A última criança na natureza (degustação)

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A Última CRIANÇA na

NATUREZA

x Resgatando Nossas crianças do transtorno do deficit de natureza

Richard Louv

1. edição São Paulo / 2016

AQUARIANA


Tinha um menino que saía todo dia, E a primeira coisa que ele olhava, naquela coisa ele virava, E aquela coisa virava parte dele o dia todo ou parte do dia, Ou por muitos anos ou longos ciclos de anos. Os primeiros lilases viraram parte dele, E a relva, e as ipomeias brancas e vermelhas, e o trevo branco e vermelho, e o pio da tesourinha, E os cordeiros de março, e a ninhada rosa tênue da porca, e o potro, e o bezerro…*

— Walt Whitman

Prefiro brincar dentro de casa porque é onde há tomadas.

— aluno do quarto ano de uma escola em San Diego, Califórnia

* WALT, Whitman. Folhas de Relva. Tradução de Rodrigo Garcia Lopes. São Paulo: Iluminuras, 2005. (N.T.)


Sumário Agradecimentos, 11 Prefácio, 13 Introdução, 23 Parte I: A nova relação entre crianças e natureza, 27

1. Dádivas da natureza, 29 2. A terceira fronteira, 37 3. A criminalização do brincar na natureza, 49

Parte II: Por que os jovens (e o resto de nós) precisam da natureza, 59

4. Escalando a árvore da saúde, 61 5. Uma vida de sentidos: a natureza versus a mentalidade sabe-tudo, 77 6. A “oitava inteligência”, 93 7. A genialidade da infância: como a natureza nutre a criatividade, 107 8. Transtorno do deficit de natureza e o ambiente restaurador, 119

Parte III: As melhores intenções: por que João e Maria não brincam mais lá fora, 133

9. Tempo e medo, 135 10. O retorno da síndrome do bicho papão, 143 11. Não saber muito sobre história natural: a educação como barreira para a natureza, 153 12. De onde virão os futuros guardiões da natureza?, 165

Parte IV: O reencontro entre a natureza e a criança, 179

13. Levando a natureza para casa, 181 14. A inteligência do medo: enfrentando o bicho-papão, 195


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15. Histórias de tartaruga: usando a natureza como professora moral, 205

Parte V: A lousa da selva, 217

16. Reforma pela escola natural, 219 17. O renascimento dos acampamentos, 241

Parte VI: País das Maravilhas: abrindo a quarta fronteira, 249 18. A educação do juíz Thatcher: descriminalizando o brincar na natureza, 251 19. Cidades selvagens, 259 20. Onde estará o mundo selvagem: um novo movimento de retorno ao campo, 283

Parte VII: Encantar-se, 299

21. A necessidade espiritual de natureza para os jovens, 301 22. Fogo e fermentação: construindo um movimento, 317 23. Enquanto dure, 325

Notas, 327 Sugestões de leitura, 341 Um guia de Campo para a última criança na Natureza, 347

Anotações de campo, 351 100 ações possíveis, 361 Pontos de discussão, 391


Introdução

U

ma noite, quando

meus filhos eram menores, Matthew, com dez anos na época, olhou para mim do outro lado da mesa do restaurante e perguntou, bem sério: – Pai, por que você acha que era mais divertido quando você era criança? Questionei o que ele queria dizer. – Bom, você sempre fala de mato e casas na árvore, de como andava a cavalo perto do pântano. A princípio, achei que ele estivesse irritado comigo. De fato, naquele momento eu contava como era usar linha e pedaços de fígado para pegar pitús em um riacho – algo que seria difícil ver uma criança fazendo hoje. Como muitos pais, tendo a romantizar minha própria infância e, acre­dito, acabo desconsiderando experiências de brincadeira e aventura de meus filhos. Mas Matthew estava falando sério: ele sentia que estava perdendo alguma coisa importante. E ele tinha razão. Os americanos de minha faixa etária, baby boomers, ou mais velhos desfrutaram um tipo de brincar livre e na natureza que parece, na era dos celulares para crianças, das mensagens instantâneas e da Nintendo, algo exótico. Em um intervalo de poucas décadas, a maneira como as crianças enten­dem e vivenciam a natureza mudou radicalmente. A relação se inverteu. Hoje as crianças têm noção das ameaças globais ao meio ambiente, mas seu contato físico, sua intimidade com a natureza, está diminuindo. É exatamente o oposto de como as coisas eram quando eu era criança. Quando garoto, eu não sabia que meu jardim estava ecologicamente ligado a outras florestas. Ninguém nos anos 1950 falava sobre chuva ácida nem sobre buracos na camada de ozônio, tampouco sobre aquecimento ­global. Mas eu conhecia meu jardim e alguns campos, conhecia cada curva do riacho próximo e cada declive das trilhas de terra batida nas redondezas. Eu percorria esses lugares até em sonhos. É provável que uma criança hoje saiba falar sobre a floresta Amazônica, mas não sobre a última vez que explorou


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alguma mata sozinho ou deitou em um campo ouvindo o vento e observando as nuvens. Este livro explora a distância cada vez maior entre os jovens e o mundo natural, relacionando as implicações ambientais, sociais, psicológicas e espirituais dessa mudança. Ele também descreve a quantidade cada vez maior de pesquisas que revelam a necessidade de contato com a natureza para o desenvolvimento saudável da criança – e do adulto. Embora preste atenção especial às crianças, meu foco também está nas pessoas nascidas nas últimas duas ou três décadas. A mudança na relação com o meio ambiente é alarmante, mesmo em espaços que imaginaríamos que fossem devotados à natureza. Não faz muito tempo que acampamentos de verão eram um lugar para acampar, fazer caminhadas em meio às árvores, aprender sobre plantas e animais e contar, em volta da fogueira, histórias sobre fantasmas e animais selvagens. Há uma grande chance de que, hoje, “acampamento de verão” seja um lugar com foco em perder peso, como um spa, ou para aprender computação. Para a nova geração, a natureza é mais abstração do que realidade. Cada vez mais, a natureza se tornou algo a ser observado, consumido, vestido – ignorado. Um comercial de televisão recente mostra um veículo 4x4 correndo por uma estrada em uma montanha lindíssima – no banco de trás, duas crianças veem um filme em uma tela embutida, alheias à paisagem e às águas que correm por perto. Um século atrás, o historiador Frederick Jackson Turner anunciou que a fronteira americana estava morta. A tese dele tem sido discutida e debatida desde então. Hoje atravessamos uma fronteira similar e mais importante. Nossa sociedade está ensinando os jovens a evitar as experiências diretas na natureza. Essa lição é transmitida em escolas, famílias e até em organizações dedicadas aos espaços abertos e vem sendo codificada nas estru­turas legais e regulatórias de muitas comunidades. As instituições, o design dos grandes centros urbanos e do subúrbio e o comportamento ­cultural associam, de forma inconsciente, natureza à destruição – enquanto desassociam estar ao ar livre de alegria e solitude. Os sistemas educacionais bem-intencio­nados, a mídia e os pais estão efetivamente deixando as crianças com medo de chegar perto de matas e campos. No ambiente de “patentear ou perecer” do ensino superior, disciplinas mais práticas, como a zoologia, vêm sendo substituí­das pela microbiologia e pela engenharia genética, mais teóricas e


Introdução / 25 lucrativas. Rapidamente, o avanço das tecnologias ofusca os limites entre humanos, outros animais e máquinas. A noção pós-moderna de que a realidade é apenas uma construção – de que somos o que programamos – sugere ilimitadas possibilidades humanas, mas, conforme os jovens passam cada vez menos tempo em ambientes naturais, seus sentidos se restringem, fisiológica e psicologicamente, o que reduz a riqueza da experiência humana. No entanto, no exato momento em que o vínculo entre a juventude e o mundo natural se rompe, um escopo cada vez maior de pesquisas conecta, de modo positivo, nossa saúde mental, física e espiritual à nossa associação com a natureza. Diversos desses estudos sugerem que a exposição cuida­ dosa dos mais jovens ao meio ambiente pode até ser uma poderosa forma de terapia para transtornos do deficit de atenção e outras doenças. Como diz um cientista, hoje podemos supor que, assim como necessitam de uma boa alimentação e um sono adequado, as crianças também precisam de contato com a natureza. Reduzir esse deficit – refazer o elo rompido entre os jovens e a natureza – é de nosso próprio interesse, não só porque a estética ou a justiça exigem, mas também porque nossa saúde mental, física e espiritual dependem disso. Além disso, a saúde da Terra está em jogo. Como os jovens reagem à natu­ reza, e como vão criar os próprios filhos, acaba delineando as configurações e as condições das cidades, dos lares, do cotidiano em geral. As páginas a seguir exploram um caminho alternativo para o futuro, incluindo alguns dos programas escolares mais inovadores em termos de meio ambiente; redefinição e reformatação do ambiente urbano – o que um teórico chama da chegada da “zoópole”; modos de lidar com os desafios que acometem os grupos ambientais; e maneiras como organizações religiosas podem ajudar a recuperar a natureza como parte do desenvolvimento espiritual das crianças. Pais, filhos, avós, professores, cientistas, líderes, ambientalistas e pesquisadores falam nas páginas a seguir. Eles reconhecem a transformação que está ocorrendo. Alguns vislumbram outro futuro, no qual as crianças e a natureza se reencontram – e o mundo natural é valorizado e protegido com mais profundidade. Durante a pesquisa para este livro, descobri que muitas pessoas que hoje estão na idade de frequentar a universidade – que fazem parte da primeira geração que cresceu em um ambiente altamente desprovido de natureza –


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experimentaram amostra de natureza suficiente para intuitivamente entender o que perderam. Esse anseio é uma fonte de poder. Esses jovens estão resistindo ao rápido declínio do real para o virtual, das montanhas para a Matrix. Eles não pretendem ser as últimas crianças na natureza. Meus filhos ainda não vivenciaram o que o autor Bill McKibben chamou de “o fim da natureza”, a tristeza de um mundo em que não há para onde fugir. E existe outra possibilidade: não o fim da natureza, mas o renasci­ mento das maravilhas e até da alegria. O obituário de Jackson para a fronteira americana era preciso apenas em parte: uma fronteira de fato desapareceu, mas uma segunda se perpetuou, e nela os americanos romantizaram, exploraram, protegeram e destruíram a natureza. Agora essa fronteira – que existia na fazenda da família, nas florestas no fim da estrada, nos parques nacionais e em nosso coração – está desaparecendo ou se transformando em algo irreconhecível. Mas a relação com a natureza pode evoluir. Este livro fala sobre o fim desse tempo, mas também sobre uma nova fronteira – uma forma melhor de conviver com a natureza.


Parte I

A Nova Relação Entre Crianças e Natureza Aqui está essa nossa mãe gigantesca, selvagem e ululante – a Natureza – onipresente, com tanta beleza e tanto afeto por seus filhos quanto uma fêmea de leopardo; no entanto, dela nos desmamamos tão cedo para a sociedade, para essa cultura que é exclusivamente uma interação do homem com o homem.

— Henry David Thoreau



1.

Dádivas da

natureza

Quando vejo bétulas se curvarem para a esquerda e a direita… Gosto de pensar que um menino as estava balançando.

— Robert Frost

x Se,

quando eramos jovens,

tivéssemos vagado pelas florestas de álamo do Nebraska, criado pombos em um telhado no Queens, pescado percas em Ozark ou sentido o movimento de uma onda que viajou milhares de quilô­ metros antes de levantar o barco, teríamos nos conectado com o mundo natural e seríamos assim até hoje. A natureza ainda nos mostra a passagem dos anos – elevando-nos e transportando-nos. Para as crianças, a natureza se mostra de muitas maneiras: um bezerro recém-nascido; um animal de estimação que vive e morre; uma trilha de chão batido em meio às árvores; uma cabana aninhada em urtigas; um terreno baldio pantanoso e misterioso. Independentemente da cena, a natureza oferece a cada criança um mundo mais antigo e vasto, separado dos pais. Diferentemente da televisão, o contato com a natureza não rouba o tempo, mas o amplia. A natureza oferece a cura para uma criança que vive em uma família ou uma vizinhança destrutiva. Ela funciona como um papel em branco em que a criança desenha e reinterpreta suas fantasias culturais. A natureza inspira a criatividade da criança, demandando a percepção e o amplo uso dos sentidos. Dada a oportunidade, a criança leva a confusão do mundo para a natureza, lava tudo no riacho e vira do avesso para ver o que há do outro lado. A natureza também pode assustar, e até mesmo esse medo tem um propósito. Na natureza, a criança encontra


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liberdade, fantasia e privacidade – um lugar distante do mundo adulto, uma paz à parte. Esses são alguns dos valores utilitários da natureza; e, em um nível mais profundo, ela se doa para a criança – por si mesma, não como reflexo da cultura. Nesse nível, consegue despertar a humildade. Como o famoso poeta Gary Snyder escreveu, atribuímos dois signifi­ cados à palavra “natureza”, que vem do latim, natura – nascimento, constituição, caráter, curso das coisas – e, para além de natura, nasci – nascer1. Na interpretação mais ampla, o termo inclui o mundo material e todos os seus objetos e os seus fenômenos; de acordo com essa definição, até as máquinas fazem parte da natureza. O lixo tóxico também. O outro sentido é o que chamamos de “espaço ao ar livre”. Nessa conotação, uma coisa feita pelo homem não faz parte da natureza, é algo alheio a esta. A cidade de Nova York, por exemplo, pode não parecer natural, mas contém lugares escondidos, auto-organizados, selvagens, desde os organismos ocultos no húmus do Central Park até os gaviões que circundam o céu do Bronx. Nesse sentido, uma cidade obedece a leis mais amplas da natureza; ela é natural – assim como máquinas fazem parte da natureza –, mas selvagem em seus componentes. Olhando para as crianças nesse tipo de ambiente, emerge uma avidez por uma descrição mais rica, uma definição com mais margem de manobra, que não inclua tudo como natural nem restrinja a natureza a uma mata virgem. Snyder gosta da expressão de John Milton, “uma imensidão de doçura”. O uso que Milton faz de imensidão abrange a condição muito real de energia e riqueza que com frequência é encontrada nos sistemas selvagens. Uma ‘imensidão de doçuras’ é como os bilhões de filhotes de arenque ou cavala no oceano, o quilômetro cúbico de camarões, a grama nos campos selvagens… toda a incrível fecundidade dos pequenos animais e das pequenas plantas, alimentando a teia. Por outro lado, a imensidão implica caos, eros, o desconhecido, os universos do tabu, o habitat tanto do extático quanto do demoníaco. Em ambos os sentidos, é um lugar de poder arquetípico, de ensino e desafio.

Quando pensamos nas crianças e nos presentes da natureza, essa terceira leitura mais abrangente é útil. Para os propósitos deste livro, quando faço uso da palavra “natureza” em sentido geral, estou falando de natureza selvagem: biodiversidade, abundância – elementos soltos e relacionados em um quintal ou no cume de uma montanha intocada. Mais do que tudo, a natureza reflete em nossa capacidade de nos maravilhar. Nasci. Nascer.


A nova relação entre crianças e natureza / 31 Apesar de muitas vezes nos vermos como algo separado da natureza, os humanos também fazem parte do mundo selvagem. Minha lembrança mais antiga de uso dos meus sentidos, e de me maravilhar, remete a uma manhã fria de primavera em Independence, Missouri. Eu talvez tivesse três anos e estava sentado num campo seco atrás da casa da minha avó, construção de arquitetura vitoriana e pintura descascada. Ali perto, meu pai cuidava de um jardim. Na época, os moradores do Meio-Oeste dos Estados Unidos tinham o hábito de jogar lixo no chão pela janela do carro; então, meu pai jogou uma bituca de cigarro no jardim, e as faíscas saíram voando pelo vento. A grama seca pegou fogo. Eu me lembro do barulho das chamas, do cheiro da fumaça e do som do meu pai pisando e andando rápido para alcançar o fogo que se espalhava pelo campo. Naquele mesmo jardim, eu costumava andar em volta das peras que caíam de uma pereira, prendia o nariz e me abaixava a uma distância cuidadosa dos pequenos montes de matéria fermentada e, então tentava inspirar. Eu me sentava entre as frutas caídas, atraído e repugnado. O fogo e a fermentação… Passei horas explorando o mato e os campos cultivados nas áreas resi­ denciais. Havia laranjeiras-de-osage, com galhos espinhentos e hostis que derrubavam frutas podres e grudentas maiores que bolas de beisebol. Essas deviam ser evitadas. Mas dentro dos quebra-ventos havia árvores em que podíamos subir, os galhos menores funcionavam como degraus de uma escada. Subíamos quinze, vinte metros acima do chão, muito mais alto que a fileira de laranjeiras, e daquele ponto privilegiado olhávamos as velhas cordilheiras azuis do Missouri e o telhado das casas novas dos bairros cada vez mais populosos. Muitas vezes, subia sozinho. Às vezes, encantado, eu mergulhava nos jardins e me imaginava como Mogli, de Rudyard Kipling, o menino criado por lobos, e tirava quase toda a roupa para escalar. Se subisse alto o bastante, os galhos se tornavam mais finos; a partir deles, quando o vento batia, o mundo se inclinava para baixo, para cima, dava a volta, virava para o lado. Era assustador e maravilhoso me render ao poder do vento. Meus sentidos eram inundados por sensações de queda, ascensão e balanço; ao redor, as folhas estalavam, e o vento soprava suspiros e sussurros ásperos. O vento também trazia cheiros, e a própria árvore liberava seus perfumes mais rapidamente durante as rajadas. Por fim, havia apenas o vento que se movia através de tudo.


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Agora que meus dias de subir em árvores ficaram para trás, eu muitas vezes penso no valor desses tempos remotos e deliciosamente ociosos. Passei a apreciar a vista longínqua que a copa daquelas árvores proporcionava. As matas eram minha Ritalina*. A natureza me acalmava, me proporcionava concentração e despertava meus sentidos.

Onde há tomadas Muitas pessoas da minha geração se tornaram adultos assumindo que a presença da natureza estava garantida; nós presumíamos – quando pensávamos no assunto – que as gerações futuras também teriam contato com esse universo. Mas alguma coisa mudou. Agora vemos o surgimento do que passei a chamar de transtorno do deficit de natureza. Esse termo não representa, de forma nenhuma, um diagnóstico médico, mas oferece uma maneira de pensar sobre o problema – com foco nas crianças e em todos nós também. Minha conscientização da transformação começou no fim dos anos 1980, durante a pesquisa para o livro Childhood’s Future, que trata das novas realidades da vida familiar. Entrevistei quase três mil filhos e pais pelo país, em áreas urbanas, residenciais e rurais. Em salas de aula e de visita, o tópico da relação das crianças com a natureza às vezes vinha à tona. Penso com frequência em um comentário maravilhosamente honesto feito por Paul, aluno do quarto ano de uma escola em San Diego, Califórnia: – Prefiro brincar dentro de casa porque é onde há tomadas. Em muitas salas de aula, ouvi variações dessa frase. É verdade que, para diversas crianças, a natureza ainda provoca encantamento. Mas para outras brincar na natureza parecia tão… improdutivo. Proibido. Estrangeiro. Fofo. Perigoso. Televisivo. – É essa coisa de assistir tanta televisão. Nós nos tornamos mais seden­ tários. Quando eu era criança, em Detroit, estávamos sempre na rua. As crianças que ficavam em casa eram esquisitas. Não tínhamos espaços muito vastos ao ar livre, mas estávamos sempre do lado de fora, na rua – em terrenos baldios, pulando corda, jogando beisebol ou brincando de amarelinha.

* Nome comercial do metilfenidato, estimulante do grupo dos anfetamínicos amplamente empre­gado no tratamento do TDAH (transtorno do deficit de atenção e hiperatividade). (N.R.T. - Nota da Revisão Técnica)


A nova relação entre crianças e natureza / 33 Nós brincávamos lá fora mesmo depois de mais velhos – disse uma mãe em Swarthmore, Pensilvânia. Um pai, também de Swarthmore, acrescentou: – Era diferente quando éramos jovens. Nossos pais estavam na rua. Não estou dizendo que eles faziam parte de clubes de atividades saudáveis nem nada parecido, mas estavam fora de casa, na varanda, conver­sando com os vizinhos. Do ponto de vista do condicionamento físico, as crianças de hoje são a geração mais prejudicada na história dos Estados Unidos. Os pais podem praticar esportes, correr, mas as crianças simplesmente não estão lá fora. Esse era o mantra entre pais, avós, tios, tias, professores e outros adultos país afora, mesmo em lugares onde eu esperaria uma visão diferente. Por exemplo, visitei um bairro de classe média na região residencial de Overland Park, Kansas, perto de onde passei a adolescência. Durante essas décadas, muitas florestas e campos desapareceram, mas uma paisagem suficientemente natural se manteve para oferecer ao menos a oportunidade de brincar ao ar livre. – As crianças ainda brincam na natureza aqui? – Não é tão frequente –, disseram vários pais, que se reuniram em uma sala num começo de noite para conversar sobre o novo panorama da infância. Ainda que vários morassem no mesmo quarteirão, era a primeira vez que alguns deles se encontravam. – Quando nossos filhos estavam no terceiro ou no quarto ano, ainda tínhamos um pequeno descampado atrás de casa – disse uma mãe. – Um dia, as crianças estavam reclamando de tédio. Eu propus: – Certo, vocês estão entediados? Vão lá para fora, bem ali, e fiquem duas horas. Encontrem alguma coisa para fazer lá. Confiem em mim, experimentem. Vocês podem se divertir. Então, com resistência, eles foram até o descampado. E não voltaram em duas horas, mas muito tempo depois. Perguntei como tinha sido, e eles disseram: – Estava tão divertido! Nunca pensamos que pudéssemos nos divertir tanto lá! Eles subiram em árvores, viram muitas coisas, correram um atrás do outro, brincaram do que costumávamos brincar quando éramos jovens. Então, no dia seguinte, falei outra vez:


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– Vocês estão entediados, por que não vão ao descampado de novo? E eles responderam: – Não… já fizemos isso ontem. As crianças não estavam dispostas a fazer aquilo de novo. – Não sei se entendi exatamente o que você está dizendo. Acho que minhas filhas apreciam coisas como a lua cheia, um belo pôr do sol ou flores. Elas apreciam o movimento das árvores ao vento… esse tipo de coisa – comentou um pai. Outra mãe do grupo balançou a cabeça, discordando. – Claro, as pequenas coisas elas notam. Mas são distraídas – ela disse. Então ela descreveu a última vez em que a família foi esquiar, no Colorado. – Era um dia tranquilo, perfeito, e as crianças desceram a montanha com fone de ouvido. Elas não conseguem apenas ouvir a natureza e estar ali. Não conseguem fazer a própria diversão, precisam levar algo junto. Um pai quieto, criado em uma comunidade rural, se manifestou. – Onde eu cresci, uma pessoa naturalmente gostava de atividades ao ar livre, o tempo todo. Não importava a direção em que você seguisse, chegava a um campo arado, a uma mata, a um córrego. Aqui não é assim. Overland Park é uma área metropolitana agora. Mas as crianças não perderam nada porque, na verdade, nunca tiveram isso. Estamos falando sobre uma transição feita pela maioria de nós, que cresceu cercada pela natureza. Agora a natureza simplesmente não está mais lá. O grupo ficou em silêncio. Sim, boa parte das terras que um dia foram selvagens estava sendo transformada e recebendo construções, mas, através das janelas da casa em que estávamos, eu podia ver árvores. A natureza ainda estava lá fora. Havia menos verde, é verdade, mas ainda havia. Um dia depois de conversar com esses pais de Overland Park, atra­ vessei a fronteira entre o Kansas e o Missouri até Southwood, uma escola em Raytown, Missouri, perto de Kansas City, na qual eu cursei os primeiros anos do ensino fundamental. Para minha surpresa, os mesmos balanços (ao menos era o que parecia) ainda rangiam sobre o asfalto quente; os corredores brilhavam com o mesmo ladrilho de linóleo; as mesmas cadeiras de madeira pequenas, entalhadas e marcadas com monogramas nas cores preta, azul e vermelha, formavam fileiras tortas.


A nova relação entre crianças e natureza / 35 Enquanto os professores reuniam as crianças do segundo ao quinto ano e as acompanhavam até a sala em que eu esperava, peguei meu gravador e olhei, pela janela, para a encosta de árvores, provavelmente carvalhos-vermelhos, bordos, álamos ou talvez nogueiras-pecã e espinheiros-da-virgínia, os galhos tremendo e balançando devagar com a brisa da primavera. Quantas vezes, na infância, essas árvores tinham inspirado meus devaneios? Durante a hora seguinte, enquanto eu perguntava sobre a relação que tinham com o espaço aberto, os jovens descreveram algumas barreiras que os impediam de ficar ao ar livre – falta de tempo, TV, os suspeitos de sempre. Mas essa realidade não significava que as crianças careciam de curiosidade. Aliás, elas falaram da natureza com uma mistura de perplexidade, distanciamento e desejo – além de uma rebeldia ocasional. Nos anos seguintes, ouvi esse tom com frequência. – Meus pais não se sentem seguros se eu entro muito no mato – disse um garoto. – Não posso ir longe. Eles estão sempre preocupados comigo. Então, simplesmente saio sem contar para aonde estou indo, o que os deixa bravos. Mas em geral eu fico sentado atrás de uma árvore, algo assim, ou deito no campo com os coelhos. Um garoto disse que os computadores eram mais importantes que a natureza, porque os empregos estão onde os computadores estão. Muitos disseram que eram ocupados demais para sair. Então, uma garota do quinto ano, que usava um vestido estampado simples e tinha uma expressão séria, me contou que, quando crescesse, queria ser poeta. – Na natureza, me sinto no lugar de minha mãe – ela disse. A menina era uma dessas poucas crianças que ainda passava tempo ao ar livre, sozinha. No caso dela, a natureza representava beleza e refúgio. – É tão tranquilo lá fora, e o ar tem um cheiro tão bom. Quer dizer, é poluído, mas não tanto quanto o ar da cidade. Para mim, é totalmente diferente – continuou. – É como se você fosse livre quando está lá fora. É seu próprio tempo. Às vezes vou para lá quando estou brava e, então, com a quietude, fico melhor. Volto para casa feliz, e minha mãe nem sabe por quê. Ela descreveu seu lugar especial. – Eu tinha um canto. Havia uma cachoeira grande e um riacho que corria perto. Cavei um buraco grande lá; às vezes eu levava uma barraca ou um cobertor e ficava deitada, olhando para as árvores e o céu. Outras vezes


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eu cochilava. Eu simplesmente me sentia livre, era meu canto, onde eu podia fazer o que quisesse, sem ninguém me impedir. Eu costumava ir para lá quase todo dia. A jovem poeta enrubesceu, e sua voz ficou mais grave. – Então, as árvores foram cortadas. Foi como se tivessem tirado uma parte de mim. Com o tempo, consegui entender parte da complexidade representada pelo garoto que preferia tomadas e a poeta que tinha perdido seu lugar especial na natureza. Também aprendi isto: pais, educadores, outros adultos e instituições – a própria cultura – dizem algo para as crianças sobre as dádivas da natureza, mas muitas de nossas ações e crenças – em especial as que não percebemos que estamos transmitindo – passam outra mensagem. E as crianças ouvem bem.



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