IMERSÃO

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FAMÍLIA

VIAGEM

GASTRONOMIA

MÚSICA

& OUTRAS LOUCURAS

CRIATIVIDADE


© 2019 Thedy Corrêa e Renato Guedes Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida, armazenada ou transmitida para fins comerciais sem a permissão do editor. Você não precisa pedir nenhuma autorização, no entanto, para compartilhar pequenos trechos ou reproduções das páginas nas suas redes sociais, para divulgar a capa, nem para contar para seus amigos como este livro é incrível (e como somos modestos). Este livro é o resultado de um trabalho feito com muito amor, diversão e gente finice pelas seguintes pessoas: Gustavo Guertler (edição), Fernanda Fedrizzi (coordenação editorial), Germano Weirich (revisão), Celso Orlandin Jr. (capa e projeto gráfico) e Renato Guedes (ilustrações) Obrigado, amigos. 2019 Todos os direitos desta edição reservados à Editora Belas Letras Ltda. Rua Coronel Camisão, 167 CEP 95020-420 – Caxias do Sul – RS www.belasletras.com.br

Dados Internacionais de Catalogação na Fonte (CIP) Biblioteca Pública Municipal Dr. Demetrio Niederauer Caxias do Sul, RS

C824

Corrêa, Thedy Imersão / Thedy Corrêa; ilustrações de Renato Guedes. Caxias do Sul: Belas Letras + Pensa Pop, 2019. 152 p.: il.

ISBN: 978-85-8174-362-2

1. Romance brasileiro. I. Guedes, Renato. II. Título.

19/66 Catalogação elaborada por Rose Elga Beber CRB-10/1369

CDU 821.134.3(81)-31







Mariel era assombrada por cenas que ela jamais havia presenciado. Chuva inesperada, grossa e intensa. Lama, muita lama. A carroça carregada, pesada e inerte. Os cavalos haviam feito muito esforço, mas estavam paralisados e respiravam forte. Sob a grande roda, o corpo de seu marido partido ao meio. Lodo e sangue. Muito sangue. Não era exatamente um sonho, mas todas as noites, nos últimos quatro meses, a cena a visitava enquanto estava no limiar entre o sono e a vigília. Durante as tarefas do dia, era comum que ela se pegasse com o olhar perdido, visualizando elementos que ela conhecia tão bem pela narrativa dos homens que haviam encontrado seu marido sem vida. Morto. Dilacerado. Partido ao meio.

Ela quis saber todos os detalhes, e desde então eles a as-

sombravam.

Conhecer os detalhes serviu apenas para que tivesse uma

ideia imprecisa do que havia de fato acontecido. As pessoas teciam comentários de todo tipo e motivação, não apenas buscando uma explicação, mas conjecturando sobre a natureza, a vida e os hábitos do homem que teve que ser enterrado em pedaços.

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Alguns atribuíram sua trágica morte à bebida. Outros somaram a isso a ideia de que talvez ele tivesse uma vida infeliz ao lado da mulher. Estes mesmos passaram a olhar Mariel com censura, culpando-a pela embriaguez do marido e, por conta disso, insinuando que ela teria causado a morte dele. Ela procurava se manter distante de todos. Afastada, alheia às maldades e maledicências. Desde o enterro, vestia preto da cabeça aos pés. Trazia presos os longos cabelos ruivos e, em geral, eles estavam cobertos por um lenço também preto. Seus olhos azuis, claros como um dia de céu limpo, eram agora opacos poços de tristeza. Ela mantinha armazenada toda a sua força de viver para os cuidados com as crianças. Duas lindas meninas que dependiam exclusivamente dela para seguir vivendo sem um pai. Ela não se movia pelas pequenas ruas da comunidade, ela vagava abatida, como um corpo sem alma. Um vulto vazio.

Mas sua viuvez e evidente tristeza não inspiravam com-

paixão em todos na comunidade. Com o passar do tempo, eram frequentes os sussurros em tom acusatório. Fossem conversas de homens, na taberna que ficava no final da rua principal, onde os moradores e viajantes costumavam encerrar seus dias com uísque barato; ou fossem cochichos das mulheres, no único armazém que havia na cidade. Ou ainda todos juntos, à saída do culto dominical na igreja. Bastava Mariel e as meninas se afastarem, que já se instalava o júri sem tribunal. Não havia argumentos de defesa, apenas de acusação.

Quando seu marido era vivo e atuante na comunidade,

Mariel não era uma mulher calada. Não se contentava em ser coadjuvante nas discussões, o que causava espanto e estranheza. Era comum que, nas rodas de homens, ela se aproximasse, abraçasse o marido, encostasse sua cabeça em seu peito e, sem convite, opinasse sobre o tema que era tratado. Uma frase rápida, um beijo no rosto de seu homem – o carinho público também não era bem aceito por todos – e logo ela saía para voltar à roda de conversa das mulheres, onde era o centro das atenções.

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Mariel tinha ideias que soavam perturbadoras para os

moradores do local. Em geral, suas frases e opiniões traziam silêncio às discussões. Uma pausa com tons de constrangimento e revolta. Seu marido sorria e parecia não se importar – na verdade, ele até demonstrava admirá-la por isso – o que colaborou para que se disseminasse a ideia de que ele era um fraco. Que ele bebia para esquecer sua fraqueza e para ficar longe de casa e da esposa que, ao olhar dos outros homens, o envergonhava. Mas o fato é que ninguém jamais o havia visto colocar uma gota sequer de álcool na garganta. Tudo não passava de intriga mesquinha, de um desejo abominável de que as ideias e o comportamento de Mariel o tivessem conduzido à morte. As circunstâncias do acidente sugeriam, no mínimo, um descuido, de quem certamente estava embriagado e distante de suas condições normais. Esse era o veredito de todos, que preferiam ignorar a chuva torrencial, a lama e a roda atolada da carroça.

Isolada da maioria das pessoas da comunidade, Mariel

contava com o apoio e a simpatia de raros amigos, entre eles estava sua vizinha Helen. Uma jovem mulher de gestos tímidos e discreta beleza. Com apenas um filho que ainda nem completara um ano de vida, e sofrendo com a inexperiência de mãe de primeira viagem, ela costumava recorrer a Mariel quando tinha dúvidas ou enfrentava situações que a afligiam em relação ao bebê. Com isso, os laços entre as duas mulheres se estreitaram. Tinham longas conversas enquanto tratavam juntas das lidas domésticas. Helen era mais uma ouvinte atenta do que propriamente uma interlocutora.

O marido de Helen era um homem de poucas palavras e

comportamento rude. Não costumava se importar com a amizade entre as vizinhas, mas depois da viuvez de Mariel tornou-se grosseiro com ela. Não escondia o desconforto com a proximidade das duas. Mariel tinha consciência disso. Mesmo distante, não era difícil escutar as inúmeras sessões de repreensão em altos brados às quais a amiga era submetida.

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– Não quero que você traga essa mulher à nossa casa! Ela

é perigosa. Você faz ideia da encrenca que seria se todas as mulheres da comunidade pensassem como ela? Quero ela longe daqui! – Mais do que apenas em voz alta, as frases saíam como um rosnado raivoso.

– Mas ela me ajudou tanto com o bebê. Me ajudou com a

comida quando eu não estava bem e… – Helen não falava como se respondesse, o que seria uma afronta. Ela apenas suspirava, e falava quase como se fosse um gemido.

– Eu não quero essa mulher perto de nossa comida! Que-

ro que ela fique longe de meu filho! Longe!!! – E as palavras sucumbiam às batidas fortes que faziam estalar os móveis e paredes. Felizmente, esses arroubos de violência nunca eram dirigidos a Helen.

Ignorando as ordens do marido, os encontros entre as

amigas continuaram, de maneira furtiva, e a compaixão que as motivava inicialmente acabou se transformando em afeto. A dor da perda de uma e o peso de uma relação opressiva da outra encontravam conforto em longos abraços às escuras. Mariel envolvia seus braços em torno da amiga buscando ecos da afeição que ainda sentia pelo marido morto, um amor que reverberava entre gestos de carinho. Helen não entendia bem o que sentia, apenas fechava os olhos e aceitava a paz que aqueles momentos proporcionavam.

O silêncio e a cumplicidade se tornaram uma constante

entre as duas, e a desconfiança do marido de Helen aumentava em igual proporção. Tudo piorou quando, de forma inexplicável, ele teve sérias complicações estomacais e penou uma noite inteira com um desconforto que lhe tirou o sono e a tranquilidade.

Pela manhã, quando Helen se aproximou dele gentil-

mente, com uma xícara de chá, ele agarrou seu braço com força e num salto levantou-se da cama. Seus olhos estavam injetados de sangue pela noite maldormida e por uma súbita fúria.

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– Você está me escondendo algo, não está? Aquela mu-

lher esteve aqui em nossa cozinha, não foi?

Ele dava passos trôpegos pela casa, arrastando Helen

pelo braço. A força do empurrão machucou seu ombro, arrancando-lhe lágrimas.

– Pare com isso! Ela não esteve aqui. Você está me machu-

cando! – Um gemido agudo de dor despertou o homem do transe de raiva, fazendo com que ele a deixasse cair aos seus pés.

Ele recuou. Nunca havia levantado a mão contra ela. Isso

o perturbou. Confuso, ele ainda procurou ter razão ao justificar sua reação.

– Não minta para mim, mulher. Não minta, senão você vai

se arrepender – havia uma serenidade assustadora em sua voz.

Helen chorava, caída de joelhos.

– Eu não estou mentindo, eu juro!

Ele se afastou dela sem fazer nenhum movimento para

ajudá-la a erguer-se. Ainda estava transtornado, e tudo o que ele desejava agora era sair de casa. Pensou em ir até Mariel e ameaçá-la, caso voltasse a encontrar-se com Helen ou colocasse os pés em sua casa novamente. Hesitou. Sentiu-se mais confuso ainda, pois um medo inesperado brotou de sua mente. Lampejos de um temor cuja origem ele não sabia identificar e que, justo por isso, acabou deixando-o paralisado.

Intrigado por sua incomum agressividade, pelo mal di-

gestivo que o havia acometido e por um medo de origem desconhecida, o marido de Helen decidiu buscar amparo naquele que ele julgava ser o melhor conselheiro da comunidade para os males do espírito.

Ao entardecer, ele foi até a igreja, que se encontrava fe-

chada. As luzes das velas na parte íntima do grande prédio de madeira indicavam a presença do padre em sua casa. Leves pancadas na porta precederam as boas-vindas do homem idoso, parcialmente calvo, de vestes sóbrias – como bem cabem a um religioso – e fisionomia séria e fechada. Não havia simpatia em sua expressão, mas ele considerava um dever receber bem o

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seu rebanho, fosse a hora que fosse. Logo ambos estavam instalados em torno da mesa com bebidas. O marido de Helen aceitou um chá, enquanto o pastor consumia a metade que restava de uma garrafa de vinho.

– Me desculpe, eu não sei se o senhor seria a pessoa certa

para me ajudar, mas eu não imagino a quem recorrer.

– Eu estou aqui para ouvi-lo. Pode me contar o que está

lhe causando essa aflição – a frieza e a distância na voz do religioso causaram espanto no homem.

Ele chegou a pensar em desistir da consulta. Hesitou.

Para disfarçar seu desconforto, tomou um longo gole de chá. A bebida quente parecia ter ajudado a serenar suas dúvidas e ele começou a narrar ao pastor os acontecimentos daquela manhã, detalhando as coisas que, na percepção dele, poderiam tê-los motivado.

– Sei bem quem é Mariel – o padre insistia em manter a

distância e o tom solene. – Ela passou por uma grande perda recentemente, e nunca é fácil compreender os efeitos disso nas mulheres.

– Eu perdi a cabeça com minha Helen por conta dela e

agora o senhor vem me dizer que eu devo “compreender” essa mulher? Então devo ter pena dela e abrir a porta de minha casa para que ela diga suas tolices? – O tom indignado causou irritação no sacerdote, que bateu a taça de vinho na mesa com uma força que poderia tê-la quebrado.

– Eu não disse isso! – A voz saiu emoldurada por uma ex-

pressão que ia além da seriedade e aproximava-se da repreensão. – Eu estou pensando justamente o contrário. Mantenha-se longe dela, você e sua família! – Ele fez uma pausa e tomou o último gole da taça. – Mesmo a distância, quero que você a observe. Sua proximidade como vizinho é perfeita para fazer essa vigilância. Qualquer coisa que ela fizer fora do normal, venha me contar.

– Então eu agi certo com minha Helen?

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– Claro que sim! As mulheres precisam ser trazidas à re-

alidade, às vezes. É papel do marido fazê-lo. Agora pode voltar para sua casa, rapaz.

Enquanto respondia, o pastor esvaziava a garrafa e seus

pensamentos já buscavam o horizonte. Ele ignorava o homem que se despedia e, com o olhar perdido na chama de vela à sua frente, sentiu um espasmo de excitação pelas possibilidades que os próximos acontecimentos poderiam reservar.

II

A tarde que sucedeu aos dolorosos acontecimentos da-

quela manhã foi especialmente triste para Helen. A partir daquele dia, e daquela dor, ela buscou mais ainda a companhia de Mariel. Os encontros foram ainda mais intensos e furtivos, o que fez com que ambas fossem vistas com menos frequência pelas ruas. Poucas idas ao armazém. Poucas roupas para estender no varal. Poucos passeios ao sol com as crianças.

O marido de Helen, cada dia mais cismado, procurava

identificar a origem daquele medo que ainda lhe roçava as pernas. Costumava sentar à noite na varanda, observando através das frestas das janelas as luzes na casa de Mariel ao longe. Provocava sua própria raiva imaginando que as duas mulheres continuavam se encontrando às escondidas. Tantas vezes fez esse sinistro exercício de imaginação que acabou trazendo à tona um sentimento que lhe causou perturbação: ciúme! Como assim, ciúme de uma outra mulher? Estava dividido. Confuso e enfurecido. Tinha um ímpeto de invadir aquela casa e espancar a mulher que estaria perturbando a paz de seu lar. Mas não ousava sequer levantar-se da cadeira, paralisado por um medo que sua compreensão não conseguia atingir. Ele temia Mariel e não sabia o motivo.

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Ao pastor, dizia apenas que a vizinha saía cada vez menos

de casa e raramente abria as janelas. Talvez estivesse doente. Quase nunca via as meninas e, quando conseguia observá-las, em um relance, entrando em casa, pareciam magras demais.

Mariel não estava alheia aos movimentos.

Sabia que o ambiente ao seu redor lhe era cada vez mais

hostil e estava, realmente, cada dia mais reclusa. Seu contato com o mundo exterior vinha por meio das visitas de Helen. Logo, o mundo de ambas estava restrito a elas mesmas. Nada de bom viria de fora dele, o que fazia com que brotasse uma crescente revolta. A comunidade ao redor era tóxica, nociva e perniciosa.

Os dias de reclusão se arrastavam. A presença qua-

se constante e invisível do marido de Helen era uma tortura. Quando seus afazeres o afastavam das casas, as mulheres tinham um alívio e aproveitavam para encontrar-se, mas durante grande parte do tempo ele mantinha a vigilância.

Certo dia, ele havia percebido que Mariel estava fora de

casa. Nem foi preciso muito esforço para que ele a encontrasse na área aos fundos da pequena propriedade. A noite estava por cair, e ela remexia folhas em direção a uma fogueira que produzia uma densa coluna de fumaça. Além das folhas secas, ela parecia estar queimando roupas e papéis. Quando todo o monte estava em chamas, ela recuou alguns passos e, apoiada no ancinho de cabo longo com que havia realizado a tarefa, fechou os olhos com o rosto voltado para o céu. Ficou bastante tempo parada nessa posição. Respirava fundo, enchendo os pulmões com aquela fumaça que cheirava a folha seca e estrume. Por um momento ele julgou que ela produzia música, um canto monótono e repetitivo. Deu de ombros e considerou que esse deveria ser apenas mais um acontecimento sem importância que narraria ao padre no dia seguinte.

Então, a noite caiu pesada. As pessoas da comunidade já estavam entregues ao sono

havia um par de horas quando foram acordadas por fortes es-

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1792 trondos nas paredes de madeira das casas, produzidos por um vento inesperado e feroz. Muitos moradores correram para segurar as tábuas que estavam no limiar de serem arrancadas de suas janelas. O uivo atravessando as frestas era assustador e começava a causar pânico. Gritos foram ouvidos por toda a vila. E então veio o pior.

Pancadas violentas nos telhados e nas paredes. Enor-

mes pedras de granizo, maiores que um punho fechado, atravessavam as telhas com um estrago que colocava em risco as pessoas dentro de suas casas. Muitos foram obrigados a buscar refúgio embaixo das camas e mesas. Era impossível saber por quanto tempo as enormes pedras de gelo estavam caindo, mas era certo que, se elas persistissem por mais tempo, o lugar inteiro seria devastado. As rajadas da ventania se misturavam aos ruídos da destruição, espalhando o pânico, o pavor e os gritos de casa em casa.

O vento parou primeiro. Algumas pedras ainda estoura-

vam esparsas, o que desencorajou aqueles que pensavam em abandonar seus abrigos. Não havia mais gritos, apenas choro e uma tensão suspensa no ar, como uma respiração presa, à espera de que tudo terminasse.

A chuva misturada com o granizo que derretia deixou

as madeiras, velas e lampiões encharcados. Pouco ou quase nada poderia ser visto na escuridão. Algumas raras tochas perambulavam pela noite em meio aos lamentos e ao desespero. Só com o clarear do dia é que foi possível ter a exata dimensão da destruição.

Quando terminou a tempestade, a visão era de devastação.

Enormes buracos nos telhados e paredes, que resistiram

à tormenta como o ferro frio resiste ao malho, davam uma aparência desoladora às casas. Ruínas. A violência do granizo havia ferido algumas pessoas e não era exagero imaginar que alguém poderia ter perdido a vida, esmagado pela força e pelo tamanho das pedras. Muitas vacas e cavalos que estavam ao relento foram abatidos pelos golpes do granizo.

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Os moradores percorriam as casas próximas, chamando

aos gritos pelos vizinhos e certificando-se das condições em que se encontravam, imaginando que algum socorro imediato poderia ser necessário. Muitas famílias foram encontradas abraçadas, aos prantos, ajoelhadas no meio da sala ou no centro do que restou das casas. Outros vagavam desnorteados pela rua, olhando para os lados sem enxergar nada, sem se comunicar ou estabelecer contato visual com ninguém. Pareciam flutuar como almas perdidas. Em alguns, havia marcas de sangue e ferimentos expostos à espera de alguém que os tratasse.

Uma parede inteira da igreja havia tombado. Era possível

ver o altar vazio, onde antes havia uma grande cruz de madeira, que certamente tinha sido destroçada. O pastor percorria as ruas exibindo um pequeno ferimento na testa, de onde escorria um filete de sangue. Ignorando o próprio estado, prestava um socorro mais imediato – que estivesse ao seu alcance, mesmo não sendo médico – e até mesmo auxílio espiritual para aqueles que a própria fé, tanto quanto as casas, havia sofrido um inacreditável abalo. Eles buscavam nos olhos e no amparo do sacerdote uma resposta para aquela tragédia. Como o Senhor Deus havia permitido isso? Seria um castigo? Uma punição?

– Isso é obra do demônio, não é obra de Deus! – Havia

raiva e indignação em sua resposta.

Em sua peregrinação, ele logo chegou à casa de Helen.

O marido dela trabalhava freneticamente, tentando retirar escombros e, ao mesmo tempo, realizava reparos no que fosse absolutamente necessário.

– Desculpe, pastor, mas não posso conversar agora. Te-

nho muito a fazer! Veja o estado de minha casa! – Era possível perceber em sua expressão um misto de angústia pelos danos causados e um certo alívio, pois ninguém da família havia se ferido.

O pastor parecia distraído ao observar a movimentação

do homem à sua frente. Seu olhar vagou superficialmente pela casa até que se fixou em algo que lhe causou espanto.

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– Você viu aquilo? – Ele apontava com a cabeça à casa de

Mariel.

O marido de Helen não havia tido tempo para observar

as redondezas, consumido por suas próprias preocupações e necessidades, mas ao acompanhar o olhar do pastor, seu coração congelou.

A casa da mulher que ele tanto se preocupava em vigiar

estava praticamente intacta. Era preciso um olhar mais apurado e paciente para que se constatasse que existiam apenas pequenos danos, quase imperceptíveis. Isso talvez explicasse o fato de que as janelas permaneciam fechadas. Não havia nenhum movimento do lado de fora, apenas uma fina coluna de fumaça saindo da chaminé, o que denunciava a presença dos moradores.

O espanto dos dois homens deu lugar a um turbilhão de

pensamentos que os deixaram inquietos. Foi então que, vasculhando na memória os últimos acontecimentos, o marido de Helen contou ao pastor o que havia visto ao entardecer do dia anterior. O religioso acompanhou atentamente a narrativa, enquanto sua mente fervilhava. Trechos de livros antigos que ele havia lido, e que faziam referência ao comportamento intrigante e inesperado das forças da natureza, borbulhavam em sua cabeça. As coisas começaram a se encaixar perfeitamente.

– O senhor deveria ir até lá falar com ela. Saber se as

crianças estão bem… – o marido de Helen foi interrompido pela ira do pastor.

– Você está louco? Eu não vou me aproximar daquela mu-

lher ou de sua casa – havia uma vibração que revelava temor em sua voz. – Não vou enfrentá-la sem me preparar devidamente.

– Mas o que pode lhe fazer aquela mulher? – Mesmo sem

identificar a origem do seu próprio medo, o marido de Helen agora encontrava traços dele no pastor.

– Não seja tolo! Quem disse que ela é simplesmente uma

mulher? Eu tenho dito aos meus fiéis que essa devastação não é

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obra do Senhor Deus, mas sim do demônio – ele fez uma pausa, respirou profundamente e novamente dirigiu seu olhar à casa de Mariel. – Ou de alguém a serviço dele.

III

Os dias seguintes transcorreram sob o peso das perdas.

A reconstrução era metódica e monótona. Apenas o comportamento inquietante do pastor despertava curiosidade. Ele havia convocado alguns fiéis para que o ajudassem a consertar a parede da igreja, mas acabou deixando que eles fizessem o trabalho sozinhos. Disse que precisava se concentrar em importantes estudos e que não poderia assumir a tarefa no momento. Passava horas e horas encerrado, entre pilhas de livros, em uma pequena peça nos fundos da igreja. Quando abandonava seus estudos, ele se movia célere e obstinado pelas ruas, como se cumprisse uma missão.

Reunia pequenos grupos de pessoas para algo que, apa-

rentemente, seria um pequeno e reservado sermão – mas não era. Esses encontros ocorriam nas casas dos fiéis, em lugares isolados ao ar livre, ou até mesmo na própria igreja em reconstrução. Eram sorrateiros e rápidos. Ele falava muito baixo, o que fazia com que os ouvintes depositassem nele toda a sua atenção. Quando o padre se retirava, as pessoas permaneciam conversando entre sussurros por mais algum tempo, perplexas, atônitas e apreensivas.

O marido de Helen passou a dividir com outros homens a

função de vigilância da casa de Mariel. Durante todo o dia, eles enviavam relatórios das atividades da casa ao pastor. Os encontros, as conversas, a reconstrução e os estudos do sacerdote se arrastaram ainda por algumas semanas, muito mais tempo do

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1792 que ele desejava. Havia a necessidade de mais argumentos e de um maior poder de convencimento, o que causava nele uma indesejável ansiedade. As pessoas da vila percebiam, e isso alimentava ainda mais as dúvidas, as incertezas e o medo. Até que alguns eventos precipitaram os acontecimentos.

O pastor recebeu em casa o grupo de homens encarre-

gados da vigília à casa de Mariel. Eles estavam constrangidos e preocupados e, depois de conversarem entre si, chegaram à conclusão de que estavam acometidos do mesmo mal: não conseguiam cumprir mais com seus compromissos de marido. Não que as suas esposas os procurassem, não senhor! Isso era algo que elas jamais fariam, pois não era coisa de mulher decente, temente a Deus. Sempre que eles precisavam descarregar o cansaço de seus afazeres e responsabilidades, suas esposas se submetiam resignadas ao peso de seus corpos e à força de seu ímpeto. Mas nos últimos dias, mesmo que eles tivessem toda a vontade do mundo – e seus corpos estivessem fortes e saudáveis –, não havia ímpeto ou desejo que os deixassem prontos para que se satisfizessem em suas esposas. Seria o nervosismo pela tempestade que enfrentaram?

O pastor negou. Ele tinha outras teorias e explicações

que poderiam amainar a tensão entre aqueles homens, mas optou por aquela que certamente os contaminaria com suas funestas intenções, e que os tornaria mais dependentes de seu templo. Disse a eles que deveriam se afastar da casa de Mariel. Fez ainda outros alertas, em tom de ameaça: que não cruzassem o olhar com ela e muito menos lhe dirigissem a palavra. Ordenou que rezassem durante quatro horas, sem interrupção, e que só voltassem a procurar suas esposas para o coito depois que ele autorizasse. Ardilosamente, convenceu-os a consultar outros homens, que viviam próximo da casa, para descobrir se estariam acometidos do mesmo mal. Na verdade, seu verdadeiro objetivo com isso era fazer com que a notícia se espalhasse.

Assim que eles saíram, o pastor decidiu apressar seus pre-

parativos. A situação estava se tornando insustentável. O inverno

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se aproximava e, quanto mais tempo demorassem, mais difícil seria interromper a sequência de acontecimentos que se acercavam da vila. Ele executou os últimos preparativos, mas não teve como colocá-los em prática da maneira como imaginou.

No dia seguinte, a velha senhora que cumpria os afaze-

res domésticos para o pastor estranhou a ausência dele quando bateu à porta. Ela circundou a casa e conseguiu espreitar pela janela do quarto. O clérigo ainda estava deitado, mas parecia se debater. Apreensiva, ela decidiu entrar de qualquer maneira. Pediu ajuda para que a porta fosse arrombada. Ela encontrou o velho homem ardendo em febre, delirando em uma cama empapada de suor. A mulher preparou compressas, chás, e precisou de ajuda para aplicar-lhe banhos. Mesmo com tudo isso, os primeiros tratamentos não se mostraram eficazes e o pastor continuava a delirar conforme aumentava a febre. Suas palavras eram assustadoras e logo se espalharam entre os moradores da comunidade.

Com os comentários sobre o estado do pastor, a popula-

ção tomou conhecimento de que não apenas ele, mas muitos outros moradores também passavam por problemas de saúde. O mal que surgia como uma febre forte trazia abatimento, fraqueza, dor no corpo e, caso a febre não baixasse, delírios. As pessoas mais grunhiam do que propriamente falavam. Pareciam possuídas. Era possível identificar algumas palavras esparsas e elas sempre tinham alguma expressão que trazia medo aos que ouviam. O terror da tempestade e seu poder de destruição haviam deixado suas marcas nas mentes e pesadelos das pessoas. Durante os delírios, era possível identificar expressões, ideias e palavras que emolduravam as conversas sorrateiras com o pastor. O medo que foi instaurado nas conversas privadas com o religioso veio à tona nos delírios febris dos doentes. Nada mais era preciso para que todos na vila chegassem à conclusão de que os temores do religioso haviam se concretizado! Eles todos agora concordavam que algo precisava ser feito.

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Mariel acompanhava os acontecimentos e a movimenta-

ção na vila com apreensão. O silêncio que a rondava, os olhares que não mais se dirigiam a ela, a distância de Helen, tudo servia de alerta para ela decidir que era o momento de abandonar aquele lugar. Como se não bastasse, havia essa doença rondando muitos moradores e que, por sorte, ainda não havia batido à sua porta. Ela sabia que não deveria mais permanecer ali.

Enquanto tinha a presença e o amor de seu marido para

ampará-la, ela podia gozar de uma vida de alegria e dias ensolarados. As filhas cresciam com saúde e todas as portas estavam abertas para eles. Mesmo com suas ideias e opiniões causando espanto entre os moradores, a doçura de seu marido – sempre disposto a ajudar a todos, até com alguma parcela de sacrifício –, era a ponte perfeita entre ela e os demais. Quando ele se foi, e cada vez mais depois disso, ela sentia-se só e cercada por desconfiança. Algo, em seu íntimo, dizia que já havia passado da hora de partir. Sua demora em aceitar isso tinha nome.

Ela procurou Helen que, relutante, aceitou um último en-

contro. Uma despedida. Os últimos meses haviam criado algo muito especial entre elas, que os acontecimentos recentes trataram de corroer. Mariel não entendia bem por que, mas nem mesmo a mulher que estivera mais próximo dela até então conseguiu se manter indiferente aos comentários. Ela também se afastou.

Mas, depois de uma discreta insistência, Helen aceitou o

convite, quase em tom de súplica, para um encontro derradeiro.

IV

O dia mal havia nascido e o marido de Helen já havia sa-

ído de casa para o seu trabalho em um campo distante. Os homens já não faziam vigília alguma, pois o acamado pastor tratara de afastá-los da tarefa. As crianças ainda dormiam quando

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Helen entrou cabisbaixa na casa de Mariel. Foi uma saudação fria, sem nem sequer um olhar, sem erguer a cabeça. Ainda havia resquícios de carinho, afeto, talvez até amor, mas que sucumbiram a toneladas de medo e desconfiança.

– Eu lamento muito que as coisas tenham chegado a esse

ponto. Você é a única pessoa pela qual eu ainda tenho alguma consideração aqui nesse lugar, então achei que você deveria saber que vou partir amanhã com as crianças.

– Como assim? – Mesmo sem erguer o olhar, Helen pare-

ceu atônita.

– Vou embora! Esse lugar era suportável enquanto ainda

tinha meu marido aqui. Sem ele, só vejo coisas ruins nas pessoas ao meu redor. Elas são desprezíveis. Merecem o sofrimento que estão passando. Para mim já basta!

– Merecem? O que você está dizendo? Você nunca me

disse nada semelhante a isso antes. Parece outra pessoa falando. Uma pessoa má!

– Você fala como se acreditasse no que dizem por aí a

meu respeito.

– Eu nunca acreditei. Mas também nunca entendi bem o

que sentia quando nos encontrávamos. Não me parece certo. E depois, todas essas coisas começaram a acontecer…

– Não sei do que você está falando. Que coisas?

– Você sabe! A tempestade, a doença dos homens, a febre.

As coisas que você sempre dizia e que o pastor jamais aprovou. Você não percebe que as pessoas estão com medo? Acho que ninguém mais lhe quer por perto mesmo…

Mariel sentiu naquele momento, naquela última frase,

que algo ruiu dentro dela. Um desapontamento que era esperado, mas que ela não estava preparada para encarar. Não com Helen. Não depois do elo que se criou entre elas e do qual – agora ela tinha certeza – não havia sobrado mais nada. Ela compreendeu que a conversa havia colocado um ponto final naquilo que as unia. Uma tristeza profunda a invadiu. Ela não tinha forças ou ânimo para responder. Mais nenhuma palavra foi tro-

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1792 cada, e Helen saiu sem dizer mais nada ou olhar para trás. Não houve despedida.

Quando a porta bateu, veio a certeza de que as pessoas

daquele lugar não mereciam melhor sorte. Elas haviam envenenado a única pessoa inocente e pura que vivia ali. Mariel havia perdido seu único motivo para ficar ou, em último caso, para ter pena de alguém. Partiria deixando toda aquela maldade para trás. Teria o dia inteiro para terminar os preparativos, e a mesma carroça e os mesmos cavalos que haviam tirado a vida de seu marido a conduziriam a uma nova vida. Mas a conversa com Helen traria outras consequências inesperadas.

O sol encerrava seu ciclo naquele dia pintando o céu

com tons de vermelho-vivo. A fumaça das casas impregnava as ruas com fortes odores de desgraça e dor. Mariel sentiu um peso apertando seu peito. Mais do que esperar a escuridão daquela noite, ela a pressentiu. Encaminhou as meninas para o quarto e pediu que permanecessem ali, houvesse o que houvesse. Fechou a porta e sentou-se em uma solitária cadeira no meio da sala, próximo ao fogo que ardia na lareira. Não demonstrou surpresa quando a porta se abriu com violência. Não houve sobressalto ou reação quando os homens entraram e a arrastaram para fora.

O pastor – tão abatido que tinha a aparência de um ca-

dáver – esperava por ela do lado de fora. Estava à frente de um grupo de pessoas tingidas de vermelho pelos últimos raios de sol. Não foram ouvidos gritos. Ninguém vociferou ou manifestou ódio. Os olhos estavam baixos. Havia vergonha, curiosidade e muito medo.

Nenhum daqueles que a enfrentavam agora jamais havia

visto alguém como ela ou tivera alguma vez na vida a certeza de sua existência. O pastor não deixou dúvidas: as leis eclesiásticas diziam que negar a existência das bruxas é negar a existência do próprio diabo e, portanto, de Deus. Que tudo que haviam passado na vila era obra daquela mulher, a serviço do demônio.

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Ela era uma forma de anjo diabólico que, por sua natureza, é capaz de realizar prodígios a serviço do mal.

O sacerdote tomou conhecimento de que ela pretendia ir

embora – Helen, um espasmo de traição no meio de tanta desesperança – e reuniu forças e a comunidade para impedi-la. Se ela partisse, aquele lugar ficaria amaldiçoado para sempre. Todo o mal que ela havia causado nunca mais poderia ser desfeito. Tomados pelo pavor e pelas palavras de convencimento que ele vinha plantando em suas mentes havia semanas, toda a comunidade decidiu seguir suas orientações. As dúvidas e incertezas haviam sido sufocadas pelo medo e pelas provas – que o pastor nominava agora de inquestionáveis – que recaíam sobre Mariel.

O religioso chegou a sonhar com uma imensa fogueira

e, no centro dela, Mariel ardendo em chamas e gritando desesperada. Mas ele conhecia seus fiéis e tinha certeza de que essa ideia seria demasiada, extrema, e que para tal ele não teria apoio. Não estava distante o tempo em que essa punição cruel era frequente, mas naqueles dias já não se admitia tamanha crueldade. Na verdade, ninguém mais ainda esperava ouvir relatos sobre bruxas ou feiticeiras. Depois de muito estudar, o padre encontrou nos livros antigos um caminho a ser tomado para a justa punição. Pelo menos uma que seria publicamente aceita por todos e que permitiria que ele levasse adiante os procedimentos. Ela seria separada de sua família, deportada para uma ilha distante, onde apodreceria encarcerada até o fim de seus dias. Seus bens seriam leiloados em benefício da reconstrução da vila, em especial da igreja. As meninas seriam adotadas ou levadas para algum orfanato em um centro mais populoso. Elas nunca mais veriam a mãe, que poderia ser considerada oficialmente falecida. O pastor já tinha tudo em mente, mas nem tudo que ele verdadeiramente havia planejado se tornaria público.

Antes de ser levada, Mariel deveria confessar seus cri-

mes! Se ela se negasse a confessá-los, sofreria as torturas prescritas pela lei e, assim, considerada culpada, não mais pesaria na consciência das boas pessoas do local. Sua vida já havia sido

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1792 poupada, mas ela não escaparia de ser supliciada. O próprio pastor iria se encarregar da confissão e das formas para obtê-la.

Uma edificação que havia sido construída para abrigar

uma cela – mas que nunca fora utilizada – e ficava bastante afastada da vila foi o local escolhido para aprisionar e, caso necessário, arrancar a confissão de Mariel. As janelas foram lacradas e a distância garantiria a necessária privacidade para os rituais a que o padre a submeteria. Uma sádica procissão formou-se para acompanhá-la até lá. Mesmo sendo conduzida aos empurrões, ela aparentava serenidade, o que apenas aumentava o medo e a apreensão no olhar das pessoas.

Àquela noite seguiram-se dias funestos, de tristeza e afli-

ção. Nas primeiras horas do dia seguinte, o vento frio se encarregou de trazer aos ouvidos dos moradores da vila os gritos de dor aguda. Quem procurava se aproximar era desencorajado pelos dois homens mais fortes da comunidade, que haviam sido convocados pelo padre para ajudá-lo na terrível tarefa de arrancar de Mariel sua confissão e que também faziam a vigilância do local. Testemunhas não eram bem-vindas.

As sessões de gritos eram seguidas de longos períodos

de silêncio inquietante. Ao longe, era possível observar grandes tinas onde os homens periodicamente lavavam os punhos, braços e camisas, na tarefa de limpá-los e retirar uma abundante quantidade de sangue. Essa rotina de gritos e silêncios perdurou por três dias e três noites, até que os gritos cessaram e restou apenas o silêncio. Imaginava-se que tudo então estaria terminado, mas o pastor e seus ajudantes continuavam lá, em plena atividade. Mariel não produziu mais nenhum som. Nem mesmo a tão esperada confissão, pois se eles a tivessem obtido, não permaneceriam ainda encerrados lá.

O pastor fazia breves aparições para dar conta de cerimô-

nias, missas e rápidas orações, aparentando cansaço e impaciência. Tinha uma expressão carregada de apreensão e um olhar visivelmente desconcertado. Algumas pessoas se atreviam a lhe

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perguntar se ela havia confessado, o que lhe despertava episódios de fúria. Ela confessou em parte, ele dizia, tendo a plena consciência de que, quanto mais tempo demorasse para obter a confissão, mais enfraquecida sua posição ficaria perante os habitantes da comunidade. Esse tempo transcorria como uma ameaça, pois alguns focos de compaixão e dúvida começaram a brotar. O arrependimento era insinuado nos murmúrios e cochichos, nas conversas e encontros casuais. Percebendo o perigo, o pastor tomou uma decisão.

Ao final de uma semana, em um dia inesperado, os sinos

da igreja soaram convocando a comunidade. A notícia trazia um certo alívio: Mariel havia confessado sua relação com o diabo! Ela estava a serviço dele quando convocou a tempestade de granizo, trazendo confusão aos elementos da natureza. Foi por ordem do próprio satanás que ela adoeceu os homens e quase fez a comunidade inteira arder em febre. Ela se declarou culpada! Não havia mais dúvida! Os dois homens que acompanharam as sessões de tortura foram as únicas testemunhas, mas ninguém se atreveu a contestá-los. Agora, restavam apenas os preparativos para que ela fosse deportada para muito longe dali e, assim, seu poder e influência maléficos enfraqueceriam no local, até desaparecerem completamente. Evidente que muitas orações, súplicas e sacrifícios de toda ordem seriam necessários, mas eles ficariam livres dos males causados pela bruxa. A maldição iria embora com ela! O pastor assegurava isso! A comunidade sentiu um alívio que anestesiou suas mentes.

Quem também havia trabalhado dia e noite, em segredo,

era o ferreiro da vila. Ao cabo de uma semana de trabalho, ele entregou ao pastor uma pesada jaula para o transporte de Mariel. Era, na verdade, um pequeno cubo feito com grossas barras de ferro, onde ela seria acorrentada, mãos e tornozelos, de modo que só poderia ficar de joelhos. Ali dentro, nessa incômoda posição, ela seria transportada e continuaria sofrendo sua dolorosa punição.

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Ao cair daquela mesma noite, a jaula foi colocada so-

bre uma carroça e amarrada com firmeza. Algumas pessoas acompanharam o trabalho dos homens e puderam contemplar, mesmo na escuridão, a figura que jazia acorrentada no cubo de ferro. Era impossível ter uma visão clara de Mariel. Seus cabelos vermelho-fogo estavam desgrenhados e colados ao seu rosto com placas de sangue que não foram limpas. Havia grandes manchas escuras por toda a roupa, e ficava evidente que nenhum esforço tinha sido feito para estancar os sangramentos. E, antes que a jaula fosse coberta com uma lona, alguém se aproximou e disse, quase em um sussurro: “Adeus, Mariel”. Era Helen, que ainda estendeu a mão e logo soltou um soluço profundo e gutural, para em seguida cair sem sentidos. Mesmo entre aquele emaranhado de cabelos, ela havia tido um vislumbre de um par de olhos azuis que a encararam profundamente. O que quer que ela tivesse visto neles foi suficiente para que desmaiasse.

O pastor fez questão de ele mesmo puxar a lona e termi-

nar de encobrir a jaula, enquanto alguns acudiam Helen. Ele foi até os homens e, em voz baixa, fez as últimas recomendações. “Vocês sabem o que deve ser feito.”

Foram cinco dias de uma longa e demorada viagem, com

poucas paradas para descanso, onde apenas os cocheiros e os cavalos eram alimentados e saciavam sua sede. Foi uma jornada de silêncio. Durante todo o trajeto, a lona nunca foi erguida. Não existia coragem para que alguém constatasse, mesmo que furtivamente, se a passageira ainda estava viva. Os ruídos da jaula de metal batendo na madeira da carroça e das rodas trepidando nas pedras da estrada foram os únicos sons produzidos por aquele cortejo fúnebre.

Fazia muito frio e nem mesmo o sol do meio-dia aque-

cia o ar quando eles chegaram ao destino. Não era uma cidade, um ancoradouro ou um porto que levasse a uma ilha qualquer. Era um grande lago, cercado por árvores que pareciam tocar o céu. Perdido no meio do nada, ele formava uma linda e silen-

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ciosa paisagem. Em um extremo do lago havia uma pequena e improvisada balsa à espera dos homens. Madeira atada de última hora, por orientação de alguém que deveria ter pressa. Com imensa dificuldade e muito esforço, eles usaram seus poderosos músculos para depositar a grande gaiola sobre a balsa sem que a lona caísse. Mesmo naquele momento, eles não se atreviam a olhar seu interior.

O estranho conjunto deslizou lentamente até o centro

do lago.

Foi então que um arrepio de pavor percorreu os homens.

Era possível ouvir sob a lona uma voz fraca e contínua, em algo que se assemelhava a uma oração. Eles se entreolharam em pânico. Hesitaram. Grossas lágrimas brotaram em seus rostos rudes e desprovidos de emoção. Um deles tombou de joelhos sobre a frágil embarcação. Antes que ele perdesse o controle, o outro o ergueu pelo braço e disse energicamente: “Lembre-se do que nos disse o padre! Vamos fazer apenas o que ele nos disse para fazer e cair fora daqui!”.

Quase por impulso, e sem pensar em mais nada, eles em-

purraram a jaula para a água, agarrando a lona e revelando um corpo de mulher, coberto por fartos cabelos cor de fogo e envolto em roupas que mais pareciam farrapos. Ela ainda lançou no ar um grito agudo de desespero antes que a estrutura de metal caísse com um baque forte contra a superfície do lago. O metal, o corpo e as roupas afundaram lentamente.

Os cabelos vermelhos formaram um torvelinho e foram

a última coisa que se viu desaparecer, sugados para dentro da água escura.

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