Capa_Rolland_Lingua e o psiquico_P3.pdf 1 21/03/2022 23:54:40
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Por quais vias a atividade da fala, tal como se dá na intimidade da sessão analítica, constitui-se como principal instrumento, capaz de instaurar transformações na vida psíquica e consequentemente o êxito da análise? Quais lugares a imagem, com sua substância sensorial, e a palavra ocupam nos processos psíquicos? O autor debruça-se com inspiração e paixão sobre estas questões, apoiando-se na metapsicologia freudiana, e numa escuta analítica fina e sensível, apresenta-nos hipóteses consistentes, e com grande valor heurístico, acerca das propriedades da língua e das operações que ela executa no seio do tratamento psicanalítico. Ricardo Luiz Saliby PSICANÁLISE
PSICANÁLISE
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Nos vinte ensaios reunidos neste livro, Jean-Claude Rolland realiza uma investigação metapsicológica aguda e criativa a respeito do funcionamento do inconsciente, destacando a função radical da palavra e da língua no processo analítico.
A língua e o psíquico
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É psiquiatra e faz parte de um grupo de psicanalistas da Association Psychanalytique de France (APF) que trabalha em Lyon, onde ocupa a posição de membro titular. Já foi vice-presidente e presidente da APF, além de ter participado ativamente da International Psychoanalytical Association (IPA). Com grande liberdade de pensamento, aliada à sua expressiva tolerância clínica, o autor caracterizou-se por sua independência de pensamento, tendo desenvolvido uma pesquisa original sobre o trabalho da linguagem e sobre o sofrimento no funcionamento psíquico de pacientes. É também autor dos livros Curar do mal de amor (Martins Fontes, 1999), Antes de ser aquele que fala (Blucher, 2017) e Os olhos da alma (Blucher, 2016).
Rolland
Jean-Claude Rolland
Jean-Claude Rolland
A língua e o psíquico
Vinte ensaios metapsicológicos centrados na linguagem e na escuta específica da sessão de análise. Que lugar ocupam esses ingredientes para o funcionamento psíquico, que são, de um lado, a imagem – e a sensorialidade em geral –, de outro, a linguagem e a fala que ela permite? Embora comuns, esses "materiais" permanecem cientificamente pouco compreendidos. Jean-Claude Rolland se propõe justamente a lançá-los a partir da psicanálise em seu objetivo psicoterapêutico, mobilizando também a história da arte que, além de seu projeto estético, contribui para transformar o homem e seu mundo interior.
A LÍNGUA E O PSÍQUICO
Jean-Claude Rolland Tradução
Ana Maria Andrade Azevedo
Título original: Langue et Psyché. Instantanés métapsychologiques A língua e o psíquico Todos os direitos reservados. Tradução autorizada da edição de língua francesa publicada pela editora Ithaque © 2020 Jean Claude-Rolland © 2020 Les Éditions d’Ithaque Editora Edgard Blucher
Publisher Edgard Blücher Editor Eduardo Blücher Coordenação editorial Jonatas Eliakim Produção editorial Lidiane Pedroso Gonçalves Preparação de texto Maurício Katayama Diagramação Villa d’Artes Revisão de texto Isabel Silva Capa Leandro Cunha Imagem da capa iStockphoto
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057 Rua Pedroso Alvarenga, 1245, 4o andar 04531-934 – São Paulo – SP – Brasil Tel.: 55 11 3078-5366 contato@blucher.com.br www.blucher.com.br Segundo o Novo Acordo Ortográfico, conforme 6. ed. do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, Academia Brasileira de Letras, julho de 2021. É proibida a reprodução total ou parcial por quaisquer meios sem autorização escrita da editora. Todos os direitos reservados pela Editora Edgard Blücher Ltda.
Rolland, Jean-Claude A língua e o psíquico / Jean-Claude Rolland ; tradução de Ana Maria Andrade Azevedo. –- 1. ed. -- São Paulo : Blucher, 2022. 230 p. ISBN 978-65-5506-072-0 (impresso) ISBN 978-65-5506-073-7 (digital)
1. Psicanálise 2. Língua e psicanálise I. Título II. Azevedo, Ana Maria Andrade 22-0743
CDD 150.195
Índice para catálogo sistemático: 1. Psicanálise
Conteúdo
Introdução
7
1. A linguagem, suporte da memória
9
2. Os três estados da língua
15
3. Propriedades estruturais da terceira língua
25
4. A palavra incoativa
43
5. O imaginativo (l’imageant)
59
6. A relação de objeto e o objeto interno
75
7. O recalque
93
8. Sublimação e excreção do objeto
103
9. Contrainvestimento e dor
119
10. Estranheza do princípio do prazer
129
11. O Eu inconsciente
143
12. A cena psíquica
155
6
conteúdo
13. Da substância ao signo
165
14. As etapas da figuração
175
15. O conceito do inconsciente renovado pelo conceito da negatividade
185
16. A linguagem em sua relação com o inconsciente (a linguagem contra o inconsciente)
199
17. Discurso e transferência
211
18. O outro ou o Nebenmensch
219
1. A linguagem, suporte da memória
No dia 6 de dezembro de 1896, Freud escreve a Fliess: Você sabe que trabalho com a hipótese de que nossos mecanismos psíquicos surgiram por uma superposição de estratos, onde o material presente sob forma de traços mnésicos, sofre de tempos em tempos um reordenamento segundo novas relações, uma retranscrição. O que há de essencialmente novo em minha teoria é a afirmação segundo a qual a memória não está presente apenas uma vez, mas sim muitas vezes, consignada em diversas espécies de sinais.1
Constatamos que, para seu fundador, a psicanálise não é apenas uma teoria a serviço de um método psicoterapêutico, ela é também uma ciência do psíquico e uma ciência da memória, depósito das dolorosas experiências da infância do homem adulto. A noção de “traço mnésico”, ainda ativa no pensamento metapsicológico tardio do autor, é uma reminiscência da tradição 1 Freud, S. (1986). Lettres à Wilhelm Fliess. Paris: PUF. p. 264.
2. Os três estados da língua
No romance de Madame de Staël, Corinne ou a Itália,3 a heroína se percebe numa intimidade amorosa com seu companheiro de viagem e logo sente fluir em suas próprias palavras sentimentos até então desconhecidos. Os versos de Petrarca, “Il parlar che nell’anima si sente” [A linguagem que se sente na alma], lhe vem à mente, e formula de forma excelente a essência da terceira língua, sobre a qual nos deteremos. A língua é atravessada por correntes que o analista pode diferenciar, sobre as quais ele pode sintonizar seletivamente sua escuta. O pré-consciente designa a linguagem imediatamente disponível para a enunciação, em oposição a uma corrente mais profunda responsável pelo recalque e pelo contrainvestimento das formações do inconsciente. Nessa linguagem própria do pré-consciente, podemos discernir esquematicamente três correntes, descritas a seguir. A Língua Narrativa, a mais superficial, que fala dos acontecimentos. Graças a ela as informações são transmitidas, trocadas, de um locutor à um interlocutor. Ela é a língua comum, diríamos “mundana”. 3 Staël, M. (1841). Corinne et l’Italie. Strasbourg: Freuttel et Würtz. p. 49
3. Propriedades estruturais da terceira língua
Os tropos A terceira língua poderia se aproximar daquilo que os gramáticos tentaram identificar logo que recensearam os tropos, ou seja, as figuras de estilo que, no discurso mais comum se somam às palavras e denotam a elas surpresa, profundidade ou pitoresco. Du Marsais, em Tratado dos tropos, publicado em 1730, os define assim: Em todos os tempos e em todos os lugares onde houve homens, houve também imaginação, paixões, ideias acessórias e, portanto, Tropos . . . estes são muito úteis para disfarçar as ideias duras, desagradáveis, tristes ou contrárias à modéstia . . . são figuras que possibilitam ligar a uma palavra uma significação que não é precisamente a significação própria dessa palavra.5 5 Du Marsais (1977). Traité des tropes. Le nouveau commerce. p. 142.
4. A palavra incoativa
A palavra em après-coup Agora que a noção de terceira língua nos deu uma ideia mais pre� cisa do estatuto da língua, que investe o tratamento, colocamos a seguinte questão: existiria uma atividade da palavra que seria própria ao exercício da análise? Segundo as circunstâncias nas quais a palavra se desenvolve, sabemos que ela dá lugar a modalidades de discursos muito diferentes: a poesia, pelo seu ritmo e seus conteúdos ideativos, e as antípodas da palavra mundana (se fala a Deus nas orações como se fala em um tribunal: a palavra de tribuna visando impressionar sua audiência se opõe à palavra “mediativa”, solidária do filósofo). No tratamento, um fato passa facilmente despercebido e merece atenção aqui: a emergência em um dado momento, de outra palavra que orienta a linguagem dentro de uma “outra” perspectiva, sem que seu locutor pudesse imediatamente precisar em que ela é “outra”. Designei essa palavra com o nome de “palavra incoativa”, pois ela está presente no início do processo analítico, em geral, e dentro de cada sessão: é provável que desse
5. O imaginativo
A língua da imagem A imagem na história da arte A admiração duvidosa dos sábios pelas imagens, em face aos hieróglifos, ou também pelos símbolos, e não pela língua, vinha da crença de que os egípcios não haviam ultrapassado o passo da abstração e ainda não tinham inventado uma escrita alfabética. Até Champollion, os primeiros egiptólogos estavam tão convencidos de que os hieróglifos não eram uma língua comum, mas “figuravam” as “ideias” platônicas, que então eles não imaginavam poder tentar a tradução.24 A escrita hieróglifa fundada sobre a imagem foi mantida, ativamente, por necessidade e não por carência: ela satisfazia as exigências religiosas e psíquicas estreitamente misturadas: garantia um conhecimento atrelado aos homens e aos deuses, um saber antropológico que se seguiria na civilização 24 Pour plus de précisions, voir J.C. Rolland, “La langue du rêve”, Les yeux de l’âme, Gallimard, 2010, p. 60-62.
6. A relação de objeto e o objeto interno
O conceito de objeto A noção de objeto poderia representar a essência da ferramenta teórico-prática, pois ela é aquela que esclarece melhor o fenômeno da transferência, e é o guia mais confiável no manejo e na interpretação desta. Despertando, com efeito, a memória das paixões infantis do analisando, a transferência conduz os objetos de amor a se encarnarem na pessoa do analista. O discurso que se estabelece então dá ao analista os meios para discernir a origem (histórica ou pulsional) desses objetos, e conduzi-los à revelação e, enfim, condená-los à renúncia. O próprio Freud não deu a essa noção de objeto um status teórico tão poderoso como aquele que atribuiu à sexualidade, às instâncias psíquicas e ao complexo de Édipo, por exemplo. Ele o descreveu minuciosamente a noção de objeto em “A pulsão e seus destinos”, um texto metapsicológico que funda a constituição do Eu, a partir de seu contraponto, que é justamente o objeto. Para Freud, o objeto não existe a não ser numa dupla em oposição à
7. O recalque
A sexualidade edípica De acordo com a noção hegeliana de negatividade, é da natureza da língua negar o conteúdo sensorial dos enunciados e representá-los por abstrações simbólicas. De acordo com Freud, o recalque é a operação pela qual a fonte pulsional das representações do desejo e as circunstâncias históricas de seus acontecimentos são reprimidas no inconsciente, enquanto o pré-consciente tolera apenas transformações dessexualizadas. Aqui se nota a estreita filiação que liga as operações de negação e de recalque, como também o parentesco intelectual que aproxima esses dois homens da cultura e de uma mesma língua que foram Hegel e Freud. O recalque obedece a diversas causas, ligadas tanto à natureza selvagem das fantasias originárias, de sedução ou castração, quanto aos traumatismos em relação às perdas do objeto, portanto a acontecimentos dolorosos envolvendo sempre a sexualidade infantil. Entre essas causas diversas, há somente um fator comum: o valor edípico dessa sexualidade que dá lugar no Eu a uma recusa
8. Sublimação e excreção do objeto
Sublimação e recalque A libido especificamente edípica, ligando o indivíduo ao genitor de um ou de outro sexo, alimenta indefinidamente a necessidade falar ao objeto amado. Mesmo que ela seja de uma mesma “natureza” que as outras tendências sexuais, genitais ou narcísicas, presentes no ser, ela permanece afastada quanto ao seu estatuto e à sua atividade, fundamentalmente diferente também quanto à sua essência, pois ela somente aparece por uma operação de deslocamento que, como acontece na cromatografia, separa os componentes de um mesmo produto. A transferência na clínica é esse deslocamento: aquilo que liga o analisando ao analista é um vínculo feito de libido, e, portanto, podemos dizer que ele é tanto espiritual quanto carnal, tanto religioso quanto sexual. Podemos ainda dizer, como André Green, que a transferência sobre o analista equivale a uma transferência sobre a palavra única. A transferência releva ainda, como notou Jean Laplanche, a categoria da transcendência.
9. Contrainvestimento e dor
Para que serve dizer gato amarelo em vez de gato perdido? De chamar a velhice, viajante noturno? Para que serve a cabeça cortada da duquesa de Montbazon? Por que transformar a humildade de Rancé em um espetáculo dotado de toda ostentação possível? Este conjunto de operações técnicas serve para diminuir o sofrimento.28
Heterogeneidade do Eu A linguagem, pela sua natureza, como já vimos no começo deste trabalho, é o lugar de uma incessante atividade de rememoração. Fragmentos deformados da história do sujeito, despedaçados pelo recalque, apenas reconhecíveis, emergem ocasionalmente na superfície do discurso, sob a forma dos fenômenos da analogia (ou analógicos). Esses fragmentos carregam uma energia libidinal de 28 Barthes, R. Prefácio a La vie de Rancé, de François-René de Chateaubriand.
10. Estranheza do princípio do prazer
Estas linhas de Marquês de Sade parecem até hoje premonitórias do que Freud descreveu como princípio do prazer: É da natureza do homem outorgar mais importância do que deveria aos sonhos e aos pressentimentos. Essa fraqueza resulta de um estado de infortúnio, com o qual todos nascemos, devido a nossa natureza, alguns um pouco mais e outros um pouco menos. Parece que essas inspirações secretas surgem de uma fonte mais pura do que aquela, donde surgem outros eventos comuns da vida . . ., ou seria ridículo acreditar que a natureza, que nos adverte das nossas necessidades, que nos consola tão ternamente de nossos males, que nos infunde coragem para suportar nossas dores, não teria também uma via que nos faria temer a aproximação do perigo? O quê! Essa força que age a todo momento em nós, que nos indica tão bem o que assegurar para
11. O Eu inconsciente
“Uma parte do Eu também – e quão importante é essa parte do Eu, apenas um deus sabe disso – pode estar inconsciente, certamente é inconsciente. Assim, Freud se expressa, em 192340 surpreso, confuso com essa descoberta, porque ele nem sempre pensou assim do Eu. Desde então, o conceito de Eu inconsciente tornou-se uma banalidade do nosso vocabulário, dificilmente o questionamos, apesar de sua fachada de oxímoro. Reunir os conceitos usados em nossa prática, avaliá-los e examiná-los quanto ao “quebra-cabeça” que eles formarão com os outros, com interesse de extrair das sombras detalhes como esse oxímoro que tivemos tendência a reprimir e excluir de nossa investigação. Porque ele mescla precisamente dois extremos, a categoria do inconsciente e o paradigma da consciência, a instância do Eu, isto é, o termo tem uma ressonância fantástica. Não é fácil admiti-lo, pois ele dramatiza a heterogeneidade da pessoa psíquica. De fato, um dos efeitos da cura, não necessariamente seu objetivo, é aumentar a tolerância do indivíduo a essa realidade e fazê-lo aceitar que, no teatro da subjetividade, o Eu 40 Freud, S. (1923). Le moi et le ça. Op. cit., pp. 262-263.
12. A cena psíquica
O tratamento se apoia sobre as funções psíquicas já existentes, ou as restaura quando estão desativadas ou danificadas. Assim tam�bém faz o sonho: em seu trabalho preliminar, ele desconecta tanto os pensamentos diurnos, que escapam ao sono, como a imagem onírica da linguagem sonora (ou gráfica) e o sentido, significante e significado. O sonho estabelece assim uma livre circulação de afetos e representações nos diferentes estratos da mente que participam do processo primário: posteriormente, ele retira do recalque e liga ao material assim obtido das formações de memória e de desejo, que ele dessexualiza, liberando o sujeito de uma memória repleta de arcaísmos. Esse processo também se encontra na atividade estética: no discurso cinematográfico dos anos 1960, Godard, por exemplo, desconectou o som da imagem, deslocou-os no tempo e, assim, obteve para seu cenário efeitos oníricos. Não excluo que um tal processo foi o motor da antiga tragédia que separa a voz do herói da prosódia rítmica do coro. Este redobra em outro lugar o cenário dramático que se desenrola na cena imediata e, sem dúvida, ocupa
13. Da substância ao signo
Nascimento do signo Num barco a vapor da cidade de Rouen, Frédéric, o herói flaubertiano de Educação sentimental, presencia o voar do xale de uma mulher desconhecida que, alguns momentos antes, admirara por sua beleza. De pronto ele agarrou o xale quando ia ultrapassar o corrimão e o entregou à sua proprietária. Ele imediatamente foi atingido por um amor devastador, aceso por uma chama que não se apagava mais. O xale, e o que este evocava, furtivamente para o jovem, foi a centelha que inflamou sua paixão e foi o motivo principal desse romance. Em termos acadêmicos, pode-se dizer que o xale, objeto parcial, representava a mulher, objeto total. Aquilo que da substância representada é chamado para se tornar um signo já estava no interior da pessoa em questão, com um indício (altamente) erótico, que a pulsão havia investido de imediato como seu objeto. O xale era o objeto de desejo antes mesmo que a mulher fosse descoberta como objeto real. O objeto interno é composto pelo traço sensorial e um significante, o qual pertence à linguagem, à realidade comunitária, enquanto o
14. As etapas da figuração
Em A interpretação dos sonhos, Freud dá grande importância ao processo psíquico ao qual ele denomina então “a consideração da figurabilidade”.61 Designa assim a operação pela qual os pensamentos residuais do dia anterior se transformarão em imagens, que é a expressão preferida do sonho. É claro que, nesse momento de sua pesquisa, ele está preocupado com a censura que obriga o sonho a recorrer mais a expressões distorcidas do que ao trabalho da perlaboração e pela conexão aos restos diurnos atuais das formações do inconsciente. Mas ele já poderia afirmar que a produção dos pensamentos do sonho passava necessariamente por tal operação, a percepção emprestada da realidade possuindo uma “aura”, que organizará sua mise-en-scène, como uma ficção poética ou romântica. Roger Caillois, por exemplo, observa que, em relação à poesia de Saint-John Perse, Nenhum detalhe nasce da fantasia. Isso lembra os textos dos Annales, em que, na Roma Antiga, os pontífices deviam consignar os presságios, os nascimentos 61 Freud, S. (1901a). Du rêve. OC-PV.
15. O conceito do inconsciente renovado pelo conceito da negatividade
A negatividade do inconsciente constitui sua própria essência. Poderíamos abordá-la como os físicos o fazem em relação à antimatéria: Na origem do Universo, a matéria e sua irmã gêmea, a antimatéria (que se distingue somente por uma carga elétrica oposta), foram criadas na mesma quantidade. Rapidamente a matéria tomou o domínio. Os físicos estão sempre procurando o pequeno detalhe que fez com que a balança pendesse . . . A Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear (CERN) investigou pela primeira vez a energia do estado fundamental do anti-hidrogênio e observou que era a mesma do hidrogênio . . . Proeza experimental, o novo resultado conclui a ausência de diferenças entre as duas formas da matéria. (Ahamadi et al., 2017, p. 18) A teoria não deve perder o contato com a natureza e a física que a governa. Seus recentes progressos no campo da matéria e da
16. A linguagem em sua relação com o inconsciente (a linguagem contra o inconsciente)
A palavra na sua função de leitura do inconsciente O trabalho da palavra sobre a língua domestica a força primitiva das pulsões de acordo com uma arte semelhante aquela pela qual os homens domesticaram o fogo e iniciaram o trabalho civilizatório. Essa “domesticação” inclui o deslocamento dos objetos edipianos, em direção aos objetos do mundo chamados a substituí-los, depois que ela realizou uma transubstanciação de re�presentações de imagens (que eu identificaria às coisas e seriam o primeiro estágio da vida psíquica) em representações de palavras, uma operação possivelmente sempre reversível. O tratamento ativa essa atividade “primeva” das palavras: o discurso associativo se desenrola em ondas que distinguem e tratam a dor na sua origem, como tormento psíquico, contrainvestimento das imagens ou fragmentos linguísticos silenciosos. Esse gênio reparador da palavra perdura durante toda a vida de um sujeito: assim que a palavra volta à sua função enunciadora, ela é
17. Discurso e transferência
Não devemos confundir discurso com transferência. O discurso visa o objeto atual do qual falamos, a transferência o aumenta fazendo aparecer o objeto edipiano, do qual se tratava. A transferência revela, portanto, a existência em negativo de um objeto original que o analista substitui na atualidade da situação analítica. O espaço entre as energias em direção ao objeto atual e aquelas dirigidas ao objeto original fornece sua força de deslocamento ao discurso. A manutenção dessa lacuna pelo analista (sua presença/ausência, sua atividade interpretativa) é essencial: se o paciente está condenado à compulsão à repetição, e se o analista deve primeiro consentir com esse processo para depois manter com sua atitude de recusa , ativar a compulsão à representação, que irá substituir a compulsão à repetição. A transferência chama e permite a interpretação consistente para designar o objeto para quem o analisando se exprime, acreditando falar ao analista: “Você pensa em x quando pensa em mim”. Mas a interpretação, por sua vez, coloca a transferência em tensão: ela a legitima no seu status de espaço deslocado, ficcional, intermediário entre o interior e o exterior, de réplica irônica ao real. Sua
18. O outro ou o Nebenmensch
Para a comunidade psicanalítica, que, aliás, não o admite una�nimemente, “o outro” é um conceito não apenas impreciso, mas resolutamente enevoado. Ele se refere à fronteira indecisa, separando apenas à maneira de um sfumatto o próprio do estranho, o Eu daquele que Laplanche depois de Freud designa como “o Outro . . . o mais próximo”. Isso poderia ser o que Leonardo da Vinci chama um “corpo sem superfície”. Por oposição ao corpo, cuja superfície define e caracteriza a forma, são os corpos sustentados, como o copo com água, a fumaça ou o turvo com o ar, ou o elemento ar com o fogo e outras coisas semelhantes, em que extremidades se confundem com os corpos vizinhos, e o porquê – seus limites se misturando e se tornando imperceptíveis – se encontram privados da superfície esperada, que esses limites se interpenetrem. Les carnets de Léonard da Vinci”, op.cit. p. 363. Sua realidade não é, portanto, perceptível diretamente, podemos apenas fazer uma representação abstrata, jogando com a oposição próximo/longínquo e exterior/interior. O conceito pertence às margens extremas da metapsicologia e é somente cognoscível por meio da identificação:
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Vinte ensaios metapsicológicos centrados na linguagem e na escuta específica da sessão de análise. Que lugar ocupam esses ingredientes para o funcionamento psíquico, que são, de um lado, a imagem – e a sensorialidade em geral –, de outro, a linguagem e a fala que ela permite? Embora comuns, esses "materiais" permanecem cientificamente pouco compreendidos. Jean-Claude Rolland se propõe justamente a lançá-los a partir da psicanálise em seu objetivo psicoterapêutico, mobilizando também a história da arte que, além de seu projeto estético, contribui para transformar o homem e seu mundo interior.