KURT COBAIN: ABOUT A BOY

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FAMÍLIA

VIAGEM

GASTRONOMIA

MÚSICA

& OUTRAS LOUCURAS

CRIATIVIDADE


© Textos: Carlos García Miranda, 2019 © Ilustrações: Alex de Marcos, 2019 Todos os direitos reservados Publicado mediante acordo com a Lunwerg, uma divisão da Editorial Planeta, S. A. Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida, armazenada ou transmitida para fins comerciais sem a permissão do editor. Você não precisa pedir nenhuma autorização, no entanto, para compartilhar pequenos trechos ou reproduções das páginas nas suas redes sociais, para divulgar a capa, nem para contar para seus amigos como este livro é incrível (e como somos modestos). Este livro é o resultado de um trabalho feito com muito amor, diversão e gente finice pelas seguintes pessoas: Gustavo Guertler (edição), Fernanda Fedrizzi (coordenação editorial), Germano Weirich (revisão), Celso Orlandin Jr. (adaptação da capa, projeto gráfico e ilustrações) e Lucas Reis Gonçalves (tradução) Obrigado, amigos. 2020 Todos os direitos desta edição reservados à Editora Belas Letras Ltda. Rua Coronel Camisão, 167 CEP 95020-420 – Caxias do Sul – RS www.belasletras.com.br

Dados Internacionais de Catalogação na Fonte (CIP) Biblioteca Pública Municipal Dr. Demetrio Niederauer Caxias do Sul, RS

G216k García Miranda, Carlos Kurt Cobain: about a boy / Carlos García Miranda; ilustrador: Alex de Marcos Mundopiruuu; tradutor: Lucas Reis Gonçalves. - Caxias do Sul: Belas Letras, 2020. 160 p.: il. - (Coleção vidas ilustradas)

ISBN: 978-65-5537-016-4 Obra original em espanhol.

1. Cobain, Kurt, 1967-1994 - Biografia. 2. Músicos de rock - Estados Unidos. I. Mundopiruuu, Alex de Marcos. II. Gonçalves, Lucas Reis. III. Título.

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CDU 929Cobain

Catalogação elaborada por Vanessa Pinent, CRB-10/1297


ABOUT A BOY Tradução: Lucas Reis Gonçalves

1ª reimpressão/2020



LAST DAYS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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ABOUT A BOY . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12 A PLAYLIST DE KURT . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25

BLEACH . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 38 GRUNGE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51

NEVERMIND . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60 COURTNEY LOVE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79

INCESTICIDE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91 GUITARRAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101

IN UTERO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109 FRANCES BEAN COBAIN . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123

MTV UNPLUGGED IN NEW YORK . . . . . . . . . . . . 134 O ÚLTIMO SHOW . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 149 BIBLIOGRAFIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 156



Kurt Cobain cancelou a turnê de In Utero vinte e sete dias antes de sua morte. Seus companheiros de banda não se surpreenderam. Na verdade, essa era apenas a confirmação de um final que já estavam esperando havia algum tempo. Nunca aconteceu um final oficial, mas o grupo que havia levado o grunge da Geração X a todos os cantos do planeta já estava praticamente dissolvido a essa altura. O Nirvana começou como uma daquelas bandas que tocavam nas pequenas cidades escondidas nas profundezas da América do Norte. Apesar disso, Kurt sabia que sua música era diferente. Antes de detestar a fama, lutou até conseguir que suas letras, melodias e riffs virassem discos de sucesso milionário. Fez com que todos provassem o aroma do espírito adolescente, mas para Cobain isso não foi suficiente. Ou talvez o problema tenha sido justamente ter conseguido tudo isso... Nos seus últimos dias de vida, Kurt fazia questão de mostrar que estava cansado do Nirvana e que tinha um novo projeto com Michael Stipe, o vocalista do R.E.M. No prato do toca-discos que havia na estufa onde Cobain se suicidou, estava o LP Automatic for the People. Essa não foi a primeira vez que Kurt Cobain quis dar fim à sua vida. Algumas semanas antes, em um hotel em Roma, Courtney Love tinha encontrado o marido com sessenta comprimidos no estômago. O casal, que se apresentava ao mundo como um coquetel glamoroso de amor, punk e drogas, acabou tendo uma discussão bastante tensa. Kurt teria se convencido de que a mãe de sua filha, Frances Bean Cobain, estava traindo-o com Billy Corgan, o vocalista da banda The Smashing Pumpkins. O ciúme levou-o à tentativa de suicídio, que acabou resultando em vinte horas de coma. Quem o conheceu diz que ele nunca chegou a acordar. Seu amor por Courtney também parecia já não poder despertar. 7


Mesmo tendo escrito em sua carta de despedida que amava sua esposa e queria que ela seguisse em frente pela filha, nos seus últimos dias de vida, a ideia do divórcio esteve presente o tempo todo. Tinha medo de que Frances se tornasse uma roqueira mórbida, infeliz e autodestrutiva. Exatamente como havia acontecido com ele. Todos que conheciam Kurt desde pequeno afirmaram que ele já era assim muito tempo antes de carregar nos ombros o fardo de ser o símbolo da geração desiludida dos anos 90. Sua família gostava de lembrar daquele menino de cabelo tigelinha e sorriso largo que cantava The Monkees. Mas esse Kurt desapareceu quando seus pais se divorciaram e chegaram novos membros à família e também o álcool, as brigas e as noites dormindo em colchões improvisados. No entanto, houve algo na sua infância que o acompanhou até o final: Boddah. Esse era o nome do seu amigo imaginário, a quem o músico escreveu sua carta de suicídio. Talvez fosse apenas o produto de uma ilusão causada pelas drogas, cujo consumo havia muito tempo já tinha deixado de controlar. Na adolescência, ele as transformou em um refúgio para se proteger dos problemas. Aos 27 anos, a droga corria em suas veias como se precisasse disso para fazer seu coração bater. Estava convencido de que a heroína era o único remédio para combater as terríveis dores de estômago que sofria e para as quais nenhum médico era capaz de dar uma explicação – pelo menos, uma que fosse convincente. As drogas eram as únicas companheiras de Kurt Cobain enquanto ele se afundava em uma piscina como aquela da capa de Nevermind. Uma semana antes de morrer, tentou subir à superfície ao internar-se em uma clínica de reabilitação de Los Angeles. Não conseguiu. Acabou pulando o muro do centro de recuperação e fugiu. Pegou um voo até Seattle e ali encontrou Duff McKagan, baixista do Guns N’ Roses. Kurt disse a ele que estava “voltando para casa”, embora ninguém saiba ao certo para onde foi. Os últimos dias de Kurt Cobain, aqueles que inspiraram o filme Last Days, do cineasta Gus Van Sant, estão recheados de incógnitas.

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No dia 1º de abril, o músico ligou para Courtney, parabenizou-a por ter composto um grande álbum (o Hole lançou, apenas uma semana após a morte de Cobain, seu segundo álbum, Live Through This) e disse a ela que lembrasse que ele a amava. Essa foi a última conversa entre eles. Courtney ainda tentou encontrá-lo, mas teve uma overdose antes disso. Entre os dias 2 e 4 de abril, ele foi visto vagando pelas ruas de Seattle usando um boné de caçador. Testemunhas dizem ter visto Kurt comprando munição. No dia 5 de abril de 1994, Kurt Cobain se trancou na estufa de sua casa. Colocou a MTV na televisão, no mudo. Deixou no chão sua carteira e uma caixa com o material que usava para se drogar. Escreveu uma carta em uma folha de papel com uma caneta vermelha e a pregou, atravessando-a pelo centro, em um vaso de flores. Mirou no queixo, apertou o gatilho e entrou no nefasto clube dos 27. A estrela que chamava a atenção de todos só foi encontrada morta no dia 8 de abril. Os fãs lamentaram sua morte por toda a cidade de Seattle em vigílias com centenas de velas. Depois de participar de uma delas, um jovem cometeu suicídio. Uma adolescente da Turquia se trancou no quarto, colocou Nirvana no volume máximo e disparou contra a própria cabeça. Duas meninas francesas se mataram após declararem em uma carta seu amor por Kurt Cobain. A morte de Cobain acabou sendo tão dolorosa e contagiosa quanto a letra de qualquer uma de suas músicas, mas o legado do Nirvana parece estar ainda mais vivo hoje do que nunca. As camisetas da banda e os pulos e empurrões nos bares no ritmo do refrão de “Lithium” unem gerações. Seria assim se Kurt Cobain não tivesse vivido aqueles últimos dias? Nas entrelinhas de seus diários, é possível ler que ele sempre acreditou que sua morte era necessária para o mito nascer. A verdade é que a única coisa realmente necessária foi tudo o que aconteceu antes: a vida de Kurt Cobain.

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Isso foi o que Kurt Cobain escreveu na parede do seu quarto quando seus pais se divorciaram. Antes de seu pequeno mundo desmoronar, sua infância teve momentos tão divertidos quanto o refrão de “I’m a Believer”, a música do The Monkees, e tão doces como as notas de “Hey Jude”, dos Beatles. Essas eram suas músicas favoritas, as que cantava enquanto crescia em Aberdeen, uma pequena cidade de Washington em que havia mais igrejas do que bares. Ali todos os vizinhos tinham o costume de se cumprimentar na rua, unidos por um sentimento de comunidade desses que só existem em lugares pequenos. Outra coisa que também os unia era o forte repúdio a imigrantes. As páginas do calendário marcavam o ano de 1967, mas, em Aberdeen, o tempo parecia ter parado muito antes. Quando tinha idade suficiente para dizer mais do que apenas mamãe, papai, bola, coco, torrada, amor, gatinho e hot dog (suas primeiras palavras), Kurt definiu a cidade que ficava a mais de cem quilômetros de Seattle como “um lugar de perdedores e um viveiro de caipiras”. Passou toda a adolescência tentando fugir dali (não apenas fisicamente), mas não conseguiu até vender muitos milhões de discos mais tarde. No entanto, o que se pode dizer é que ele nunca conseguiu cortar suas raízes completamente. Era impossível esquecer tudo o que viveu naquela cidadezinha, onde agora existe uma placa na entrada que diz: “Welcome to Aberdeen. Come as you are”, mas um lugar que não soube cuidar de sua única estrela quando ela mais precisou.

Donald Leland Cobain, assim se chamava seu pai. Tinha 21 anos quando Kurt nasceu e era mecânico em um posto de gasolina local. Kurt herdou de seu pai aquelas costas sempre curvadas, como se o peso do mundo estivesse prestes a derrubá-lo, e que, em Don, além disso, seria um re-

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flexo de seu caráter, pois vivia com uma eterna sensação de vergonha por não ser um homem importante. Wendy Elizabeth Fradenburg, a mãe de Kurt, tinha dezenove anos quando seu primeiro filho nasceu. Apesar de ser uma dona de casa com poucas chances de transcender esse papel, ostentava roupas elegantes que a colocavam em uma posição que considerava muito mais adequada à sua beleza. Como seu marido, Wendy também sonhava em se tornar alguém que correspondesse às suas expectativas. Don e Wendy se tornaram pais sem que ninguém esperasse. Mas esse filho indesejado acabou se tornando, mais tarde, o centro do universo de uma grande família. Kurt tinha dois tios por parte de pai e seis tios e tias por parte de mãe. Alguns deles contribuiriam para forjar o gênio que acabou se tornando. Seu avô, Leland Cobain, ensinou-lhe carpintaria e o trabalho em madeira. Graças a ele, Kurt sempre conseguiu consertar suas próprias guitarras. Iris Cobain, sua avó paterna, era artista e transmitiu a ele sua paixão pelo desenho. Desde pequeno, Kurt enchia cadernos com desenhos que, ao longo do tempo, foram tornando-se obras de arte. O tio Chuck tocava em uma banda, The Beachcombers. Kurt adorava acompanhar a música do tio tocando o tambor de lata que seus pais haviam lhe dado. Entre todos os membros da família com quem ele cresceu, havia alguém que o influenciou mais do que os outros: sua tia Mari. Sem ela, Kurt Cobain nunca teria chegado a ser o músico mais importante do grunge. Eles se sentavam juntos ao piano e cantavam músicas de Arlo Guthrie, do seu tão adorado The Monkees e outras cujas letras Kurt inventava. Tia Mari foi quem deu a ele seus primeiros discos dos Beatles, fazendo a cultura musical do pequeno Kurt ir além das músicas de Olivia Newton John que seus pais escutavam. Kurt adorava pendurar o violão de sua tia nos ombros e dedilhá-lo como um músico de verdade. Pesava tanto que seus joelhos chegavam a se dobrar.

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Por isso, Mari lhe deu um violão. Escolheu um do tipo slide havaiano de cor azul, o primeiro violão de Kurt Cobain. Se não fosse pela tia Mari, Kurt nunca teria amado tanto a música. Foi ela quem o ensinou a vê-la como um refúgio e também quem, anos depois, emprestou sua casa para ele usar um gravador de quatro canais com uma de suas primeiras bandas, a Fecal Matter. A relação entre eles era realmente especial. Kurt sempre dizia que tia Mari podia ver nele coisas que seus pais nem imaginavam que guardava com ele.

Don, o pai de Kurt, também tentou transmitir a ele o que mais amava: esportes. Queria que seu filho jogasse beisebol praticamente desde que começou a andar. Deu a Kurt bolas e tacos, mas a criança preferiu usá-los para tocar bateria. Kurt não era nada daquilo que Don esperava que fosse e, além disso, era muito difícil controlá-lo. Acreditava que o garoto era muito agitado e não suportava escutar os excessos do filho. Também o irritava o fato de Kurt incomodar sua irmã mais nova, Kim, e pintar as paredes de casa. Para domá-lo, Don lhe dava petelecos na cabeça e no peito. Nos piores momentos, apelava para a surra. A família de Kurt se sentiu aliviada quando o menino foi diagnosticado com o transtorno do déficit de atenção com hiperatividade e começaram a medicá-lo. Administraram, então, o uso de Ritalina, apesar de alguns estudos enfatizarem que seu consumo poderia acabar promovendo comportamentos aditivos (Courtney Love também havia tomado o mesmo medicamento quando criança, uma coincidência que os fez acreditar que estavam unidos por esse destino). É possível que toda essa situação tenha despertado nele o sentimento de rejeição e de falta de pertencimento, o que o levou a acreditar que era um extraterrestre. Dizia que tinha sido adotado por sua mãe depois do desaparecimento de sua nave espacial. E talvez tenha sido essa mesma sensação que o induziu a criar um amigo imaginário chamado Boddah. O garoto falava tanto com ele que seus pais chegaram a se preocupar e, na intenção de enganar a fantasia, disseram ao filho que seu amigo invisível havia sido recrutado para 16



a Guerra do Vietnã. Ainda assim, Kurt nunca acreditou totalmente em seu desaparecimento. Mais tarde, tia Mari o descobriu conversando com Boddah novamente. Naqueles primeiros anos, Kurt era, apesar de tudo, um menino com um sorriso eterno no rosto, que parecia traduzir toda a felicidade que sentia. Até o divórcio de seus pais virar tudo de cabeça para baixo.

É provável que os pais de Kurt tenham se casado muito cedo e não estivessem conscientes, na época, do que isso significava. Também é possível que eles na verdade nunca tenham se apaixonado. Se um sentimento como esse existiu entre eles, desapareceu quando seus dois filhos pequenos foram forçados a ocupar o centro de suas vidas. As faturas começaram a se acumular sem que tivessem tempo de recuperar o fôlego. Por fim, Wendy decidiu que não queria mais acordar ao lado de Donald todas as manhãs. Kurt tinha nove anos quando seus pais se separaram, mas levou muito mais tempo para deixar de sentir vergonha por não viver em uma família como as das outras crianças da escola. Ele mudou de personalidade: tornou-se solitário e introvertido. Na verdade, estava apenas tentando esconder a parcela de culpa que sentia. Com seus olhos de menino, via como tudo aquilo em que havia confiado, tudo o que lhe dava segurança, estava desmoronando sem que pudesse fazer nada. Kurt carregava esse mal-estar no corpo. Com dez anos, tiveram que interná-lo porque não comia o suficiente. Talvez essa tenha sido a primeira manifestação daquela dor de estômago que o acompanhou durante toda a vida. Além disso, também surgiu em seus olhos um tique nervoso que o fazia piscar incessantemente. Real ou não, essa dor física era uma maneira de dizer que seus pais, que haviam sido seus deuses durante seus primeiros anos de vida, agora eram duas pessoas nas quais não sabia se podia confiar. 18


Após o divórcio, Kurt foi morar com seu pai em um trailer. Visitava sua mãe e Kim, sua irmã, nos finais de semana, mas parou de ir quando Wendy encontrou um novo companheiro. Ao lado desse homem, ela começou a beber muito. Uma noite, o namorado quebrou o braço da mãe de Kurt, mas Wendy não queria denunciá-lo, mesmo com a insistência do filho. Dessa maneira, ela conseguiu afastar ainda mais o menino. O pai de Kurt lhe prometeu que nunca mais teria uma esposa. No entanto, pouco tempo depois, ele conheceu Jenny, com quem logo se casou. Por mais que tentasse, ela nunca conseguiu conquistar o carinho de Kurt. Tinha dois filhos e, com Don, trouxe mais um ao mundo. Não demorou para que surgissem os problemas de convivência com Kurt. Assim como a mãe do músico já havia feito, Don tomou o partido de sua esposa e afastou seu filho, mandando-o para a casa de familiares. Kurt tinha se tornado um garoto problemático e que todos queriam longe. Ele passou por mais de dez casas de parentes e amigos, sem nunca considerar nenhuma delas um lar: de onde não o expulsavam, ele acabava fugindo. Ao recordar a adolescência, Kurt afirmava ter chegado inclusive a dormir debaixo da ponte, exatamente como descreveria depois na letra de “Something in the Way”. Ele também tinha problemas na escola, onde os valentões o perseguiam por ser amigo de um garoto gay. Circulavam boatos que questionavam sua sexualidade. Em uma mensagem no encarte de Incesticide, Cobain escreveu: “A essa altura, tenho um pedido para os nossos fãs. Se algum de vocês, de alguma maneira, odeia homossexuais, pessoas de cor ou mulheres, pedimos que faça um favor: Nos deixe em paz! Não vá aos nossos shows nem compre nossos discos.”

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No colégio, passou a flertar com as drogas. Começou fumando maconha acompanhado, mas não demorou muito para fazer isso sozinho. A droga transformou-se, então, em anestésico. A aposta foi dobrada ao partir para o consumo de LSD, o que o levou à mania de faltar às aulas. Durante esses anos, Kurt foi se afastando dos estudos até abandoná-los completamente, mas as drogas não conseguiram separá-lo do que ele realmente amava: a música.


Já fazia muito tempo que Kurt havia acabado com aquele violão havaiano que Mari comprara para ele. Foi no seu décimo quarto aniversário que finalmente ganhou sua primeira guitarra, um presente do seu tio Chuck. Foi a melhor coisa que pôde acontecer a um garoto que passava o dia inteiro desenhando estrelas de rock em seu caderno. Dedicou-se a tocá-la o tempo todo, refugiando-se nos acordes de suas cordas como se em seu som pudesse encontrar a harmonia que faltava em sua vida. As músicas do AC/DC e do Led Zeppelin, o punk dos Ramones… Ele se dedicou intensamente a tocar a música pela qual era apaixonado até que todas as notas soassem perfeitas. Mais do que um instrumento, essa guitarra era uma identidade. Ainda levaria um tempo até se tornar o vocalista do Nirvana, mas algo dentro dele sussurrava que um dia seria um grande artista. Um de seus amigos na época, John Fields, também o via se tornando um grande músico. Quando disse isso, Kurt respondeu: “Vou ser um grande astro da música, vou me suicidar e ser coroado pela glória.”

Ele tentou cometer suicídio pela primeira vez muito antes de isso acontecer. Numa dessas noites em que sentia que a vida não era nada além daquilo que ele tinha, resolveu se sentar nos trilhos do trem. Esperou ali sentado que ele o atropelasse, mas o acaso acabou fazendo o trem passar pelos trilhos do lado contrário. A vida lhe disse que ainda tinha muitas músicas para tocar. Ainda não havia se tornado o ídolo da Geração X.

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Desde pequeno, Kurt manteve os ouvidos bem abertos para todas as músicas que tocavam ao seu redor. Sua memória funcionava como uma esponja que guardava uma grande coleção de cantores e bandas. Eram de vários estilos e gêneros, o que demonstrava, de certa maneira, que as novas tendências são sempre o resultado da diversidade. Em todas essas músicas que ouviu no toca-discos da sua casa de infância, no rádio de fita do trailer onde se tornou adolescente ou no aparelho de som de alta-fidelidade do apartamento em que morou com Courtney, Kurt encontrou as notas e os acordes necessários para criar seu próprio estilo. Ele reciclou e reinventou tudo com sua marca pessoal até encontrar a música única e genuína do Nirvana. Por isso, ao falar sobre suas bandas favoritas, fazia isso com tanta admiração que até mesmo sua própria música parecia muito menos importante. Sabia o tanto que suas letras e seus acordes de guitarra deviam a bandas como Led Zeppelin, Pixies, Melvins, Sex Pistols e muitas outras.

Apesar do The Monkees ter feito parte da trilha sonora dos primeiros anos de Kurt, a banda não constituiria mais que uma introdução à sua formação musical. Mas foi também na sua infância que conheceu e aca-

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bou sendo muito influenciado pela música pop dos Beatles. Admirava especialmente o trabalho de Jonh Lennon e, quando compôs “About a Girl”, imaginava a canção como um complemento ao disco The White Album da banda dos quatro de Liverpool.

Pixies foi o grupo que obrigou Kurt Cobain a repensar toda a sua música e descobrir que podia aprimorar a melodia sem prejudicar as doses de hard rock. “Smells Like Teen Spirit” não existiria sem Surfer Rosa; para muitos, Nevermind é apenas um disco dos Pixies mais obscuro e com mais drogas. Um pouco mais distante do estilo do Nirvana estava o The Vaselines, o lendário grupo de Glasgow que estreou na década de 1980 com o álbum Dum Dum. Kurt admirava tanto o som da banda que inclusive fez a Sub

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Pop reeditar seus discos. Mas, obviamente, a maior das devoções às bandas de rock alternativo foi reservada à de Michael Stipe: R.E.M.

Durante a turnê do The Black Album, do Metallica, Kurt foi ao show que eles fizeram em Seattle. Ao ouvir “Whiplash”, ficou tão empolgado que começou a dar socos no ar. Quando o Nirvana começou a fazer sucesso, foi o Metallica que mostrou sua admiração enviando um fax para Kurt: “Vocês acertaram em cheio. Nevermind é o melhor disco do ano. Até mais, Metallica. P.S.: Lars [Ulrich] odeia vocês.”

Apesar disso, sempre houve uma rivalidade entre a banda de metal e o Nirvana, que fez os dois grupos se subestimarem em entrevistas, da mesma forma que aconteceu com Guns N’ Roses. Axl Rose deixou clara sua admiração pela banda de Seattle quando usou um boné com o logo do Nirvana no vídeo de “Don’t Cry”. No entanto, Cobain declarou que o Nirvana não era uma banda como Guns N’ Roses, “dessas que não têm nada a dizer”, e afirmou que Axl era “um maldito sexista, racista e homofóbico”.

Grande parte das composições de Bleach reverbera o rock do The Melvins, grupo de Seattle do guitarrista Buzz Osborne. Na verdade, Buzz foi responsável pela existência do Nirvana, já que apresentou Cobain a Krist Novoselic. Além disso, outro membro dessa banda, Dale Crover, foi o primeiro a tocar bateria no grupo que acabaria escrevendo o manifesto do grunge. Apesar do The Melvins ter saído na frente do Nirvana, foi Nevermind que ganhou a corrida. É claro que a banda de Osborne se beneficiou de parte do sucesso da gravadora Atlantic Records. Porém, Sonic Youth, o grande grupo de noise rock de Nova York, ajudou 28


o Nirvana a ganhar maior popularidade. Antes do fenômeno “Smells Like Teen Spirit”, eles levaram a banda de Seattle para abrir os shows em sua turnê europeia.

Kurt escreveu em seu diário uma lista dos cinquenta álbuns favoritos do Nirvana. O número 1 foi para Raw Power, do Iggy and The Stooges. O Nirvana sempre esteve de olho no hard rock. No começo da carreira, fizeram versões de “Immigrant Song” e “Heartbreaker”, os hinos do Led Zeppelin. O álbum Bleach também carrega influência musical direta do Black Sabbath e do Kiss. Eles inclusive gravaram a música “Do You Love Me” para o seu álbum de tributo. 29



É surpreendente que Kurt se declarasse um admirador das melodias doces e harmoniosas de Mazzy Star; “Fade Into You” era uma de suas músicas favoritas. Também era fã das canções de outros grupos lo-fi que se distanciaram dos limites da música pop convencional, como a BMX Bandits (banda formada por vários membros do Teenage Fanclub), The Breeders, que ocupa o terceiro lugar na lista de grupos favoritos do Nirvana, e as músicas do álbum Dry, de PJ Harvey. Kurt também gostava da mecânica do circuito indie e, para ser abençoado por seus devotos, lançou o single “Oh, the Guilt” com o grupo The Jesus Lizard.

Não era apenas a música punk, mas também a atitude; nas entrevistas concedidas por Kurt Cobain, era possível notar esse impulso punk frente a uma sociedade que o rejeitou e na qual agora decide cuspir. Um modo de vida subversivo do qual falam as músicas do The Clash, dos Ramones e dos Sex Pistols, que Kurt admirava (em seu diário, escreveu que o grupo de Johnny Rotten era um milhão de vezes mais importante que o de Joe Strummer). Também gostava das músicas rápidas do Bad Brains, do MDC e do PiL, e inclusive fez com o Nirvana covers de músicas do Wipers.

A antessala do grunge era o som sujo e pesado do Black Flag, que Cobain adorava. O álbum My War foi uma grande inspiração para o Nirvana. Houve ainda outros grupos desse subgênero musical, que acelerou ainda mais o som do punk, na lista de favoritos de Kurt Cobain: Fang, que lançou a música “The Money Will Roll Right In”, e o grupo Saccharine Trust, o primeiro a gravar com o selo SST, que também lançou o Black Flag. 31



Kurt também abraçou o movimento musical que surgiu após a chegada da música eletrônica, o enfraquecimento do punk e a ruptura com o rock. Ele se declarou admirador de grupos pós-punk como Gang of Four, Young Marble Giants e seu enorme álbum Colossal Youth, Half Japanese e, especialmente, The Raincoats, uma banda de jovens britânicas cujo primeiro disco foi lançado pela Geffen, para a alegria do vocalista do Nirvana.

Daniel Johnston é um músico de Sacramento (Califórnia) atado à doença psiquiátrica da bipolaridade. Talvez seja por isso que suas composições tenham letras tristes e melodias alegres. Passou a ser conhecido mun33



dialmente quando, durante a entrega dos prêmios MTV de 1992, Kurt Cobain se declarou seu fã vestindo uma camiseta com o desenho do icônico sapo junto à frase “Hi, How Are You?”, o título de sua demo. Anos mais tarde, no aniversário da morte de Cobain, Johnston agradeceu compartilhando em suas redes sociais um desenho com um de seus famosos extraterrestres vestindo uma camiseta do Nirvana e dizendo “Obrigado!”.

Uma parte da atitude camaleônica de David Bowie também pode ser encontrada na personalidade de Kurt Cobain. A camisa prateada que ele usou no videoclipe de “Heart-Shaped Box” ou o cabelo colorido de rosa eram uma versão suja e sem purpurina de “Ziggy Stardust”. A admiração pela música de Bowie levou o Nirvana a tocar “The Man Who Sold The World” no lendário show MTV Unplugged.

Cobain demonstrou sua admiração por Lead Belly, o músico de blues nascido na Louisiana que tocava violão de doze cordas, quando fez uma versão de “Where Did You Sleep Last Night” no MTV Unplugged.

Na sua lista dos cinquenta LPs favoritos, o Nirvana incluiu It Takes a Nation of Millions to Hold Us Back, o álbum que o Public Enemy lançou em 1988.

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