SE É ASSIM QUE CONTAM, É ASSIM QUE É
Com essas reminiscências quero explicar que não encontrei o folclore nos livros e nas viagens. Não o estudei depois de vê-lo valorizado pelo registro. Encontrava nele as estórias do meu Pai, de minha Mãe, da velha Bibi, dos pescadores, rendeiras e cantadores, familiares.
luís da câmara cascudo, Folclore do Brasil Meu encontro com as personagens do folclore brasileiro se deu no agreste de Pernambuco, onde fui criada, sob um sol caudaloso, em cima de um carro de boi, embaixo de uma primavera maravilhosa, carregada de flores vermelhas...
– Mãe, o Saci existe? – eu quis saber, do alto dos meus cinco anos de experiência.
– Claro! Claro que o Saci existe! Não está vendo ele ali, ó! –respondeu minha mãe, já apontando para um discreto rodamoinho que o vento fraco soprava no terreiro à nossa frente.
– Estou vendo! Estou vendo! Olha só o gorro vermelho dele ali, aparecendo em cima do rodamoinho! – gritei, vendo o que já me encantava crer.
Aquele rodamoinho não durou mais do que dez segundos, mas foi o que bastou para a minha mãe desatar a contar a história do Saci-Pererê e de outras entidades folclóricas que ela conhecia de cor. Foi o suficiente para abrir as portas para a Mula Sem Cabeça entrar na minha história, acompanhada da Caipora, do Curupira, do Papa-Figo, da Iara, da Cuca e de quem mais quisesse fazer parte dela. Foi assim que esses bichos cruzaram o meu caminho e que, de um jeito ou de outro, vieram parar neste livro.
Tal como Câmara Cascudo – minha grande inspiração foi sua imensa dedicação à pesquisa sobre o folclore brasileiro –, meu encontro com essa manifestação cultural se deu por
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meio da experiência, pelo ouvir das histórias contadas pelos meus avós, por meus pais e familiares, por meio dos repentes e “causos” cantados nas ruas e praças do interior de Pernambuco, pelo observar das marcas que deixaram nas ruas do Recife Antigo, onde me formei como jornalista e escritora.
As personagens também se fizeram presentes na convivência com os meus padrinhos italianos que moravam em São Paulo, onde nasci, que falavam delas com outros nomes, mas sempre envolvidas nos mesmos enredos mirabolantes. Mesmo em italiano, faziam aparecer um Bicho-Papão que devia vir me pegar se eu não dormisse na hora em que me mandavam. O encontro com essas personagens em diferentes lugares só me fascinou ainda mais, pois pareciam poderosas, capazes de ignorar línguas e distâncias, se fazendo presentes pelas emoções que causavam.
Fiel à minha história com essas personagens, e a partir da crença de que todas elas de fato existem, bem como do desejo de registrá-las e divulgá-las para os leitores brasileiros – especialmente para os das novas gerações, cada vez mais distantes desse universo –, nasceu este projeto. O Abecedário de personagens do folclore brasileiro: e suas histórias maravilhosas foi um convite irresistível de Isabel Lopes Coelho – a quem agradeço a confiança e o prazer do trabalho conjunto – para desbravar esse rico universo de incontáveis seres que povoam o imaginário nacional. Tarefa nada simples essa...
Minha primeira e maior certeza foi a de que cobrir a imensidão do universo folclórico brasileiro seria arriscar-me na imprecisão. Um recorte se fez necessário e decidi me ancorar na força das personagens, elementos fundamentais constitutivos de qualquer história, para escrever cada “verbete” –tomando emprestado o termo do dicionário.
A busca por essas personagens seria uma longa viagem: para dentro e para fora de mim mesma. Enquanto trabalhava, os seres começaram a invadir meus sonhos, minhas reminiscências mais recônditas, e quase podia ouvir a voz da minha mãe me contando suas histórias, ou a da minha madrinha cantando suas cantigas em italiano.
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Mas o mergulho nesse caldo cultural se deu mesmo a partir da leitura e da pesquisa da obra de Luís da Câmara Cascudo, uma das maiores referências nessa área. Com base nele e guiada por ele, tomei contato com outros pesquisadores folcloristas importantes como Sílvio Romero, Simões Lopes Neto, José Ribeiro, Rossini Tavares de Lima, Lindolfo Gomes e Amadeu Amaral. Referências seguras e bem conceituadas que me animaram a começar a montar um panorama das personagens do folclore que habitam o Brasil e a contar seus “causos”.
Quase três anos se passaram enquanto eu lia, entrevistava pesquisadores – meu obrigada especial ao colega escritor e pesquisador do folclore brasileiro Ricardo Azevedo, que gentilmente me abriu sua biblioteca particular –, cotejava informações de diferentes fontes, buscava referências contemporâneas e também consultava fontes antigas, como as de meus familiares.
Nesse percurso, descobri mil livros dentro de uma proposta de livro, mas este precisava ter começo, meio e fim. Foi então que cheguei às 141 personagens que compõem a obra, e assim nasceu o Abecedário.
A opção de ser um abecedário e não um dicionário surgiu desde o começo do projeto, pois esse formato tem a vantagem de ser uma sequência alfabética e também um conjunto de textos organizados a partir de determinado critério, que podem ser escritos na linguagem literária. Como o que eu queria era produzir um livro sobre essas personagens que trouxesse não apenas informações sobre elas, mas também suas “histórias maravilhosas”, o abecedário pareceu mais eficiente.
A ideia foi de que cada verbete destacasse as características específicas das personagens, fornecendo o maior número de referências possível para a compreensão de seus universos míticos, além de apresentar suas características físicas e psicológicas, suas raízes e / ou origens, e também a síntese do enredo do qual fazem parte, além da indicação das obras de autores de referência nacional em que elas foram citadas (se houver).
Uma segunda e decisiva questão surgiu: como escolher, dentre tantas figuras do maravilhoso folclore brasileiro, quais seriam as mais representativas? Que critérios usar?
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Muitas horas foram gastas nessa seleção. E foi a diversidade que nos pareceu o fator mais importante. Entendemos que seria fundamental contemplar as personagens dentro das diversas origens que integram o folclore nacional: a indígena, a africana, a europeia, a oriental – que são também as principais –, mas há muitas outras que só enriqueceram essas histórias maravilhosas. Se o que nos representa é a diversidade, seria por ela que começaríamos e seguiríamos em busca das personagens mais significativas.
A diversidade também nos ajudou a dividir essas personagens em três categorias distintas: os humanos, os bichos e os seres fantásticos. Essas figuras mitológicas se compõem de traços que são muitas vezes estranhos e outros tantos tão próximos de nós que chegam a nos assustar de verdade. O Bicho-Homem, que é mais bicho do que homem, o Cobra-Norato, que é cobra mas depois vira homem, a Dama de Branco, que não sabe que morreu, o Fogo-Fátuo, que corre atrás da gente e a gente corre dele para não ter azar, a Jaci, a índia que virou Lua, e todos os outros, que conhecemos de algum modo, mesmo sem saber seus nomes.
Entre as personagens humanas encontramos muitas histórias em jornais antigos e nos relatos de várias testemunhas, recolhidos pelos folcloristas brasileiros. Suas façanhas e feitos, tais como os de tantas outras personagens fantásticas, foram tão extraordinários que do “conto se aumentou um ponto” e por isso elas figuram na galeria das lendas e dos mitos que fazem parte do nosso universo mítico, como Cabeleira e Lucas da Feira, por exemplo. É fascinante ver como homens, bichos e seres fantásticos convivem e se misturam no nosso folclore, nos brindando com suas aventuras espetaculares.
No entanto, algumas personagens consideradas folclóricas por estudiosos mas que integram religiões e / ou cultos religiosos não fizeram parte dessa seleta. Entendemos que, nesse caso, seria extremamente complexo mapear e contemplar todas as figuras de tantas religiões que coexistem nesse Brasil, além de que muitas dessas histórias contêm elementos estritamente ligados a esses cultos, o que impli-
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caria nos estendermos nas explicações sobre cada um deles, o que não era o nosso objetivo.
Mesmo assim, algumas personagens deste Abecedário trazem aspectos ligados à religiosidade brasileira. Seria impossível, por exemplo, falar e compreender a lenda do Negrinho do Pastoreio, personagem mais famosa do folclore gaúcho, sem citar que sua madrinha era Nossa Senhora, ou a figura da Virgem Maria, cultuada pela religião católica. A Iara, que nas religiões afro é também Iemanjá ou Oxum, ou Eberê, que também é Ossonhe; Jurupari, deus ou diabo, figura constitutiva dos mitos indígenas; o Judeu Errante, que parte da tradição judaico-cristã – são outras personagens que possuem elementos religiosos em sua essência. Nesse sentido, é importante ressaltar que as personagens folclóricas carregam em si informações relevantes sobre o contexto histórico e sociocultural em que nasceram e se popularizaram.
É fundamental salientar ainda que há, neste abecedário, personagens que são específicas de algumas regiões do país, mas achamos importante incluí-las tanto como forma de registro como para marcar as imensas diferenças regionais que aqui existem. Por isso, tivemos o cuidado de registrar seus diferentes nomes e também acrescentar outras personagens com as quais se relacionam (se possuem características comuns, por exemplo). Porém, ressaltamos que personagens muito específicas de determinado lugar foram citadas com parcimônia, de modo a ter garantida a sua representatividade, sem, no entanto, ganhar um enorme destaque como aquelas que são “patrimônio nacional”, como o Saci-Pererê, o Boto e o Lobisomem.
Essa diferença cultural, em alguns casos, nos trouxe um pouco de confusão durante a pesquisa, dado que muitas vezes uma mesma personagem é descrita de maneira completamente diferente em cada um dos estados brasileiros. Sabemos que descrições contraditórias de personagens fazem parte das histórias de tradição oral, mas, no Abecedário, você verá que, na maioria das vezes, a personagem terá pelo menos uma ou duas características que são comuns a todas as descrições encontradas, o que permite que a identifiquemos
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minimamente. O Curupira, a Caipora (que em alguns lugares é “o” Caipora ou Caapora) e até mesmo o Homem do Saco possuem tantas características e histórias que, por si sós, dariam mais alguns livros.
Selecionadas as 141 personagens e suas histórias maravilhosas, era preciso também cuidar das ilustrações. Aí entram os fortes desenhos de Berje que compõem cada verbete deste Abecedário. As ilustrações ressaltam as características físicas, mas também enfatizam os traços de caráter ou mostram determinada situação do enredo do qual ela faz parte. Muitas vezes, um elemento da ilustração vai descortinar detalhes que o texto não revelou, que estavam nas entrelinhas, criando um verdadeiro diálogo entre as linguagens. Letras e imagens se misturam aos cheiros, rumores e mistérios que apenas essas personagens são capazes de nos despertar...
É preciso lembrar que um dos legados mais importantes de uma nação é a sua memória ficcional; nela encontramos suas origens culturais. Segundo Câmara Cascudo, em sua obra Folclore do Brasil, citada na epígrafe deste texto, o folclore é o saber mais genuíno de um povo:
Todos os países do mundo, raças, grupos humanos, famílias, classes profissionais possuem um patrimônio de tradições que se transmite oralmente e é defendido e conservado pelo costume. Esse patrimônio é milenar e contemporâneo. Cresce com os conhecimentos diários desde que se integrem nos hábitos grupais, domésticos ou nacionais. Esse patrimônio é o folclore, Folk, povo, nação, família, parentalha. Lore, instrução, conhecimento na acepção da consciência individual do saber. Saber que sabe. Contemporaneidade, atualização imediatista do conhecimento.
O folclore é notadamente o retrato de um povo e de sua cultura e, por isso, relevante para a educação. O escritor Monteiro Lobato, no epílogo de sua obra O Saci-Pererê: resultado de um inquérito, também enfatiza a relação fundamental entre folclore e educação: “O estudo das crendices populares revela o povo em sua íntima textura psíquica. Revelar é co-
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nhecer. O conhecimento do povo, e só ele, ensina os meios, os canais, a arte de educá-los”.
Acreditando na potência dessa associação do folclore com a educação e com a literatura, esperamos que o Abecedário de personagens do folclore brasileiro possa colaborar não só para a formação sociocultural das crianças e jovens e de pesquisadores da cultura brasileira, mas também favorecer a formação de leitores competentes e apaixonados por suas raízes e cultura, propiciando-lhes uma experiência formativa e cativante.
Ao unirmos a pesquisa séria dessas personagens ao universo mágico de suas histórias num só volume, acreditamos ter aqui um trabalho bastante original, que preenche uma lacuna nos estudos culturais brasileiros e também na nossa literatura ficcional.
Porém, longe de essa história acabar por aqui, o desejo é que cada leitor continue a escrevê-la. Seja contando sobre essas personagens a outras pessoas, seja recolhendo as histórias das personagens do folclore da sua cidade ou estado e fazendo seu registro em algum lugar para a posteridade, seja simplesmente dando um sorriso maroto ao virar cada página deste Abecedário. Afinal de contas, sobre essas personagens a gente sabe só o que ouviu, mas acredita nelas. Porque se é assim que contam, é assim que é.
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ALAMOA
Na ilha de Fernando de Noronha, em Pernambuco, nas noites de sexta-feira, na Pedra do Pico, um lugar tão alto que fica a mais de mil pés de altura, há uma pedra em que se abre uma fenda. E dela aparece uma luz. Um facho tão forte e multicolorido que atrai as mariposas e também os viajantes. Estes, curiosos que são, assim que percebem aquela passagem na pedra, logo vão olhar de onde vem aquela luz ofuscante. E lá encontram Alamoa.
Uma mulher branca, loira, nua e linda que vem recebê-los nessa caverna com ares de palácio. Mas… o pobre viajante não tarda a ver quem é a Alamoa de verdade: uma bela mulher que se transforma num tenebroso esqueleto! No lugar de seus olhos, dois buracos fundos e escuros, e a pele branca dá lugar a um feixe de ossos. Então, num minuto, a fenda da pedra se fecha e o andarilho fica ali, preso. Para sempre!
As pessoas que costumavam contar essa história eram os detentos de Fernando de Noronha, que viam das janelas do antigo presídio a bela e alva mulher sair de sua gruta e flutuar, dançando sobre as areias da praia, emitindo luzes que seduziam os viajantes.
Mas há quem diga que a Alamoa é apenas uma mulher alemã muito bonita (seria uma “alemoa”). Diz-se que ela apareceu a um pescador em Fernando de Noronha amarrada em seu anzol. Quando ele a fisgou e viu que era uma mulher, saiu correndo de medo, enquanto ela lhe amaldiçoava, pois andava atrás de um homem corajoso que mergulhasse naquelas águas em busca de um tesouro que ela guardava…
região do país: Nordeste (pe)
origem: Europeia
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Atenção: este livro contém 141 personagens do dito folclore brasileiro, cuidadosamente selecionados dentre a bibliografia mais especializada sobre o assunto, descritos com fidelidade aos melhores e mais diversos relatos de quem realmente viu o Lobisomem à meia-noite, o Curupira na encruzilhada da estrada, o Saci-Pererê na floresta e o Boto no fundo do rio.
Seu uso é livre, não há restrição de faixa etária, e quanto mais tipos de leitores misturados, melhor. O modo de uso? Pode-se lê-lo do início para o final ou vice-versa, e até mesmo começar pelo meio.
Este Abecedário de personagens do folclore brasileiro é resultado da imersão de Januária Cristina Alves no universo dos seres que habitam o nosso imaginário e que compõem o mosaico cultural da nossa identidade. Um trabalho editorial inédito, de relevância ímpar para pesquisadores e estudantes do assunto, mas principalmente para qualquer um que se interesse em adentrar este mundo maravilhoso. Escritos com a verve literária que merecem, os verbetes deste dicionário surpreendem pela pesquisa histórica, estilística e pelo comprometimento com a verdade. Pois que esses personagens existem, existem.
isabel lopes coelho
788596 011181 ISBN 978-85-96-01118-1 ISBN 978-85-9493-0507 9010301000093
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