Quando o amor acontece - Thaís Santos Lurco

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Quando o amor acontece

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Dia 20 de abril. Aqui estou eu, com uma caneca de chocolate ao leite e dois biscoitos de pasta de amendoim. O quarto de cima está vazio e a casa em completo silêncio; provavelmente, Mary ainda não voltou de mais uma de suas “saídas casuais para beber”. Mary é minha mãe. Ou, como eu chamo, aquela que me colocou no mundo. Porque eu tenho 16 anos e não preciso de uma mulher adulta cuidando de mim a cada passo que dou. Pelo menos é o que ela diz. E, acredite, ela sempre está certa. Ou bêbada. E, sinceramente, não consegue mais ver a diferença entre os dois. Olho o calendário do celular mais uma vez. Ligo a televisão num noticiário aleatório e a data aparece em letras garrafais na parte superior da tela. Ainda é dia 20 e não sei por que em algum canto do meu cérebro acreditei estar enganada. Por que achei que seria diferente dos últimos dezesseis anos, afinal? Desligo a TV e jogo a caneca na pia, pegando minha mochila e vestindo um casaco preto de capuz. Penso em fazer uma ceninha e bater a porta de casa com força, xingando o vento. Mas aí percebo que ninguém vai ouvir. E então me dou conta de que acabei de fazer 17 anos, não 16, e estou velha demais para todo aquele drama de adolescente. Estou sozinha no dia que deveria ser o mais importante da minha vida. Fazer aniversário é uma droga!

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Como se minha sorte não fosse suficiente, começa a chover. Pego minha bicicleta velha e começo a pedalar, e de repente me sinto infantil demais na minha bike cor de rosa. Ela foi o último presente de aniversário que ganhei do meu pai. Até alguns anos atrás, ainda tinha as rodinhas de treino, mas Mary tirou sem meu consentimento. Disse que era boba demais para uma menina do ensino médio e que assim nenhuma de minhas amigas iria querer andar comigo. Eu gostava das rodinhas. E não me importo nem um pouco com o que minhas supostas “amigas” iriam pensar. Se elas existissem, é claro. Mas a fase de me lamentar foi há uns dois anos atrás, então simplesmente dou de ombros. Estou bem assim. Chego ao parque em dez minutos e vasculho o lugar. Está limpo, tirando alguns pombos que rodeiam o velho lago e, nem que estivesse imundo, eu iria para a escola hoje. Ninguém vai notar a minha falta e é como se hoje fosse meu dia de folga. O dia que decidiram me colocar no mundo. Que besteira não retribuir esse gesto! Sorrio para mim mesma com minha ironia enferrujada. Eu costumava ser muito boa em piadas, mas de uns meses pra cá elas perderam a graça. Sento-me debaixo do velho toldo da loja de doces. Ela está fechada, e desde que me conheço por gente sempre foi assim. Fecho o casaco até o queixo e inspiro o ar gelado para dentro. Não sei quando isso começou, mas é meio que um ritual antes de abrir minha mochila e apanhar qualquer livro surrado que eu tenha pego emprestado da biblioteca. Nós só temos uma por aqui e juro que já li todos os livros de lá que tem as folhas amareladas e capas gastas. Não sei por que, mas gosto dos exemplares mais antigos. Sinto como se carregassem duas histórias ao invés de uma: a do próprio livro e a de quem o possuiu, e me divirto imaginando como o ex dono deve ter sido. Hoje estou lendo The Secret Of The Old Clock, de Edward Stratemeyer, e imagino que o livro foi comprado por uma líder de torcida com alma nerd que passava seus verões em Palm Beach, Quando o amor acontece

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lendo os mistérios de Nancy Drew. E, no instante seguinte, estou rindo sozinha, alto, pensando na história que acabo de inventar e em como pareço patética sentada sozinha na fachada de uma loja falida, no meu aniversário de 17 anos. Paro de rir e enxugo uma lágrima que cai sozinha. Nunca fui de chorar, mas sinto uma melancolia me consumir e não consigo me conter. Choro copiosamente e tenho certeza de que a visão de uma menina de capuz preto e olhos inchados, sentada na chuva, não é das melhores. Isso me faz chorar ainda mais e me odeio por não parar. Mas não me odeio, apenas. Odeio Mary. Odeio não ter amigos. Odeio a líder de torcida da minha imaginação rindo da minha cara com seus dentes perfeitos. Odeio meu pai por ter ido embora. Odeio aquela bicicleta rosa idiota e sem rodinhas. E, definitivamente, odeio aniversários. — Tudo bem? — alguém pergunta. Não olho para cima. Que tipo de pessoa idiota vê a outra chorando na chuva e pergunta se está tudo bem? — Você não parece muito legal — a voz insiste. — Quer que eu a leve pra casa? Estreito os olhos por uma fresta entre o capuz e meus braços cruzados sobre os joelhos e o encaro. O corte à escovinha e o suéter xadrez me dão vontade de rir, mas estou tão irritada por ter sido interrompida no meio do meu choro histérico que permaneço séria. — Qual é? Hoje é o dia mundial das perguntas estúpidas por acaso? Me deixe em paz! — praticamente grito e lanço o olhar mais furioso que consigo fazer nesse momento. Ele sorri pra mim — sorri! — e estende as mãos. Recuo.

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— O que pensa que está fazendo? — pergunto ríspida. — Tentando ajudar — ele responde e dá de ombros. — Você vem ou não? Olho para as suas mãos estendidas, depois para a barra do suéter e, enfim, para os seus olhos, atrás dos óculos de grau. São azuis, assim como a gola da camiseta dobrada que ele está usando por baixo. Ele também olha dentro dos meus olhos e me sinto completamente estranha. Desvio o olhar para suas mãos novamente. — Vamos lá. Não vou te machucar, prometo! E de repente fico brava outra vez. Como ele se atreve a achar que eu estou com medo? — Isso é sério? — digo, tirando o capuz, deixando meus cabelos negros e bagunçados à mostra. — Acha que eu tenho medo de você? Ele acha engraçado e eu tenho vontade de socar bem no meio do nariz daquele escovinha metido a besta. — Qual é a graça? — minha voz sai tão fria quanto à chuva que ainda cai. — Dá pra parar de ser teimosa e deixar eu te ajudar? — ele diz e fico sem reação. No segundo seguinte estou segurando sua mão, enquanto ele me puxa para cima e me coloca de pé. Bato as mãos nos bolsos traseiros do jeans para tirar a poeira. Ele ainda me observa. — O que foi? — pergunto, cruzando os braços sobre o peito. — Tem uma folha no seu cabelo.

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Ri outra vez e, involuntariamente, presto atenção. Ele joga a cabeça para trás e aperta os olhos. E fica uma gracinha fazendo isso. Pigarreio alto. Uma gracinha? O que eu estava pensando? Tiro a folha das minhas mechas embaraçadas, coloco a mochila nos ombros e começo a caminhar rápido demais para lugar nenhum. Só depois de alguns segundos é que me lembro da bicicleta e tenho que voltar imediatamente. Ele está parado me encarando com uma cara meio desapontada. — Achei que quisesse que eu te levasse em casa — suspira. — Quando foi que eu disse isso? — falo e logo me sinto culpada. Estou sendo má sem nenhum motivo e tento consertar as coisas. — Quer dizer, quer mesmo ir pra casa com uma estranha? Até onde sabe, eu posso ser uma serial killer. — Até onde sabe, eu posso ser um serial killer — rebate. — Como garante que não sou o maníaco do parque? Dou uma risada seca. — O maníaco do parque jamais usaria esse suéter — falo como se nos conhecêssemos há muito tempo, mas não é verdade, porque eu o vi pela primeira vez há uns cinco minutos. Estou completamente sem graça e não consigo dizer uma palavra sequer. — Você é engraçada — enfia as mãos nos bolsos. Também não sabe o que dizer. Os segundos seguintes parecem um castigo. Estamos parados, um de frente para o outro, sem fazer absolutamente nada. Só parados. Dá para ouvir nossas respirações há um quilômetro de distância. — Sabe o que é mais engraçado? — digo.

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— O que? Não tenho a mínima ideia do que estou fazendo, mas sigo em frente. — Acabo de te revelar meus segredos assassinos e ainda não sei o seu nome. Dessa vez ele dá uma gargalhada alta. — Jacob Harris, mas gosto mais de Jake. E o seu? — Se eu contar, terei que te matar — assim que digo isso percebo que parece mil vezes melhor nos filmes, então completo: — É Alex. — Só Alex? Não. Meu nome é Alexandra Marie Carter e eu simplesmente o detesto. Respondo apenas “só”, ajeito a mochila nas costas e monto em minha bicicleta. — Você vem, maníaco? — estou sorrindo e brincando com um completo estranho. Isso é totalmente louco e absurdo e não me importo nem um pouco. — Hoje é meu aniversário, preciso de alguém com quem comemorar! Não sei por que falei isso. Não sei mesmo. Mas agora já saiu e não posso voltar atrás. Começo a pedalar, na esperança de que ele me deixe partir sozinha e tudo volte ao normal, mas logo escuto o barulho de aros rodando no asfalto atrás de mim e percebo que fiz uma grande besteira convidando um desconhecido para minha casa. Minha casa vazia. O pensamento me faz pedalar mais rápido ainda. — Ei, matadora, porque a pressa? Jake está brincando, mas estou fugindo de verdade e não Quando o amor acontece

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olho para trás. Não sei se é a forma como ele disse “matadora”, mas realmente sinto como se tivesse feito algo muito errado. Continuo correndo e correndo e não sei pra onde estou indo, mas não paro. Não estou pensando em nada e não escuto nada além de zumbidos de pessoas aleatórias, até que uma voz cobre todas as outras. É a dele. — Feliz aniversário! Paro de pedalar. Feliz. Aniversário. Ele diz apenas duas palavras e meu peito começa a acelerar. Porque, pela primeira vez em dezessete anos, sinto que é dia 20 de abril. O dia em que decidiram me colocar no mundo. O meu aniversário. E estou feliz nele. Feliz. Então recomeço a pedalar.

Chego em casa com um sorriso bobo e completamente inapropriado. Mas ele vai embora assim que coloco os pés na entrada. A sala está toda revirada, como se um furacão tivesse passado ali por acaso e transformado tudo num grande amontoado de bagunça. Ouço um barulho de algo quebrando e meu coração se congela. — Mary? — chamo e não obtenho resposta. — Mary? E, no segundo seguinte, estou gritando feita louca, abrindo as portas desesperadamente. Por mais que não sejamos o modelo perfeito de mãe e filha, ela é a única pessoa em minha vida que nunca foi embora, e pensar que algo de ruim possa lhe ter acontecido me dá um nó no estômago. Bato outra porta.

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— Alex? — alguém grita do andar de cima. Subo as escadas correndo e dou de cara com Lena e um punhado de roupas usadas na mão. — O que está fazendo aqui? — pergunto extremamente surpresa. Minha irmã não vem nos ver desde o último Natal. Depois que saiu de casa, as visitas foram diminuindo de quinzenais para uma a cada seis meses. Quando Itan nasceu, ela substituiu as visitas esporádicas por cartões nos feriados, junto com fotos da sua família perfeita. Vê-la aqui nesse momento, com a expressão abatida, é realmente perturbador — O que acha que estou fazendo? — ela diz e aponta para um canto do quarto. Mary está caída, segurando o que restou de uma garrafa de uísque. O chão está cheio de cacos de vidro e há sangue em suas mãos. Tenho vontade de vomitar com a cena, mas corro até ela e tiro o vidro de seus braços finos. Ela está tão bêbada que nem percebe quando a carrego até a cama e a cubro na altura do queixo. — Ela está machucada — digo e vou atrás de ataduras, enquanto Lena senta na beirada da cama e puxa seus dedos para ver a gravidade dos cortes. Quando volto, sento-me ao seu lado e lhe entrego uma caixinha de primeiros socorros. — Desde quando ela voltou a beber? — pergunta, franzindo a testa e improvisando um curativo em Mary. — Desde quando ela parou de beber? Ela não se atreve a me repreender. Nós duas sabemos que o caso de Mary com a bebida deixou de ser só um caso há muitos anos Quando o amor acontece

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atrás. Depois que meu pai foi embora, acho que só a vi completamente sóbria por uns dois meses. Já faz sete anos que ele nos deixou. — O que são essas roupas? — aponto para a pilha em cima da cama, tentando amenizar o clima. — Umas coisas que não uso mais. Achei que poderia gostar. Olho para a montanha de camisas polo e tons pastéis. — Obrigada — digo por educação, mesmo sabendo que nunca usaria uma coisa dessas. Um silêncio constrangedor recai sobre o quarto. Nós nunca conversamos, nunca mesmo. Lena sempre foi a mais independente de nós duas. Saiu de casa cedo e concluiu os estudos sem nenhuma ajuda. Ela tem uma carreira, tem amigos, tem tudo o que sempre desejou na vida. Tem uma família. E às vezes tenho inveja dela por isso. — Como sabia que ela precisava de ajuda? — as palavras simplesmente saem sem que eu tenha tempo para pensar no que estou dizendo. Os olhos de Lena se arregalam e ela passa um tempão apenas me encarando. Seu rosto nunca me pareceu tão cansado quanto agora e ela aparenta estar prestes a desabar. Não me lembro de já tê-la visto tão frágil assim. Ela nunca chora. — Acho que só precisava da minha mãe. Ela diz e é como se todo o peso do mundo caísse sobre os seus ombros. Eu não sei o que é isso. Lena também não sabe. A última

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vez que vi Mary como uma mãe de verdade, ainda brincava de bonecas. Isso tudo acabou com o divórcio. A casa nunca mais foi a mesma e os dias alternavam humores sem explicação. Ou havia um silêncio ensurdecedor, ou o caos. No começo, tivemos tanto medo que planejamos fugir de casa incontáveis vezes. Com o tempo, nos acostumamos a apenas observar enquanto ela se afundava e nos levava junto. — Preciso ir — Lena se levanta e começa a caminhar rápido até a porta. — Consegue limpar a sala sozinha? Faço que sim com a cabeça. Isso não é um pedido incomum para mim. — Consigo — faço uma pausa e pergunto: — Você está bem? Mesmo disfarçando, vejo quando enxuga uma lágrima. — Estou ótima. Apenas diga a ela que passei por aqui. E com isso sei que Lena deixou um rolinho de dinheiro escondido em algum lugar. Por mais que não venha aqui, ela nunca deixa de ajudar da única maneira que conhece. Aceno com a cabeça outra vez e ela atravessa a porta apenas um milímetro antes de se virar novamente. — Dê uma olhadinha no seu quarto antes de ir trabalhar. Acho que pode ter algo lá pra você também — e sorri. É a primeira vez, depois de muitos anos, que vejo esse sorriso em seu rosto. Não aquele sorriso ensaiado das fotos. Um sorriso torto, meio desajustado, mas que de alguma forma me dá a certeza de que as coisas vão melhorar.

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— Obrigada. Ela vai embora silenciosamente, da mesma maneira como entrou. Assim que ela sai, dou mais uma boa olhada em Mary, que ronca baixinho. É melhor que ainda esteja dormindo quando eu sair. Depois, corro até o quarto ao lado e encontro uma caixinha pequena e outra retangular com uma embalagem de papel crepom improvisada. Abro com cuidado, tentando não estragar o papel. Ali dentro há um livro e um cartão escrito “Feliz aniversário, Alex!”. Folheio as páginas e cheiro, experimentando a sensação de finalmente segurar um livro novo nas mãos. Será a primeira história que não precisarei inventar. Coloco o livro ao meu lado e pego a segunda caixinha. Dessa vez só preciso levantar uma tampa e lá dentro encontro um cordão com metade de um coração no pingente de aço. Sorrio e leio a pequena mensagem entalhada nele. Para Sempre. E, mesmo não sabendo o que está escrito na outra metade, sinto uma alegria preencher o lado do meu peito que começa a palpitar acelerado. Sei que não estou sozinha. Lena não se foi e esse é o seu jeito de me prometer que vai ficar. Para sempre.

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