, pois eu tinha intimidade suficiente para aquilo. Não era como se minha mãe perguntasse. Meio envergonhado, ele respondeu: – Nós estamos namorando. OK. CALMA. – O quê??!!!! – eu gritei muito alto. Como sempre. Naquele momento, um carro parou ali perto. Dele, duas garotas exageradas saíram. Elas usavam vestidos que eu e Sam costumávamos chamar de CC (Cinquenta Centímetros), daqueles que tapavam o necessário (ou quase). E agora eu não paro de pensar que o tipo de garota que você sempre gostou era aquele mesmo, Gabriel. As oferecidas. – Não é hora de surtar. Não te contei antes porque... Bom, porque não havia antes. Ele me pediu em namoro hoje à tarde. Eu estava incrédula. – Samuel Hernández, qual é a droga do seu problema? – Você já me fez essa pergunta essa semana, escolhe outra. – Quer dizer, alguns dias atrás você me diz na mesa do Granada que não está apaixonado e hoje você me diz que está namorando. É quase o mesmo que a Beyoncé anunciar que está pobre de uma hora pra outra. Não dá, não existe! – gritei de novo. – Por que você não me contou que estava ficando com o tal do Papai Noel, pra início de conversa? Ele revirou os olhos. – É Noel, não se faz. E se diz Nôel, com ô fechado. Cruzei os braços. Quanta frescura. – Lola, não me odeie. Você não tem esse direito. Talvez um pouco mais que a minha madrasta e um pouco menos que o meu pai, mas enfim. Eu ia te contar que estávamos ficando, mas isso não pareceu nada muito, sei lá, contável. Eu fiquei com ele no cinema, quando fomos assistir aquele filme de demônios. Mas você estava ocupada demais fingindo que o filme era bom só porque o Ian S. estava adorando, sendo que você 34
sempre detestou essas produções apelativas. E nós também ficamos todas as noites depois da nossa aula de TV... – Aquela que você não faz comigo – fiz questão de relembrar. – Sim, aquela disciplina que eu não faço com você. Mas Noel faz. E, bem, sei lá, foi só algo que aconteceu. Era só um lance. – Era só um lance? – devolvi a pergunta. – Ai, meu Deus, você está se transformando em um daqueles babacas do final do curso. Era só um lance... Que agora virou namoro. – Sim, ele pediu... Todo tímido e receoso, a coisa mais linda. E eu quis... Tentar, eu acho. – E eu obviamente não tinha o direito de saber nada disso. Quer dizer, espera um segundo, o que está acontecendo com a droga do mundo?! – Eu ia te contar. Estou contando. Coloquei a mão em minha barriga, fechei os olhos e respirei duas vezes, tão fundo que quase encontrei o Titanic. Podia ser exagero, mas, sei lá. O MMA (Manual dos Melhores Amigos) deixa claro que melhores amigos vêm antes de: pizza, boybands e caras. – Está. Tudo. Bem – falei pausadamente. (Abrir mão do meu orgulho e do meu drama sempre foi um problema muito particular para mim). Sam colocou a mão direita em meu ombro. – Isso foi um ótimo progresso. Controle-se, Lola, e tudo dará certo. Desculpa por não contar nada antes e obrigado por dizer que está tudo bem. – Blergh. Na verdade eu até que estou feliz por você, mas ao mesmo tempo estou preocupada. Você sabe o que acontece se me trocar pelo Papai Noel, seu desgraçado. – É Noel – ele corrigiu outra vez. – Tá bom, Coelhinho da Páscoa.
35
Catapulta
A música do lado de dentro era uma droga.
Depois de alguns minutos que ficamos esperando, Noel mandou
uma mensagem para Sam dizendo que ia se atrasar porque o cachorro dele tinha engolido a chave de casa, o que nos fez entrar de uma vez no gigantesco salão do Karavana. Assim que entramos, olhei logo para o alto.
– Nossa, quem foi que fez esse lindo trabalho com papel crepom
nestas maravilhosas luminárias suspensas?
Sam riu. – Uma garota aí. – Ela deve ser o máximo – falei, sentindo orgulho de mim mesma.
No fundo da casa noturna mais frequentada de Porto Tempestade (e provavelmente a
única), uma gigantesca mesa havia sido colocada, e em cima dela estavam diversos copinhos de gelatina batizada com vodka.
– Me lembra de ficar longe da bebida – pedi.
– E da pista de dança – completou Sam.
Pela porta, alguns garotos apressados também já apareciam e
obviamente era pelo fato de ter bebida em exagero e pelas garotas nos tais vestidos curtos. Quem cuidava da entrada era a Gina Gorda, que não fazia parte do diretório acadêmico, mas que pediu para exercer tal função porque queria ajudar. Na verdade, ao meu humilde ver (longe de mim julgar), ela queria ser a primeira garota a ser vista por qualquer garoto que chegasse à festa. Depois que ela perdeu os vinte e quatro quilos e meio, Gina (que agora tentava emplacar um ”ex” antes da palavra Gorda) 36
havia desenvolvido uma espécie de Síndrome dos Fogos de Artifício – eu e Sam criamos esse termo para qualquer pessoa que goste de aparecer/ chamar a atenção.
– Preciso ir conversar com o DJ para que ele mude essa música
antes que as pessoas lá fora desistam de entrar. Quer vir junto?
– Pode ir, Sam. Vou tentar encontrar um canto pra sentar, uma
faca afiada pra cortar os pulsos e uma máquina do tempo para mudar de ideia e decidir não vir parar aqui.
– Calma, a festa recém começou. Vai ficar muito boa. Eu vou pe-
dir para tocar One Direction! – animou-se.
FEPC (Fato Estranho Porém Compreensível): eu e Sam amamos
One Direction. Convenhamos que cinco garotos lindos (agora quatro) que saibam cantar e malhar e andar por aí sem camisa não é pra qualquer um. Tipo... Cara!!!
Dei de ombros e o meu amigo se afastou. Encontrei uma caixa
de som gigantesca em um dos cantos do Karavana e fui até lá para me sentar. Larguei a minha pequena bolsa de lado e fiquei olhando para a parede.
Droga.
Naquele momento, eu não sei explicar porque, mas você apare-
ceu em minha mente, Gabriel, piscando uma única vez como se fosse uma daquelas luzes de Natal antes de queimar. O fato foi tão engraçado que ajeitei a minha postura, ainda olhando para o nada, como se você estivesse ali e eu precisasse parecer bonita – ou, pelo menos, que eu não parecesse o Corcunda de Notre Dame.
Imediatamente tentei afastar você e, ao mesmo tempo, entender
o porquê de você ter surgido de repente. Foi um instinto idiota, eu sei, mas olhei para trás, e depois para todos os lados, tentando te encontrar. Foi estupidez minha pensar que você estava ali, pois isso não fazia sentido algum. Pensando agora, você nunca esteve presente quando eu quis mesmo. 37
EM. NENHUM. LUGAR.
Fiquei ali sentada por mais algum tempo, pensando em qual dos
episódios de Friends eu estaria assistindo caso tivesse ficado em casa. Foi então que Sam chegou e, dessa vez, ele estava acompanhado.
– Lola, você se lembra do Noel?
Olhei para o garoto ao lado do meu melhor amigo. Noel era um
pouco mais alto que Sam (isso quer dizer que, pra mim, ele era gigante), tinha cabelos castanhos que nem os meus e uma franja que escondia grande parte de sua beleza natural. Ele era aquele tipo de garoto que mesmo desarrumado pareceria bonito e que com qualquer roupa pareceria arrumado. De longe, nunca diria que Noel era gay.
E, sim, é claro que eu me lembrava dele.
– Nós fomos ao cinema juntos. É claro que ela lembra, Sam – dis-
se o garoto.
Eu ri.
– Parece que agora você tem um aliado, Lola.
Estiquei-me para dar um beijo em Noel, feliz por ele ter aparecido
na vida do meu amigo. E, óbvio, eu estava feliz de verdade. Alguém precisava estar feliz com o amor no fim das contas.
– Isso está ficando cheio – reclamei.
Sam, ao contrário de mim, estava agitado:
– Você ainda não viu nada! – ele bateu palminhas.
– É impressão minha ou você está muito animado com essa fes-
ta? – foi o namorado dele quem perguntou.
Sam deu de ombros. – Talvez. É a nossa primeira festa juntos, tenho que estar animado. Eis que os apaixonados trocaram um selinho.
– Ah, qual é – murmurei. – Cola-
borem comigo! 38
Os dois patetas caídos de amor que formavam o meu novo casal
favorito sorriram, constrangidos por terem me constrangido.
– Está nos seus planos encontrar alguém esta noite, Lola?
A pergunta de Noel funcionou como uma catapulta que me levou
de volta para você. Outra vez. Eu não queria encontrar ninguém para mim porque eu queria encontrar você.
– Ah... Para mim? – eu sempre parecia uma retardada repetindo
as perguntas. – Não...
– Ela já tem alguém – Sam fez questão de deixar claro.
– Ah, é? Quem?
VOCÊ. VOCÊ. VOCÊ.
Eu quis dizer que era você que rondava meus pensamentos em
uma repetição que só um carrossel havia visto antes. Gabriel, qual era a droga do seu problema? O que você tinha feito comigo? Eu tinha te visto uma única vez na minha vida e já tinha sido o suficiente para você não sair mais dela. Eu parecia uma garota-de-11-anos que viu um menino bonito na escola e escrevia sobre ele todos os dias no seu diário. Era isso que eu estava fazendo. É isso que eu estou fazendo! Eu odiava você!
– Ninguém – respondi. – Eu não tenho ninguém.
Evaporando
Eu queria ir embora.
Por volta da meia noite, já não era mais possível encontrar um
espaço vazio dentro do Karavana. A multidão era homogênea, estando todas as garotas com o mesmo tipo de vestido – e eu, por sorte, só não era a única diferente porque algumas outras garotas ainda protegiam a humanidade de uma tragédia mundial. 39
Olhando pela danceteria, o que eu via era um emaranhado de cor-
pos que se mexiam de acordo com a nova música gosmenta da Rihanna. Enquanto as garotas sabiam a letra de cor, os caras levavam as garrafas de cerveja até a boca e tentavam mexer o corpo de algum jeito idiota na tentativa de atraí-las. Era quase como uma dança do acasalamento.
– Quero ir embora.
Noel olhou para mim.
– Eu não. Estou achando tudo isso muito patético.
Foi a minha vez de devolver o olhar.
– É justamente por isso que eu quero ir embora.
– Lola, tente ver o outro lado.
– Não dá, tá cheio de babacas na minha frente.
– Estou falando do outro lado da situação – ele explicou com a
sua voz mansa. – Tem um monte de babacas e meninas querendo engravidar e é por isso que está tão divertido. Você gosta de Friends, né? Sam me contou. Então, isso é quase tão engraçado quanto. Olha para a garota ali no meio, dançando como se estivesse em um palco. Ninguém está olhando para ela.
Varri a pista de dança e encontrei uma garota frustrada. Sorri.
– Até mesmo o Tomas Rey está me divertindo hoje. Ele não sabe
se olha para a namorada ou para a loira de peitos grandes ali perto – ele apontou.
Então nós dois rimos. Nessa hora, Sam se aproximou com uma
bandeja cheia de copinhos de gelatina batizada que ele tinha ido buscar. Eles estavam sendo muito legais comigo. Quer dizer, não os copinhos, mas Noel e Sam. Era a primeira festa deles juntos e por nenhum momento fui deixada sozinha, por mais que eu insistisse para eles irem dançar e se divertir enquanto a velha mal humorada ficava desejando que o teto caísse (no caso, eu).
– Parece até que vocês estão se divertindo – ele nos entregou os
copinhos. 40
– E estamos! – respondeu Noel.
Eles se beijaram outra vez e eu utilizei o tempo para avaliar a gela-
tina. Era vermelha, assim como o meu vestido. Engoli uns cinco copinhos (no mínimo) de uma só vez.
– Ei, vai com calma – foi um cara nojento que disse ao passar por
nós.
– Ótimo, agora eu serei considerada a alcoólatra da festa. Quais
as chances de eu não vomitar com isso?
– Se você passar mal eu juro que vou rir da sua cara. – Como você é gentil, Sam – agradeci. Levantei da caixa de som e deixei que ele se sentasse para ficar
ao lado de Noel.
– Onde você vai, Lol?
– Ao banheiro.
– Volte para nos contar qual era o assunto das veteranas em fren-
te ao espelho. Eu te pago dez pratas – ofertou Noel.
Cara, eu realmente gostava do novo namorado de Sam. Principal-
mente do seu lado sarcástico.
– Você não quer vir junto? – perguntei.
– Acho que eu não entraria. E, além do mais, Sam está me pren-
dendo nessa caixa de som.
Meu melhor amigo não soube onde enfiar a cara. Jurei que, por
um ou dois segundos, ele nem respirou dentro daquela camisa azul bem abotoada. Porém, Sam logo passou de envergonhado para extasiado ao ver algo que chamara a atenção.
– Ok Lola, não se vire agora. Adivinha quem acabou de entrar na
festa.
– Madonna? – chutei.
Noel riu.
– Sim. Ela está em Porto Tempestade fazendo turnê – o meu ami-
go ironizou. 41
– Turnês mundiais envolvem o mundo todo, não? Isso inclui Por-
to Tempestade. Mas, sei lá então. Quem é?
– Você se lembra da Cassy Spears?
– Aquela que parece com a Britney?
– Sim!
– Viu, eu não estava tão errada. O que tem ela?
Os olhos de Sam não se mexiam. Ele encarava algo por cima do
meu ombro.
– Bem, foi ela quem acabou de entrar. E está acompanhada.
– Impossível. Cassy Spears desapareceu da vida social há uns
três meses, ninguém nunca mais escutou falar dela.
– Não foi essa garota que chegaram a dizer que tinha morrido? –
perguntou Noel.
– Sim, é ela. Mas aparentemente ela está bem... Viva.
A minha curiosidade gritou para virar e ver como ela estava.
Quem sabe estivesse feia, acabada.
– Posso virar?
– Não. Ela está olhan... – Sam parou de falar e levantou a mão,
acenando como aquelas misses dos concursos de TV, junto de um sorrisinho.
– Meu Deus, o que está acontecendo? – eu quis saber.
Noel explicou:
– Não é ótimo quando você acena e a pessoa vem falar com
você? Porque é o que está acontecendo.
– Ela está vindo pra cá?
– Cassy! – gritou Sam, cortando o nosso papo sobre ela.
– Sam, Noel! – a sua voz era um pouco mais irritante do que a da
Britney Spears.
Neste momento, eu me virei para vê-la, mas não a vi. Mentira, vi
sim. Mas pouco me importei.
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– Oh meu Deus, Lola! – ela gritava mais alto que a música. –
Quanto tempo! – e então eu recebi um abraço.
Mas os meus sentidos todos haviam se perdido pelo ar, evapo-
rando em um redemoinho que provavelmente seria capaz de balançar todas aquelas luminárias estúpidas de papel crepom que eu havia feito. Eu não podia abraçá-la porque eu havia petrificado no lugar, estarrecida feito uma idiota. O meu único sentido presente, no entanto, era a visão. Ah, sim, ela estava funcionando muito bem, apesar da pseudomiopia.
Logo em frente a mim, exatamente ao lado de Cassy Spears, a
única coisa que eu podia ver era você.
Você, Gabriel.
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