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© 2019 Thaiz Leão Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida, armazenada ou transmitida para fins comerciais, sem a permissão do editor. Você não precisa pedir nenhuma autorização, no entanto, para compartilhar pequenos trechos ou reproduções das páginas nas suas redes sociais, para divulgar a capa, nem para contar para seus amigos como este livro é incrível (e como somos modestos). Este livro é o resultado de um trabalho feito com muito amor, diversão e gente finice pelas seguintes pessoas: Gustavo Guertler (edição), Fernanda Fedrizzi (coordenação editorial), Germano Weirich (revisão), Celso Orlandin Jr. (capa e projeto gráfico) e Thaiz Leão (ilustrações) Obrigado, amigos. 2019 Todos os direitos desta edição reservados à Editora Belas Letras Ltda. Rua Coronel Camisão, 167 CEP 95020-420 – Caxias do Sul – RS www.belasletras.com.br
Dados Internacionais de Catalogação na Fonte (CIP) Biblioteca Pública Municipal Dr. Demetrio Niederauer Caxias do Sul, RS
G719
Gouveia, Thaiz Leão O exército de uma mulher só / Thaiz Leão Gouveia. Caxias do Sul, RS: Belas Letras, 2019. 144 p.
ISBN: 978-85-8174-436-0
1. Maternidade. 2. Relações mãe e filho. 3.Mãe solteira. I. Título.
18/39 Catalogação elaborada por Rose Elga Beber, CRB-10/1369
CDU 159.9-055.2
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“Minha própria geração, posterior à Segunda Guerra Mundial, cresceu numa época em que as mulheres eram infantilizadas e tratadas como propriedade. Elas eram mantidas como jardins sem cultivo... Mas felizmente sempre chegava alguma semente trazida pelo vento. Embora o que escrevessem fosse desautorizado, elas insistiam assim mesmo. Embora o que pintassem não recebesse reconhecimento, nutria a alma do mesmo jeito. As mulheres tinham de implorar pelos instrumentos e pelo espaço necessários às suas artes. E, se nenhum se apresentasse, elas abriam espaço em árvores, cavernas, bosques e armários. A dança mal conseguia ser tolerada, se é que o era, e por isso elas dançavam na floresta, onde ninguém podia vê-las, no porão ou no caminho para esvaziar a lata de lixo. A mulher que se enfeitava despertava suspeitas. Um traje ou o próprio corpo alegre aumentava o risco de ela ser agredida ou de sofrer violência sexual. Não se podia dizer que lhe pertenciam as roupas que cobriam os seus próprios ombros. Era uma época em que os pais que maltratavam seus filhos eram simplesmente chamados de “severos”, em que as lacerações espirituais de mulheres profundamente exploradas eram denominadas “colapsos nervosos”, em que as meninas e as mulheres que vivessem apertadas em cintas, amordaçadas e contidas, eram consideradas “certas”, enquanto aquelas que conseguiam fugir da coleira uma ou duas vezes na vida eram classificadas como “erradas”.
Trecho de Mulheres que correm com os lobos da escritora e psicóloga junguiana Clarissa Pinkola Estés, 1992.
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É muito fácil me confundir com uma “guerreira”,
e olha que eu
não nasci guerreira ou com qualquer ambição de constantemente ser forte. Eu nasci gostando de ler, desenhar, conversar, viajar, ver cores, montar quebra-cabeça e ser livre. Mas enquanto crescia aprendi que toda jornada individual embarca num momento histórico, imersa em símbolos culturais que te condenam mesmo antes que você possa fazer algo mais que apenas chorar de fome. Eu nasci mulher, periférica, branca, filha de retirantes, cria do ensino público, me descobri gorda e vivi inúmeras violências que não gostaria de ter vivido. Tudo isso poderia ser de alguma forma romantizado em uma história de superação, ainda mais depois de ter me tornado mãe como me tornei, mas isso não seria real. Porque EU NÃO SOU GUERREIRA, eu não me alistei para guerra alguma, eu só caí no front com uma camisola desbotada e florida que minha mãe costurou, tendo de proteger meu sexo da sociedade, de homens mais velhos e, mais adiante, dos da minha própria idade, e ainda brigar todo dia por oportunidade, igualdade e reconhecimento em todas as outras áreas da minha vida. Conheço milhares de mulheres, mas não conheço nenhuma que seja forte, dura ou calejada porque resolveu ser. A gente só é o — 13 —
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que é porque sobreviver é preciso, e viver nesse lugar sem a possibilidade de compartilhar e repensar com outras mulheres nossas jornadas torna nossa pele insensível. Nós não queremos ser personagens de histórias épicas de um cotidiano opressor. Nós não queremos viver uma vida em angústia e ansiedade. Nós não queremos naufragar em um mar de culpa e hiper-responsabilização para ver de longe os nossos filhos crescerem. E muito menos ter de aguentar essa vida inteira caladas para nos resignarmos a ganhar um “que guerreira você é” depois que já estivermos aniquiladas dessa batalha. Não. Dessa tal guerra que nos torna guerreiras, eu quero ver o fim de pé. Para rir com nossos filhos no café da manhã, para ter forças e tempo de brincar no parque, para ler os livros com paciência nos finais das noites, para viver a mulher que realmente somos e permitir que essa mulher, em respeito a todas as suas potências, tenha a liberdade de se inventar como a mãe que for. Que a nossa luta seja sobre nos aproximar do que a gente ama, e não sobre sobreviver àquilo que nos aniquila.
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Eu vacilei? Não, vacilamos. Erro, acerto... Cada história contada do seu jeito, daqui só posso dizer: a maioria dos dedos que apontam vem das mesmas portas fechadas que tornaram nossa sexualidade irreal e impossível. Me cabe então aproveitar o privilégio que tenho de estar aqui sendo lida para dizer – porque não tem nada de mais dizer: se você quer transar e ter autonomia reprodutiva, estude, pesquise sem medo seu corpo, seus processos, seus ciclos, para entender suas reais possibilidades e aí então chegar naquele lugar incrível onde você tem independência o suficiente para fazer suas próprias e reais escolhas, sem ruído ou prejuízo contra a mulher que você é.
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Eu ainda era jovem,
como costumam dizer, mas já me sentia
como uma velha enrustida. Carregando por aí um corpo cansado e um espírito entristecido. Meu dia a dia aos vinte e três era uma jornada sem começo nem fim, onde os dias se misturavam e as horas sempre faltavam. Morava em uma república na Lapa, que já era minha quarta casa fora da asa dos meus pais. Nela alugava um quarto, que tinha uma cama e um criado-mudo que eu usava como mesa de computador. Pela manhã eu fazia os trabalhos da faculdade, que estavam sempre em contínuo atraso, e preparava as marmitas do meu almoço e janta com o que fosse meu na geladeira. Às 9h25 tinha que sair de casa para pegar o ônibus das 9h30 e aproveitava todo o caminho para ler – quando dava para ir sentada. Às 10h chegava ao estágio para minha primeira xícara de café. Fazia três anos que eu tinha começado a estudar uma nova área na minha especialização por conta — interatividade entre pessoas, sistemas e redes — e fazia quase um que eu estava nesse estágio, o primeiro emprego da minha vida, que foi escolhido com um interesse um pouco maior que o de ganhar dinheiro. Era uma agência modesta, que dividia espaço em um coworking com outras duas também pequenas agências na Av. Faria Lima, não havia contas milionárias, nós atendíamos apenas pequenas e médias empresas, dávamos consultoria digital para negócios e pirávamos um mundo de soluções acessíveis que nunca se concretizava, porque a verba dos clientes sempre era curta demais para coisas que não convertiam lucro imediato e nós gostávamos muito — 24 —
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de entrar e sair do trabalho sem ter de fazer hora extra. Essa agência horizontalizava todas as funções, o que fazia toda a equipe ser igualmente significante, e o melhor, ninguém tinha ambição alguma de pisar em cima de mim. Lá o café rolava o dia inteiro, e os dias quase sempre davam para se chamar de bons. Às 17h eu ia andando até o corredor de ônibus da Av. Rebouças para ir para a “faculdade de bacana” onde eu cursava design. Minhas aulas começavam às 18h30 e iam até as 23h e pouco, horário que só fazia sentido para a vida de quem podia pagar a mensalidade de milhares de reais e não trabalhar para isso – os bolsistas que se virassem e agradecessem de joelhos pela oportunidade de se graduar com os outros 17% da população brasileira que alcançam o nível superior. Eu nem respeitava muito a instituição da universidade em si, meu curso tinha uma grade diária imensa, inflexível e em boa parte desinteressante. Mas para mim, que vim de uma longa linhagem de peões de obra e culturas assassinadas, que vivi metade da minha infância com um pai deprimido em uma casa de dois cômodos e que vi minha mãe fazer milagre com o salário de professora de ensino fundamental – de escola estadual – para manter cinco pessoas de pé sozinha, um diploma não era só status, era um seguro de vida. Naufragava no meio dessa rotina, que já se estendia há mais tempo do que gostaria. E levava essa vida só na minha cabeça, meu corpo não era mais do que uma ferramenta grande e necessária para executar tudo o que a vida, e minha vontade de viver, exigiam. Só de vez em quando ele se fazia percebido, principalmente quando adoecia no meio dessa rotina destrutiva. No meio de tudo isso, as minhas luas se alinhavam com o pagamento do aluguel. Menstruar acontecia. — 25 —