O jardim de Iácabus

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Helena Gomes

Um helicóptero levando um importante advogado sofre uma pane e cai em alto-mar, no Litoral Norte de São Paulo. O único sobrevivente do desastre é Rafael, seu filho de catorze anos. Desmemoriado, o garoto vai morar com Cristiane, sua ex-madrasta, e Tuíla, a filha adolescente dela, em uma chácara em Santos. Com o passar dos dias, ele começa a revelar uma personalidade diferente, surpreendendo a todos. Então, fatos inesperados envolvendo implacáveis adversários e tecnologia exterminadora provocam uma reviravolta na vida dos dois adolescentes, que partem rumo a uma difícil e arriscada missão.

Helena Gomes Ilustrações:

Cecília Murgel

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Capítulo 6 – Terceira etapa: a missão

Helena Gomes

Cecília Murgel Ilustrações

1a edição 2014

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Obra em conformidade com o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa

© Texto – Helena Gomes Ilustrações – Cecília Murgel Direitos de Publicação

© Elementar Publicações e Editora Ltda. Telefones: (11) 3857-0740 (11) 3951-9302 Rua Horácio Vergueiro Rudge, 445, Conj. 3 Casa Verde – 02512-060 São Paulo – SP, Brasil e-mail: editorial@editoraelementar.com.br www.editoraelementar.com.br 1a edição: 2014 Preparação Alessandra Biral Revisão Gabriel Maretti Rodrigo da Silva Lima Editor de Arte Mauricio Rindeika Seolin CIP-BRASIL CATALOGAÇÃO NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ. G614j Gomes, Helena, 1966O jardim de Iácabus / Helena Gomes; ilustração Cecília Murgel. – 1. ed. – São Paulo: Elementar, 2014. il. ISBN 978-85-99306-94-9 1. Conto infantojuvenil brasileiro. I. Murgel, Cecília. II. Título. 14-11526

CDD: 028.5 CDU: 087.5


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Capítulo 6 – Terceira etapa: a missão

SUMÁRIO Introdução, 5 Capítulo 1 – Primeira etapa: implantação, 6 Capítulo 2 – Líder, 12 Capítulo 3 – Segunda etapa: adaptação, 16 Capítulo 4 – Descoberta, 46 Capítulo 5 – Últimos preparativos, 50 Capítulo 6 – Terceira etapa: a missão, 82 Capítulo 7 – Última etapa: extermínio, 106 Epílogo – Girassóis, 134 A autora, Helena Gomes, e a obra, 141 Motivação para a leitura, 142 Justificativa da pertença da obra aos seus respectivos tema(s), categoria e gênero literário, 143 A ilustradora, Cecília Murgel, e a obra, 144


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Quando conseguiram invadir os aposentos do líder supremo, encontraram exultantes seu cadáver. Aquele homem, odiado por milhões, havia tirado a própria vida. O comandante das forças rebeldes não aceitou uma situação aparentemente tão simples. Com a perícia e a inteligência que sempre o ajudaram a conquistar o respeito de seus guerreiros, analisou detalhes que muitos deixariam passar despercebidos. Foi então que encontrou os vestígios de uma tecnologia tão surpreendente quanto inacreditável. E, ao mesmo tempo, tão antiga, citada em lendas e atribuída a antepassados longínquos, que tinham ultrapassado as fronteiras daquele universo. Se elas possuíssem um fundo de verdade e se o líder supremo tivesse seguido os passos certos... Em breve, o poder da aniquilação total estaria em suas mãos. Era preciso impedi-lo a qualquer custo. E ninguém melhor do que o próprio comandante para assumir aquela missão.


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Litoral Norte de São Paulo

Tudo porque a sonsa da nova namorada do pai enjoava em alto-mar e insistira para irem de helicóptero até a tal ilhota, onde ficava a megamansão do cliente dele, próximo a Ilhabela, no Litoral Norte. Rafael mais uma vez checou o cinto de segurança. Espiou sua futura madrasta, uma ruiva tingida e fútil, com metade da idade de Hugo Valiengo, um famoso advogado e pai do adolescente de catorze anos que era obrigado a acompanhá-los naquela viagem. – Você vai gostar da Brigite – dissera-lhe Hugo sobre a namorada. – Será um fim de semana inesquecível. Naquele momento, o filho estava lá, sentado na ponta do banco traseiro do helicóptero, sobrevoando aquela 6


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imensidão de água salgada. O dia nascera bonito, o sol brilhava. O piloto parecia competente. Restavam menos de vinte minutos de voo. Rafael já voara antes, inclusive de helicóptero. Mas, sei lá, alguma coisa não estava certa. Para piorar, Hugo, sentado ao lado do piloto, volta e meia se virava para trás e sorria apaixonadamente para Brigite, ao lado do filho. Havia nuvens muito brancas, tão poucas que o garoto, se quisesse, poderia contá-las. Ele fixou o olhar no horizonte à sua frente e depois para a paisagem além do vidro à esquerda. Pensou mais uma vez na música que não lhe saía da cabeça. Estava ansioso para trazê-la ao mundo pelos acordes de sua guitarra. Tuíla faria as letras, escolheria o título, descobriria a melhor forma de cantá-la. Talvez a vida ficasse mais parecida com o que era antes de Hugo largar a esposa, com quem deveria estar naquele momento. Foi quando olhou para o céu que Rafael vislumbrou um ponto vermelho-rubro, que se aproximava em uma velocidade espantosa. Em um átimo de segundo, ele sentiu a certeza do impacto iminente. Não haveria tempo para mais nada.


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O jardim de Iácabus

O processo teve início após o impacto, que imobilizou o veículo voador e seus ocupantes. Como consequência, perderam altitude e caíram. Era minha única chance de sobreviver naquele mundo lendário e, ao mesmo tempo, tão desconhecido. Os nanorrobôs localizaram o espécime conforme as diretrizes que tracei, o melhor naquelas circunstâncias. Não tive papel ativo na escolha. Minha consciência continuava viva, porém alheia a cada etapa da implantação. O espécime forneceu a matéria-prima e, ao perder sua função, teve sua existência eliminada por completo. Os nanorrobôs continuaram a agir. Recriaram a vida a partir dos genes encontrados em uma rapidez impressionante. E, mais admirável ainda, fora do ambiente controlado e sem qualquer monitoramento. Eu sabia que vivenciava uma experiência que tinha tudo para dar errado. O processo completou-se no prazo previsto, decretando a seguir a autodestruição dos nanorrobôs. Não haveria rastros a serem seguidos. Para que a missão tivesse êxito, ninguém jamais poderia desconfiar da minha presença naquele mundo. Despertei sufocando no novo corpo, engolindo líquido, prestes a morrer. O instinto acionou minha 8


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Capítulo 1 – Primeira etapa: implantação

movimentação. Desesperado, abri o cinto de segurança que me prendia, mexi pernas e braços e procurei subir, em busca de ar. A escuridão era mais assustadora do que a morte.

Os dois pescadores saíram de madrugada com o barco, como faziam todos os dias. A manhã nasceu, igual a tantas outras, ganhou mais luz e calor com o avanço do sol, as redes receberam sua porção de peixes, enfim, a rotina de sempre. Já estavam prontos para retornar à praia quando avistaram um helicóptero que terminava de afundar na água. Seguiram naquela direção, pois poderia haver sobreviventes. Mais adiante, acharam alguém se debatendo no mar. Um dos pescadores guiou rapidamente o barco até ele, e o outro não hesitou em se lançar à água para ajudá-lo. Era um garoto e ele estava se afogando. Com dificuldade, o adulto na água conseguiu enlaçá-lo pelo peito e, após receber ajuda do companheiro, levou-o para dentro do barco. O garoto contorceu-se e vomitou toda a água que engolira. Enquanto isso, os dois pescadores nadaram rapidamente em direção ao helicóptero submerso. Retornaram algum tempo depois. Os demais tripulantes, presos aos cintos de segurança, tinham se afogado. 9


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O jardim de Iácabus

O garoto estava nu, não devia ter mais do que treze, catorze anos. Era muito branco, tinha cabelos castanhos e olhos azuis que não demoraram a focalizar quem o salvara. No lugar da gratidão que deveria demonstrar, ele assumiu uma postura arrogante e desconfiada. Analisou os pescadores de cima a baixo e, após descartá-los como algum tipo de ameaça, pareceu relaxar. Em uma atitude ainda mais estranha, olhou para as mãos e depois para o restante do corpo, como se os visse pela primeira vez. Pela careta que fez, odiou o que encontrava. – Qual é o seu nome? – quis saber um dos pescadores. A resposta foi a clássica expressão confusa de quem não entendia a pergunta. – Ih, será que ele é estrangeiro? – comentou o outro pescador. Ficaram sem saber. O garoto esquisito encolheu-se em um canto do barco, próximo à rede de peixes mortos, e manteve o silêncio durante todo o trajeto até a praia.

O primeiro contato havia sido feito. Não da maneira como esperava, mas como controlar o incontrolável? 10


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Capítulo 1 – Primeira etapa: implantação

Respirei fundo... Fechei os olhos por alguns instantes e, quando ergui as pálpebras, meus pensamentos iam longe. Mal reparei nos pequenos cadáveres à minha frente, amontoados uns contra os outros. Havia muito a aprender, descobrir, adaptar. À minha espera, uma missão audaciosa. Olhei para os dois homens que salvaram minha vida e, ao pensar na ironia da situação, quase esbocei um sorriso. E, pela primeira vez na vida, senti que a esperança poderia existir. De verdade.

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Próximo à fronteira do Brasil com a Colômbia

Josué passou os olhos ao redor, a metralhadora em suas mãos pronta para agir ao menor sinal de ameaça. Na pista de pouso clandestina em plena selva amazônica, o bimotor acabara de pousar. O desembarque da droga seria feito por dois homens, que a carregariam para um caminhão. Era um serviço corriqueiro de vigilância para o narcotráfico. Josué conferiu onde estavam seus companheiros de trabalho, espalhados estrategicamente pelo local. Aquela tinha tudo para ser uma tarde tranquila, sem qualquer sobressalto.


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A mais inacreditável das ameaças surgiu do nada, vinda do céu, um ponto vermelho-rubro que se aproximou velozmente. Atingiu o adulto mais jovem do bando, Sérgio, um sujeito atlético e grandalhão. Em um átimo de segundo, uma luz da mesma cor imobilizou todos os homens envolvidos na operação ilegal. Josué, com os olhos bem abertos, não conseguiu fechá-los. Apavorado, viu Sérgio, a poucos metros de distância, ser consumido por algo invisível, até desaparecer. Não sobraram nem as roupas, nem suas botas. Logo depois, no mesmo lugar, surgiram ossos, como se brotassem do nada. Em um ritmo vertiginoso, eles foram recobertos por veias, vasos sanguíneos, músculos, os espaços preenchidos com órgãos, um coração que começou a bater. Vieram carne, pele, pelos, fios de cabelo. Nascia um novo Sérgio. E ele estava nu. Tanto Josué quanto os demais não passavam de espectadores, estátuas vivas que não podiam interferir. Bem de frente para ele, o novo Sérgio inspirou ar, endossando seu poder sobre a vida, e abriu os olhos. Refletiam ódio. Com calma, analisou o ambiente ao redor. Deteve-se em Josué. Seria sua última vítima. Foi até ele, tirou-lhe a metralhadora, estudou-a. Por fim, disparou contra os homens mais velhos e 13


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fracos do bando, eliminando-os. Além de Josué, poupou apenas dois, os mais fortes e ágeis. Diante de cada um, exibiu a palma de sua mão direita. De imediato, os dois foram libertados de sua imobilidade. Mas não eram mais eles mesmos e sim criaturas apáticas, sem vontade própria. A mente de Josué entendeu tudo. O novo Sérgio controlava-os e iria realizar o mesmo procedimento em sua última vítima. Aproximou-se dela, ergueu a mão direita na altura de seu rosto. Josué voltou a sentir o próprio corpo, a adrenalina provocada pelo terror, pôde piscar. E teve a certeza da própria morte. Quando o novo Sérgio abaixou o braço, Josué não existia mais. Sobrara apenas um organismo vivo que lhe obedeceria sem questionar as ordens de seu líder.

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Litoral de São Paulo

Subitamente, o mundo que Tuíla conhecia virou do avesso. A dor e o sofrimento pela morte do padrasto, Hugo, e o alívio e a felicidade por Rafael ter sobrevivido agitavam o coração da garota. A mãe, Cristiane, sentiu-se tão perdida quanto ela. Com Ivan, o filho mais velho de Hugo, correram para Ilhabela após serem informadas sobre o acidente. Tiveram de lidar com as autoridades que investigavam o assunto, com a imprensa, a demora no resgate dos corpos de Hugo, Brigite e do piloto, os dois últimos encaminhados às suas respectivas famílias, o translado para a cidade onde moravam, Santos, 16


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também no litoral paulista, depois o velório e o enterro do advogado. Ninguém ainda descobrira as causas do acidente, mas isso se tornara secundário para Tuíla. Precisavam agora se dedicar a Rafael. Após ser salvo por dois pescadores, o garoto fora levado ao Hospital Municipal Governador Mário Covas Jr., em Ilhabela, onde passara por inúmeros exames que apenas comprovaram o quanto escapara fisicamente ileso, sem nem ao menos um arranhão ou hematoma. Fora o único dos tripulantes que conseguira se soltar do cinto de segurança e nadar para a superfície. Por outro lado, Rafael, a peça-chave para que se entendessem os motivos da queda do helicóptero, perdera a memória e ainda apresentava sequelas psicológicas por causa da experiência traumática. Ele não falava, não se comunicava de forma alguma. Parecia, inclusive, furioso e intimidado por ser o centro de tanta atenção. Apesar de os exames mostrarem que seu cérebro não fora afetado, ele não entendia o próprio idioma, não se lembrava de como segurar os talheres durante a refeição, acender a lâmpada do quarto que ocupava no hospital ou simplesmente usar o banheiro. Egoísta como de costume, Ivan arrumou as desculpas de sempre para se livrar do irmão. Tinha muito trabalho na badalada casa noturna, no Centro Histórico de Santos, que ganhara do pai no ano 17


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anterior ao completar 21 anos, brigara com mais uma de suas namoradas, estava na dúvida se retomaria o curso de Marketing que largara havia algum tempo... – Além de estar muito abalado com a morte repentina do seu pai, o que impede você de ter qualquer outra preocupação na cabeça – alfinetou Cristiane. – É, isso também – disse o rapaz, com sua eterna careta de tédio. – É melhor você cuidar do Rafa. Afinal, ao contrário de mim, ele sempre gostou de você, não é mesmo? Ivan e Cristiane nunca se entenderam nos dez anos que durara a união dela com Hugo; então, não havia mesmo motivos para se entenderem justo agora, com a morte dele. Por sorte, nunca tiveram de conviver sob o mesmo teto. Tanto o rapaz quanto Rafael moravam com a mãe deles na época do segundo casamento de Hugo e, quando ela morreu, meses antes, o pai já rompera com Cristiane e vivia sozinho num luxuoso apartamento que alugara, em frente ao mar. – Amo o Rafa como se fosse meu filho – ela retrucou. – Não se preocupe, ele será muito bem cuidado. Foi assim que o garoto foi parar na Chácara Outeirinhos, um paraíso verde no meio da floresta de concreto. Para Tuíla, aquela era a decisão mais acertada. Rafael já era mesmo seu irmão postiço, o melhor 18


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Capítulo 3 – Segunda etapa: adaptação

amigo e o colega inseparável da mesma classe do colégio onde estudavam. Aproveitaria aquele mês de férias escolares, janeiro, para lhe dar total atenção. Rafael não demoraria a recuperar a memória, tinha certeza.

Um mundo primitivo e terrivelmente barulhento, sem dúvida. A tal Cristiane Pimenta e a filha dela, Tuíla, levaram-me para a cidade em que viviam, um amontoado de construções que se tornavam cada vez mais altas ao se aproximarem da praia. Os veículos, truculentos, emitiam poluição, seus motores roncavam como monstros em ruas acinzentadas, cheias de gente, caos e mais barulho. Era atordoante e me dava dor de cabeça. Pelo que entendi, Tuíla não era irmã de Rafael Valiengo, nome que agora seria meu, mas filha de não sei quem que não fazia parte da vida dele. Já a mãe, Cristiane, era viúva do pai de Rafael, que era filho de outra mulher, assim como o irmão mais velho dele, Ivan. Mas esse mesmo pai estava no helicóptero com uma namorada... Confuso de entender. Ainda mais para alguém como eu, que não conhecia o idioma, a cultura e os hábitos daquele povo. Quanto ao meio ambiente e à tecnologia em que estávamos 19


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inseridos, eu mal conseguia traçar alguma correspondência com o conhecimento que dominava. Enquanto me adaptava a tudo, teria de aceitar meu odioso disfarce de adolescente tutorado por uma adulta e tendo como companhia inevitável uma menina que eu descobriria ser muito esquisita ao compará-la com outras da mesma idade, catorze anos. Tuíla tinha longos cabelos encaracolados pintados de azul, fazia desenhos com tinta – algo como hena, rena, ema, não entendi direito a palavra – nas mãos e nos braços e passava a maior parte do tempo descalça ou com os pés enfiados em chinelos de tiras. Mãe e filha moravam em um bairro conhecido como Boqueirão, no trecho de uma movimentada avenida, a Conselheiro Nébias, a poucas quadras do mar. Os dois lados da pista eram tomados por alguns edifícios colossais de cimento com mais de 25 andares. Atônito, percebi serem na maioria recém-construídos. Um e outro estavam na etapa de finalização, uns dois ainda eram erguidos. Tinham pressa em atingir o céu. O que significava aquilo? Santos não parecia ser uma cidade tão nova assim... Então por que estava sendo reconstruída? 20


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Capítulo 3 – Segunda etapa: adaptação

O veículo terrestre em que viajávamos, conduzido por Cristiane, reduziu a velocidade. Subimos na calçada, e Tuíla, no banco da frente, saiu para abrir um portão de madeira, a única passagem existente em um muro alto de pedra. Sentado sozinho no banco de trás, estreitei os olhos para a paisagem logo à frente. Espremido entre dois prédios, havia um pedaço de mata, um terreno de seis mil metros quadrados que seguia até a rua detrás, onde um segundo portão isolava-o da área pública. Uma placa, que eu decifraria após algumas semanas, tinha os dizeres “Chácara Outeirinhos: Paisagismo e Jardinagem para pequenos e grandes espaços”, seguidos por outras informações. O veículo entrou no local e tomou uma estreita trilha à esquerda antes de parar sob uma cobertura. Boquiaberto, vi espalhadas pelo terreno amostras dos mais estranhos tipos de vegetação, a prova de que aquela cidade também poderia ser verde e com detalhes coloridos. Lembrava um laboratório ao ar livre, com muitas espécies isoladas em sua contenção. Algumas interagiam com outras, formavam arranjos naturalmente, criavam seu detalhe do cenário. Atrás da cobertura, havia mais uma e, além dela, mais espécimes. À direita, ficava a residência térrea e simples da família. 21


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Assim que Tuíla fechou o portão, a barulheira lá fora se dissipou. Saí do veículo e respirei fundo. O silêncio... Ah, eu amava o silêncio! Sempre detestei as multidões ruidosas. Mas aquele silêncio não era completo. Existia vida naquele lugar, criaturas que eu aprenderia a identificar como pássaros, borboletas, joaninhas... E uma cachorra, que veio abanando o rabo para as donas e, ao me ver, arreganhou os dentes, rosnando. Fechei os punhos, pronto para matá-la se fosse preciso. Mas isso não foi necessário. Cristiane censurou-lhe a postura, chamando-a de Pandora. Foi o suficiente para o animal resolver me ignorar. – O Ivan já trouxe seus pertences – disse Cristiane. – Você vai ficar no mesmo quarto que a Tuíla até a gente construir um quarto só para você, combinado? Claro que não entendi as palavras. Franzi a testa e só pude sentir um pouco de entusiasmo quando, em meu novo aposento, encontrei um mínimo de tecnologia à minha disposição. Era o que diziam ser um notebook, com acesso a uma rede mundial de computadores, a tal de Internet. Tecnologia obsoleta que ainda exigia baterias, usava teclado e tela plana, necessitava de cabos e era muito, mas muito lenta mesmo. Meu processo de adaptação seria bem mais complicado do que previ.


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Capítulo 3 – Segunda etapa: adaptação

Rafael ainda apanhava para descascar uma banana ou qualquer outra fruta, porém podia desmontar e, após analisar cada peça e mecanismo, montar qualquer equipamento elétrico e eletrônico à sua volta em uma rapidez impressionante. Algo, na verdade, surpreendente para um garoto que nunca se interessara pelo assunto. Em seu segundo dia na Chácara, ele transformara a TV e o forno micro-ondas em inúmeras peças avulsas. A seguir, reconstruíra os aparelhos como se aquilo fosse tão fácil quanto montar peças de encaixe feitas para bebês. Na mesma semana, o celular e o notebook de Tuíla, o tablet de Cristiane, a máquina de lavar, o fogão, o liquidificador e o ar-condicionado foram alvo da curiosidade do garoto. – Vai ver que o trauma acionou alguma outra área do cérebro dele – tentou explicar Cristiane, abismada com as façanhas do enteado. Quando chegou a vez do motor de seu carro, uma picape com inúmeros quilômetros já rodados, ela se controlou para não impedi-lo. Não podia ficar sem o veículo para seu trabalho como paisagista e para a entrega das encomendas aos clientes. Ao final, adorou o resultado. A picape passou a pegar na primeira tentativa de acionamento do motor que, aliás, estava mais silencioso e eficiente. 23


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Como agradecimento, Rafael ganhou um beijo estalado na bochecha e um abraço carinhoso que o deixaram sem ação por segundos. Depois, ele deu meia-volta e foi assistir aos telejornais, o único tipo de programa que agora lhe interessava na TV. Desde que chegara, nem se dera ao trabalho de reparar em sua guitarra, que tanto amava. Tuíla deu de ombros e foi ajudar a mãe em suas tarefas na Chácara. No local, criavam e mantinham boa parte das plantas, flores e árvores. Outras espécies, que exigiam mais espaço ou condições específicas para a sobrevivência, vinham de fornecedores escolhidos a dedo. As duas contavam com a ajuda de um funcionário e de uma faxineira, que vinha duas vezes por semana para limpar a casa e cuidar das roupas da família. Graças aos restaurantes por quilo das redondezas, não precisavam cozinhar, uma atividade que reservavam para o domingo, dia em que, juntas, inventavam as mais mirabolantes receitas. Além de auxiliar na rotina diária com as plantas, Tuíla alimentava o blog da Chácara com fotos e informações e ainda dividia com a mãe o atendimento ao público, na parte do terreno voltada para a Avenida Conselheiro Nébias. A sala da casa funcionava como uma loja, com um pequeno balcão e várias mercadorias, entre pilhas de vasos de inúmeros formatos e cores, 24


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Capítulo 3 – Segunda etapa: adaptação

sementes, sacos de terra e outros produtos para jardinagem, tudo elegantemente organizado em prateleiras ou em fileiras no chão. Em pontos de destaque, vasos com tipos diferenciados de folhagens pendiam do teto. Do lado de fora, o caminho até o portão era ladeado por majestosas palmeiras-imperiais e estreitas armações de madeira com orquídeas, bulbosas, bromélias, ervas, cactos, bonsais, plantas e flores dos mais diversos tipos e tamanhos. Um pequeno pedaço de paraíso à disposição de quem desejasse um pouco de verde para sua vida. E também um lugar que mãe e filha defendiam contra a intensa especulação imobiliária que atingia a cidade, um movimento que tivera início com a descoberta de pré-sal na Bacia de Santos. Desde então, da noite para o dia, casas e até pequenos prédios que permaneceriam para sempre tocando suas existências pacatas deram espaço a agressivos edifícios de luxo, tão altos que bloqueiam o sol e o vento que a vizinhança também tem direito de usufruir, muitas vezes provocando danos e rachaduras nas construções menores. Edifícios em que todos os moradores podem contar com várias vagas para seus carros e terraços em seus apartamentos, a maioria com espaço gourmet. E todos também o mais próximo possível da praia, disputando entre si palmo a palmo a cada vez mais rara paisagem ao redor. 25


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Isso enquanto oferecem tantos serviços que praticamente os transformam em clubes particulares com as próprias academias de ginástica, os salões de beleza e o lounge bar, as saunas, as massagens, as piscinas panorâmicas, as brinquedotecas, as lavanderias, as lan houses e tudo o mais que o dinheiro puder comprar, como os serviços pay-per-use que prometem babás, pet care, serviços de arrumação, faxina, manutenção e conservação, refeições congeladas e – por que não? – um chef para dar um toque sofisticado aos encontros gastronômicos. A promessa de paraíso que somente poucos conseguem pagar. Ironicamente alguns desses moradores eram clientes de Cristiane, que desenvolvera para eles projetos específicos de paisagismo e ainda tomara para si sua manutenção. Ela também oferecia seus serviços para os condomínios dos novos e gigantes edifícios comerciais, que adaptavam os mesmos conceitos de luxo e facilidades para seus empreendimentos localizados tanto na Conselheiro Nébias quanto em outras principais vias da cidade. Tuíla já perdera as contas das visitas de corretores que vinham atrás de Cristiane com alguma proposta “irrecusável” para comprar o valioso terreno da Chácara e, no lugar, erguer mais um daqueles edifícios. Propostas que ela sempre recusava. 26


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Capítulo 3 – Segunda etapa: adaptação

A Chácara fora um presente de Hugo logo após o casamento deles. Pertencera antes a uma velhinha solitária que, sem mais saúde para cuidar das plantas, preferira morar em uma casa de repouso. Era, portanto, herança tanto de Tuíla quanto de Rafael e, para preocupação de Cristiane, de Ivan também. Não que o rapaz fosse má pessoa. Mas ele acabara mimado demais pelo pai, sempre tivera tudo de mão beijada; além disso, era ambicioso, adotava um caríssimo estilo de vida e acumulava dívidas. Como não se separara legalmente de Hugo, Cristiane teria de providenciar seu inventário. E a Chácara fazia parte desse contexto, o que significava problemas à vista. Rafael apareceu naquele instante na loja. Ignorou Tuíla, remexeu nos produtos expostos na prateleira, suspirou, decidiu pegar o celular que ela deixara sobre o balcão e se pôs a navegar na Internet. Duas mulheres entravam pelo portão, interessadas em um vaso de begônias-negras. Cristiane foi atendê-las. Pandora, a pit-bull caramelo da família, dormia de barriga para cima no meio do trajeto. Tuíla tirou os fones de ouvido do bolso do short jeans e foi até Rafael. Tomou-lhe o celular, buscou as músicas que ambos amavam, prendeu a ponta do fio no aparelho e encaixou um dos fones no próprio ouvido e outro no ouvido do adolescente mais alto do que ela. 27


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– Legião Urbana – disse a garota. – Nossa banda preferida, lembra? Seus olhos fixaram-se nos olhos dele. Quis ver além, as certezas e os medos que guiavam a nova pessoa que Rafael se tornara. Com um calafrio, encontrou apenas ódio. – Ouça... – sussurrou. Imediatamente, acionou uma das músicas. Rafael piscou, quis desviar o rosto, tirar o fone, porém Tuíla segurou delicadamente o pulso dele, impedindo-o de fugir. Ele não entendia as palavras, nem seu significado, mas ouviu. Quando percebeu, Tuíla estava cantando junto, baixinho, apenas para o garoto que parecia enxergá-la pela primeira vez. Não viram Cristiane contorná-los para alcançar o balcão nem as clientes que trocaram um olhar risonho entre elas, admirando o jovem casalzinho que contemplava um ao outro, ela tentando levá-lo para seu mundo de antes, de músicas, cumplicidade, de entendimento mútuo. De repente, a magia foi quebrada, no segundo em que tocou o telefone da loja. – Atende para mim, filha – a mãe teve de pedir, ocupada em passar numa máquina o cartão de débito de uma das clientes. 28


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Capítulo 3 – Segunda etapa: adaptação

Tuíla sorriu para Rafael, soltou seu pulso, colocou-lhe o fone de ouvido que estava com ela e foi até o telefone. Do outro lado da linha, um marido que acabara de se lembrar de seu aniversário de casamento queria encomendar cinco dúzias de rosas-vermelhas para tentar reverter o jeito emburrado da esposa. – Bom, não somos exatamente uma floricultura – disse a garota –, mas temos aqui uma orquídea tão linda que, com certeza, vai encantá-la. Pelo canto do olho, procurou por Rafael. Ele saíra da loja e, ainda com os fones nos ouvidos, caminhava entre os vasos perto do portão. Tinha um ar perdido, como se buscasse algum sentimento que lhe escapara em algum momento de sua vida.

O que havia de tão especial naquela criança? Sim, Tuíla era apenas uma criança para mim, que já tinha vivido tanto. Ouvi todas as músicas e, depois, corri para tentar decifrá-las. Gastei uma eternidade, não entendi nada e, frustrado, livrei-me dos fones e decidi dar uma volta pelas ruas acinzentadas, enfrentar a barulheira e espiar melhor as construções de pedra. Não me interessavam os indivíduos que passariam por mim. Eu sempre 29


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O jardim de Iácabus

fui assim, antissocial, incapaz de me ligar aos seres vivos. Tuíla alcançou-me na esquina, bem a tempo de evitar que eu fosse atropelado por um ágil veículo de duas rodas e seu condutor de capacete. Ela disse alguma coisa, na certa se convidando para o passeio. Para meu total embaraço, segurou a minha mão e me guiou em direção à praia. Por que o toque para aquela gente era tão importante? Havia pouco, Cristiane me apertara em seus braços e ainda me dera um... Sei lá, fizera um barulho engraçado ao encostar seus lábios no meu rosto. Tudo estava cada vez mais confuso e minha cabeça voltara a doer com os ruídos ao redor da Chácara. Eu não tinha uma referência, um ponto de partida para compreender aquele mundo. Permiti que a criança me levasse, desejando já ter cumprido a missão, o gosto antecipado da vitória alimentando minha vontade de superar os obstáculos. Só assumi o controle ao escutar os sons profundos das ondas em movimento. Forcei a garota a parar. Escolhi analisar primeiro o sol que sumia atrás dos morros nas cidades vizinhas, a cor alaranjada que se misturava ao azul do céu, o brilho esmaecendo-se, tranquilo, aceitando seu destino com orgulho. O vento obrigou-me a respirar fundo. Só então reencontrei o mar, o dono quase absoluto daquele mundo ironicamente chamado Terra. 30


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Capítulo 3 – Segunda etapa: adaptação

Tuíla observava-me. Atrás de nós, estavam o jardim, a ciclovia, depois a avenida e mais prédios. Vozes iam e vinham, pessoas que aproveitavam o fim da tarde absurdamente quente de verão na praia. – Você ficou com medo do mar? Deduzi o sentido da pergunta. Só devia ser isso mesmo, pois a garota tirou os chinelos, o que também tive de fazer, e me puxou para a beira d’água. Ela me libertou e correu, pulando as ondas menores, sorrindo para mim, convidando-me a participar da brincadeira. Naquele momento, desejei ser criança novamente. Mas uma criança daquele mundo, sem consciência do passado, da minha missão. Tive de recuar, cruzei os braços, meus olhos se fecharam. Percebi a luminosidade da tarde partindo, largando-me sozinho como sempre fui. O mar ainda molhava meus pés, as ondas tentavam minar meu equilíbrio ao levar embora a areia que se escondia sob meu peso. Caí de joelhos, sem vontade de continuar lutando. Pela primeira vez em tanto tempo, eu me senti exausto. Os braços de Tuíla resgataram-me. Ajoelhada, ela se aninhou em meu peito, seus cabelos azuis embaralhados pelo vento. Inspirei seu perfume, sua ternura. Ficamos ali até que a noite cobriu a praia e algumas estrelas me lembraram de que existiam outros mundos além daquele. 31


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O jardim de Iácabus

Não podia fraquejar. Ergui-me abruptamente e abandonei-a ali. Agora eu conhecia o percurso até a Chácara Outeirinhos e as precauções a tomar para não ser atropelado.

Eram mais de dez horas da noite quando Tuíla reuniu coragem de falar com Rafael. Encontrou-o no quarto que dividiam, distraído em fuçar qualquer coisa no celular. Ela se sentou ao lado do garoto, na cama dele, e lhe entregou uma velha cartilha que comprara na véspera em um sebo. – Me perdoe por te levar à praia – disse, sentindo-se imensamente culpada. – Você quase morreu afogado, passou por aquele acidente horrível, perdeu teu pai... É que... Nós sempre íamos andar na praia! Era nosso passeio preferido, lembra? Achei que te faria bem. Não agi por mal. O garoto não lhe deu atenção. Ela abriu a cartilha, logo achando a página com as vogais. Talvez ele só precisasse reencontrar as palavras... – A... e... i... o... u... – leu em voz alta. Ao descobrir que ela ligava o som às letras, Rafael dispensou o celular. – A? – disse, inseguro, indicando a letra “e”. Tuíla abriu um enorme sorriso. Rafael não perdera a capacidade de falar! 32


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Capítulo 3 – Segunda etapa: adaptação

– Esse é o “e” – ela explicou. – E. – Isso! O “a” é essa letrinha aqui. – A. Ele tocou a cartilha como se lidasse com um tesouro. Folheou-a e, a cada nova letra, queria conhecer seu som correspondente. Tuíla ficou imaginando como alguém podia esquecer toda a alfabetização que levara anos para se consolidar. Ela o ajudou a formar sílabas, apresentou-lhe os números, mostrou-lhe objetos e disse como se falavam e se escreviam seus nomes. O sono venceu-a lá pelas duas da manhã, após Cristiane mandá-los dormir pela quinta vez. Tuíla apagou a lâmpada do quarto, foi para sua cama e desabou sobre ela. Pandora, que chegara primeiro, teve de arrumar uma nova posição para sua soneca, aproveitando os pés da garota como travesseiro. Rafael permaneceu acordado, usando a luz da tela do celular para prosseguir com os estudos. Havia encontrado seu ponto de partida.

Como previsto, Cristiane solicitou a um advogado, amigo de Hugo, que preparasse o inventário. Apesar 33


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O jardim de Iácabus

de detestar burocracia, Ivan quis acompanhar de perto todo o processo. Aflito, descobriu que, para enganar a Receita Federal, o pai passara a maior parte de seus negócios, inclusive sua poderosa firma, a Hugo Valiengo Advocacia, para o nome de outras pessoas. O mesmo valia para seus imóveis. Apenas a Chácara estava em seu nome e no de Cristiane. E, como os dois ainda eram casados legalmente, Ivan teria direito a somente 25% do imóvel. Também teria direito à parte dos valores do pai em suas aplicações financeiras e na conta-corrente, o que não era muito. Mas, considerando que o rapaz demoraria a recuperar os demais bens, isto se um dia conseguisse... Precisava com urgência colocar as mãos naquele dinheiro e assim saldar parte de suas dívidas, que se multiplicavam com sua péssima administração da casa noturna. O que realmente lhe renderia uma pequena fortuna era a Chácara Outeirinhos, ainda mais se não tivesse de dividir a grana com o irmão e a madrasta... Com certeza, haveria excelentes propostas para um terreno localizado em uma área tão nobre e próxima da praia. Seria muito fácil vendê-lo. O difícil vinha agora: convencer Cristiane a se desfazer daquele pedaço de terra.


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Capítulo 3 – Segunda etapa: adaptação

– Não, Ivan. Eu não vou vender a Chácara. – Mas esse terreno vale pra caramba e... – Minha resposta é não. O rapaz trincou os dentes, prestes a perder sua pouca paciência. – Então me pague os 25% a que tenho direito – propôs. Ele sabia que ela jamais conseguiria pagar o valor venal do imóvel, imagine então o de mercado. – Você sabe que eu... – Que você não tem dinheiro porque essa porcaria de Chácara não rende o suficiente. – Não é bem assim. – Não? Pensa, Cris! Você ficará com 50% do que pagarem por esse terreno. Será uma grana e tanto. – Não vou vender. Ivan continuou insistindo, elevou o tom de voz, ela também. Iriam brigar, o que afastou Tuíla para os fundos da Chácara. Era uma noite abafada de fevereiro e, na manhã seguinte, uma segunda-feira, começariam as aulas. Aconselhada pelo psiquiatra que atendia Rafael uma vez por semana, Cristiane decidira que o garoto também retomaria o semestre letivo. Reviver situações de seu antigo cotidiano poderia ajudá-lo a 35


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superar o trauma e recuperar gradativamente a memória. A diretoria do colégio fora informada, os professores prepararam-se para lidar com a nova realidade do aluno e os colegas já comentavam bastante o assunto nas redes sociais. Após alguns minutos, Rafael veio atrás da garota. Dava para ouvir os gritos e as ofensas trocadas entre madrasta e enteado. – Por que... briga? – o garoto perguntou, escolhendo bem as palavras de uma linguagem que ainda não dominava direito. Era somente com Tuíla que ele arriscava conversar. Não abria a boca na frente de Cristiane, do irmão, de qualquer outra pessoa e até do psiquiatra, que já cansara de tentar estabelecer um contato. Tuíla orgulhava-se do esforço de Rafael. Ele não parava de estudar, de aprender, sempre atrás de todas as informações possíveis, como se precisasse disso para respirar. Estava se revelando dono de uma inteligência muito, mas muito mesmo, acima da média. Ela lhe explicou tudo desde o início, o casamento da mãe com Hugo, a infidelidade dele que levara à separação informal, os problemas com Ivan, sua ambição imensa e a vontade de gastar mais do que ganhava e, por fim, a aposta no crescimento econômico, graças ao pré-sal, feita pelas construtoras na cidade. 36


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Capítulo 3 – Segunda etapa: adaptação

– Mãe vender terreno? – Claro que não, Rafa. Aqui é muito importante para nós. – Por que importante? – Vem que eu te mostro. A lua cheia e os postes da rua detrás iluminavam o local de modo difuso, a vegetação sob a luz e também mergulhada em sombras. No viveiro de mudas, protegido por uma cobertura de madeira e telhas transparentes, Tuíla entrou na escuridão. Havia claridade apenas em um cômodo da casa, onde Ivan e Cristiane ainda discutiam. Orientada por sua experiência, a garota guiou Rafael até uma fileira de plantas recém-nascidas e suas tímidas folhas que se abriam em busca da maturidade. Sobre elas incidia uma luz indireta, que vinha do edifício ao lado. – Há vida aqui, Rafa. – Vida? – Seres vivos que também merecem um espaço neste mundo. Ela o segurou gentilmente pela mão e fez que seus dedos tocassem a terra. 37


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O jardim de Iácabus

– Sinta – pediu. Rafael mostrou-se confuso. – O que sentir? – A natureza. Ele não entendeu. – Amanhã, depois da aula, você gostaria de me ajudar aqui no viveiro? Nesse instante, a discussão cessou no interior da casa. Pisando duro, Ivan saiu de lá rumo ao portão. O silêncio que se seguiu foi tomado apenas pelos sons noturnos. – Ajudar sim – disse Rafael, o olhar acompanhando o irmão. – Quero compreender.

O colégio ficava a duas quadras da Chácara, perto de um antigo centro comercial. Era grande, bastante tradicional e dividia espaço com uma universidade mantida pelos mesmos donos. Para quem sempre estudou sozinho, aquela era uma tremenda novidade e uma desafiante experiência de socialização. No local, recebi olhares cheios de piedade, outros de desconfiança, indiferença e uns poucos, os invejosos, que se sentiam vingados. Afinal, o menino rico, filho do advogado famoso, também tinha de sofrer na vida, igual a todo mundo. 38


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Capítulo 3 – Segunda etapa: adaptação

Sempre ao meu lado, Tuíla foi mais uma vez minha mentora, desvendando-me aquele universo de crianças e adolescentes. Recebi o apoio e o respeito dos professores e me interessei pelo conteúdo que ministravam à nossa classe, o 1o ano do Ensino Médio. Seus conhecimentos de Exatas, para mim, eram rudimentares, embora condizentes com o nível daquela civilização. Porém as áreas de Ciências e Humanas apontaram novas possibilidades de aprendizado. Havia muito para se conhecer. Foi frequentando a escola que me dei conta de que não investira no desenvolvimento físico daquele novo corpo. Logo eu, um guerreiro tão hábil numa luta quanto no manejo de armas... As aulas de Educação Física não se mostraram suficientes para meu objetivo. Vendo o que chamou de minha nova mania, bem mais comum do que ficar desmontando e montando equipamentos por aí, Tuíla convenceu Cristiane a me matricular em uma academia nas redondezas que a garota já frequentava três vezes por semana depois do colégio. Tentei musculação, spinning, jiu-jítsu e hidroginástica. Não gostei de nada e, embalado pelo belo sorriso de Tuíla, terminei nas aulas de ioga somente para acompanhá-la. 39


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O jardim de Iácabus

Em abril, foi divulgado um relatório técnico apontando uma pane geral no helicóptero como a causa do acidente. O que a provocara, isso nenhum perito soube explicar. Pela primeira vez, pensei nas vítimas, principalmente no verdadeiro Rafael, aquele de quem eu, de modo indireto, roubara o futuro. Mas só compreendi por completo o que significava tirar vidas, algo que tive de fazer inúmeras vezes em meu mundo, quando as sementes que plantei com Tuíla, no viveiro de mudas, resolveram vir à tona. Acompanhei etapa por etapa de seu crescimento, feliz e consciente de que minhas mãos possuíam o poder de criação. Acho que não senti a natureza como desejava aquela criança, mas cheguei bem perto. Sorri, o primeiro sorriso como Rafael, e ganhei um beijo empolgado de Tuíla em minha bochecha. – Você vai recuperar a memória! – ela desejou. Era um desejo que jamais se realizaria. A tristeza abateu-me, lágrimas escorreram pelo meu rosto. Não as percebi, novamente convicto de que o único poder que possuía era o dom da destruição. Eu errara feio ao me deixar envolver pelas duas mulheres, uma agindo como a mãe que nunca tive e a outra... Tuíla era a minha inocência perdida em algum ponto do meu passado. 40


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Capítulo 3 – Segunda etapa: adaptação

Não permiti que ela me abraçasse. Deixei o viveiro para trás, sufocando na própria consciência e imaginando que o verdadeiro Rafael estaria ali, tocando sua guitarra, se os nanorrobôs tivessem escolhido outro alvo.

Rafael fingia que dormia, os fones de ouvido ligados ao celular que executava mais uma vez as músicas da banda Legião Urbana. Ele não quisera jantar e, desde que largara Tuíla no viveiro de mudas, permanecera no quarto. Cristiane, preocupada com aquele retrocesso emocional, ligou para o psiquiatra dele, que apenas lhe disse para manter uma vigilância discreta, pois adolescentes que passam por traumas intensos costumam ter recaídas durante o processo de recuperação. Para Tuíla, o amigo só precisava de um tempo sozinho com os próprios pensamentos, apenas isso. No banheiro, ela vestiu o pijama e escovou os dentes. Depois, no quarto, foi para sua cama, ao lado da cama de Rafael. O aposento ficara um pouco apertado para os dois, o guarda-roupa mal fechava as portas com todas as roupas do garoto, mas tinham de se virar daquela maneira enquanto o novo cômodo não fosse construído. Pandora, como sempre, dormia aos pés da dona. Já passava da meia-noite e a garota logo pegou no sono. Quase três horas mais tarde, foi despertada por Rafael, que não permitiu que emitisse qualquer som. Ela nunca 41


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O jardim de Iácabus

o vira tão apreensivo. No lado externo da casa, Pandora parava bruscamente de latir. Ganiu e foi silenciada. – Arma... – cochichou o adolescente. – Você tem? – Nenhuma. Mas por quê...? – Tem faca cozinha – ele lembrou. Com o máximo cuidado, esgueiraram-se para o corredor. Não foram longe. Dois rapazes desconhecidos, armados de revólveres, obrigaram-nos a ir até a sala, onde Cristiane, chorando, era ameaçada com o mesmo tipo de arma por um terceiro homem, mais velho do que os outros dois. Eles usavam máscaras, o que dava à família uma chance de sobrevivência ao não ter como identificá-los mais tarde. – As crianças deviam estar dormindo – o sujeito resmungou, dirigindo-se aos comparsas. – Era pra vocês deixarem elas lá, trancadas. Meu negócio é com a mulher aqui... – Eu já lhe entreguei todo o dinheiro que tenho em casa – murmurou Cristiane –, meus cartões de crédito e do banco, as senhas, meu celular... Por favor, vão embora. Mas o homem, o chefe do grupo, queria mais. Mandou um dos rapazes pegar os objetos de valor no quarto das crianças enquanto deixava o outro vigiando. – Agora a gente vai se divertir um pouquinho – avisou, sádico, antes de prender Cristiane pelo antebraço e arrastá-la até o quarto dela. 42


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Capítulo 3 – Segunda etapa: adaptação

Em pânico, Tuíla refugiou-se em um canto. Rafael correu o olhar pela sala, avaliou o rapaz franzino que os mantinha sob controle e, arriscando tudo, desarmou-o com um chute. Não lhe deu tempo para contra-atacar, puxando-o pelas roupas antes de colocá-lo a nocaute com uma joelhada na virilha. “Onde ele aprendeu a lutar desse modo?”, perguntou-se a garota, perplexa. Rafael pegou o revólver, rapidamente descobriu como usá-lo, guardou-o no bolso e fez sinal para que Tuíla se escondesse atrás do sofá. O rapaz que fora buscar os objetos de valor retornava com o notebook. Rafael surpreendeu-o por trás e agarrou-lhe a cabeça, que bateu com violência contra a parede mais próxima. Um murro em sua mandíbula e pronto, mais um que perdia a consciência e a arma. – Chama ajuda, Tuíla – sussurrou Rafael. E, revólver em punho, foi para o quarto de Cristiane.

Estranhamente não matei os dois primeiros ladrões. Poderia ter feito isso, mas não o fiz, optando por tirar vantagem de seus pontos fracos. O mais perigoso era o chefe, o maior e mais experiente. Alguém que não me daria tempo de descobrir suas fraquezas e que deveria ser detido a qualquer custo. 43


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O jardim de Iácabus

A porta do quarto de Cristiane estava aberta. Entrei. Tão distraído o sujeito estava em espancá-la que não notou minha presença. Cristiane estava no chão, encolhida e machucada. Em um gesto rude, ele a puxou pelos cabelos, mandando que fosse para a cama. Sorri cruelmente ao encostar o cano do revólver contra a nuca dele. – Solte-a – mandei, no meu idioma. Não lembrava qual era o verbo em português. O ladrão entendeu o sentido daquele comando e obedeceu. Cristiane afastou-se de nós, rastejando até o espaço entre a cama e a mesa do computador. Temia por ela e por mim. – Deitar – eu disse, na língua que ainda aprendia. – De barriga para baixo. Fui mais uma vez obedecido. Ele ia tentar alguma trapaça, eu podia pressentir. Tinha de executá-lo imediatamente, caso contrário colocaria a perder minha vantagem. Apoiei um dos joelhos nas costas do infeliz para imobilizá-lo. Minha mão esquerda uniu-se à direita ao redor do cabo do revólver. Eu não conhecia o poder daquela arma, se ela exigiria força para aguentar a pressão do disparo. – Não faça isso, Rafael, por favor! – afligiu-se Cristiane. 44


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Capítulo 3 – Segunda etapa: adaptação

Ignorei a distração. Meu dedo acionaria o gatilho e novamente eu faria uso do meu poder de destruição. Mais um inimigo descartado, mais uma ameaça afastada. – Temos cordas! – avisou Tuíla, aparecendo no local naquele exato segundo. Hesitei. Com pressa, ela amarrou os pés do ladrão, depois seus pulsos e ainda me pediu que saísse de cima dele para que, com a mãe, pudesse finalizar o serviço, o que as duas fizeram com bastante rapidez e eficiência. O sujeito acabou tão enrolado que só conseguia respirar. Cristiane aproveitou uma fita adesiva sobre a mesa e, depois de retirar a máscara do ladrão, usou um pedaço para amordaçá-lo. – Rafa, você me ajuda a amarrar os outros dois? – disse a garota. – Tenho medo de que eles acordem... Engoli um pouco de ar, ainda tenso. O ladrão continuava sob a mira da arma. – Rafa? Tuíla parou diante de mim, ocupando meu campo de visão. Senti o toque suave de suas mãos sobre meus braços. Demorei a entender que não precisava mais matar. – Ainda não chamei a polícia... a Pandora está ferida lá fora... Preciso de você, Rafa. 45


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Manaus, Amazonas

Aquela etapa de pesquisa sempre seria a mais entediante e complexa. Era o mesmo que, como diziam os humanos, procurar uma agulha em um palheiro. Ele sorriu, satisfeito, enquanto espiava da janela a rua, em seu quarto de hotel. Ao absorver a mente de seus subordinados, absorvera também todo o seu conhecimento. Descobrira, dessa forma, o valor da mercadoria que recebiam na pista de pouso e, esperto, finalizara o negócio com o comprador. Isso lhe garantira a independência financeira para circular por onde bem entendesse naquele mundo. 46


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Lá fora, os três homens que recrutara estavam vigilantes. Era o que faziam de melhor. Seu líder espreguiçou-se, satisfeito com a força e a agilidade do novo corpo, agora coberto por roupas e calçados confortáveis. Lamentou, no entanto, a perda do corpo original, superior àquele em todos os aspectos. Não fora nada fácil tirar a própria vida, ter a própria essência guardada pelos nanorrobôs e enfrentar uma viagem correspondente a séculos humanos atrás de um mundo que talvez nem existisse... Agora estava ali, inacreditavelmente vivendo a lenda e perseguindo o sonho. Enfim reuniu coragem e voltou à pesquisa no celular. Tecnologia lerda e primitiva, mas bastante útil no momento. Ao consultar o noticiário na Internet, descobriu uma reportagem que o interessou. Um menino de catorze anos dominara sozinho três ladrões que tinham invadido sua casa em Santos, no litoral paulista. Nem ele nem a família, avessos à imprensa, quiseram dar entrevistas, mas o repórter obtivera todas as informações com a polícia. O mesmo 47


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O jardim de Iácabus

texto lembrava que o garoto também era o único sobrevivente de um acidente de helicóptero que, em janeiro, vitimara outras três pessoas, uma delas o pai dele, o advogado Hugo Valiengo. A seguir, fornecia detalhes retirados do relatório dos peritos. O motivo da pane que paralisara o helicóptero e o fizera cair no mar era inconclusivo. Um helicóptero paralisado em pleno ar... E se certo ponto vermelho-rubro tivesse algo a ver com isso? Não custava verificar.

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Santos, São Paulo

Pandora escapara da morte por um triz. Um dos ladrões, para silenciá-la, dera-lhe uma paulada tão violenta, que a fizera se enrodilhar e permanecer no mesmo lugar, choramingando baixinho. Graças à sorte, o golpe não lhe deixou sequelas físicas nem neurológicas. Liberada pela veterinária, a cachorra voltou para casa e tranquilamente reassumiu sua rotina preguiçosa. Já Cristiane, que se recuperava dos ferimentos, decidiu investir na segurança da Chácara. Instalou câmeras e contratou dois vigias, um para a loja, 50


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durante o dia, e outro para garantir a tranquilidade da família durante a noite. Para surpresa de Ivan, que encontrara na invasão seu melhor motivo para obrigá-la a vender o terreno, a madrasta nem cogitou aquela possibilidade. – Eu já disse, Ivan, não vou vender – ela reforçou. – Como consegue ignorar toda essa violência urbana ameaçando sua família? E se os bandidos tivessem matado a Tuíla, hein? – É o risco que eu, você, todos nós corremos por simplesmente morar neste país de elites gananciosas que querem cada vez mais, enquanto o povo... – Fala sério, Cris! Isso não é hora para uma análise sociológica! Ela suspirou. Estavam na loja, vazia naquele fim de manhã. Tuíla e Rafael em breve retornariam do colégio e Pandora, naquele minuto, esfregava as costas no gramado, feliz com o sol que aquecia sua barriga gorducha. Maio começara com chuva, como se quisesse apagar as lembranças sombrias do mês anterior. Aquele era o primeiro dia de céu limpo, mas não tão quente quanto prometia. Uma brisa agitava as folhagens, provocando arrepios de frio. 51


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O jardim de Iácabus

Após a nova exposição na mídia, o que o aborrecera bastante, Rafael parecia menos fechado em si. Às vezes sorria, distraído com a conversa de Tuíla, e não estranhava mais a atenção maternal de Cristiane. Era ótimo vê-lo se dedicando às plantas, trabalhando a terra, interessado em saber mais sobre cada espécie. Não que enchesse Cristiane de perguntas, pois se mantinha econômico no uso das palavras, pelo menos com a madrasta. – Você gostaria de criar teu próprio jardim? – ela propusera. – Reservo um pedaço de terra lá nos fundos e você planta o que quiser. – Criar meu próprio jardim? – o garoto estranhara. – O que acha? Cristiane cumprira sua parte. Rafael, no entanto, ainda não plantara nada, mas costumava gastar longos minutos analisando o local, talvez traçando combinações possíveis para algum resultado específico. O jardim de Rafael continuava lá, somente terra à espera das cores. – Cris, você está prestando atenção no que estou falando? – reclamou Ivan, obrigando-a a abandonar suas reflexões. – Estou. Você quer que eu venda o terreno. 52


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Capítulo 5 – Últimos preparativos

– Já te contei sobre o novo edifício, do outro lado da rua? – Onde ficava aquele conjunto charmoso de bangalôs? – Lá mesmo. Eu soube que os proprietários desses bangalôs receberam uma proposta fechada de uma construtora de São Paulo. Uma grana alta que dividiram entre si, sabe... E tinha um cara lá que era dono de, pelo menos, umas três daquelas casinhas. Imagina o quanto faturou e... – E um conjunto arquitetônico dos anos 1950 veio abaixo quase da noite para o dia. No lugar, foi erguido apressadamente um gigantesco edifício de luxo atolado com tantos apartamentos minúsculos que, para que cada um possa ter um pouco de espaço, criaram vários duplex e triplex. E, lógico, todos com seus respectivos terraços. Afinal, todo mundo quer ter uma vista maravilhosa enquanto toma sol na própria varandinha, não? – Pô, Cris, dá para ser mais objetiva? Aquele terreno nem é tão bom quanto o da Chácara. Agora, faz as contas do quanto a gente pode receber... Pensa nos números! – Desculpe, mas não consigo. A vida é mais do que números, dinheiro e consumismo. – Ah, droga, não me venha com outra análise sociológica! 53


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O jardim de Iácabus

– É uma análise humana. Estamos falando de pessoas, da qualidade de vida na cidade que pode ser comprometida por essa especulação imobiliária desenfreada, do aumento do número de veículos nas ruas, piorando nosso trânsito já caótico, do impacto dessas novas e imensas construções no abastecimento de água, na rede de esgoto, no próprio meio ambiente. Ivan, porém, não escutava seus argumentos. Mais alto do que ela, o rapaz cercava-a atrás do balcão, em uma postura ameaçadora. – Para seu próprio bem, Cris, é melhor você vender essa porcaria – disse, entre dentes. Estava perdendo o controle. – Tudo bem aí, dona Cris? – perguntou alguém. Era o vigia, que viera do portão para verificar o que estava acontecendo. Ivan afastou-se da madrasta, empurrou o vigia para ultrapassá-lo e foi embora. Cristiane abraçou a própria barriga, o coração batendo desordenadamente. Se apostasse em uma disputa judicial para obrigá-la a realizar a venda, o enteado corria o risco de fracassar. Nenhum juiz tiraria a única residência de uma viúva com uma filha menor de idade e um enteado, também menor, sob tratamento psiquiátrico. Ivan escolheria um caminho mais rápido e bem menos trabalhoso. 54


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Capítulo 5 – Últimos preparativos

Apesar de amplo, o centro comercial, conhecido como Super Centro Boqueirão, era um pouco menor do que o terreno da Chácara. Tuíla adorava aquele espaço térreo com suas lojas variadas, os corredores, os jardins internos e os trechos com mesas e cadeiras, um labirinto involuntário em que muita gente acabava se perdendo. Tornara-se uma brincadeira perguntar quem é que nunca se perdera no Super Centro. Conforme pesquisei, fora inaugurado em 1965, o primeiro centro comercial da América Latina. A passagem do tempo era denunciada nos muitos estilos de decoração de seus ambientes públicos, o que, de modo curioso, formava uma identidade única. Quinta-feira era o dia de almoçar bobagem, então nada de alimentos saudáveis. Tuíla e eu nos enchemos de salgadinhos, refrigerantes e, como sobremesa, saboreamos a famosa raspadinha de gelo e groselha, vendida em uma discreta casa de doces que vivia lotada. A tal raspadinha congelava o cérebro de tão gelada... Tossi, depois ri, Tuíla tirando sarro da minha cara. Eu jamais me acostumaria direito a consumir alimentos tão gélidos. Estávamos sentados em um banco de ferro pintado de branco, espiando o movimento da Rua Lobo Viana, à nossa frente. – Você nunca fala do teu pai – comentei, curioso. 55


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O jardim de Iácabus

Finalmente eu aprendera a conjugar verbos naquele idioma tão complexo. Ainda apanhava dos irregulares, mas, em relação a substantivos, adjetivos, artigos, pronomes, numerais, advérbios, preposições, conjunções e até interjeições, meu vocabulário melhorara bastante, o que, para mim, significava uma vitória e tanto. Minha adaptação estava quase completa. Faltava muito pouco para a etapa seguinte, a missão naquele mundo. Tuíla apoiou o pote de raspadinha sobre uma mesa próxima. O assunto trouxera-lhe tristeza. – Minha mãe é de Brasília, e foi lá, na época que cursava pós-graduação em Arquitetura, que engravidou de um namorado – disse. – Mas ele não quis saber da gente, nem a família dela, que é muito conservadora. Aí ela veio trabalhar no Sudeste. Quando surgiu a oportunidade de abrir um negócio em Santos, ela começou a trabalhar com paisagismo, sua grande paixão. – E teu pai? Ele nunca procurou vocês? – Nunca. Nem tenho o sobrenome dele. Sou apenas Tuíla Pimenta, filha da minha mãe. Pensei em meu pai, a figura distante que me moldara para substituí-lo do mesmo modo que fora moldado por meu avô e este, por meu bisavô, sem espaço para dúvidas e questionamentos. Eu não tenho filhos e, se um dia tiver, não pretendo agir como ele agira comigo. 56


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Capítulo 5 – Últimos preparativos

– Posso ser seu pai, se você deixar – sugeri. Tuíla, espantada, arregalou os olhos. – Por que você quer ser meu pai? – Porque... ahn... você é uma criança especial e... eu... Senti minhas bochechas pegarem fogo. – Posso ser um bom pai e... – prossegui, quase gaguejando. – Você... hum... precisa de um pai e eu... eu... A garota exibiu um sorriso compreensivo. Ia facilitar meu discurso. – Sei que você me ama, Rafa. Eu também te amo muito. Fiquei ainda mais envergonhado. Ela segurou minha mão e a apertou com carinho. – Acho que, um dia, seremos mais do que pai e filha – disse, com um ar travesso. “Mais?”, pensei, agora constrangido. Mas ela ainda era uma criança! Uma criança que, apressou-se em informar meu raciocínio, se transformaria em uma adulta tão adorável quanto era na infância. Seria muito fácil me apaixonar por ela, faríamos planos juntos. Planos como uma vez, na minha verdadeira adolescência, eu fizera com meu primeiro amor, uma menina que acabara morrendo em um atentado promovido pelos inimigos. 57


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O jardim de Iácabus

Abaixei a cabeça, fechando os olhos para deter as lembranças. Sonhos eram para os tolos. Não cresceríamos juntos, não iríamos nos apaixonar. Jamais faríamos planos. Em breve eu teria de abandonar Tuíla, a dedicada Cristiane, Pandora, a Chácara e meu jardim que jamais floresceria porque eu nunca plantaria nada ali. Tuíla apertou novamente minha mão. – O que foi? – Nada – menti. Ergui as pálpebras. Do outro lado da rua, conversando com Mirtilo, nosso professor de Matemática, estava o arrogante Ivan. – De onde eles se conhecem? – perguntei para Tuíla. Ela olhou para a mesma direção. – Teu irmão também estudou no nosso colégio e o Mirtilo é quase patrimônio tombado de tanto tempo que trabalha lá. Também foi professor dele. “Patrimônio tombado”... O que será que significava essa expressão? Eu teria de pesquisar. A conversa entre o rapaz e o professor cinquentão não era exatamente amigável. O primeiro ia para cima do segundo, como se o ameaçasse, mas Mirtilo tinha a autoridade de mestre a seu favor. Ele apontou o dedo 58


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Capítulo 5 – Últimos preparativos

indicador para o nariz de Ivan, como se ralhasse com um garotinho malcriado, depois lhe deu as costas e sumiu de vista a passos apressados. O irmão mais velho de Rafael não saiu do lugar. Bufava igual a uma fera acuada. Tuíla ia chamá-lo, mas eu a impedi. – Melhor não – orientei. – Vamos sair daqui sem que ele veja a gente.

Antes de voltarmos para a Chácara, Tuíla quis ir ao banheiro. Fiquei esperando do lado de fora, no corredor dos caixas eletrônicos. Na barbearia perto dali, um menino hiperativo de uns três anos driblava o pobre barbeiro que só queria lhe aparar os cachos. O pai da criança fazia de tudo para distraí-la. Tinha comprado gibis, uma revistinha de colorir, doces e chocolates. Nada funcionava. Foi quando senti que alguém me vigiava. Olhei para frente. Próximo a uma cafeteria de esquina, um rapaz alto, de uns vinte e poucos anos, moreno e mal-encarado, fitava-me com um sorriso cínico. Eu o conhecia? Não mesmo! Mas o sujeito parecia me conhecer. Decidi tomar o corredor à minha esquerda. Dei uma volta grande, peguei outro trajeto e ia retornar, quando o mesmo rapaz surgiu diante de mim. 59


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O jardim de Iácabus

– Olá, Iácabus – ele rosnou, no meu idioma. Fui dominado pelo medo e retrocedi; vislumbrei parte de uma discreta metralhadora que ele escondia sob a jaqueta de couro; escorreguei no piso, a mochila soltou-se das minhas costas quando me levantei, apavorado, usando as mãos para ganhar impulso. Eu não tinha nenhuma chance de sobreviver. Corri, sem enxergar direito em quem trombava, até alcançar a Rua Oswaldo Cruz. Atravessei em pleno sinal verde para os veículos e quase fui atropelado. Parei de supetão na esquina, entre um boteco e um ponto de táxi. Tremendo, agarrei meus cotovelos. Andava em círculos. Eu fora descoberto. Mas... como? “Tuíla...”, lembrei-me, em pânico. Ela ainda estava no centro comercial. Voltei correndo. Procurei-a no banheiro, assustando as mulheres que estavam no local, e depois nos corredores próximos. Já estava considerando sua morte no minuto em que a avistei perto de uma papelaria, conversando com Ivan. – Olha só quem me achou! – disse ela, ao acenar para mim. Embora não houvesse mais nenhum sinal do inimigo, preferi não arriscar. Fiz de conta que não os conhecia e tomei a direção de uma das saídas para a Rua Álvares 60


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Capítulo 5 – Últimos preparativos

de Azevedo rumo ao Canal 4, oposta à da Avenida Conselheiro Nébias. A garota, que já se preocupara ao me descobrir pálido e assustado, correu atrás de mim. Ivan nem ligou; foi cuidar da própria vida. – Ei, o que aconteceu? – ela perguntou, puxando-me pela manga da camiseta do uniforme escolar. – Cadê tua mochila? É, tinha a mochila. Voltei ao mesmo ponto em que a deixara, com a garota em meu encalço, mas o objeto desaparecera. “Está com o inimigo”, deduzi. Ele riria muito das minhas anotações no caderno sobre as aulas. Eu, o temido guerreiro Iácabus, voltara à infância, tinha tarefas escolares e ainda fugira dele como uma barata foge do chinelo prestes a esmagá-la. Se soubessem disso no nosso mundo, ninguém acreditaria. Desolado, sentei-me no banco mais próximo. Tuíla foi perguntar a um dos seguranças do lugar se alguém havia encontrado a mochila. E agora, o que seria? Por que o inimigo não me executara? Foi minha vez de sorrir, cínico. Ele precisava de mim para descobrir o que ambos buscávamos.


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O jardim de Iácabus

Na manhã seguinte, no colégio, não se falava em outra coisa. Mirtilo, o professor de Matemática, fora atropelado na véspera, tarde da noite, quando atravessava uma rua mal iluminada perto de sua casa. Nenhuma câmera de segurança havia registrado o acidente, ninguém vira a placa do carro e o motorista fugira sem prestar socorro. Mirtilo sofrera escoriações e quebrara algumas costelas. Enquanto aguardava o resultado de outros exames, permanecia internado em um dos hospitais da cidade. Solidária, Tuíla arrecadou dinheiro com os colegas de classe, comprou uma generosa cesta de frutas e arrastou-me com ela para visitá-lo no começo da tarde. Mirtilo era solteiro e, quando chegamos, apenas a mãe dele, uma senhora bem velhinha, fazia-lhe companhia ao lado do leito. Os amigos da família já haviam marcado presença. Mãe e filho adoraram a cesta e a gentileza da visita. Tuíla logo fez amizade com a velhinha e foi acompanhá-la em um café na lanchonete do hospital. Sobrou para mim a conversa com o professor. Tanto quanto eu, ele não era de muitas palavras. Preferia os números. O silêncio constrangedor durou até a aparição da última visita da tarde: Ivan. 62


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Capítulo 5 – Últimos preparativos

Senti o medo do professor. Tentei entender o que estava acontecendo e não gostei do que deduzi. – Sai, pirralho – mandou meu suposto irmão mais velho. – Quero conversar com nosso “querido” mestre. O medo de Mirtilo transformou-se em pânico ao descobrir que ficaria a sós com o rapaz. Finquei-me perto do leito. – Eu falei para sair... Ivan puxou-me pela camiseta e, sem qualquer escrúpulo, empurrou-me para fora antes de fechar a porta. Por sorte, havia algum problema na fechadura e a porta acabou entreaberta. Colei meu ouvido no vão entre ela e o batente. – Consegui seu silêncio? – dizia Ivan. – Foi você... – confirmou o professor. – Você dirigia aquele carro... – Eu podia ter esmagado você, mas achei melhor apenas te dar um aviso. – Você terá meu silêncio, menino. O rapaz ia até a porta, porém interrompeu o passo. – Uma palavra sua para a polícia, me ligando àqueles ladrões, e você morre, entendeu? – decidiu enfatizar. 63


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O jardim de Iácabus

– Meu amigo do crime organizado mora na cobertura triplex do teu prédio, não é mesmo? Ele conhece muito bem teu endereço. – Não direi nada. – Sabe, professor, uma das vantagens de ter uma casa noturna é que conhecemos todo tipo de gente. E os graúdos do crime organizado sempre arrumam muita grana para gastar... Confirmei a hipótese que formulara. A quadrilha que invadira a Chácara... Ela agira sob as orientações de Ivan com o único objetivo de aterrorizar Cristiane, a ponto de fazê-la desejar a venda do terreno. Onde entrava o amigo que participava do crime organizado? Óbvio, os ladrões tinham sido indicação dele para um “servicinho” extra, afinal já eram procurados por invasão e roubo em outras residências na cidade. Para a polícia, a família de Cristiane fora apenas mais uma rendida pela quadrilha, um caso aparentemente sem conexão com Ivan. Mas como o professor estabelecera essa conexão? Talvez uma conversa que ouvira sem querer entre o vizinho e o ex-aluno? Ao descobrir que Mirtilo sabia demais, Ivan ameaçara-o naquela discussão que tínhamos presenciado de longe. Se o professor ainda não o denunciara para a 64


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Capítulo 5 – Últimos preparativos

polícia, na certa ele avisara que faria isso, o que lhe rendera o atropelamento horas mais tarde. Bem, aquela minha linha de raciocínio era pura especulação, apesar de muito coerente. No instante que Ivan abriu a porta, eu estava a metros de distância, lendo um cartaz pendurado em uma parede sobre a campanha de combate à dengue. No entanto, o rapaz notou o defeito na fechadura e veio feroz para cima de mim. – O que você escutou, pirralho? – perguntou, entre dentes, ao capturar meu braço. Preferi não fugir para manter minha postura de garoto inocente que estava apenas me informando sobre o mosquito transmissor da dengue. Não o convenci. Ele me arrastou para um banheiro ao final do corredor, vazio naquele momento. – Ei, eu não escutei nada! – reclamei. – Me solta! Não pude evitar sua maldade: ele bateu minha testa contra o espelho colado acima da pia. O impacto provocou rachaduras em sua superfície, cacos feriram meu rosto, fiquei desnorteado. Sangue cobriu parte de meu rosto. Ivan prendeu-me de costas contra a parede e forçou-me a encará-lo. 65


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O jardim de Iácabus

– Convença a Cris a vender a Chácara – exigiu. – Caso contrário, isso vai ficar muito pior... Pior... Era muito pior do que eu esperava. – Você deve dinheiro ao cara do crime organizado – concluí. Por isso o desespero em se apossar da herança do pai. Havia muito mais em jogo do que ambição. Ivan estreitou os olhos, maldade e desespero que eu infelizmente conhecia bem demais. – Agora o papai não está mais aqui para você me dedurar, certo, filhinho preferido? – cuspiu. – Olha, vou avisar só uma vez: se você contar a alguém o que ouviu, a Tuíla vai sofrer um acidente, entendeu? Concordei apenas para ganhar tempo. Já pensava em um bom plano para tirar de vez aquele sujeito de nossas vidas. Ele me largou e saiu. Deslizei para o chão, engolindo ar. Meio minuto depois, a criatura estava de volta, acompanhada pela enfermeira, na sua melhor interpretação de cidadão preocupado. – Eu o encontrei desse jeito... – explicava para ela. – Sorte dele que já está num hospital, não é mesmo?

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Capítulo 5 – Últimos preparativos

Chamada por Tuíla, Cristiane largou o trabalho para correr até o hospital. Parte do rosto de Rafael inchou, ganhando uma cor arroxeada, e o maior dos cortes recebeu cinco pontos. Muito quieto, o garoto aceitou os curativos, sem se queixar de dor. Não respondeu a nenhuma pergunta e muito menos quis contar como se machucara daquela maneira. Ao saber por uma das enfermeiras que ele fora socorrido por um rapaz que correspondia à descrição de Ivan e que já fora embora, Cristiane ficou apavorada. Se o enteado mais velho machucara o próprio irmão... Até que ponto ele seria capaz de chegar? Rafael não confirmou a presença de Ivan, possivelmente com medo de retaliações. Alguns dias mais tarde, quando Cristiane o levou ao médico para retirar os pontos, a única coisa que ele disse sobre o assunto foi que o irmão iria deixá-los em paz. Para sempre.

No último dia do mês, tomei a iniciativa de marcar a reunião para as 13 horas. Ivan andava sumido, não aparecera mais na Chácara para pressionar Cristiane. Possivelmente estava armando mais uma de suas encrencas. No horário combinado, entrei no Super Centro Boqueirão. Escolhi uma das mesinhas perto da cafeteria e esperei. Após o colégio, Tuíla fora para a aula 67


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O jardim de Iácabus

de ioga e eu pretendia resolver aquele assunto a tempo de encontrá-la mais tarde para almoçarmos. Ivan chegou com meia hora de atraso. Sentou-se à minha frente, sonolento, com cara de quem acabara de sair da cama. – O que você quer, pirralho? – resmungou. Eu estava usando o notebook. Após alguns cliques, mostrei-lhe a tela. O rapaz saltou da cadeira. – C-como você entrou na minha conta-corrente? – quase gritou, assustado. – Do mesmo modo como posso movimentá-la e retirar tudo o que transferi para lá. – Não, não! Eu... Cara, adorei meu saldo atual! – Se quiser ficar com ele, basta assinar aqui... De uma pasta, tirei toda a documentação necessária. Nela, Ivan vendia sua parte da Chácara para Cristiane. Ele voltou a se sentar. Leu página por página, conferiu os dados, fez as contas. O valor que receberia estava bem acima do mercado. – Onde tu conseguiu o dinheiro? – intimou. Era curioso como, nas situações informais, os santistas gostavam de 68


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Capítulo 5 – Últimos preparativos

utilizar a segunda pessoa do singular com o verbo conjugado em terceira pessoa. – Isso é assunto meu. Eu não lhe contaria que, pela Internet, rastreara todos os testas de ferro de Hugo e, de modo ilícito, transferira para nomes e contas fantasmas o que seria a herança da família legítima. Depois, vendera os imóveis, desfizera negócios e transformara todo o patrimônio em dinheiro. Nenhum testa de ferro teria como encontrar meus rastros, apagados de modo eficaz, para reivindicar o que perdera. O otário à minha frente, achando que levava vantagem, recebia apenas uma parcela do valor a que tinha direito... Eu me apossava do restante. Já Cristiane teria sua parte da herança na semana seguinte, quando entraria em sua conta bancária um depósito pré-agendado por mim. Quanto à parte que cabia ao verdadeiro Rafael... Eu a distribuíra em doações a ONGs de defesa do meio ambiente. Foi a forma que encontrei para honrar sua memória. – Como vou confiar em você? – disse Ivan. – E se eu assinar e você resolver transferir o dinheiro? – Simples – respondi, com desprezo. – Você faz uma nova ameaça e aí eu devolvo. 69


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O jardim de Iácabus

– Então é só assinar e pronto? – Não. Você também vai sumir das nossas vidas. – E se eu não sumir? – Será tua vez de sofrer um acidente. O rapaz começou a rir, achando que era piada, mas o olhar assassino que dirigi a ele não deixou qualquer dúvida sobre minha ameaça. Ele engoliu em seco. A documentação foi assinada, apenas o cumprimento de uma encenação. Eu já alterara os dados no sistema do Cartório de Imóveis e da prefeitura, registrando a venda e passando totalmente a Chácara Outeirinhos para o nome de Cristiane. Conferi as assinaturas, desliguei o notebook e guardei equipamento e papéis na minha mochila nova. Pendurei-a nas costas após me levantar e já ia me afastando no instante que Ivan me chamou. – Rafa? Eu já ia esquecendo: feliz aniversário! Se estivesse vivo, Rafael completaria quinze anos naquele dia. Ao pensar naquela possibilidade, pela primeira vez senti intensamente a perda de uma vida inocente. Doeu. Muito. Não demonstrei minha emoção. Apertei as alças da mochila, encostadas em meu peito, e fui em frente. 70


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Capítulo 5 – Últimos preparativos

No corredor oposto, parado diante de uma loja de roupas, o inimigo acompanhava meus movimentos. Fingi indiferença e continuei andando. Desde a primeira abordagem, mais de três semanas antes, ele me vigiava a distância, agindo como o caçador à espreita. Sabia que, cedo ou tarde, eu daria o próximo passo.

Com a cabeça a mil, Ivan tomou uma xícara de café. Ora, quem diria, o filhinho preferido do papai virara um hacker. E dos melhores! E onde será que conseguira o dinheiro? Possivelmente, invadira o sistema de algum banco. De qualquer modo, aquele talento não devia ser desperdiçado. Depois Ivan tentaria retomar a amizade com o irmão; quem sabe poderiam “trabalhar” juntos... Bem depois mesmo, porque naquele momento só conseguia pensar no saldo atual de sua conta corrente. Feliz da vida, imaginando como gastaria o dinheiro, o rapaz foi até seu carro – um modelo importado, zero-quilômetro, de caminhonete –, que estacionara numa das vagas disponibilizadas pelo centro comercial em uma de suas laterais, a que ficava na Rua Oswaldo Cruz. Nem mesmo o fato de encontrar um sujeito encostado no veículo afetou seu bom humor. 71


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O jardim de Iácabus

– Ei, mané, sai daí! – mandou. O sujeito, no entanto, não se abalou. Era grandalhão, parecia ter mais músculos do que cérebro e vestia roupas de aventureiro, no estilo de Indiana Jones. Só faltavam o chapéu e o chicote. Ele estendeu o braço direito para a frente e, ao exibir a palma da mão para Ivan, disparou uma luz vermelho-rubra que o envolveu por milésimos de segundo antes de se dissipar. O filho mais velho de Hugo não conseguiu mais se mover. A palma da mão permaneceu erguida contra ele para a etapa seguinte, que removeu pensamentos, emoções, aprendizados e lembranças. E, por último, sua essência, o que tornava Ivan um ser único. Restou apenas um organismo vivo e submisso aos comandos de seu líder.

Cristiane encomendara bolo e salgadinhos para a noite. Haveria uma comemoração bem simples e informal, com alguns colegas do colégio e pronto. Eu não queria festa, nem mesmo a tal velinha para apagar, mas ela insistira. Seria, sem que elas desconfiassem, minha despedida. De madrugada, eu partiria 72


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Capítulo 5 – Últimos preparativos

em segredo. Já garantira para mãe e filha um futuro financeiro tranquilo, afastara Ivan... Agora tinha de cumprir minha missão. Na academia, localizada na avenida do Canal 4, esperei que Tuíla terminasse a aula de ioga. Depois, juntos, fomos almoçar temaki e dividir uma enorme tigela de açaí em um aconchegante restaurante japonês localizado a duas quadras da praia, perto da belíssima Basílica Menor de Santo Antônio do Embaré, em estilo neogótico. Tuíla estranhou meu jeito mais calado do que o normal e falou por nós dois; ela me fez rir, sorrir, sonhar. A garota era assim, especial, daquelas pessoas que criam bondade onde ela não existe. Para comemorar seu aniversário, no segundo dia de julho, queria realizar na Chácara uma feira de adoção de cães e gatos, entre balões coloridos, doces e música ao vivo – violões e flautas talvez, nada muito alto, como destacou, para não assustar os animais. A ideia parecia excêntrica, mesmo vinda de alguém como ela. – Você não lembra, Rafa, mas a Pandora foi adotada numa dessas feiras para adoção de animais resgatados das ruas, que voluntários organizam lá no Gonzaga. Sabe 73


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O jardim de Iácabus

como foi que eles a resgataram? Amarrada no trilho do trem, no cais, para ser despedaçada pela locomotiva... – Quem fez isso com ela? – Não descobriram. A Pandora já era adulta, estava pele e osso de tão magra. Tinham queimado o focinho da coitada com pontas acesas de cigarro. Uma veterinária voluntária cuidou dela e, quando ela estava bem, pronta para adoção, eu a vi na feirinha e me apaixonei! Foi no dia do meu aniversário, há três anos. Imaginei a Chácara decorada por balões, Pandora rolando na grama para ganhar doces dos convidados e o som das flautas e dos violões enchendo o ar como trilha sonora para os latidos e os miados dos animais pedindo um lar para serem felizes. Pensando melhor, aquela festa tinha, sim, a cara da Tuíla. Pena que eu não estaria lá para ver. Após pagarmos a conta, saímos do restaurante e viramos a primeira rua à esquerda, a Benjamin Constant, rumo à praia. Lá, em uma das alamedas do jardim, Tuíla escolheu um banco, onde nos sentamos, e abriu o livro didático de Língua Portuguesa. Tínhamos prova na manhã seguinte. Cruzei as pernas sobre o banco, pus minha mochila no colo e inspirei maresia enquanto contemplava a 74


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Capítulo 5 – Últimos preparativos

movimentação rotineira da avenida à nossa direita. À esquerda, havia a areia e o mar, cinzento naquela tarde. – Você não vai estudar? – a garota estranhou. Justo eu, que vivia com o nariz enfiado em pesquisas, desejava, mais do que tudo, a máxima distância delas. A verdade é que eu sufocava, não aguentava mais. Queria confessar minha culpa, que me esmagava com cada vez mais força e insistência. Simplesmente tinha de contar. – O Rafael morreu para que eu pudesse ocupar o lugar dele – falei, rápido, em um só fôlego. – Ahn? – Os nanorrobôs o escolheram, o melhor espécime naquelas condições. Foi aleatório, totalmente aleatório. Podia ter sido outro alvo, mas foi ele porque estava no lugar errado, na hora errada. – Quem... Quê?! – Para mim foi como... matar formigas, entende? Sem dúvidas e remorso. Até que também me tornei a formiga e passei a me sentir como uma. Quando vi o mundo por teus olhos, Tuíla, então entendi o que tinha feito. Perdoe-me por enganar você e tua mãe. A garota franziu a testa. 75


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O jardim de Iácabus

– Rafa, você está com febre? Ela jamais acreditaria em mim. – Não sei se o Rafael te amava tanto quanto eu te amo. Só sei que era ele quem deveria estar aqui, agora, com você, estudando para a prova de Português, ansioso por comemorar o aniversário com vocês e o pai dele, te ajudando com ideias para tua festa de quinze anos entre balões, gatos e cachorros resgatados. Tuíla, eu... Não consegui mais falar. Tuíla encostava seus lábios nos meus, um beijo cheio de ternura destinado a quem julgava ser o verdadeiro Rafael. Senti lágrimas embaçando minha visão. “Meu nome é Iácabus”, quis lhe contar. – Vamos para casa, está bem? – ela murmurou, fitando-me com seus olhos castanhos. Desejava muito abraçar aquela menina com força, mas não me mexi. Suspirei, resignado. Precisava esquecer as tolices de uma adolescência que não me pertencia. Estava agindo como um idiota. Saí do banco, pendurei a mochila no meu ombro esquerdo e fui embora. Tinha pressa de terminar aquele aniversário asfixiante.

Na loja, Cristiane atendia ao telefonema de uma antiga cliente. Um pai e uma filha acabavam de sair, 76


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Capítulo 5 – Últimos preparativos

levando um vaso de renda-portuguesa. Cruzaram com Ivan no portão aberto e não repararam que ele carregava um revólver. – Por favor, dona Carlota, chame a polícia – pediu Cristiane, apavorada, para a cliente. – O Ivan está armado e... Não pôde dizer mais nada. O som do disparo veio até ela, mais lento do que a bala que se alojou em seu braço esquerdo. O grito morreu na garganta. Cristiane caiu, o telefone ainda em sua mão, sentindo muita dor. Do outro lado da linha, a cliente deixava o telefone fixo e corria para pegar o celular na bolsa. Em pé, a poucos metros de distância, Ivan mantinha a madrasta sob a mira da arma. Parecia esperar alguma coisa... Alguém. Após alguns segundos, ele se virou para os dois adolescentes que acabavam de voltar para casa, girando para eles o cano do revólver. Rapidamente Rafael escondeu Tuíla atrás de si para protegê-la. Cristiane conseguiu gritar, mandou que fugissem. Era tarde demais.

Reconheci a expressão vazia no rosto de Ivan, igual a tantas outras que eu já vira. Sua mente, essência, seja lá 77


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o que o fazia ser quem era, fora absorvida pelo inimigo. O rapaz não passava de uma embalagem vazia, apenas um corpo que continuava em funcionamento porque obedecia a ordens. Ao contrário de mim, o inimigo trouxera para cá um dos armamentos de nosso mundo, um poderoso dispositivo de aniquilação mental que infelizmente eu conhecia em detalhes. Afinal, fora eu quem o desenvolvera. Neste instante, o celular de Ivan tocou. Em um gesto mecânico, o rapaz tirou o aparelho do bolso com a mão livre e arremessou-o para mim. Peguei-o no ar. O vigia finalmente apareceu, vindo do interior da casa. Tinha ido ao banheiro. Apontando seu revólver para Ivan, mandou que largasse a arma, o que o rapaz fez sem pestanejar. Pandora também veio, mas dos fundos da Chácara. Foi atrás de Tuíla, que correu para amparar a mãe. Atendi à ligação. – Isso foi por você me ignorar há pouco, Iácabus – disse a voz de meu interlocutor. – O que você quer? – Sua colaboração. Ao absorver a mente de Ivan, o inimigo tivera acesso a todas as informações que o rapaz possuía sobre a vida 78


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Capítulo 5 – Últimos preparativos

tanto do verdadeiro quanto do falso Rafael. Descobrira também que eu me importava para valer com aquelas duas mulheres. Se não concordasse com a proposta, elas sofreriam ainda mais. Aquele fora apenas um aviso. – Onde encontro você? – Na primeira esquina, à direita da Chácara. Ah, e pode ir deixando aí o celular e sua mochila com o notebook. Desliguei e obedeci, depositando os objetos no chão. Na calçada, os curiosos aglomeravam-se, um deles chamava uma ambulância pelo celular. Cristiane ficaria bem. Não se ferira com gravidade. A caminho da esquina, ouvi as sirenes da viatura de polícia, que descia a avenida. O inimigo estava ao volante de um carro prata, parado na vaga de uma farmácia. Abri a porta da frente, a do passageiro, e entrei no veículo. – Para onde agora? – ele quis saber. Fechei a porta e coloquei o cinto de segurança. – Aeroporto – respondi. – O que buscamos não está no Brasil.

No saguão do Aeroporto Internacional de São Paulo, em Guarulhos, tive de aguardar até que o inimigo, 79


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O jardim de Iácabus

utilizando o próprio celular e mecanismos que eu também dominava, invadisse sistemas informatizados e providenciasse documentos falsos, passagens aéreas e demais detalhes para sairmos do País sem despertar qualquer suspeita. Após mais de uma hora no local, eu descobri, apavorado, que não iríamos sozinhos. Dois subordinados do inimigo, mentalmente esvaziados como Ivan fora, traziam mais uma companhia para a viagem: Tuíla. Ela estava pálida, bastante abatida, os olhos inchados de tanto chorar. Ao me ver, abriu um sorriso de alívio e, sem se importar com seus sequestradores, correu para me abraçar. Estreitei-a contra mim, sentindo o quanto tremia. – Aguente firme – sussurrei-lhe. – Vou resolver isso. Minha promessa deu-lhe coragem. Tuíla afastou-se, segurando minha mão, e avaliou o inimigo ao meu lado. – Josué, um dos meus subordinados, está vigiando a mãe dela – ele me informou. Referia-se a mais um de seus zumbis cujas ações comandava mentalmente, mesmo a distância, por intermédio dos nanorrobôs. – Se você tentar me enganar, ela será a primeira a ser executada. A menina aqui será a segunda. 80


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Capítulo 5 – Últimos preparativos

– Por que levá-la conosco? – Apenas para manter você sob controle. – Isso é covardia. Ela é só uma criança! – Covardia? – quase riu meu inimigo. – Não seja hipócrita, Iácabus! Calei-me. Tuíla olhava para mim, tentando entender o que estava acontecendo, por que fora sequestrada no saguão do hospital enquanto esperava pela mãe, conduzida para a sala de cirurgia. – Para onde vocês vão nos levar? – perguntou em uma voz clara, sem uma única nota de medo. Como o inimigo não lhe deu atenção, fui obrigado a responder. – Vamos para Portugal.

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Lisboa, Portugal

De São Paulo, voamos para Salvador e, de lá, para o Aeroporto da Portela, em Lisboa. Chegamos no começo da tarde. O inimigo não quis perder tempo com descanso e refeições. Alugou um carro, onde nos colocou com seus subordinados, assumiu o volante e seguiu para o destino que eu lhe fornecera: Tomar, uma atraente cidadezinha que integrara uma importante rota utilizada na época do Império Romano. Com oito séculos e meio de existência e impressionantes muralhas dentadas, o Castelo de Tomar, transformado em Convento de Cristo, parecia espiar a cidade do alto de uma colina arborizada, na área histórica da cidade. Foi para lá que nos dirigimos. 82


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– Por que estamos num lugar que foi sede da Ordem dos Cavaleiros Templários? – perguntou-me Tuíla, após ouvir o que um guia contava a seu grupo de turistas, logo na entrada daquele complexo de capelas, claustros, torres, salas e jardins. – É, por que um lugar como este? – endossou meu inimigo. Os dois subordinados seguiam-nos como sombras enquanto tomávamos a direção da Charola, um extraordinário edifício poligonal concluído no século XII, inspirado na Igreja do Santo Sepulcro, em Jerusalém. – Não sei – respondi. – A Charola está exatamente nas coordenadas que decifrei. – Você pode ter decifrado errado – disse o inimigo. – É o que vamos descobrir. – Do que vocês estão falando? – intimou a garota. – Seu mundo é um lugar lendário para meu povo – expliquei. Ela ergueu uma sobrancelha, dando como definitiva a perda da minha sanidade. – Meus antepassados vieram para cá, mas isso ocorreu há tanto tempo para nós que virou ficção, apenas uma história esquecida entre tantas outras. Só que eu sempre desconfiei que existisse um fundo de verdade. Estudei os 83


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O jardim de Iácabus

textos antigos, decifrei enigmas, reconstituí os passos desses viajantes e analisei a tecnologia que utilizaram. Agora estou aqui, ocupando o corpo de um adolescente e ameaçado por esse inimigo estúpido. A garota abriu a boca, incrédula. Ela ia dizer alguma coisa, mas desistiu; após alguns segundos, quis tirar uma única dúvida. – O inimigo não tem nome? – Não sei o nome dele – admiti. – Nem preciso. São todos iguais, raça inferior, escória. O comentário rendeu-me um empurrão do inimigo. Caí, bati o queixo no chão, quase quebrei algum osso e dente. Tuíla sufocou um grito e abaixou-se para me ajudar. Levantei-me. O inimigo fitava-me com ódio. – Você vai pagar por seus crimes, cada um deles... – disse. – Não serei o único – provoquei. – Você e sua gente serão punidos por todas as mortes que causaram. – Você não está em condições de me ameaçar. Ele ergueu o braço direito, mostrando a palma da mão para Tuíla. O armamento estava naquele ponto do corpo, ligado a seu DNA pelos nanorrobôs. Estremeci. 84


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Capítulo 6 – Terceira etapa: a missão

– Deixe-a em paz! – mandei. – Você deve implorar pela vida de sua garota. Tuíla espiava a palma da mão do inimigo, sem a mínima ideia do perigo que corria. Tive de aceitar a humilhação. Ajoelhei-me. Antigos rancores desejavam vir à tona; foram bloqueados. Encostei minha testa no piso, a poucos centímetros dos pés do inimigo. Submissão total nem sempre aceita. Em nosso mundo, os vitoriosos degolavam os adversários vencidos nesse momento humilhante. Minha cabeça, porém, continuou no mesmo lugar. O inimigo precisava dela colada ao meu pescoço para encontrar o artefato. Ou melhor, precisava do meu raciocínio, pois não tinha certeza de que eu decifrara por completo as lendas. Caso contrário, já teria absorvido minha mente. A cena bizarra para os humanos já chamava a atenção de quem circulava pelo local. O inimigo riu, satisfeito, afastou de Tuíla a ameaça e ordenou que eu ficasse em pé. – Para onde agora? – cobrou.

Ódio. Era o que guiava Rafael e também o líder dos sequestradores. Os outros dois não demonstravam 85


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O jardim de Iácabus

sentimentos e vontade própria, iguais a marionetes. A princípio, Tuíla deduzira que o tal inimigo e seus comparsas agissem sob as ordens de Ivan, o único vilão que conseguia enxergar após o atentado que Cristiane sofrera; só que agora não sabia mais o que pensar. Por que sequestrar os dois adolescentes? O que queriam em troca? E o que dizer, então, do “cativeiro” que tinham escolhido? O inimigo parecia mais interessado em fazer turismo em Portugal... Não. Na verdade, ele estava mais interessado em concluir uma jornada em busca de algo que somente Rafael sabia onde encontrar. Tuíla encolheu-se, com frio. Ainda usava os chinelos de tiras e a mesma roupa com que saíra da aula de ioga, uma calça legging e uma camiseta de manga curta, estampada com inúmeros quadrados miúdos e coloridos. Olhou para as mãos e os braços sem qualquer desenho de hena. Havia duas semanas não fazia suas habituais tatuagens de flores, felinos ou dragões simplesmente por falta de tempo. Vinha de uma maratona de avaliações e trabalhos no colégio, o que lhe exigira muitas horas de estudo. “Perdemos a prova de Língua Portuguesa”, lembrou, sentindo-se uma tola. Estavam ali, ameaçados por perigosos sequestradores, e ela pensando em provas... 86


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Capítulo 6 – Terceira etapa: a missão

Rafael, que ainda vestia o uniforme escolar, retirou o casaco de moletom e colocou-o sobre os ombros da amiga, atento a cada um de seus movimentos. “E se ele não for realmente o Rafael?”, questionou-se Tuíla. “E se o verdadeiro Rafael tivesse mesmo morrido para que um impostor assumisse seu lugar? Não, não podia ser verdade. Essa possibilidade era absurda demais.” Com outras preocupações afligindo-a, Tuíla mal reparou no cenário grandioso da Charola e em sua altura imponente. Na parte central, suas oito faces desdobravam-se em mais dezesseis no exterior. Exemplo de arquitetura templária, apresentando estilos românico e gótico – após uma de suas várias reformas e ampliações, também manuelino –, de design simples, com arcos e pilastras, mas também de adornos em profusão. – Aqui há detalhes em excesso – disse Rafael para o inimigo. – Tenho que registrá-los em fotos. Estendeu a mão, pedindo-lhe o celular. Ouviu um “não” como resposta. – Já não pude trazer o note com as minhas pesquisas... – reclamou. – Como espera que eu desvende a localização exata do artefato? – Você não precisa desses recursos. 87


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O jardim de Iácabus

O garoto sorriu, irônico. – Você superestima minha inteligência – disse. – Levei quase uma década para decifrar as lendas. Posso levar mais uma para encontrar o artefato. – Memorize o que está à nossa volta. – Ahn, claro... Quantas vezes você acha que precisaremos voltar aqui para que eu memorize tudo isso? – Se vira! Ou sua garota morre. – Você pode matá-la e matar centenas de outras depois, mas isso não tornará o processo mais rápido. Precisarei de meses para memorizar cada detalhe, compará-lo a outros, analisá-lo, talvez chegar a alguma conclusão. E se, por acaso, o artefato não estiver aqui? E se encontrarmos apenas uma pista que nos levará a outro lugar, a outro país? Quantas horas você acha que, com a ajuda da Internet e das tantas câmeras de segurança que nos filmaram nos aeroportos e fora deles, os humanos vão demorar a descobrir o paradeiro de dois adolescentes sequestrados que você nem se preocupa em esconder em algum cativeiro? – Estou monitorando tudo. Ninguém conseguirá nos rastrear até aqui. – Ah, tá. Isso resolve o problema. 88


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Capítulo 6 – Terceira etapa: a missão

Pararam diante do inusitado altar gótico, quase um templo dentro de outro. Nas paredes, havia pinturas do século XVI e o tubo que restara de um antigo órgão. Rafael suspirou antes de se aproximar de uma das paredes. Gastou longos minutos esquadrinhando uma área de poucos centímetros de diâmetro. Sem paciência para tanta lerdeza, o inimigo rangeu os dentes. Não viu alternativa exceto entregar-lhe o celular, que o garoto utilizou com eficiência, clicando o máximo de imagens que conseguiu. – Já tenho bastante material para analisar – disse ao lhe devolver o equipamento. O horário de visita chegava ao fim e os últimos turistas deixavam o local. – A não ser que você pretenda nos matar de fome e de falta de sono, é melhor arrumar um lugar para comermos e passarmos a noite.

Terminamos o dia em um hotel muito simples, perto do Rio Nabão, que divide a cidade de Tomar. Era mais um casario antigo, de dois andares, entre vários outros nas ruas estreitas da área histórica. Nossas refeições foram levadas para o quarto onde nos instalamos, no pavimento superior. O dono do 89


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estabelecimento estranhou que cinco pessoas ocupassem um aposento com apenas duas camas de solteiro, mas não fez perguntas quando meu inimigo resolveu aumentar generosamente o valor da diária. Após nos alimentarmos, Tuíla ligou a TV e deitou-se em uma das camas para assistir à programação. Fiquei na outra, sentado, com as costas apoiadas em três travesseiros e as pernas cruzadas, fingindo estudar as fotos no celular que o inimigo teve de deixar comigo mais uma vez. Ele, incansável, instalou-se em uma cadeira a dois metros de distância, para não perder de vista nenhum dos meus movimentos. Às vezes, pegava de volta o celular para consultá-lo, monitorando a ação dos humanos em vários sistemas de segurança. Esta foi praticamente nossa rotina por três dias. Fiz algumas pausas para dormir, comer, ocupar o banheiro, tomar banho e só, ao contrário do inimigo, persistente em seu posto de observação. Como previ, em algum momento, ele acabou se distraindo. Resolveu espiar a cidade pela janela, seu corpo humano sentindo o cansaço pela tensão e pela vigília. Os comparsas viviam mais na rua, vigiando-nos a distância, do que no quarto. Faltava pouco para colocar meu plano em ação.


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Capítulo 6 – Terceira etapa: a missão

Santos, Brasil

Desesperada com o desaparecimento de Rafael e Tuíla, Cristiane forçou sua alta hospitalar. No dia seguinte ao atentado, já estava de volta à Chácara, a todo minuto esperando que alguém ligasse, talvez o próprio sequestrador... A princípio, a polícia acreditava no envolvimento de Ivan no caso, mas as investigações não avançavam. O rapaz, aliás, mergulhara em um estado catatônico, incapaz de qualquer reação. Sob escolta policial, fora internado para exames. Foi Pandora, fuçando a mochila que Rafael deixara para trás, quem achou sem querer a primeira pista para solucionar o enigma. Atônita, Cristiane descobriu no meio de um punhado de papéis a documentação em que Ivan vendia para ela sua parte na Chácara. A segunda pista veio dois dias mais tarde, com o telefonema de sua gerente bancária, perguntando como gostaria de investir o dinheiro previsto para cair em sua conta em poucos dias. Claro que tinha as sugestões perfeitas para o melhor rendimento de um valor tão substancial e... – Que dinheiro? – estranhou Cristiane. Ao saber a quantia exata, quase caiu para trás. A seguir, ligou para o amigo advogado de Hugo, o mesmo 91


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que cuidara do inventário. Ele retornou horas depois, tão confuso quanto ela. – Os testas de ferro de Hugo perderam tudo o que ele transferiu para o nome deles – contou. – E nenhum sabe explicar como isso aconteceu. A terceira pista estava no notebook de Rafael, nas poucas informações que ele não tivera tempo de apagar: dados sobre os testas de ferro, números de contas bancárias, comprovantes de transferência. “Meu Deus, o que esse menino aprontou?”, afligiu-se Cristiane. Mas o que realmente chamou sua atenção foi uma ampla e detalhada pesquisa sobre monumentos megalíticos em Portugal. Na caixa de e-mail, havia a confirmação da compra de uma passagem aérea para o mesmo país. Pela data e pelo horário do voo, Rafael, que usaria um nome falso, tinha planejado sair do Brasil horas após sua festa de aniversário. Seguindo um palpite, ela vasculhou mais informações na Internet. Se o garoto estava em Portugal, era certo que Tuíla o acompanhava. E só havia um modo de trazê-los de volta.

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Capítulo 6 – Terceira etapa: a missão

Tomar, Portugal

Apesar de extenuada, Tuíla não conseguia dormir direito. Se pudesse pegar o celular das mãos de Rafael e mandar uma mensagem para Cristiane... O próprio garoto, mais interessado em analisar as fotos da Charola, não tivera aquela ideia. Ou tivera, mas ele a descartara para evitar que o inimigo machucasse a garota caso descobrisse. Sem aguentar mais assistir à TV, sua única opção naquele cativeiro, ela desligou o aparelho. Na cama, rolou de um lado para o outro, inquieta. A madrugada surgiu e avançou. Volta e meia, Rafael bocejava, porém sem desgrudar os olhos das fotos. Como ele conseguia ter tanta concentração? Já o inimigo, entediado, voltara a se sentar na cadeira. A quase imobilidade do garoto foi acentuando seu tédio. A partir daí, tornou-se difícil controlar a necessidade de dormir. Ele cochilou. Quando a cabeça pendeu para frente, despertou e endireitou-se. Isso se repetiu uma, duas, três, quatro vezes. Na quinta, o sono venceu. Em breve, a claridade tímida da nova manhã penetraria pelo vidro da janela. Discretamente, Rafael abriu o celular, mexeu em algumas peças e remontou-o. Então, sinalizou para que Tuíla se levantasse e, sem fazer barulho, fosse ao 93


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O jardim de Iácabus

banheiro do quarto. Ela seguiu sua orientação. Lá, encostou-se contra a pia, à espera do que aconteceria. Pela porta entreaberta, viu o garoto colocar seus três travesseiros debaixo do cobertor e, com eles, simular o corpo da garota sobre a cama. Depois, aproximou-se do inimigo e acordou-o. – Mais tarde eu continuo – disse ao devolver o celular que o outro, de modo automático, pegou com a mão direita. – Vou dormir um pouco. Bastante sonolento, o inimigo olhou para a cama da garota, acreditando que era ela sob o cobertor. Continuou sem suspeitar de nada quando Rafael foi até o banheiro e fechou a porta atrás de si. Confusa, Tuíla espiou a minúscula janela na parede do chuveiro. Não poderiam fugir por ali. O que então...? Com pressa, Rafael fez que ela se abaixasse e, empurrando-a contra a parede, cobriu-a com o próprio corpo. Imediatamente, uma explosão irrompeu do outro lado da porta. Tuíla engoliu um grito; o garoto obrigou-a a se levantar e, protegendo-a, guiou-a para fora, direto para a luminosidade das chamas que se apossavam dos móveis, das cortinas, das camas... E do corpo do inimigo. Atravessaram correndo o cômodo, a garota horrorizada pelo cenário de guerra. No corredor, ele a largou para se apoderar de um extintor de incêndio. 94


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Capítulo 6 – Terceira etapa: a missão

– Me espera na rua! – mandou antes de retornar. Outros hóspedes, apavorados, deixavam seus quartos. Tuíla, porém, não se uniu a eles escada abaixo. Avançou atrás do garoto, que apagava o fogo para que não se alastrasse. Ele deixou o corpo do inimigo por último. Foi só depois que notou a presença da garota. – Alterei a bateria do celular para que ela explodisse – resumiu. – V-você... Você o matou... – Não. É necessário muito mais do que uma simples explosão para destruir os nanorrobôs. Veja. Em segundos, o cadáver desfigurado pela explosão e pelas chamas foi consumido por algo invisível a olho nu. Em seu lugar, apareceram ossos, músculos, órgãos... – O inimigo está sendo recriado pelos nanorrobôs a partir do material genético que não foi destruído – explicou Rafael. – E essa reconstrução inclui os armamentos que ele carrega no próprio corpo, que voltarão a funcionar como antes. Assombrada, a garota não ousou se mexer. Aquilo... O processo todo... Era inacreditável! – M-mas... – mal conseguiu balbuciar. 95


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– A essência do inimigo não foi afetada e muito menos sua consciência, o que significa que ele me fará pagar muito caro pela explosão. Venha, vamos sair daqui! Com medo de raciocinar e de deduzir o que preferia não saber, ela apenas se deixou levar. Correram, alcançaram a rua, passaram pelos outros hóspedes aglomerados na frente do hotel e pela vizinhança curiosa. Mais adiante, os outros dois sequestradores estavam caídos de bruços. Pareciam mortos. Tuíla olhou para trás. Avistou o inimigo na janela; sua reconstrução fora concluída. Possesso, ele estendeu o braço na direção dos dois adolescentes. Nesse instante, uma luz vermelho-rubra brotou da palma de sua mão, expandindo-se em uma rapidez inacreditável. E prestes a alcançá-los.

Por um triz, a luz imobilizadora não atingiu os adolescentes, apesar de imobilizar todos os humanos que estavam no caminho até eles. Frustrado e ensandecido, o inimigo liberou quem acabara aprisionando sem querer e, diante de seus olhares estupefatos, saiu da janela. Já despertara demais a atenção dos humanos, que não entendiam o que acontecera. Eles chamariam a imprensa, fariam fotos com seus celulares, divulgariam a experiência nas redes sociais. Melhor fugir o mais depressa possível. 96


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Capítulo 6 – Terceira etapa: a missão

Ele achou no chão o que sobrara de sua carteira. Os cartões estavam retorcidos, o dinheiro queimara; enfim, tinha de resolver essa questão também. Rapidamente, foi até o banheiro. Como deduzira, Iácabus escondera Tuíla no local antes da explosão. Perto da pia, havia um único fio do cabelo tingido de azul da garota, que o inimigo recolheu com cuidado. Precisaria de seu DNA. Nos fundos do hotel, pulou um muro e depois mais alguns, até decidir entrar em uma das casas. Os donos tinham saído. Nu como estava, não iria muito longe. Em um dos quartos, pegou roupas e um par de botas. Vestiu-se, apossou-se de um celular esquecido sobre uma mesa; com o fio azul entre os dedos, esperou que um punhado de nanorrobôs deixasse seus poros, decodificassem o DNA da garota e iniciassem o processo. Com cuidado, depositou o fio sobre o piso, à sua frente. A vivência e todo o conhecimento que ele adquirira naquele mundo seriam compartilhados pela tecnologia com uma das duas formas de vida que o acompanhavam na missão, a essência dela também guardada pelos nanorrobôs apenas à espera da oportunidade de ser transferida para um novo corpo. Velozmente, uma nova Tuíla foi construída. Quando o processo se completou, ela inspirou fundo, abriu os 97


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olhos e lhe dedicou seu melhor sorriso. Depois, conferiu seu novo corpo. – Ah, meu caro Gantz, é tão bom ser jovem novamente! – disse, satisfeita. Ele também sorriu. Perigosa e implacável, Nawiri era a melhor guerreira de seu povo. O novo corpo não fazia jus à beleza madura de sua parceira, mas tinha lá seus atrativos. Gantz enlaçou-a pela cintura, e os dois beijaram-se com voracidade para experimentar o poder daquele carinho tão desejado pelos humanos. Apreciaram o resultado. Ele queria mais, ela o forçou a ser racional. – Você devia ter me chamado antes. Faríamos turnos de vigilância. – Eu sei, o erro foi meu. Acreditei que este corpo humano não se cansasse com tanta facilidade. – Acha mesmo que Iácabus deixou a cidade? – Ele já deve ter roubado algum carro e está a caminho do aeroporto para despachar sua garota de volta ao Brasil. – Será mesmo? Ela se afastou e foi procurar algumas roupas em um closet. – Qual é a sua teoria? – ele quis saber. 98


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Capítulo 6 – Terceira etapa: a missão

Nawiri escolheu um sutiã de renda preta e uma calcinha da mesma cor para combinar com a peça. – Iácabus é esperto – respondeu. – Duvido que tome uma decisão tão previsível. – Você acha que ele ainda está em Tomar. – E mais perto do que imaginamos. – Nesse caso... – Concordo. Vamos arrumar um novo corpo para o último guerreiro que trouxemos.

Os adolescentes atravessaram ruas, ganharam distância, deram voltas para despistar o inimigo. Por fim, esconderam-se atrás de uma mureta perto do rio, entre árvores e folhagens, após cruzarem uma ponte. – Você... – murmurou Tuíla, trêmula. – Não é o Rafael. O garoto desviou o rosto por alguns segundos antes de enfrentá-la. – Meu nome é Iácabus. – Aquilo que você me falou na praia... – É a verdade. – Você matou o Rafael, o Hugo, a namorada dele, o piloto do helicóptero... 99


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Iácabus assentiu. Foi a vez de ela ser subjugada pelo ódio. – Por que fez isso? – gritou, batendo os punhos com força no peito do impostor. – Você é um assassino! Enganou a gente... Mentiu! Ele aceitou sua fúria, os golpes cada vez mais doloridos, o desespero que crescia dentro da garota, seu choro compulsivo. Quando a intensidade, enfim, se esvaziou sozinha, Tuíla deslizou para o chão, abraçando os cotovelos. Iácabus sentou-se ao seu lado. Não ousava mais olhar para ela. Do esconderijo, podia acompanhar o que acontecia do outro lado da ponte, o único carro que trafegava pela via, o velhinho de boina azul que pedalava sua bicicleta logo atrás dele. O céu, tomado por tons dourados, antecipava a chegada do sol. – O artefato que meu inimigo e eu buscamos é uma arma incrivelmente poderosa, capaz de aniquilar bilhões de vidas. Se ele encontrá-la, isso destruirá meu povo. Tuíla mostrou-se indiferente às suas revelações. Sentia-se devastada por dentro. – A arma só pode ser acionada daqui, do teu mundo – ele prosseguiu. – Sabe, tanto eu quanto meu inimigo não temos como voltar para casa. Nós não podemos mais ser como éramos, ter nossos corpos e nossas vidas de novo. Estamos presos aqui, nesses novos corpos. 100


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Capítulo 6 – Terceira etapa: a missão

Após entrelaçar as mãos, o garoto estalou os dedos. Garoto... Agora era estranho considerá-lo tão jovem, apesar de sua aparência. Quantos anos teria esse Iácabus? Devia ser um velho, sem dúvida. – A grande ironia – disse ele – é que foram os meus antepassados que criaram essa arma. Daí, temendo o que ela poderia provocar se caísse em mãos erradas, decidiram escondê-la neste mundo distante, pois acreditavam que ninguém seria capaz de localizá-la. Mas eu, descendente deles, consegui desvendar as lendas, achando que fazia o que era certo. Mas agora... Agora não sei mais, Tuíla. Ela fitou seu rosto atormentado. Havia sinceridade naquelas palavras. – Vou te colocar no primeiro voo para o Brasil – ele avisou. – Você estará a salvo com tua mãe. – E o homem que a vigiava? Teu inimigo disse que a mataria se... – Por isso eu o explodi. Para libertá-la. – Não entendi! Iácabus explicou-lhe sobre o dispositivo de aniquilação mental e de que forma fora usado para controlar tanto os subordinados quanto Ivan. Ao explodir o celular, que estava na mão direita do inimigo, o garoto destruíra o elo dos nanorrobôs com os quatro homens, libertando-os. 101


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Seus corpos, então, haviam despencado para o chão, iguais a brinquedos que perdiam a utilidade. – Eles já estavam mortos, mas só agora o organismo deles deixou de funcionar – esclareceu. – Como o elo não pode ser retomado, ninguém mais pode vigiar tua mãe, nem ameaçá-la. E, pelo que conheço do inimigo, ele não perderá mais tempo com essa estratégia. Escolherá centrar todas as suas ações em mim para não perder nenhuma oportunidade de encontrar o artefato. – Quer dizer que o Ivan também morreu... – Assim como o tal Josué, que vigiava tua mãe. Era informação demais. Nanorrobôs, cadáveres ambulantes, uma arma que exterminaria bilhões de vidas... – Se encontrar primeiro a arma – perguntou a menina –, você vai acioná-la e destruir o povo do seu inimigo? – Devo impedi-lo de acioná-la. – Você seria capaz de matar bilhões de pessoas? – Eles pertencem a uma raça inferior. – Quem disse? – Você não compreende o funcionamento do meu mundo e... – Quero compreender. – Olha, estamos perdendo tempo aqui. Tenho que te levar a um aeroporto e... 102


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Capítulo 6 – Terceira etapa: a missão

– Não vou embora. Ficarei contigo. Ele pareceu levar um choque elétrico. – Você é louca, é? – disse, voltando a mirá-la bem nos olhos. – É perigoso e... – Alguém precisa impedir você de acionar a arma. Um riso nervoso dominou-o. – Qual é a graça, Iácabus? – Você! – O que tem eu? – Você quer arriscar tua vida por um povo que nem conhece... E que te desprezaria se conhecesse você, que... – Que me trataria como se eu fosse uma formiga. Ele empalideceu. – Tuíla, você não entende... – Entendo que todos nós somos iguais, mas diferentes entre si. O que sempre existe é algum discurso que convence os demais que os diferentes são inferiores. Nós vimos isso na aula de Filosofia, lembra? Analisamos os argumentos em comum utilizados nos discursos do nazismo, do apartheid, de outros regimes e até de algumas religiões, em épocas diversas, em várias civilizações através dos séculos. Discursos que discriminavam os judeus, os negros, os índios, os árabes, os 103


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gays... Discursos que alimentaram perseguições, violência, extermínios. Infelizmente, são argumentos ainda usados até hoje em alguns discursos... – Eu matei o Rafael para ocupar o lugar dele. Também deixei que os demais tripulantes do helicóptero morressem. Você deveria me odiar agora, desejar minha morte ou, pelo menos, exigir uma punição por meus crimes. E não ficar aí falando de diversidade! – Seria o caminho mais fácil, não? – Isso significa que você vai me perdoar? – ironizou ele. – Não sei se um dia conseguirei perdoar você. Lágrimas brotaram nos olhos do garoto, empoçadas, retidas por ele. – Mas você salvou minha vida e a da minha mãe – continuou a garota. – Viveu conosco esses últimos meses, tão perto que seria impossível não ser você mesmo. Eu sei, eu sinto, que há bondade no seu coração. E que você ama tanto a gente que seria capaz de morrer por nós. Ele sorriu com tristeza. – Você é tão ingênua e inocente, Tuíla... No meu mundo, as armas que desenvolvi mataram milhares. E eu mesmo já... – Mas agora você é uma formiga – interrompeu ela. – E eu não vou deixar que você mate de novo.


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Capítulo 6 – Terceira etapa: a missão

Uma informação obtida pelo monitoramento de Gantz no sistema de segurança dos aeroportos, entre outros setores que vigiava, trouxe-lhe uma vantagem imprevista. Ele abriu um sorriso largo, bastante satisfeito. Cristiane acabava de desembarcar em Lisboa.

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Nós percorremos um longo trajeto em Tomar, na parte nova da cidade, o sol forte do meio-dia esquentando nossas nucas. Eu adiava uma decisão, temendo envolver Tuíla em mais uma situação de perigo. Com certeza, o inimigo correra até o aeroporto ao acreditar que antecipava meus passos. Isso me dava alguma tranquilidade. Se tivesse um pouco de sorte, eu não precisaria mais confrontá-lo. Não tínhamos dinheiro, nem documentos, nem transporte. Ouvi o estômago de Tuíla roncar de fome logo depois do meu. Tinha de resolver isso evitando as câmeras dos bancos para sacar algum dinheiro da minha conta. Não queria correr o risco de ser descoberto pelo inimigo em seu monitoramento. – Há nanorrobôs em você? – perguntou Tuíla. 106


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– Não. Se este corpo morrer, nada vai me reconstruir. Morro com ele. – Por que nenhum deles permaneceu com você? – Para evitar que fossem rastreados pelo inimigo. – É, mas não deu muito certo. Passávamos por uma praça. Olhei ao redor, atento a qualquer sinal de perigo. Aparentemente tudo seguro e tranquilo. – Iácabus? – Que é? – Como é teu mundo? Eu preferia não responder. – Diferente do teu – murmurei. – Diferente como? – É difícil descrevê-lo. Não somos humanoides como vocês. E muitos materiais que existem neste mundo não existem no meu, e vice-versa. Decidi encerrar o assunto. Ela também não fez mais perguntas. Quase ao nosso lado, um carro estacionou em uma vaga próximo ao 107


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O jardim de Iácabus

meio-fio. A motorista – uma mulher de uns 25 anos – saiu do veículo, deixando a chave na ignição, e foi a uma loja a poucos metros de distância. Eu já vira Cristiane dirigindo a velha picape, pilotara transportes muito mais complexos no meu mundo... Não podia desperdiçar aquela oportunidade. Tuíla, no entanto, percebeu minha intenção e puxou-me pelo cotovelo. – Não vamos roubar nada de ninguém! – cochichou, brava. – E como você acha que vamos deixar a cidade? A pé? – Se for preciso, sim. Aproximei-me do carro, arrastando-a comigo. Estendi meu braço para abrir a porta. – Algum problema, meninos? – interrompeu uma mulher atrás de nós. Era ela, a motorista, já de volta. – Você é brasileira! – disse Tuíla ao reparar em seu sotaque. Como se isso resolvesse tudo... A garota virou-se para conversar com ela, obrigando-me a fazer o mesmo, e depois me libertou. Cruzei meus braços, impaciente. – Ora, vocês também são brasileiros! – constatou a motorista. – O que estão fazendo tão longe de casa? 108


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Capítulo 7 – Última etapa: extermínio

Roubar não podia, mas, quanto a mentir, sem problema. Tuíla, rápida, tratou de inventar uma história sobre estar em Portugal em uma viagem com a mãe e comigo, o enteado, e que nós dois viemos para um passeio em Tomar sem que Cristiane soubesse, pois participava de um evento de paisagismo. Falou também que tínhamos perdido nosso dinheiro, que ela ficaria uma fera quando descobrisse e nós precisávamos de uma carona. – Carona para onde? – perguntou a motorista. – Ahn... Esqueci o nome da cidade. Como é mesmo o nome, Rafa? Mordi os lábios. Caronas não caíam do céu a todo instante. E, se realmente houvesse uma chance de ganhar uma, Tuíla ficaria furiosa se nós não a aproveitássemos. Avaliei a motorista de cima a baixo. Uma mulher jovem e inofensiva, bem-intencionada. Notando minha desconfiança, ela resolveu se apresentar. – Sou Lídia e leciono Literatura Portuguesa na USP. Como vim a Portugal para participar de um congresso, estou aproveitando alguns dias de folga para conhecer melhor este país – disse. – Ontem passei o dia aqui, dormi em um hotel e agora já vou pegar a estrada de novo. – Para onde vai agora? – perguntei. 109


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– Sinceramente, ainda não decidi. Talvez Leiria. Ou Monsaraz. Ou Setúbal. Ou... – Ou qualquer outro lugar – sorriu Tuíla. – Exato! Sabe quando a única vontade é sair por aí, sem destino certo? Às vezes, cansa programar nossa vida inteira. Era um conceito de liberdade que combinava à perfeição com Tuíla. – Ir aonde o vento nos leva... – ela murmurou. Lídia retribuiu o sorriso, cúmplice. – Évora – revelei, sem alternativa. – Nós temos que ir para Évora.

Era a primeira vez de Cristiane em Portugal, mas ela nem se deu conta disso. Ainda no aeroporto, colocou o mochilão nas costas e, apressada, foi pegar um táxi. – Me leve para Évora – disse ao taxista.

É claro que ganhamos a carona, que Tuíla contou seu verdadeiro nome para Lídia e falou pelos cotovelos durante a viagem. As duas se deram muito bem. Gostavam de ler Mia Couto, de ouvir rock brasileiro dos anos 1980 e 1990, apoiavam ações em defesa do meio ambiente e tinham as mesmas opiniões sobre assuntos 110


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Capítulo 7 – Última etapa: extermínio

diversos. Quanto a mim, permaneci quieto, no banco de trás do carro. Paramos apenas em um posto de gasolina em uma cidadezinha do caminho. Tuíla aproveitou para ir ao banheiro, Lídia foi comprar alguma coisa em uma confeitaria – ou pastelaria, como os portugueses chamam – e eu fiquei por perto, aliviado por não encontrar nenhuma câmera de vigilância registrando nossos movimentos. Cansado, eu me encostei contra o carro e me permiti fechar um pouco os olhos. “Girassóis”, pensei. Gostava deles, daquele tom amarelo, do formato, de como se abriam para a luz. Se pudesse, era o que eu plantaria no pedaço de terra que Cristiane me dera. Irritado, sacudi a cabeça para afastar a imagem que me invadia, meu jardim cheio de girassóis. Não havia espaço para eles nas minhas escolhas. Abri os olhos e observei o trajeto até o banheiro feminino, logo à esquerda. Tuíla estava demorando.

Com as mãos cheias d’água, Tuíla lavou o rosto para espantar a tensão dos últimos dias. Fechou a torneira e só então mirou o próprio reflexo no espelho. Olheiras profundas davam-lhe um aspecto vulnerável e entristecido. Os cabelos, embaraçados, estavam presos em 111


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uma trança malfeita, mas a garota não se importou. Algumas gotas de água escorriam sobre a pele molhada, uma sensação gostosa que ela aproveitou ao máximo após cerrar os olhos. “Girassóis”, pensou. Gostava deles, daquele tom amarelo, do formato, de como se abriam para a luz. Entre todas as espécies da Chácara, eram os preferidos de Iácabus. Rafael não se interessava por flores, plantas, árvores ou qualquer coisa ligada à natureza. Para ele, era “tudo mato”, como dizia brincando. “Iácabus poderia plantar girassóis no jardim que ganhou”, sugeriu um pensamento. Mas foi uma pontada no coração que lhe mostrou o óbvio. Rafael sempre fora o irmão, o melhor amigo. Iácabus, por outro lado... Era mais do que irmão, mais do que melhor amigo. Tuíla adorava o jeito carinhoso como ele a fitava, o sorriso especial que só ela ganhava, o rosto concentrado, de sobrancelhas unidas, seu silêncio que queria dizer tanto... Tão diferente de Rafael... E os olhos? Ela gostava do que existia além deles, um aprendizado que o ensinava a valorizar a vida, a resgatar a inocência perdida em algum momento. Aquele era Iácabus, não Rafael. Era a diferença entre o impostor e o autêntico. E Tuíla amava muito aquela diferença... 112


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Capítulo 7 – Última etapa: extermínio

“Eu me apaixonei por um assassino”, admitiu, arrasada. Ao abrir os olhos, notou, apavorada, que seu reflexo no espelho recebera a companhia de outro. Na verdade, a companhia de outra Tuíla, esta usando camiseta branca, jaqueta de couro, calças jeans e botas de coturno. – Olá, namoradinha do Iácabus! – disse ela, em um tom mordaz, enquanto apontava a palma da mão aberta para a verdadeira Tuíla. – Hora de trocar de roupa...

Finalmente Tuíla saiu do banheiro. Veio na minha direção, a postura confiante, segura de si. Onde estava seu andar suave, o jeito um tanto distraído de ser e de se mover? Eu lhe roubara isso ao aprisioná-la na violência que sempre fora minha vida antes de conhecê-la? Abaixei o rosto, desejando não medir as consequências de meus atos sobre a vida dos outros. Ela parou diante de mim e me abraçou pela cintura. – O que foi? – perguntou. – Nada. Seus lábios buscaram os meus com vontade, um beijo adulto que desejava me seduzir. O que significava? Tuíla teria perdoado meus crimes? Estremeci. Ela percebeu minha reação e quis se afastar, mas não permiti. Foi minha vez de beijá-la. 113


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Eu precisava saber. Estreitei-a contra mim, senti o calor de seu corpo. Abusadas, minhas mãos desceram por suas costas, deslizaram na curva seguinte. A garota em meus braços teve a certeza de que eu estava sob seu total controle. Aquela não era Tuíla. – Agora entendo por que vocês dois foram passear em Tomar sem avisar ninguém... – disse Lídia, divertida, enquanto ia ao nosso encontro. A impostora separou-se de mim sem pressa e sorriu para ela. Eu mantive uma das mãos pousadas em seu quadril, fingindo uma vontade enorme de ampliar nosso grau de intimidade assim que estivéssemos a sós. – Comprei pastéis de nata e suco – disse Lídia, entregando-nos uma sacola. – Vocês devem estar com muita fome!

Durante o restante da viagem, fiz de conta que dormia, afundado no banco de trás, para não demonstrar a dor e o desespero que me trituravam por dentro. Tuíla, minha doce menina, estava morta. Fora destruída pelo inimigo para que um de seus guerreiros a substituísse e tentasse me enganar. Eu fracassara em protegê-la, errara feio ao acreditar na sorte, ao permitir que Tuíla ficasse longe de mim 114


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Capítulo 7 – Última etapa: extermínio

por poucos minutos. Falhara por não pensar na possibilidade de os nanorrobôs terem trazido mais de um ser vivo para este mundo. Agora, nada mais importava. Senti o ódio renascer com intensidade, unido à sede de vingança que me guiava desde sempre. Os dois inimigos encontrariam o artefato, pois eu mesmo garantiria que o encontrassem. Então, viria aquela que eu considerava a melhor parte. O extermínio de um povo.

Évora, uma das cidades medievais mais bem preservadas de Portugal, mistura muralhas do século XIV e ruas sinuosas e estreitas a resquícios de um passado ainda mais distante, com termas e colunas de um templo da época dos antigos romanos. Nas redondezas, vinícolas rústicas, vilarejos que parecem ter parado no tempo e mais vestígios da passagem das eras: impressionantes monumentos pré-históricos com mais de cinco mil anos de idade. Eram os megálitos, ou “pedras grandes”, palavra que Cristiane leu no folheto turístico que o taxista gentilmente lhe cedeu para consulta durante a viagem de Lisboa a Évora. Dólmens, menires e círculos de 115


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pedras, conhecidos como cromeleques, espalham-se em grande quantidade pela região, parte integrante de uma área maior conhecida como Alentejo. Se queria mesmo conhecer essas estruturas, Rafael viera ao lugar certo. O difícil seria encontrá-lo – e encontrar Tuíla também – entre tantos pontos de concentração dessas pedras. Cristiane desembarcou na Praça do Giraldo, o ponto mais importante da cidade, cercado tanto por ruas que já pertenceram à Judiaria, o medieval bairro judeu, quanto por mansões com sacadas de ferro forjado e por vias transversais com seus arcos de estilo mourisco. Pagou o taxista e, outra vez com o mochilão nas costas e debaixo do braço o folheto, que acabou ganhando, permaneceu no mesmo lugar, em pé, decidindo que direção seguir. O táxi sumiu em uma rua à direita. Do outro lado da praça, um casal de adolescentes, após sair de um carro, despedia-se da motorista. Ela foi embora; os dois também permaneceram no mesmo lugar, em pé, decidindo que direção seguir. Cristiane quase não acreditou em tanta coincidência. – Tuíla! – gritou ao reconhecer a filha. Rafael pareceu em choque ao vê-la. Cristiane voou até eles e apertou-os em um longo e emocionado abraço. – Vocês estão vivos... Vivos! 116


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Capítulo 7 – Última etapa: extermínio

Demorou a libertá-los. O garoto tinha os olhos vermelhos de choro, mas os escondeu ao desviar o rosto. Estranhamente a menina não se mostrou muito surpresa, como se a esperasse... Houve um silêncio embaraçoso. Como mãe e madrasta, Cristiane devia dar-lhes uma bronca homérica. Só que estava feliz e aliviada demais para isso. Ficaria para depois. – Segundo esse folheto, há uma pousada bem simples aqui perto – disse. – O que acham de um banho e de vestir roupas limpas? Eu trouxe algumas peças para vocês. Depois, podemos jantar em algum lugar bem legal, conhecer a cozinha alentejana e amanhã cedinho partimos para ver os megálitos. O que acham? – Megálitos... – repetiu Tuíla, descobrindo a existência daquela palavra. Ué, mas ela não viera até ali com Rafael em uma aventura irresponsável só para conhecer os monumentos pré-históricos? O garoto apenas concordou. E permaneceu em silêncio até a hora do jantar, servido em um restaurante que Cristiane escolheu por funcionar em uma construção com mais de cinco séculos de existência, na Rua do Raimundo. Faminta, Tuíla aprovou o prato de cordeiro assado, que de tão suculento se desmanchava no osso, e não se contentou com apenas uma sobremesa. Já Rafael mal tocou na comida. 117


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– Entendo que vocês quisessem fugir daquela loucura toda, do Ivan surtando e querendo matar a gente – disse Cristiane, condoída pela tristeza que ele não conseguia esconder. – Sei que às vezes temos vontade de largar tudo e sumir no mundo... Que adolescentes às vezes fogem para ficar juntos e tal. Só não entendo por que vocês não confiaram em mim, não me contaram. – Perdoe-me... – disse o garoto, em uma voz abafada. Ele tremia, o choro vencendo-o. A madrasta tocou-lhe o rosto com carinho. – Filho, não vamos estragar o passeio, está bem? Conversaremos depois, em casa. Tuíla levou à boca a última garfada de sua fatia de bolo de amêndoas. Mastigou, engoliu e manteve-se apenas assistindo à cena, sem interferir. Cristiane envolveu o garoto em um abraço protetor. Em seu ombro, ele derramou muitas lágrimas, atraindo sem desejar a atenção dos demais clientes do restaurante. Repetiu o pedido de perdão. Porém, por mais que a madrasta lhe dissesse que o perdoava pela fuga, Rafael não se sentia perdoado. Ele se distanciou de Cristiane, secou o rosto com as mãos e a agradeceu por tudo. Tuíla fitava-o com uma indisfarçável expressão de desprezo, o que incomodou bastante a mãe dela. O que estava acontecendo entre eles? Teriam brigado? 118


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Capítulo 7 – Última etapa: extermínio

– Amanhã cedinho será perfeito para conhecermos os megálitos – confirmou Rafael, irônico, dirigindo-se a Tuíla. – Tenho certeza de que você vai adorar!

Não deixaram a pousada tão cedo quanto Nawiri esperava; a mãe da verdadeira Tuíla não tinha pressa nenhuma e demorou muito para se arrumar. A guerreira aproveitou para dispensar as roupas da adolescente e escolheu para si uma blusa e uma calça comprida da própria Cristiane, além de calçar um par de botas que ela também trouxera. De banho tomado e usando roupas limpas, Iácabus continuava investindo em seu mutismo e na falta de apetite, preferindo ignorar o café com leite e os bolos de arroz comprados em uma pastelaria próxima, pois a diária não incluía o desjejum. Ele estava aprontando mais alguma armadilha, a guerreira podia sentir isso. Pelas reações dele, era certo que já descobrira que lidava com uma impostora. Mas havia uma “deliciosa” surpresa que seu plano, fosse qual fosse, não poderia prever. Finalmente Iácabus pagaria por seus crimes.

Bem que eu queria que Cristiane permanecesse na cidade, mas seria falar com as paredes. Ela não pretendia 119


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mais tirar os olhos dos impostores que julgava serem sua filha e seu enteado. Pobre mulher... O que seria dela quando descobrisse que Rafael e Tuíla haviam morrido? Ainda em Évora, Cristiane alugou um carro e, com as informações do folheto, pôs-se a caminho do Cromeleque dos Almendres, o local a quinze quilômetros a oeste que lhe contei ser meu verdadeiro destino em terras portuguesas. O trajeto começou em uma estrada velha, deu voltas, passou por cidadezinhas e percorreu um terreno acidentado, até alcançar o gigantesco complexo de menires, 95 peças de granito organizadas em uma roda oval, com oliveiras e sobreiros praticamente a cercá-los. Um lugar impressionante. Após deixarmos o carro, senti um arrepio gelado. Havia energia ali, bem menos do que eu previra, perceptível apenas para mim que a decifrara. Graças à ação do tempo, ela se esgotava gradativamente, o que tornaria inútil o artefato. Eu perdera meses demais na etapa de adaptação àquele mundo. – Deixe a Cristiane ir embora – pedi à impostora, embora soubesse que a humana jamais seria poupada. Só não esperava que o descarte fosse tão rápido. A impostora virou-se para Cristiane, ao seu lado, e 120


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Capítulo 7 – Última etapa: extermínio

quebrou-lhe o pescoço. A humana apenas deslizou para o chão de terra. Não consegui reagir. Por minha culpa, a única mãe que conheci estava morta. – Localize o artefato – mandou a impostora. Obedeci. Rumamos para o centro da roda. Parei; ela fez o mesmo. – Antes que você tente me enganar, Iácabus, quero que veja uma coisa. E apontou para um carro que nos seguira. Ele parou próximo ao primeiro veículo e, de seu interior, saíram três pessoas. Uma delas era o sujeito que eu explodira na véspera, alguém que a impostora chamou de Gantz. A outra era a motorista que nos dera carona até Évora. – Esse é Asran, nosso terceiro guerreiro – apresentou a impostora. – Escolhemos para ele um corpo de mulher, para que parecesse inofensivo o suficiente a ponto de você não desconfiar de seu disfarce. A verdadeira Lídia fora sequestrada por Gantz. Ela cedera contra a vontade seu DNA para que os nanorrobôs construíssem um corpo igual ao dela para Asran e depois tivera sua essência absorvida por ele. Então, passando-se pela bem-intencionada professora de Literatura Portuguesa, Asran descobrira o local para onde os adolescentes desejavam ir, levando-os direto 121


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para a armadilha em um posto de gasolina, onde Tuíla fora substituída pela impostora, e depois para a Praça do Giraldo, direto para Cristiane. Um plano redondo, que enganara Iácabus direitinho. – E eu sou Nawiri – disse a impostora. – Quero que saiba nossos nomes porque nós, a escória que você tanto despreza, seremos seus algozes. Prendi a respiração. A pessoa que os acompanhava... Era Tuíla. – É, Iácabus, sua namoradinha vive. E é você quem vai executá-la.

Depois de ser imobilizada pela luz vermelho-rubra, Tuíla tivera de ceder suas roupas para Nawiri. Daí, passando-se pela humana, a impostora saíra do banheiro pronta para enganar Iácabus. A verdadeira Tuíla ficara no mesmo lugar, feito estátua, até que Gantz aparecera e a libertara daquela situação constrangedora. Depois, esperou que ela vestisse as roupas que Nawiri deixara para trás e, sob ameaças, conduzira-a até um carro estacionado no outro lado do posto de gasolina, de onde rumara atrás da falsa Lídia. Ao final de sua performance como boa samaritana, a professora – ou melhor, o guerreiro Asran – reunira-se a Gantz e sua prisioneira em um quarto de hotel não 122


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Capítulo 7 – Última etapa: extermínio

muito longe da pousada onde se hospedavam Cristiane, Iácabus e Nawiri. Na manhã seguinte, tinham se limitado a segui-los até o conjunto de menires. Ao descobrir a mãe caída de lado, sua cabeça virada numa posição impossível de alcançar se estivesse viva, Tuíla entendeu o que lhe acontecera. O desespero apossou-se dela. Começou a chorar; quis morrer também, mas Iácabus, no centro da roda de pedras, fazia-lhe um pedido mudo para que tivesse fé. Encontraria uma forma de consertar tudo. E a garota, apesar do que descobrira sobre ele, aprendera a confiar em sua coragem. A muito custo, ela segurou o desespero. Conduzida por Gantz e Asran, foi ao seu encontro. – Iácabus, execute a humana – mandou a guerreira. Ele esboçou um meio sorriso para Tuíla. Mirava-a como se somente ela existisse no Universo. A ordem foi repetida. – Execute a humana! – Não – ele disse, com firmeza. Um murro aplicado por Nawiri atingiu-lhe as costas. Iácabus tombou de joelhos. Tuíla gritou, quis ampará-lo. Foi impedida por Asran, que a segurou pelos braços. – Execute a humana – insistiu a guerreira. – Não. 123


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Mais um murro. – Execute a humana. – Não. Uma joelhada acertou-lhe o rosto, arrancando-lhe sangue. Tuíla, àquela altura, debatia-se como louca, mas não conseguia se libertar. Novamente a ordem e depois sua repetição muitas vezes mais. A cada recusa, Iácabus era castigado com mais brutalidade. Ossos foram quebrados, e dentes perdidos. Bastante machucado, sangrando muito, ele se encolhera, sufocava os próprios gemidos de dor. – Execute a humana! Sua voz era quase inaudível. – Não... Nawiri ia golpeá-lo de novo, visando estourar-lhe os olhos entreabertos com um chute impiedoso. Gantz deteve-a. – Chega – disse. – E por quê? – ela o questionou. – Você já não sabe como acionar o artefato? – Sei. Mas ainda não o identifiquei entre tantas pedras. Precisamos que ele viva até identificá-lo para nós. Gantz agachou-se para falar com seu prisioneiro. 124


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Capítulo 7 – Última etapa: extermínio

– Você imagina o que vou lhe propor, não? Iácabus assentiu. Tuíla seria poupada se ele colaborasse. – Vocês não podem acionar aquela arma! – ela gritou. – Vão matar milhões de pessoas se fizerem isso! – E desde quando você se importa? – disse Gantz, voltando-se para ela. – Iácabus também se importa. Ele não quer matar mais ninguém! – Ele? Ah, garota tola... A “coitadinha” da vítima aqui não lhe contou quem realmente é ou o que fez contra meu povo, não é mesmo? Ofegante, Tuíla parou de se debater. Gantz tinha sua atenção. – Iácabus foi o líder supremo no nosso mundo, como o pai dele, o avô e o bisavô também foram antes. A garota sentiu um calafrio. Adivinhava o que iriam lhe dizer. – Eles discriminaram nosso povo – disse Nawiri –, perseguiram, mataram... Porque diziam que o povo deles era superior ao nosso. E isso... Isso justificava seus atos bárbaros contra nós. – Nossas crianças foram mortas e nossas mulheres, proibidas de conceber – acrescentou Gantz. – Apoderaram-se de nossas propriedades, nossos meios de 125


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subsistência. Mas nós resistimos e nos rebelamos. Lutamos durante gerações... E vencemos. Quando invadimos os aposentos de Iácabus, descobrimos que ele se suicidara. Mas eu me lembrei das lendas... – Gantz é nosso comandante. Nós morreremos por ele se for necessário. Por isso aceitamos acompanhá-lo nessa missão sem volta. – A missão de vocês é impedir que Iácabus acione a arma contra seu povo – deduziu Tuíla, olhando para o corpo flagelado do líder supremo. Ele não se movia mais. Existia vida apenas em seu olhar, o mesmo olhar que lhe contava o que ia em seu coração. – Mas não é só isso. Vocês querem aproveitar a chance e acionar a arma contra o povo dele. – Uma chance imperdível para nos livrarmos para sempre de nossos inimigos. Tentar convencer a truculenta Nawiri era perda de tempo. Gantz, no entanto, parecia ouvir atentamente suas palavras. – Comandante, você e seu povo precisam quebrar o ciclo de violência – argumentou Tuíla. – Se matarem milhões de vidas, estarão agindo igualzinho a quem perseguiu seu povo. Essas pessoas não têm culpa do que uma minoria decidiu por elas, da mesma forma 126


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Capítulo 7 – Última etapa: extermínio

que seu povo não pode ser culpado pela atrocidade que vocês querem cometer. A guerreira rangeu os dentes e fechou os punhos, controlando-se com dificuldade para não calar sua voz com uma série de socos e pontapés. Gantz escolheu ignorar o apelo da humana. – O que me diz, Iácabus? Temos um trato?

Sim, nós tínhamos um trato. Gritei de dor quando Gantz me arrastou até o menir que lhe indiquei. Havia um protocolo de defesa que somente eu sabia neutralizar. Liberei o acesso à arma ao tocar de leve a superfície da pedra com a ponta do meu dedo indicador, um dos poucos que não fora quebrado, e permaneci no chão, no mesmo lugar onde ele me largou. Um punhado de nanorrobôs saiu pelos poros do comandante e penetrou no menir. Ativaram o artefato, unindo-o ao DNA que já controlava os outros dois armamentos. Gantz exibiu um sorriso triunfante. Sentia-se a um passo de conquistar o poder da aniquilação total. Os nanorrobôs fizeram para ele os cálculos que eu faria sem qualquer auxílio e localizaram o alvo em um mundo longínquo. Meu povo. – Não acione a arma, por favor! – tentou Tuíla. 127


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O jardim de Iácabus

Nawiri erguia os braços, os punhos ainda fechados, vibrando de empolgação. Asran, que não era de expressar seus sentimentos, ao contrário da legítima professora de Literatura, apenas cerrou as sobrancelhas. Quanto a mim... Eu sabia que os nanorrobôs jamais poderiam acionar a arma simplesmente porque não existia nenhuma tecnologia capaz de tal feito. Antes que o inimigo descobrisse que fora enganado, a ponta do meu dedo indicador mais uma vez tocou o menir. Ele se conectou a mim, o único ali que sabia como manipular a energia que emanava daquela peça, o mesmo tipo de energia que meus antepassados dominavam. Um conhecimento que se diluíra nas entrelinhas das lendas, mas que somente eu conseguira resgatar. No mesmo segundo, a energia uniu os demais menires e também nos conectou, imobilizando-nos, como se o tempo parasse apenas para nós. Era fraca, como eu constatara ao chegar, e me daria direito a uma única tentativa antes de se extinguir por completo. E para sempre. Tuíla e os três guerreiros acessaram meus pensamentos, eu acessei os deles. Fiz os cálculos, direcionei a arma para o povo que chamara de escória, no distante mundo de onde viemos. Senti o ódio e o pavor dos guerreiros ante a extinção de sua gente. Era mais fácil escolher a vingança. E tão tentador... 128


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Capítulo 7 – Última etapa: extermínio

Mas também senti o amor de Tuíla, sua aposta em mim, na bondade que enxergava em meu coração. Descobri que, igual a ela, eu também podia sentir a natureza. Hesitei. Meu mundo era o mesmo mundo dos meus inimigos. Nós o dividíamos, porque, no fundo, ele era apenas um. Entendi por que aquela arma deveria permanecer inacessível, citada apenas em lendas destinadas ao descrédito. Compreendi a decisão dos meus antepassados em escondê-la. Refiz os cálculos para o novo alvo. O mundo de Tuíla. E acionei a arma.

De repente, o mundo de Tuíla começou a andar para trás. Ela e os guerreiros viram o pescoço de Cristiane retornar ao encaixe correto, sem nenhum osso quebrado, e a mãe desaparecendo do lugar onde caíra, o carro que alugara também sumindo da mesma forma que o outro também sumira. O dia voltou a ser madrugada e noite, depois dia de novo. Viram a verdadeira Lídia deixando de morrer e de se tornar refém. A seguir, madrugadas, noites e dias já vividos foram desmanchados, até que vissem o disparo contra Cristiane sendo 129


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O jardim de Iácabus

desfeito e, logo depois, Ivan, parado no estacionamento do Super Centro, recuperando sua vida. A realidade continuou a ser desconstruída, a passagem do tempo que retrocedia velozmente, exibindo imagens que Tuíla e os demais acompanhavam em suas mentes, um processo controlado apenas por Iácabus. Eles viram o verdadeiro Josué e seus dois companheiros de trabalho, em uma pista clandestina na Floresta Amazônica, também recuperando suas vidas. Depois, as balas abandonaram os corpos dos demais integrantes do grupo para retornar à metralhadora que Gantz empunhava antes de sumir do cenário. Na sequência, Sérgio, o homem de quem ele roubara o DNA, retornou à vida. Por último, Tuíla e os guerreiros viram o helicóptero saindo do mar para regressar ao céu, retomando o voo sem percalços com seus tripulantes, todos novamente vivos, o verdadeiro Rafael entediado pela viagem que tinha de aturar. Nesse ponto exato, Iácabus aproveitou o último sopro de energia ainda restante e ajustou a arma para um movimento contrário, para frente, avançando a passagem do tempo para construir uma nova realidade. Viram Cristiane desesperada ligando para Hugo, interrompendo o passeio dele com a namorada e o filho para avisar que Tuíla desaparecera. Viram a aflição da família, as buscas inúteis para encontrar a adolescente, 130


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Capítulo 7 – Última etapa: extermínio

Hugo pagando as dívidas de Ivan para livrá-lo de encrencas. Depois, viram Lídia decidindo conhecer a região do Minho após seu passeio por Tomar. No mesmo dia, do outro lado do Atlântico, Josué aceitava um emprego honesto como caminhoneiro a convite de Sérgio, que já desistira de trabalhar para o narcotráfico. Quando a passagem do tempo reencontrou seu ponto de partida, no momento que a arma fora acionada, a energia dissipou-se, desconectando seus prisioneiros uns dos outros ao mesmo tempo que os libertava da imobilidade. Os nanorrobôs, presentes tanto no menir quanto nos corpos humanos dos guerreiros, não aguentaram o impacto daquela tecnologia superior. Acabaram destruídos. – O que você fez? – berrou Nawiri, avançando para exterminar o único inimigo agora ao seu alcance. Atordoado pelo que vivenciara, Asran não foi rápido o suficiente para impedir Tuíla, que correu para proteger Iácabus. Ela agarrou a guerreira pelos cabelos, quase teve sucesso em segurá-la, mas foi empurrada com força para longe. Caiu, rolou no chão e ergueu-se em um pulo. Nawiri alcançava o ex-líder supremo naquele segundo, ávida para despedaçá-lo com as próprias mãos. – Não! – impediu Gantz. 131


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O jardim de Iácabus

– Como é? – retrucou ela, enfurecida. – Você quer poupar a vida de um monstro que...? – Esse não é mais o mesmo Iácabus que conhecemos. E, sem mais nenhuma justificativa, o comandante abandonou a roda de menires e foi se afastando cada vez mais. Teria de ir a pé. Asran meneou a cabeça, mas decidiu acompanhá-lo. Não olharam para trás, pois sabiam que Nawiri iria em seu encalço. Ela urrou, enlouquecida, para extravasar sua frustração e, pisando duro, ultrapassou-os rumo à nova existência em que seriam apenas humanos comuns. Não tinham mais uma missão, nenhum nanorrobô para lhes dar superpoderes e, principalmente, nem energia para acionar a mais poderosa das armas, aquela que promovia a aniquilação total ao desfazer ações, pessoas, sociedades e mundos. Tuíla ajoelhou-se ao lado de Iácabus, sem saber como ajudá-lo. Acariciou-lhe com suavidade os cabelos empapados de sangue, temendo provocar mais dor. – No meu... jardim... – sussurrou ele, com dificuldade para falar. – Eu vi – disse ela, emocionada. – Você plantou girassóis. 132


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Capítulo 7 – Última etapa: extermínio

Ele não conseguiu sorrir. Perdia a consciência. Fora do conjunto de menires, um grupo de turistas chegava de van ao local. Aparecia no momento certo.

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Litoral Norte de São Paulo, Brasil Cinco meses antes...

– Você vai gostar da Brigite – dissera Hugo sobre a namorada. – Será um fim de semana inesquecível. Por culpa daquela sonsa, que enjoava em alto-mar, todos foram obrigados a viajar de helicóptero. Naquele momento, Rafael estava lá, sentado no banco traseiro, sobrevoando aquela imensidão de água salgada. O dia nascera bonito, o sol brilhava. O piloto parecia competente. Restavam menos de vinte minutos de voo. Rafael já voara antes, inclusive de helicóptero. Mas, sei lá, alguma coisa não estava certa. Para piorar, Hugo, sentado ao lado do piloto, volta 134


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e meia se virava para trás e sorria apaixonadamente para Brigite, ao lado do filho. Havia nuvens muito brancas, tão poucas que o garoto, se quisesse, poderia contá-las. Ele fixou o olhar no horizonte à sua frente e depois para a paisagem além do vidro à esquerda. Pensou mais uma vez na música que não lhe saía da cabeça. Estava ansioso para trazê-la ao mundo pelos acordes de sua guitarra. Tuíla faria as letras, escolheria o título, descobriria a melhor forma de cantá-la. E talvez a vida ficasse mais parecida com o que era antes de Hugo largar a esposa, com quem deveria estar naquele momento. Foi quando olhou para o céu que Rafael vislumbrou um ponto vermelho-rubro, que se aproximava em uma velocidade espantosa. Em um átimo de segundo, ele sentiu a certeza do impacto iminente. Sentiu-se sufocar, o medo da morte paralisando-o. E, de repente... Nada. Tudo estava exatamente como estava antes. Hugo sorriu de novo para Brigite, ela deu uma risadinha irritante e o piloto continuou a executar seu trabalho. Ninguém reparara no ponto vermelho-rubro ou percebera algo diferente. 135


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O jardim de Iácabus

Assim que aterrissaram no heliporto da megamansão do cliente de Hugo, o garoto, fã incondicional das teorias conspiratórias mais diversas, voou para o banheiro mais próximo. Tirou toda a roupa e examinou minuciosamente cada pedaço do próprio corpo. Embora não encontrasse nem ao menos uma nova sarda em sua pele muito clara, tinha certeza absoluta de que fora abduzido. – E não duvido que aqueles malditos aliens tenham me clonado! – resmungou, baixinho. Horas mais tarde, no minuto que Hugo sugeria um passeio de iate para a manhã seguinte, seu celular tocou. Era Cristiane, desesperada, no outro lado da linha. Tuíla desaparecera.

Chácara Outeirinhos, Santos

Mesmo após semanas de buscas infrutíferas por parte da polícia e dos detetives que Hugo contratara, Cristiane continuava acreditando que a filha estava viva, perdida em algum lugar. O advogado e o filho mais velho não eram tão otimistas. Para eles, a menina fora morta por algum psicopata. Rafael tentou convencê-los de que Tuíla também fora abduzida, mas que, ao contrário do que ocorrera com ele, não fora devolvida. – Os aliens devem estar até agora fazendo experiências genéticas com ela! – dizia, furioso. 136


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Epílogo – Girassóis

O divórcio saiu em abril, e Hugo, que sempre amaria Cristiane, decidiu deixar a Chácara para ela, apesar dos protestos de Ivan. Quanto a Brigite, esta já não era a namorada da vez. O advogado trocara-a por uma talentosa tatuadora chamada Kaori, que impressionara Rafael com sua beleza nipônica. Em uma tarde cinzenta, na segunda semana de junho, a própria Tuíla telefonou para a mãe, avisando que estava viva, muito bem de saúde e que precisava da presença dela em Évora. – Portugal? – estranhou Cristiane após chorar, rir e gritar de felicidade. – O que você está fazendo aí? – Eu e o Iácabus... – Você e quem? – Eu e... ahn... o irmão gêmeo do Rafael fomos sequestrados, mas conseguimos fugir. Ele está muito ferido, os turistas acabaram de nos deixar no hospital e... Mãe, dá para você vir aqui? Aí a gente conversa melhor. “Desde quando eu tenho um irmão gêmeo?”, perguntou-se Rafael, a teoria da clonagem alienígena levando a melhor sobre qualquer outra. Hugo jurou que não tinha um terceiro filho, ainda mais gêmeo do caçula. Tinha visto o ultrassom da falecida primeira esposa na época da gravidez e lá só registrava a presença de um feto. No entanto, não pudera assistir ao parto. E 137


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O jardim de Iácabus

se... Erro médico, só podia ser. Ia processar a maternidade se fosse verdade. Um exame confirmou que os dois garotos eram mesmo gêmeos idênticos. Devido à surra aplicada covardemente pelos sequestradores, Iácabus – e isso lá era nome de gente? – teria de conviver para sempre com algumas cicatrizes no rosto e no corpo. Hugo, que foi com Cristiane a Portugal, quitou as despesas médicas em Évora e depois, no Brasil, não se importou de pagar o tratamento e os implantes dentários, além das sessões de fisioterapia após a retirada das talas e do gesso. Até cuidou do registro do novo filho, que recebeu o sobrenome Valiengo. Ia processar a maternidade, com certeza. Mudou de ideia quando Tuíla narrou uma história enrolada e cheia de furos sobre como descobrira que havia um irmão gêmeo, que ele, ainda recém-nascido, fora levado da maternidade por uma quadrilha especializada em sequestrar e vender bebês, que uma mulher o comprara, criara e depois morrera em um acidente de helicóptero e, por fim, que Iácabus sobrevivera a esse mesmo acidente, mas perdera a memória. – E quanto aos sequestradores que levaram vocês a Portugal? – quis saber Cristiane. A garota respirou profundamente antes de expor a única informação verdadeira daquela ficção mirabolante. – Eles não eram deste mundo. 138


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Epílogo – Girassóis

Com a exceção de Rafael, ninguém acreditou. Tuíla nunca lhe diria a história completa, mas nem precisava. O garoto já desvendara o mistério. Ambos haviam sido abduzidos, ele fora clonado e ela, mantida prisioneira até conseguir escapar da nave espacial com o clone. Para o garoto, que não podia contar com o egoísta irmão mais velho, havia mais uma certeza: alienígena, clone ou gêmeo, era muito bom ter um irmão como Iácabus.

Pandora recebeu-me no retorno à Chácara como se revisse um velho amigo. Lambeu minhas mãos, balançou a cauda, eufórica, e foi rolar na grama para comemorar. Nem mesmo uma arma de aniquilação total seria capaz de enganá-la... Hugo jamais aceitaria de verdade o novo filho. Passaria anos atrás de uma explicação plausível para os fatos, algo que não encontraria. Para Ivan, eu era apenas mais um irmão tão descartável quanto Rafael. Já esse garoto estava sempre por perto, compondo músicas com sua irmã postiça e melhor amiga. Também se tornou meu melhor amigo. Quanto a mim, Hugo não se importou que eu ficasse morando com Cristiane, que novamente se transformou 139


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O jardim de Iácabus

na mãe que eu amava. Ao descobrir meu interesse pelo trabalho na Chácara, ela não titubeou. – Você gostaria de criar teu próprio jardim? – propôs. – Reservo um pedaço de terra lá nos fundos, e você planta o que quiser. Aceitei, entusiasmado. E novamente atolei no mesmo dilema. Um ano se passou e nada. Eu continuava sem a mínima ideia do que plantar no meu novo jardim. Ia apelar para os girassóis quando Tuíla, no segundo dia de julho, puxou-me para um canto. Estávamos em sua festa de dezesseis anos, aquela que finalmente concretizava seu sonho de realizar uma animada feira de adoção de cães e gatos, entre balões coloridos, doces e muitos convidados. O som de violões e flautas preenchia com delicadeza aquele pedaço de paraíso no meio das construções de concreto. Pandora, claro, roubava a cena. Tuíla tocou meus lábios no beijo inocente que eu tanto adorava. Nós dois sabíamos que, juntos, nos tornaríamos adultos e chegaríamos à velhice. Sempre um ao lado do outro. – Experimente o novo, Iácabus – sugeriu minha garota, com sabedoria. – Sempre haverá outro jardim à nossa espera. Tive de concordar. Não existiam apenas girassóis no mundo que me acolhera.


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Foto: arquivo pessoal

A autora, Helena Gomes, e a obra Olá, amigo(a) estudante! Vamos iniciar nossa conversa? A autora, Helena Gomes, é jornalista e professora universitária. Escreveu cerca de 45 livros. Entre suas obras, estão títulos selecionados para vários programas governamentais de aquisição de livros de literatura e alguns títulos com Selo Altamente Recomendável pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, a FNLIJ). Por quatro vezes foi finalista do Prêmio Jabuti, a mais importante premiação literária brasileira. Mais informações sobre seus livros podem ser encontradas no endereço: http://helenagomes-livros.blogspot.com/. O jardim de Iácabus é uma novela de literatura fantástica, uma ficção científica de mistério e fantasia com tramas surpreendentes elaboradas de modo tão genial que prendem a atenção dos leitores do início ao fim do livro. Ao apresentar como cenários as cidades brasileiras de Ilhabela e Santos, bem como Tomar e Évora, em Portugal, O jardim de Iácabus destaca temas atuais, abordados pela autora com delicadeza. Com isso, quer instigar a reflexão dos leitores sobre o impacto do discurso de intolerância na vida das pessoas, bem como o respeito às diferenças e a importância das escolhas feitas, as quais podem nos levar tanto à violência quanto à paz. 141


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Nessa narrativa frenética, não há lugar para o óbvio. Fatos inesperados estão o tempo todo instigando a imaginação dos leitores. Após essa extraordinária experiência literária, você nunca mais será o(a) mesmo(a): ao ser culturalmente enriquecido(a) pela história, seus critérios de escolha e suas preferências por autores e gêneros se tornarão mais exigentes. Mas é preciso ter sangue frio para viver as aventuras dos adolescentes Rafael e Tuíla. Você tem essa característica?

Motivação para a leitura E aí, você já está animado(a) para visitar o jardim de Iácabus? Esta obra fantástica e arrebatadora conta com tramas bem construídas, repletas de mistério, com desfechos surpreendentes! Além disso, a narrativa apresenta lugares fantásticos, muitas reviravoltas e uma arriscada missão para os dois adolescentes: impedir que implacáveis vilões façam uso de uma tecnologia capaz de exterminar a humanidade inteira, a nanotecnologia. Talvez você já tenha ouvido falar desse termo. Refere-se a um ramo da ciência que vem se expandindo significativamente e que pode ser aplicado para melhorar nossa vida nas mais diversas áreas. Mas, como tudo tem um “porém”, leia O jardim de Iácabus e tire as próprias conclusões. Ler este livro é incentivar a imaginação, transportando-se para impressionantes cenários de ficção científica onde acontecimentos improváveis e surpreendentes vão elevar sua adrenalina! É impossível ficar indiferente aos jovens protagonistas em sua perigosíssima missão! 142


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É uma obra rica em recursos linguísticos que conferem um toque mágico e hipnotizador de personalidade, singularidade e emotividade à história. Essa experiência de leitura vai desafiá-lo(a) a ir além da compreensão dos sentidos do texto, possibilitando-lhe tomar posse dele, usufruindo-o de tal forma que trará vantagens para sua vida pessoal e social. Portanto, prepare-se para viver uma história que certamente vai querer compartilhar com seus amigos e familiares. Agora... descobrir o que é Iácabus é por sua conta!

Justificativa da pertença da obra aos seus respectivos tema(s), categoria e gênero literário Ficção científica é um gênero narrativo que mistura

ideias ficcionais e imaginativas relacionadas ao futuro, à ciência e à tecnologia, bem como seus impactos e suas consequências aos seres humanos na Terra. A ação pode focalizar muitas possibilidades, como missões espaciais, viagens no tempo, voos mais rápidos que a luz, universos paralelos, mudanças climáticas, vida extraterrestre, domínio da Terra por habitantes de outros planetas. Entre os filmes que abordam essa temática, é possível destacar Matrix, Guerra nas Estrelas (Star Wars), Jornada nas Estrelas (Star Trek), 2001: uma odisseia no espaço, O Planeta dos Macacos, Blade Runner: o caçador de androides. O jardim de Iácabus, uma extraordinária obra de ficção científica, apresenta como temas o encontro com as 143


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diferenças, o mistério e a fantasia. Ao longo da narrativa está a nanotecnologia, ciência do século XXI que pode ser usada tanto para o bem quanto para o mal. O conteúdo foi produzido para que você, estudante do 8o ou do 9o ano do Ensino Fundamental, consuma-o com apetite do início ao fim, incentivando-o(a) a conhecer outras obras desse gênero. Este livro pertence ao gênero literário novela, situando-se entre o conto e o romance. É uma narrativa um pouco mais extensa que o conto e mais curta que o romance, que entendemos ser um gênero bem adequado a seu perfil, amigo(a) estudante!

Foto: arquivo pessoal

A ilustradora, Cecília Murgel, e a obra Cecília Murgel nasceu em 1963, em São Paulo. É arquiteta e urbanista, formada pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP). Entre 1984 e 2010, atuou como arquiteta e urbanista. Desde outubro de 2010, trabalha como designer e ilustradora na criação e no desenvolvimento de produtos voltados ao público infantil e infantojuvenil. Utilizou toda a experiência adquirida ao longo dos anos para elaborar as ilustrações de O jardim de Iácabus.

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Helena Gomes

Um helicóptero levando um importante advogado sofre uma pane e cai em alto-mar, no Litoral Norte de São Paulo. O único sobrevivente do desastre é Rafael, seu filho de catorze anos. Desmemoriado, o garoto vai morar com Cristiane, sua ex-madrasta, e Tuíla, a filha adolescente dela, em uma chácara em Santos. Com o passar dos dias, ele começa a revelar uma personalidade diferente, surpreendendo a todos. Então, fatos inesperados envolvendo implacáveis adversários e tecnologia exterminadora provocam uma reviravolta na vida dos dois adolescentes, que partem rumo a uma difícil e arriscada missão.

Helena Gomes Ilustrações:

Cecília Murgel

23/07/2018 14:11:27


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