Half-Real

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videogames entre regras reais e mundos ficcionais jesper juul

juul

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eletrônicos quanto um desenvolvimento a partir deles. O livro combina perspectivas de campos como literatura, teoria do cinema, ciência da computação, psicologia, teoria dos jogos da economia e estudos em videogame para traçar uma teoria sobre o que os videogames são, como atuam sobre o jogador, como se desenvolveram historicamente e por que são tão divertidos.

Juul apresenta o modelo clássico de jogo, que descreve a construção tradicional dos jogos, e aponta para futuros desenvolvimentos. Ele examina como as regras oferecem desafios, aprendizado e prazer para os jogadores e como um jogo leva o jogador a imaginar seu mundo ficcional. O estilo vívido e eclético de Juul e os desdobramentos de suas fontes fazem de Half-Real uma obra de interesse para a mídia, a literatura e os estudiosos tanto quanto para os profissionais de videogame e os próprios gamers.

I SB N 978-85-212-1531-8

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nos videogames. Discutindo jogos desde Pong até The Legend of Zelda, desde xadrez até Grand Theft

visitante do New York University Game Center. É autor de A Casual Revolution: Players (MIT Press, 2010).

Ganhamos ou perdemos o jogo no mundo real, mas matamos um dragão (por exemplo) somente no

Auto, ele mostra como os videogames são tanto um ponto de partida para os jogos tradicionais não

Jesper Juul é professor assistente

Reinventing Video Games and Their

Um videogame é meio real: jogamos com regras reais enquanto imaginamos um mundo ficcional.

mundo do jogo. Neste instigante estudo, Jesper Juul examina a tensão constante entre regras e ficção

jesper juul


JESPER JUUL

HALF-REAL

Videogames entre regras reais e mundos ficcionais

Tradução Alan Richard da Luz


Título original: Half-real: Video Games between Real Rules and Fictional Worlds Half-real: videogames entre regras reais e mundos ficcionais © 2005 Jesper Juul © 2019 Editora Edgard Blucher Ltda.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057

Rua Pedroso Alvarenga, 1245, 4o andar 04531-934 – São Paulo – SP – Brasil Tel.: 55 11 3078-5366 contato@blucher.com.br www.blucher.com.br

Juul, Jesper Half-real : videogames entre regras reais e mundos ficcionais / Jesper Juul ; tradução de Alan Richard da Luz. -– São Paulo : Blucher, 2019. 212 p. Bibliografia

Segundo o Novo Acordo Ortográfico, conforme 5. ed. do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, Academia Brasileira de Letras, março de 2009.

ISBN 978-85-212-1531-8 (impresso) ISBN 978-85-212-1533-2 (e-book) Título original: Half-real: Video Games between Real Rules and Fictional Worlds 1. Vídeogames - Aspectos Psicológicos 2. Vídeogames - Regras I. Título. II. Luz, Alan Richard da.

É proibida a reprodução total ou parcial por quaisquer meios sem autorização escrita da editora. Todos os direitos reservados pela Editora Edgard Blücher Ltda.

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CDD 794.8

Índice para catálogo sistemático: 1. Videogames - Aspectos Psicológicos


Conteúdo

Prefácio à edição brasileira, 7 Prefácio, 11 1. Introdução, 15 2. Videogames e o modelo clássico de jogo, 33 3. Regras, 61 4. Ficção, 119 5. Regras e ficção, 155 6. Conclusões, 185 Referências, 191 Índice remissivo, 205


1. Introdução

No título, Half-Real se refere ao fato de que os videogames são duas coisas diferentes ao mesmo tempo: videogames são reais por consistirem em regras reais com as quais os jogadores realmente interagem, e, por isso, ganhar ou perder um jogo é um evento real. Entretanto, quando se ganha um jogo matando um dragão, o dragão não é real, e sim ficcional. Jogar um videogame é, portanto, interagir com regras reais enquanto se imagina um mundo ficcional, e um videogame é tanto um conjunto de regras como um mundo ficcional. O jogo Legend of Zelda: The Wind Waker (NINTENDO, 2003a), na Figura 1.1, tem sido elogiado por seus gráficos expressivos, mundo grandioso e história detalhada. Na figura, o personagem do jogador viajou para longe de sua ilha natal à procura de sua recém-abduzida irmãzinha. Além do mundo ficcional do jogo, não apenas temos uma variedade de mensagens na tela fornecendo ao jogador muitas informações como há também uma curiosa seta pulando sobre a garotinha no campo de flores. A seta indica que estamos jogando um jogo com regras e objetivos a serem alcançados. Ela diz que podemos interagir com a garota e que talvez nos ajude a progredir no jogo. Ela também ilustra que, apesar de os gráficos mostrarem um mundo ficcional elaborado, somente uma parte desse mundo é realmente implementado nas regras do jogo; e a seta indica que parte da ficção do jogo também pode ser encontrada nessas regras. Assim, Legend of Zelda: The Wind Waker aponta para um mundo ficcional e também para as regras do jogo. Estas são as duas coisas das quais os jogos são feitos: regras reais e mundos ficcionais. Por terem mundos ficcionais, os videogames se desviam dos jogos tradicionais não eletrônicos, que são em sua maioria abstratos,1 e isso é parte da novidade dos videogames. A interação entre regras de jogo e ficção de jogo é uma das características mais importantes dos videogames, e é um tema central deste livro. Essa interação está presente em muitos aspectos dos jogos: no próprio design dos jogos; na maneira como percebemos e usamos os jogos; e na maneira como discutimos os jogos. Essa interação dá ao jogador a escolha entre imaginar o mundo do jogo e ver a representação como um mero marcador de posição para as informações sobre as regras do jogo. Além disso, nos deparamos com uma escolha entre o foco no próprio jogo ou no jogador do jogo: nós podemos examinar as regras da forma como elas são encontradas mecanicamente no código do jogo ou no manual de um jogo de tabuleiro, ou podemos examinar as regras como algo que os jogadores negociam e aprendem e com o qual ele gradualmente melhora suas habilidades. Podemos também tratá-lo como um conjunto fixo de sinais que o jogo apresenta, e podemos tratá-lo como algo que o jogo leva o jogador a imaginar e que os jogadores então imaginam à sua própria maneira. Este livro tem a intenção de integrar essas duas perspectivas distintas em uma teoria coerente sobre videogames. 1 A mudança do abstrato para o representacional nos games não é apenas uma mudança do não eletrônico para o baseado em computador, mas também do não comercial para o comercial.


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Figura 1.1: Legend of Zelda: The Wind Waker (NINTENDO, 2003a): a seta aponta para o que é importante segundo as regras do jogo.

O velho e o novo A história dos videogames é tanto curta quanto longa. O primeiro videogame foi provavelmente o jogo Spacewar!, de 1961 (Figura 1.2) (RUSSELL, 1961). O videogame tem, portanto, um pouco mais de quarenta anos de idade e é parte da cultura popular há cerca de trinta anos. Compare isso aos quase 75 anos da televisão, cem anos do cinema e quinhentos anos da imprensa. Portanto, os videogames são comparativamente uma nova forma de cultura, intimamente ligada ao surgimento dos computadores, com datação posterior à literatura, ao cinema e à televisão. Entretanto, se pensarmos no videogame como jogos, eles não são sucessores do cinema, da imprensa ou da literatura, ou uma nova mídia, e sim a continuação de uma história dos jogos que os precede por um milênio. O jogo de tabuleiro egípcio “Senet” (Figura 1.3), encontrado em uma tumba de 2686 a.C. de Hesy-Ra, é um precursor do gamão contemporâneo e do Parcheesi, jogos que são comumente jogados usando-se computadores hoje em dia. Portanto, a questão não é se os videogames são novos ou velhos, e sim de que maneira os videogames são jogos, de que maneira tomam emprestados elementos dos jogos não eletrônicos e de que maneira eles se diferenciam das formas tradicionais de jogos. Mas por que nós jogamos jogos usando o computador em vez de outras invenções recentes como o telefone, o micro-ondas, carros ou aviões? Parece haver uma afinidade básica entre jogos e computadores: do mesmo modo que a imprensa e o cinema têm his-


2. Videogames e o modelo clássico de jogo

Os oito jogos nas Figuras 2.1 a 2.8 parecem bem diferentes: alguém poderia sentir-se tentado a concluir que eles não têm nada em comum e que compartilham o termo “jogos” por uma coincidência linguística insignificante. Nas palavras de Ludwig Wittgenstein, “O que é comum a todos eles? – Não diga: ‘Deve haver algo em comum, senão eles não seriam chamados ‘jogos’” – mas olhe e veja se há algo comum a todos” ([1953] 2001, p. 27). De fato, esse é o assunto deste capítulo. Baseado em sete definições feitas anteriormente por outros escritores, crio uma nova definição de jogo que chamo de modelo clássico de jogo.1 O modelo é clássico no sentido de que é o modo com que os jogos têm tradicionalmente sido construídos. Ele também é um modelo que se aplica a pelo menos 5 mil anos de história de jogos. Apesar de ser inusitado afirmar que qualquer aspecto da cultura humana permanece inalterado há milênios, existem fortes argumentos para isso. Na introdução, eu menciono o jogo egípcio de tabuleiro Senet, que parece ser um precursor de jogos contemporâneos como o gamão e o Parcheesi (PICCIONE, 1980). Além disso, os jogos de cartas e de tabuleiro desenvolvidos durante os últimos mil anos comumente têm uma história europeia-africana-asiática compartilhada, e o antropólogo americano Stewart Culin documentou os jogos dos indígenas norte-americanos (CULIN, 1907). Isso significa que os jogos que seguem o modelo clássico de jogo são conhecidos na vasta maioria das culturas humanas.2 Embora muitas definições de jogo tenham sido sugeridas, a que eu proponho aqui tem o objetivo de explicar o que relaciona os videogames a outros jogos e o que acontece nas fronteiras dos jogos. Que aparência essa definição deveria ter? Nós estamos provavelmente interessados na compreensão das propriedades dos jogos em si (o artefato projetado pelos desenvolvedores de jogos), como o jogador interage com eles, e o que significa estar jogando em vez de, digamos, trabalhando. Então vamos assumir que uma boa definição deve descrever estas três coisas: (1) o sistema configurado pelas regras de um jogo, (2) a relação entre o jogo e o jogador desse jogo, e (3) a relação entre o jogar esse jogo e o resto do mundo. Como demonstrado por Bernard Suits (1978), a maneira mais simples de se testar uma definição de jogo é verificar se ela é muito ampla ou muito estreita. Para configurar o teste antes da definição, eu admitirei que Quake III Arena (ID SOFTWARE, 1999), Dance Dance Revolution (KONAMI, 2001), damas, xadrez, futebol, tênis e o jogo de cartas copas fora são jogos;

1 A ideia de descrever um modelo clássico de um campo historicamente em mudança vem de Bordwell, Staiger e Thompson (1985). 2 De acordo com E. M. Avedon e Brian Sutton-Smith, existem culturas sem jogos (1971, p. 4-5).


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Figura 2.1: Asteroids (ATARI, 1979).

Figura 2.2: Burger Time (DATA EAST, 1982).


3. Regras

Regras de jogos são paradoxais: regras e prazer podem soar como coisas bem diferentes, mas elas são a mais consistente fonte de prazer nos jogos. Nós podemos associar regras a sermos impedidos de fazer algo que realmente queremos, mas nos jogos nos submetemos voluntariamente a elas. As regras de um jogo são projetadas para serem fáceis de aprender, para que funcionem sem exigir qualquer talento dos jogadores, mas também oferecem desafios que exigem habilidade para serem superados. Finalmente, as regras de um jogo tendem a ser mais do que a soma de suas partes: em muitos jogos, as estratégias necessárias para se jogar são mais complexas que as próprias regras. Regras fixas são uma característica central dos jogos, mas elas não aparecem do nada; são criadas pelos jogadores em jogos tradicionais e por designers de jogos em jogos comerciais. Muitos jogos são jogados usando-se cartas ou computadores, mas as regras parecem ser as mesmas, mesmo se são os jogadores que controlam as regras quando o jogo é jogado com cartas e é o computador que as controla quando se joga a versão videogame. Assim como um jogo pode transitar entre diferentes mídias, as regras também podem. Mas, então, do que são feitas as regras e a que função do jogo elas servem? Vamos admitir que os jogos são prazerosos em parte porque os jogadores apreciam o sentimento de conquista que a resolução de um desafio lhes dá. Em um jogo multiplayer, o prazer pode vir também da interação com outros jogadores, da disputa ou do jogo de equipe envolvidos em jogar. Esses não são os únicos aspectos prazerosos dos jogos, mas estão certamente entre os mais universais. Em resumo, regras funcionam assim: 1. Regras são projetadas para estarem acima de qualquer discussão, no sentido de que uma regra específica deve ser suficientemente clara para que os jogadores possam concordar sobre como usá-la. Regras descrevem o que os jogadores podem e não podem fazer, e o que deveria acontecer em resposta às ações do jogador. Regras devem ser implementáveis sem qualquer inventividade. 2. As regras de um jogo constroem uma máquina de estado, uma “máquina” que responde à ação do jogador (independentemente de o jogo ser jogado usando-se um computador ou não). 3. A máquina de estado do jogo pode ser visualizada como uma paisagem de possibilidades ou uma árvore do jogo ramificada de possibilidades instante a instante durante a partida. Jogar um jogo é interagir com a máquina de estado e explorar a árvore do jogo.


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4. Já que um jogo tem múltiplos resultados, o jogador deve se esforçar para alcançar o resultado mais positivo possível. Geralmente é mais difícil alcançar um resultado positivo do que um negativo – mais difícil vencer que perder. Se o jogador trabalha na direção do resultado positivo, ele enfrenta um desafio. 5. O modo como o jogo na verdade é jogado quando o jogador tenta superar seus desafios é seu gameplay. O gameplay é uma interação entre as regras e a tentativa do jogador de jogar o jogo tão bem quanto possível. 6. Jogos são experiências de aprendizado por meio das quais o jogador melhora suas habilidades em jogá-los. A cada momento, o jogador terá um repertório específico de habilidades e métodos para superar os desafios. Parte da atratividade de um bom jogo é que ele desafia continuamente e faz novas demandas ao repertório do jogador. 7. Qualquer jogo específico pode ser mais ou menos desafiador, enfatizar tipos diferentes de desafios ou mesmo servir como pretexto para um evento social. Esta é a maneira por meio da qual as regras podem dar aos jogadores experiências prazerosas, e diferentes jogos proporcionam experiências diferentes. Existem duas maneiras extremas de criar desafios para o jogador: emergência (regras combinadas para oferecer variação) e progressão (desafios apresentados serialmente por meio de regras especiais). Jogos de emergência são historicamente a forma dominante. Jogos de progressão são uma nova forma com que o designer de jogos explicitamente determina as possíveis maneiras por meio das quais o jogo pode progredir. As regras em um jogo de emergência apresentam um paradoxo contido na sentença fácil de aprender, mas difícil de dominar. Essa é uma descrição comum do tipo de jogo com regras nominalmente simples em que, mesmo assim, é exigido um esforço imenso para se ganhar proficiência em jogá-lo. O aparente paradoxo aqui é que a simplicidade das regras de um jogo pode levar a um gameplay muito complexo. Emergência nos jogos acontece de diferentes formas, e isso explica muitos aspectos interessantes dos jogos, como o fato de que um deles pode ser jogado por centenas de anos sem se esgotar; como o real jogar pode ser imprevisível mesmo para seu designer. O elemento de surpresa em jogos de emergência é especial no sentido de ser uma interação entre as regras do jogo e as maneiras diferentes de os humanos entenderem os jogos. O que faz um desafio prazeroso? Usando uma combinação da discussão sobre puzzles de Marcel Danesi (2002) e das discussões da comunidade de desenvolvimento de games sobre o que Sid Meier chamou de escolhas interessantes (ROLLINGS; MORRIS, 2000, p. 38), eu examinarei que tipos de desafios os jogos podem oferecer e como. Regras não são as únicas fontes de prazer nos jogos; eu discutirei o prazer dos jogos como mundos ficcionais no Capítulo 4. O que são regras Geralmente existe uma divisão muito clara entre a ficção e as regras de um jogo: as regras do xadrez governam o movimento das peças; a representação da ficção no xadrez é a forma e cor das peças. Não importa o formato das peças, pois as regras, o gameplay e as estratégias se mantêm idênticos.


4. Ficção

Apesar de todos os jogos terem regras, a maioria dos videogames também projeta um mundo ficcional: o jogador controla um personagem; o jogo acontece em uma cidade, em uma floresta ou em qualquer outro lugar. Tais mundos ficcionais, obviamente, não existem realmente; são mundos que o jogo apresenta e o jogador imagina. O foco deste capítulo são os tipos de mundos que nós encontramos nos jogos e como os jogos levam o jogador a imaginar mundos. Regras e ficção competem pela atenção do jogador. Elas são complementares, mas não simétricas: como todos os jogos têm regras e como as regras são um aspecto distinto dos jogos, foi possível no capítulo anterior discuti-las na maioria das vezes sem mencionar a ficção. Entretanto, não é possível lidar com a ficção nos jogos sem discutir as regras. O mundo ficcional de um jogo é projetado de várias maneiras – usando gráficos, som, texto, propaganda, o manual do jogo e por meio das regras. A maneira como os objetos do jogo se comportam também influencia o mundo ficcional que o jogo projeta. Apesar de as regras poderem funcionar independentemente da ficção, a ficção depende das regras. No Capítulo 3, descobrimos que as regras são projetadas para serem objetivas, obrigatórias, inequívocas e geralmente acima de discussão. Com a ficção, nós descobrimos que o oposto é verdadeiro: uma boa parte da atração da ficção nos jogos é altamente subjetiva, opcional, ambígua e geralmente evocativa e sujeita a discussão. Regras e ficção são atraentes por razões opostas. Os jogos projetam mundos ficcionais através de uma variedade de diferentes meios, mas os mundos ficcionais são imaginados pelo jogador, e ele preenche quaisquer furos nele. Muitos jogos também apresentam mundos ficcionais que são opcionais para o jogador imaginar, e alguns apresentam mundos que são contraditórios e incoerentes. Ficção costuma ser confundida com narrativa. Estou usando ficção para significar qualquer tipo de mundo imaginado, enquanto, de maneira breve, uma história é uma sequência fixa de eventos que é apresentada (encenada ou narrada) para um usuário. Moby Dick, de Herman Melville, é uma história e uma ficção, enquanto uma pintura como La Grande Jatte, de Georges Seurat, é uma ficção, mas não uma história, já que somente apresenta um momento no tempo. Eu irei examinar a questão dos jogos e histórias no final deste capítulo.


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Mundos ficcionais Que tipos de lugares são Norrath em EverQuest ou o complexo Black Mesa em Half-Life (VALVE SOFTWARE, 1998)? Eles não são histórias fixas, mas mundos ficcionais. A teoria dos mundos ficcionais é derivada do conceito de mundos possíveis da filosofia analítica. Em sua forma mais básica, “mundos possíveis podem ser entendidos como coleções abstratas de estados de coisas, distintos das afirmações que descrevem esses estados” (PAVEL, 1986, p. 50). Nos mundos ficcionais, há uma distinção importante entre a descrição de um mundo ficcional e o mundo ficcional como ele é realmente imaginado. O texto de Hamlet descreve diretamente um mundo bastante pequeno, sobretudo um castelo em Elsinore com algumas sugestões de países estrangeiros. Ao mesmo tempo, o mundo ficcional de Hamlet é presumidamente tão largo e detalhado como o mundo real. A obra não somente deixa o leitor imaginar os estados de coisas descritos pela peça, mas também faz inferências sobre o mundo maior de Hamlet com base no texto. Assim, o leitor executa um grande trabalho para imaginar um mundo ficcional, e, consequentemente, leitores e jogadores diversos imaginarão um mundo ficcional diferentemente.1 Isso ocorre porque todos os mundos ficcionais são incompletos. Não existe nenhuma ficção que especifique completamente todos os aspectos de um mundo ficcional: “Para muitos escritores, a incompletude constitui uma grande característica distintiva dos mundos ficcionais. Sobre mundos completos, uma pessoa pode decidir que, para qualquer proposição p, ou p ou sua negação não p é verdade naquele mundo” (PAVEL, 1986, p. 107). Eles são incompletos porque não é possível especificar todos os detalhes sobre qualquer mundo (PAVEL, 1986, p. 75). Por exemplo, não é possível determinar a quantidade de filhos que Lady Macbeth tem – essa é uma questão sobre a qual não se pode decidir (RYAN, 1992, p. 532-533). Sobre qualquer mundo ficcional faltarão certas informações. Algumas serão preenchidas pelo usuário, enquanto outras permanecerão sujeitas a controvérsia: “As leis da natureza que não são especificamente contraditas pelo texto pertencem a seus mundos: [...] cada criança nascida na ficção foi engendrada por um pai humano, não há razão para duvidar dessa regularidade, a não ser que o texto sinalize essa exceção” (PAVEL, 1986, p. 105). Em muitos casos, a incompletude de um mundo ficcional deixa o usuário com um grande número de escolhas para imaginar o mundo. Marie-Laure Ryan tem proposto o princípio da partida mínima, o qual afirma que quando um pedaço da informação sobre o mundo ficcional não é especificado, nós o preenchemos usando o nosso entendimento do mundo real (RYAN, 1991, p. 48-60). Em um gênero específico, nós preenchemos as partes faltantes usando uma combinação de conhecimento do mundo real e conhecimento das convenções de tal gênero. Em um conto de aventura, nós preenchemos as lacunas usando uma combinação do conhecimento do gênero de aventura e nosso conhecimento do mundo real, de modo que, apesar de não termos nenhuma experiência com bruxas, nós assumimos que uma bruxa em uma aventura tem poderes mágicos. Por que Mario tem três vidas? Half-Life acontece em um mundo onde um experimento científico dá errado e uma inva1

Aqui, ficcional significa principalmente “imaginado”. Não é uma avaliação do valor de verdade.


5. Regras e ficção

Regras e ficção interagem, competem e complementam uma a outra. Um videogame pode projetar um mundo, e o jogo ser jogado somente em uma parte desse mundo ficcional. Examinando alguns exemplos de jogos em detalhe, percebe-se que a ficção nos videogames exerce um papel importante em fazer o jogador compreender as regras do jogo. Uma declaração sobre um personagem ficcional em um jogo é meio real, já que descreve tanto uma entidade ficcional como as reais regras de um jogo. No processo de design de um jogo, o designer deve selecionar que aspectos do mundo ficcional implementar nas regras. O jogador então experiencia o jogo como um processo de duas vias no qual a ficção do jogo o leva a entender as regras do jogo, e, novamente, as regras podem leva o jogador a imaginar o mundo ficcional do jogo. Regras e ficção raramente se correspondem completamente; existem muitos exemplos de desajustes contraditórios entre elas. É, portanto, tentador descrever sua relação como inerentemente problemática, mas quando regras e ficção não correspondem perfeitamente, isso pode ainda assim gerar um efeito positivo, funcionando como um meio de brincar com as expectativas do jogador, como um meio de fazer paródia e, finalmente, como um meio de trazer à tona o jogo como uma atividade do mundo real. Entretanto, o espaço nos jogos é um caso especial. O design de níveis de um mundo de jogo pode apresentar um mundo ficcional e ao mesmo tempo determinar o que os jogadores podem e não podem fazer. Desse modo, o espaço nos jogos pode funcionar como uma combinação de regras e ficção. Com as ideias desenvolvidas ao longo deste livro, irei finalmente considerar o que um jogo significa. Espaço de mundo e espaço de jogo Na Introdução deste livro, mencionei a afirmação empiricamente incorreta de Roger Caillois de que os jogos ou são regrados, ou são de faz de conta. Vamos revisitar esse argumento: Apesar do caráter paradoxal da asserção, eu postularei que nesse exemplo a ficção, o sentimento de e se substitui e faz a mesma função das regras. As regras em si criam ficção. Aquele que joga xadrez, prisioneiro, polo ou bacará, pelo simples fato de cumprir com suas respectivas regras, está separado da vida real, na qual não há atividade que literalmente corresponda a qualquer desses jogos. É por isso que xadrez, prisioneiro, polo e bacará são jogados de verdade. O e se não é neces-


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(Real) ESPAÇO DO MUNDO

Espaço do jogo

Círculo mágico

Figura 5.1: Um jogo físico (como o futebol): o espaço de jogo é um subconjunto do espaço do mundo real.

sário […] Portanto, jogos não são baseados em regras e faz de conta. Em vez disso, são baseados em regras ou faz de conta (CAILLOIS, 1961, p. 8-9).

Ainda que sua conclusão esteja incorreta, Caillois aponta para uma semelhança interessante entre as regras e a ficção: ambas contêm um elemento de separação com relação ao resto do mundo. As regras separam o jogo do resto do mundo esculpindo uma área onde as regras se aplicam; a ficção projeta um mundo diferente do mundo real. O espaço de um jogo é parte do mundo no qual o jogo é jogado, mas o espaço de uma ficção está fora do mundo no qual ele é criado. Com base em Johan Huizinga, Katie Salen e Eric Zimmerman usaram o termo círculo mágico para descrever a fronteira entre o contexto no qual o jogo é jogado e o que está fora desse contexto: O termo é usado aqui como um atalho para a ideia de um lugar especial no tempo e no espaço criado por um jogo […] Como um círculo fechado, o espaço que ele circunscreve é fechado e separado do mundo real […] em um sentido muito básico, o círculo mágico é onde o jogo acontece (2004, p. 95).

O futebol é jogado dentro de um campo de jogo designado; um jogo de tabuleiro somente acontece no tabuleiro. Pode-se expandir isso a fim de oferecer uma descrição mais geral da relação entre o espaço no qual o jogo é jogado e o espaço do mundo em torno dele. Em esportes ou jogos de tabuleiro, o espaço de jogo é um subconjunto do espaço do mundo: o espaço no qual o jogo acontece é um subconjunto do mundo maior, e o círculo mágico delineia os contornos do jogo (Figura 5.1). Quando um jogo com bola tem uma regra que prescreve que o jogo para se a bola deixa o campo de jogo, isso se relaciona à fronteira entre o espaço de jogo e o espaço do mundo. Mas, nos videogames, o círculo mágico é mais bem definido, já que um videogame somente acontece na tela e usando os instrumentos de entrada (mouse, teclado, controles), que no resto do mundo; consequentemente, não há


6. Conclusões

A intenção deste livro tem sido criar uma teoria básica dos videogames: os videogames são uma combinação de regras e ficção. Regras são descrições definitivas do que pode e não pode ser feito em um jogo, e elas oferecem desafios que o jogador deve gradualmente aprender a superar. A ficção é ambígua – o jogo pode projetar mundos ficcionais mais ou menos coerentes que o jogador pode, então, imaginar. O modelo clássico de jogo descreve os jogos em três níveis: o jogo em si, a relação do jogador com o jogo e a relação entre jogar e o resto do mundo. A teoria inteira pode, portanto, ser descrita como a intersecção entre jogos como regras e jogos como ficção e a relação entre o jogo, o jogador e o mundo (Quadro 6.1). O jogador pode escolher um jogo, inventar um jogo ou negociar as regras de jogo com outros jogadores. Um jogo pode existir antes de o jogador jogá-lo, mas o jogador geralmente o joga porque quer. A ficção leva o jogador a entender as regras, e estas podem levar o jogador a imaginar o mundo ficcional. O Quadro 6.1 não implica causalidade – a teoria não tem um primeiro princípio ou ponto de partida, mas muitas partes simultâneas que interagem. O modelo clássico de jogo O modelo clássico de jogo é uma maneira de capturar o que o jogo é descrevendo-o em termos do próprio jogo, a relação psicológica do jogador com o jogo e a relação entre jogar o jogo e o resto do mundo. Chamei a esse modelo de clássico porque ele descreve quase todos os jogos desde 3000 a.C. até o final do século XX. O modelo clássico de jogo aponta traços compartilhados entre muitas das coisas que chamamos de “jogos”, e, como é muito aberto, pode ser usado para diferenciar os jogos uns dos outros. As letras de um romance, as ondas sonoras de uma música e as imagens de um filme são núcleos técnicos que são usados para criar um conjunto diverso de obras que produzem um conjunto diverso de experiências. De modo similar, o modelo descreve um núcleo que os jogos compartilham de regras, resultados variáveis, valores atribuídos a potenciais resultados, esforço do jogador, ligação emocional com os resultados e consequências negociáveis. O modelo clássico de jogo também nos ajuda a ver que os jogos são criados e jogados usando-se diferentes ferramentas: jogos são transmidiáticos e os computadores são uma mídia de jogos. Às vezes é mais fácil ver um padrão quando ele é quebrado, e o modelo clássico de jogo talvez tenha se tornado mais fácil identificar agora que os videogames evoluíram para além dele.


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Quadro 6.1: Os videogames e as seis definições de narrativa

Regras

O jogo (O jogo como um artefato)

O jogador (O jogador e o jogo)

O mundo (O jogar o jogo e o resto do mundo)

• As regras do jogo

• Gameplay

• Negociação das regras

• A máquina de estado

• Learning

• A árvore de jogo -

• O repertório do jogador

• Repertório de habilidades que o jogador traz • Interação social • Ganhar e perder • Negociação das consequências

Ficção

• Sinaliza a projeção de um mundo ficcional

• O modo como o jogador realmente imagina o mundo ficcional

• Convenções do cinema • Convenções dos jogos • Conhecimento do mundo • Convenções de interpretação

Desse modo, o modelo descreve mudanças históricas e mostra como os jogos se desenvolvem. Anteriormente, discuti a origem dual dos videogames – o jogo de arcade e o jogo de aventura. As condições econômicas que cercavam os jogos de arcade demandavam que as partidas se mantivessem curtas. O folheto promocional do Pong original enfatiza isso ao anunciar que “a bola é servida automaticamente” (GIELENS, 2000, p. 6). O jogo de ação estava inicialmente amarrado ao modelo de arcade de partidas curtas em jogos que nunca podiam ser completados. Afastar-se das convenções dos jogos de arcade se tornou uma parte significativa do início da história comercial dos videogames. Isso pavimentou o caminho para jogos persistentes e save games que modificam como o resultado é definido, e a proliferação de cheat codes semioficiais tem tornado possível que os jogadores quebrem as regras dos videogames a fim de acomodar seus próprios desejos. Ainda assim, é possível argumentar que a consequência mais interessante é o aparecimento de jogos sem um resultado claramente valorado. Embora os jogos que atendem ao modelo clássico de jogo sejam um grande sucesso, eles têm uma fraqueza: ainda que uma valorização clara (objetivo) e a ligação emocional ao resultado ofereçam ao jogador uma oportunidade para ter sucesso, também significam que o jogador pode falhar miseravelmente. Além disso, quando há um objetivo claro, os jogadores são mais ou menos forçados a focar na otimização de suas estratégias, mas isso pode ir contra o que os jogadores querem fazer. SimCity, The Sims e muitos jogos de interpretação de papéis (RPG) não têm objetivos oficiais, de modo que os jogadores são encorajados a configurar seus próprios objetivos pessoais de


videogames entre regras reais e mundos ficcionais jesper juul

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Jesper Juul é professor assistente visitante do New York University Game Center. É autor de A Casual Revolution: Reinventing Video Games and Their Players (MIT Press, 2010).

Um videogame é meio real: jogamos com regras reais enquanto imaginamos um mundo ficcional. Ganhamos ou perdemos o jogo no mundo real, mas matamos um dragão (por exemplo) somente no

nos videogames. Discutindo jogos desde Pong até The Legend of Zelda, desde xadrez até Grand Theft Auto, ele mostra como os videogames são tanto um ponto de partida para os jogos tradicionais não eletrônicos quanto um desenvolvimento a partir deles. O livro combina perspectivas de campos como literatura, teoria do cinema, ciência da computação, psicologia, teoria dos jogos da economia e estudos em videogame para traçar uma teoria sobre o que os videogames são, como atuam sobre o jogador,

half-real

mundo do jogo. Neste instigante estudo, Jesper Juul examina a tensão constante entre regras e ficção

como se desenvolveram historicamente e por que são tão divertidos.

Juul apresenta o modelo clássico de jogo, que descreve a construção tradicional dos jogos, e aponta para futuros desenvolvimentos. Ele examina como as regras oferecem desafios, aprendizado e prazer para os jogadores e como um jogo leva o jogador a imaginar seu mundo ficcional. O estilo vívido e eclético de Juul e os desdobramentos de suas fontes fazem de Half-Real uma obra de interesse para a mídia, a literatura e os estudiosos tanto quanto para os profissionais de videogame e os próprios gamers.

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Half-Real� Videogames entre regras reais e mundos ficcionais������ Jesper Juul ISBN: 9788521215318 Páginas: 212 Formato: 17 x 24 cm Ano de Publicação: 2019


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