michel odent
O CAMPONÊS E A PARTEIRA (uma alternativa à industrialização da agricultura e do parto)
Tradução Sarah Bailey
EDITORA GROUND
CONTEÚDO DEDICATÓRIA, 9 INTRODUÇÃO À EDIÇÃO BRASILEIRA, 15 PREFÁCIO, 17 1 A GOTA D’ÁGUA, 19
Um “momento eureca”, 19
A febre aftosa, 20
A doença da vaca louca, 21
Uma onda gigante, 24
2 AS PRINCIPAIS PREOCUPAÇÕES E OS ÚLTIMOS GRANDES EVENTOS, 27
O desenvolvimento neurológico e intelectual, 28
O desenvolvimento dentário, 31
O aparelho genital masculino em perigo, 32
Embriões masculinos em perigo, 34
Aprendendo com os agricultores, 35
3 A FONTE E O ALVO, 38
O exemplo mais famoso, 38
Uma característica humana, 39
Reabastecendo a cascata, 40
4 SEMELHANÇAS, 41
Antigas metas e ferramentas rudimentares, 41
O desenvolvimento explosivo da agropecuária
industrializada, 43
6
O CAMPONÊS E A PARTEIRA
O desenvolvimento explosivo do parto
industrializado,44
5 ENTUSIASMO, 50
Agricultores e economistas entusiasmados, 50
O entusiasmo de mulheres e obstetras, 53
6 LEMBREM-SE DELES!, 56
Rudolf Steiner, 56
Robert McCarrison, 58
Wilheim Reich, 60
Ina May Gaskin, 60
Frédérick Leboyer, 62
7 MOVIMENTOS PELO PARTO NATURAL E PELA AGRICULTURA ORGÂNICA, 65
Os movimentos pela agricultura biodinâmica e
orgânica, 65
Os movimentos pelo parto natural, 72
8 POR QUAL DESASTRE ESTAMOS ESPERANDO?, 78
Outras analogias, 79
Uma ferramenta útil de previsão, 79
O dia do parto, 80
Antes do parto, 84
Adivinhando, 86
9 A CIENTIFICAÇÃO DO AMOR, 90
Novas questões ao amanhecer de um novo milênio, 90
Abordagens complementares, 91
Um primeiro passo, 91
CONTEÚDO
Os hormônios e o comportamento, 92
As ovelhas e a civilização, 95
Uma situação sem precedentes, 97
10 AS ABELHAS, 99
Maçãs subpolinizadas, 99
A população do solo, 102
Volkswagens, 103
Uma lição adicional, 104
11 ENTRAR NO TRABALHO DE PARTO – UMA ANALOGIA COM O ADORMECER, 107
Rumo a uma redescoberta, 107
Uma analogia, 109
Os limites de uma analogia, 114
12 A PARTICIPAÇÃO DO PAI NO PARTO É PERIGOSA?, 117
Primeira pergunta, 118
Segunda pergunta, 120
Terceira pergunta, 120
13 QUAL O PERIGO DE UMA MÁQUINA FOTOGRÁFICA?, 122 14 RUMO A UMA ATITUDE BIODINÂMICA QUANTO AO PARTO, 125
O que significa ter uma atitude biodinâmica?, 125
Preocupações diferentes, 126
Lidando com as dificuldades, 127
7
8
O CAMPONÊS E A PARTEIRA
15 O FUTURO DA RELAÇÃO ENTRE O OFÍCIO DE PARTEIRA E A OBSTETRÍCIA, 131
A necessidade de ser radical, 131
Rumo à obstetrícia autêntica, 132
Examinando os números, 133
Rumo ao autêntico ofício de parteira, 135
16 TER UM BEBÊ ANTES DE 2032, 139
As sementes de uma consciência generalizada, 139
Diversas formas de nos prepararmos, 140
As doulas num período de transição, 142
A nova natividade, 145
17 SER PARTEIRA OU OBSTETRA ANTES DE 2032, 146
Parteiras inflexíveis, 146
Ainda aprisionados num sistema, 147
Uma atitude biodinâmica e os cuidados
pré-natais, 150
18 ACHANDO UMA SAÍDA PARA O IMPASSE, 155
Há 10.000 anos atrás, 155
Hoje, 158
ÍNDICE ALFABÉTICO, 160 OUTRAS LEITURAS, 170
15
INTRODUÇÃO À EDIÇÃO BRASILEIRA Existem vários motivos pelos quais dou uma importância especial à edição brasileira deste livro, além do fato que, de uma perspectiva européia, o Brasil aparece como um país gigantesco: em termos populacionais, equivale ao Reino Unido, França, e Espanha juntos; em tamanho é continental, sendo maior que a Austrália. O motivo principal é que o Brasil oferece um modelo da industrialização do parto distinto daquele da Europa Ocidental. Na Europa Ocidental, no contexto da medicina socializada, as parteiras não desapareceram, mas se tornaram prisioneiras dos protocolos em departamentos obstétricos cada vez maiores, e sistemas de saúde altamente burocráticos. Nas cidades brasileiras, por outro lado, as parteiras desapareceram, enquanto o número de obstetras aumentou dramaticamente. Foi assim que os obstetras, se tornaram os principais provedores de cuidados e, ao mesmo tempo, técnicos que realizam cesarianas, no lugar de serem peritos bem treinados para situações inéditas e patológicas. A lição que aprendemos ao contrastar o Brasil, a Europa Ocidental e outros países é que, qualquer que seja o caminho seguido e as diferenças visíveis, o parto tem passado em toda parte por um processo de industrialização. Outro motivo do meu interesse especial no Brasil é o surgimento de uma nova consciência em relação à forma pela
16
O CAMPONÊS E A PARTEIRA
qual nascem os bebês e um resgate correspondente do “autêntico” ofício da parteira*. Não foi por acaso que eu visitei este “país do futuro” várias vezes desde o começo do novo século. Em lugares tão distanciados entre si quanto São Paulo, Rio, Fortaleza, Brasília ou Florianópolis, o sucesso das conferências sobre o parto foi em si um sintoma significativo. Parece que em todo o Brasil há um núcleo de pessoas motivadas que são potenciais catalisadores de grandes mudanças. Por fim, as não menos importantes características culturais brasileiras que produziram o samba estão ameaçadas de serem alteradas e reformuladas pelos efeitos a longo prazo da industrialização do parto.
* Na verdade o termo midewifery em inglês é muito mais que a função ou o trabalho / ofício da parteira; engloba também sua habilidade e arte. Authentic midewifery acrescenta o aspecto tradicional e autêntico neste saber e fazer da parteira (NT).
17
PREFÁCIO As próximas páginas representam a minha tentativa de estudar a história do século vinte. Meu ponto de vista é prático. O foco está em dois fenômenos – agropecuária industrializada e parto industrializado – que precisam ser analisados e entendidos para que nos preparemos para os séculos vindouros. Num tempo em que começamos a nos dar conta de que há limites na dominação da natureza, até mesmo o papel da história tem que mudar. Livros de história ainda são dominados pelas relações, particularmente os conflitos, entre grupos humanos. Hoje, a súbita evolução da dicotomia entre a humanidade e as leis da natureza deveria tornar-se central para a história contemporânea. Após um século de agropecuária industrializada e partos humanos industrializados, chegar a uma nova verdade científica requer o desenvolvimento da capacidade de pensar em termos de longo prazo e enxergar muito adiante, futuro adentro. O comentário de Max Planck na sua autobiografia científica é mais pertinente que nunca: “uma nova verdade científica não triunfa convencendo os seus oponentes e fazendo-os ver a luz, mas sim porque seus oponentes finalmente morrem e uma nova geração, que tem familiaridade com ela, cresce.” Por essa razão, eu espero que este livro alcance uma nova geração de pessoas jovens.
19
1
A GOTA D’ÁGUA
Antigamente as epidemias eram consideradas desastres naturais. Hoje, este não é necessariamente o caso. A mudança ocorreu quando os flagelos gêmeos da febre aftosa e da vaca louca devastaram a Grã-Bretanha e outros países europeus. Repentinamente, tais epidemias mobilizaram a opinião pública contra a agropecuária industrializada. Elas abriram o caminho para uma nova fase na história da agricultura, da criação de animais, e de seu manejo. A doença da vaca louca foi apenas a gota d’água.
UM “MOMENTO EURECA” Estes eventos nos proporcionaram a oportunidade de perceber quão grande é a lacuna entre o conhecimento científico e uma consciência que leva à ação. Aprendemos que a humanidade como um todo pode experimentar uma espécie de um “momento eureca”. Os eventos que induzem a uma consciência tão repentina são imprevisíveis. A sincronia é um fator crucial. O processo de industrialização tende a predominar e até a ignorar as leis da natureza, isto até o fatídico dia em que ocorrem catástrofes naturais. Nós estamos agora numa posição da qual podemos observar a agropecuária no seu ponto de transformação. Ao mesmo tempo, urge examinar outros aspectos
20
O CAMPONÊS E A PARTEIRA
da industrialização, tais como o parto industrializado, que tem conseqüências diretas para os seres humanos.
A FEBRE AFTOSA O caso da febre aftosa é significativo. Segundo Abigail Woods, veterinária e perita na história da doença, “a febre aftosa é tão séria para os animais quanto uma forte gripe para os seres humanos”. Até o final do século XIX, ela era comum no Reino Unido, e ainda permanece endêmica em muitos países, inclusive boa parte da África, Ásia e América do Sul. Os peritos por toda parte afirmam, outrossim, que a doença não tem implicações para a cadeia alimentar humana e não representa uma ameaça à saúde pública. Afeta os animais de cascos divididos. A infecção humana já foi descrita, mas apenas alguns casos se confirmaram pelo isolamento do vírus. Nenhuma transmissão pessoa-a-pessoa já se registrou. Tampouco foi feito qualquer levantamento para investigar a escala da infecção humana silenciosa. É evidente que se deve, sempre, ser cauteloso com essa família de doenças virais, uma vez que o vírus em questão tem, teoricamente, potencial para mutação rápida. A raridade da doença, apesar de contato prolongado e próximo entre seres humanos e animais infectados, sugere, porém, que o risco seja remoto. Por que, então, tamanho alvoroço por uma epidemia específica? Na idade de fotos coloridas transmitidas amplamente pela mídia, as imagens da matança de vacas, porcos e ovelhas sadios chocaram boa parte da população, inclusive os agropecuaristas. Este choque em si foi propício para o advento da uma nova consciência. Como escreveu Peter Melchett, um produtor rural
A G O T A D’ Á G U A
de Norfolk, Inglaterra, num jornal nacional britânico: “Muitos de nós esperam que a febre aftosa se mostre como o último suspiro da agropecuária intensiva.” A sincronia é, de fato, o motivo principal pelo qual esta epidemia ficará como marco na história da agropecuária. Pelo fato de que apareceu no mesmo momento em que a doença da vaca louca, ficou evidente que uma política de destruição imediata é favorecida por todo o sistema da agropecuária industrializada. Uma doença que muitas vezes reduz o apetite e causa uma queda na produção de leite é incompatível com o conceito de alta produtividade. A doença da vaca louca construiu a base para uma nova consciência. A febre aftosa foi o fator desencadeador.
A DOENÇA DA VACA LOUCA A doença da vaca louca aparece como a mais preocupante dessas questões. O termo científico “encefalopatia espongiforme bovina” (EEB) indica claramente que esta doença infecciosa causa perfurações múltiplas no cérebro. Ela é um de uma série de distúrbios neurológicos progressivos chamados encefalopatias espongiformes transmissíveis (EET). O distúrbio humano fatal chamado doença de CreutzfeldtJakob (DCJ), também pertence a esta categoria. É compreensível que o pânico tenha se iniciado quando uma nova variante desse mal terrível foi descrita e vinculada de forma incerta à doença da vaca louca. ainda hoje existe uma crença generalizada de que as pessoas podem contrair a variante da doença de Creutzfeldt-Jakob (vDCJ) após comer vacas “loucas”. Enquanto a verdadeira DCJ atinge principalmente os idosos, a vDCJ aparece principalmente entre as pessoas mais jovens. A morte
21
22
O CAMPONÊS E A PARTEIRA
rápida e horrível começa com variações de humor, dormência e movimentos corporais descontrolados. Vítimas da variante da DCJ normalmente morrem quatro meses após o aparecimento de sintomas. Não há tratamento. Existem muitos motivos pelos quais as epidemias da vaca louca criaram um temor tão generalizado. Um é que o relacionamento entre a doença das vacas e a DCJ continua sem esclarecimento. Quanto maior o mistério, maior o medo. O mistério que envolve esta questão é ampliado pelo fato de que os agentes infecciosos causadores dessas doenças degenerativas do sistema nervoso ainda estão cercados de mistério. Os mesmos não são vírus nem micróbios. Eles consistem de proteína e mais nada. São os prions. A teoria dominante atual é de que os prions convertem as moléculas normais de proteína em moléculas perigosas simplesmente induzindo as benignas a modificarem seu formato. São os mais resistentes de todos os agentes infecciosos, capazes de sobreviver em condições que facilmente eliminariam bactérias e vírus. Outro motivo de ansiedade é que nos seres humanos, as EET, com um índice de fatalidade de 100%, supostamente levam muitos anos para manifestar sintomas. Não será fácil para alguns ansiosos comedores de bife se livrarem da sua espada de Dâmocles. A ansiedade ocasionada pelas EET não se restringe apenas à Europa. Está se espalhando para o Japão, onde pelo menos um caso já foi observado. Está se espalhando para países tais como os EUA e Canadá, onde nem a doença da vaca louca nem a vDCJ foram vistas ainda. No entanto, a maioria das con dições consideradas causadoras das epidemias na Grã-Bretanha, também existe no continente norte-americano. Uma epidemia semelhante nos EUA seria ainda mais catastrófica. A Grã-
A G O T A D’ Á G U A
Bretanha, antes da epidemia, tinha aproximadamente 10 milhões de vacas; nos EUA existem mais de 100 milhões. Evitar um desencadeamento americano desta doença pode ser apenas uma questão de sorte. Esse estado latente de ansiedade ficou ampliado quando se revelou que determinadas drogas e vacinas, particularmente aquelas contra pólio, difteria e tétano, têm sido feitas com produtos que poderiam ser portadores da doença da vaca louca. Quais são, na realidade, os riscos de desenvolver uma doença como a vDCJ a partir do uso de material de origem bovina? Uma série de fatores deve ser levada em consideração. Estes incluem a natureza e quantidade de tecido bovino utilizado no processo de produção, bem como a data e o país de origem das vacas das quais os materiais são derivados. O risco tem sido avaliado de acordo com a utilização ou não de soro fetal bovino de origem britânica, caldo de carne do continente europeu, ou materiais de origem bovina dos EUA. De acordo com os cálculos mais pessimistas, ao se vacinarem quatro milhões de crianças, ou seja, todo o segmento de recém-nascidos dos EUA, os níveis de risco corresponderiam ao surgimento de um caso de vDCJ a cada 5.000 anos. Até hoje, ninguém pode avaliar seriamente o risco de contrair vDCJ depois de comer carne ou derivados de uma vaca “louca”. A manifestação da condição possivelmente envolve uma susceptibilidade genética que ainda não foi bem compreendida. Já foi afirmado que os pacientes com vDCJ vistos até hoje provavelmente têm uma disposição genética para um período curto de incubação. Portanto, devemos esperar muito mais casos. Na verdade, hoje parece que o número de casos é muito menor do que se esperaria de uma fonte alimentícia.
23
24
O CAMPONÊS E A PARTEIRA
Ao mesmo tempo, sabemos que, de acordo com testes feitos com ovelhas e cabras naturalmente infectadas com scrapie* clínico, os percursos mais efetivos para a transmissão de EETs são aqueles que requerem injeção direta. O mais eficaz é o intracerebral. O menos eficaz é o de ingestão oral. Sabemos também, que, numa base de grama para grama, cérebro de ovelha é 100 milhões de vezes mais infeccioso que músculo de ovelha. Daí, podemos supor que o mesmo ocorre com os bovinos. Portanto, se o cérebro bovino contém 10 milhões de doses infecciosas por grama, então podemos estimar que um bife contém 0,1 dose infecciosa por grama. É difícil, porém necessário, pensar em termos de magnitude.
UMA ONDA GIGANTE O espaço que a doença da vaca louca ocupou na mídia por mais de uma década é provavelmente desproporcional à ameaça real que ela representa para a saúde da humanidade, particularmente para as gerações não-nascidas. Porém, o estado geral de ansiedade causado tem sido providencial na criação de uma nova consciência. Esta consciência repentina se dirigiu universalmente à agropecuária industrializada. A agropecuária industrializada
* Uma doença do sistema nervoso que ocorre em ovelhas e cabras. é caracterizada por sério prurido, debilidade e falta de coordenação muscular e é fatal. Anteriormente julgada hereditária, hoje é tida como causada por um vírus filtrável (NT).
A G O T A D’ Á G U A
foi alvo direto até dos relatórios oficiais mais importantes. Um relatório britânico a ministros britânicos envolvidos com a questão concluiu que “a EEB se tornou uma epidemia como conseqüência de uma prática agropecuária intensiva _ a reciclagem de proteína animal na alimentação de ruminantes. Esta prática, não questionada durante décadas, tornou-se uma receita para o desastre”. Logo depois, surgiu de repente a epidemia da febre aftosa. Chegara a hora de virar outra página na história da agropecuária. Uma consciência tão explosiva teve o efeito de uma onda gigante. Enquanto os açougueiros se mantinham mal-humorados, os supermercados presenciavam de um dia para o outro, um aumento nas vendas de massas, arroz e peixe. Tanto na mídia como em conversas particulares, muitas questões dizendo respeito à agropecuária industrializada foram repensadas de uma só vez. Apareceram, de repente na mídia, novos informes sobre todas as raças dos animais de criação, desde bovinos e porcos a ovelhas e cavalos. As excepcionais experiências feitas por Albert Howard na Índia, no início do século XX, de repente foram salvas do esquecimento. Howard introduziu um regime visando à promoção da saúde geral e do bem-estar de vários grupos de bois. Ele expôs estes animais saudáveis a um leque de doenças, todas endêmicas na Índia naquele momento. Os bois tiveram contato direto, cara a cara com animais portadores da febre aftosa. Uma vez que não houve infecção, Howard conseguiu mostrar que “epidemias de febre aftosa são uma clara indicação de más práticas na agropecuária”. No contexto do ano 2001, quando se revelou que uma doença misteriosa havia matado centenas de potros pelas campinas Bluegrass do Kentucky, nos EUA, causando perdas financeiras gigantescas no capital mundial da criação de
25
26
O CAMPONÊS E A PARTEIRA
cavalos de corrida, um perito em epidemiologia eqüina foi rápido em enfatizar que a doença nada tinha a ver com EEB ou com a febre aftosa. Matérias sobre a criação e doenças de aves se proliferaram. Diversos aspectos do cultivo agrícola, horticultura e fruticultura tornaram-se tópicos atuais. Soltaram-se as línguas sobre as ameaças associadas a pesticidas, herbicidas, fungicidas e fertilizantes. A ordem do dia era: “Coma orgânico”.
131
15 O FUTURO DA RELAÇÃO ENTRE O OFÍCIO DE PARTEIRA E A OBSTETRÍCIA A NECESSIDADE DE SER RADICAL Qualquer mudança para uma atitude biodinâmica precisa ser, a rigor, radical: precisa abordar o problema na sua raiz. Na raiz do problema está o controle médico do parto, que é a variante moderna do controle cultural. O controle médico é uma corrupção do papel da medicina. O papel da medicina em geral – e da obstetrícia em particular – originalmente se limita ao tratamento de situações patológicas ou anormais. Não inclui o controle de processos fisiológicos. Durante o século XX, a gravidez e o parto se tornaram pela primeira vez o domínio da medicina. Foi assim que uma maravilhosa operação de resgate – a saber, a cesariana – se tornou uma das maneiras mais comuns de se nascer. Foi assim que uma droga que era útil para tratar anomalias na evolução do trabalho do parto – a ocitocina sintética – tornou-se a base do “manejo ativo do trabalho de parto”. Foi assim também que uma forma eficaz de tratar uma dor patológica – a anestesia peridural – tornou-se compatível com o termo “parto normal”. O controle médico do parto tem reforçado uma incapacidade generalizada de se pensar a longo prazo e em termos de civilização, calando as vozes das mulheres que sentiam uma
132
O CAMPONÊS E A PARTEIRA
atração visceral pelas alternativas ao parto industrializado. Ele explica a defasagem entre as exigências expressas por determinadas gestantes e o ponto de vista de grande número de profissionais com formação médica: aqueles que não conseguem entender por que ainda existem mulheres que querem passar pela dor e o desgaste do trabalho de parto na idade da disponibilidade da cesariana por opção, da anestesia peridural e da ocitocina intravenosa. Hoje em dia qualquer mudança na direção de uma atitude biodinâmica leva primeiro a uma reconsideração total do papel da obstetrícia e o da função do obstetra.
RUMO À OBSTETRÍCIA AUTÊNTICA Basta examinarmos alguns dados para entender por que os obstetras da idade industrializada não podem ser peritos confiáveis em situações inusitadas, estranhas ou patológicas. Tomemos os EUA como nosso exemplo, uma vez que vem precedendo outros países no processo de adoção do parto industrializado. Nos EUA, o número de obstetras é em torno de 36.000, para um número anual de partos em torno de 3.600.000. Isto implica que um obstetra típico é responsável por uns 100 partos por ano. A maioria dos obstetras modernos, portanto, são propiciadores de cuidados primários, em vez de médicos especializados em situações patológicas ou inusitadas. Eles têm uma perigosa falta de experiência. Por exemplo, um obstetra americano típico tem a experiência de aproximadamente um parto de gêmeos por ano. Ele precisa de cinco anos de prática para se deparar com uma distocia de ombro (quando o bebê está
O FUTURO DA RELAÇÃO ENTRE O OFÍCIO DE PARTEIRA E A OBSTETRÍCIA
preso na altura dos ombros). Ele precisa de dez anos de prática para ver uma placenta prévia (o bebê não pode sair porque a placenta obstrui o caminho), e uma carreira inteira para ver uma eclâmpsia de verdade. No dia em que ele tem que fazer uma cesárea por causa de uma apresentação transversa, tem que adaptar sua técnica após se reportar aos livros-texto, pois é uma situação rara que ele provavelmente nunca encontrou. Na maternidade de um hospital francês, eu era responsável por cerca de 1000 partos por ano, com seis parteiras. Eu tinha a sensação que era o número certo para manter a experiência suficiente. O pré-requisito para a substituição do parto sob controle médico por uma atitude biodinâmica é uma redução dramática no número de obstetras. Os peritos altamente treinados do futuro não terão tempo para controlar cada parto. Estarão a serviço das parturientes e das parteiras. Surgirão conforme a demanda.
EXAMINANDO OS NÚMEROS Uma redução dramática no número de obstetras precisa, sem dúvida, ser equilibrada por um aumento apropriado do número de parteiras. Isto significa que depois da fase de consciência haverá a fase de transição. Devido ao fato de que esta é, em grande extensão, uma questão de números, uma proporção diferente de parteiras para obstetras não pode ser alcançada de um dia para o outro. O período de transição pode levar algumas décadas. A transição deverá ser mais fácil e mais rápida em países onde já existe uma quantidade de parteiras relativamente
133
134
O CAMPONÊS E A PARTEIRA
grande e uma quantidade moderada de obstetras. Nota-se que tais países são aqueles com os melhores dados possíveis. Por exemplo, na Suécia, há em torno de 6.000 parteiras para aproximadamente 9.000.000 de habitantes (em comparação com 5000 parteiras-enfermeiras formadas para todos os EUA!) e um número comparativamente pequeno de obstetras. A Suécia tem os melhores resultados de partos no mundo ocidental, com um índice moderado de cesáreas que se manteve bastante estável, em torno de 11%, por quase 20 anos. Na Holanda, 80% das parteiras são independentes. Quando uma mulher está grávida, seu reflexo muitas vezes é o de visitar uma parteira. O papel da parteira é o de decidir, durante a gestação e o parto, se ela precisa dos conselhos ou dos serviços de um médico. No entanto, ela não tem que responder a nenhum médico. Durante o trabalho de parto, a mãe e a parteira podem decidir ficar em casa e o índice de partos domiciliares é em torno de 30% (Ele é abaixo de dois por cento em todos os outros países industrializados.) Menos que cinco por cento das mulheres holandesas atualmente precisam de uma anestesia peridural durante o trabalho de parto e o índice de cesáreas, de cerca de dez por cento, é o mais baixo na Europa Ocidental. No Japão, um país com muitas parteiras, nunca se desenvolveram maternidades gigantescas com milhares de partos por ano _ um dos aspectos típicos do parto industrializado. A quantidade média de partos por ano numa maternidade é de cerca de 500. O Japão tem o menor “índice de mortalidade perinatal” no mundo (número de bebês que passaram mais de seis meses no útero e morreram com menos de uma semana de nascidos), com um número moderado de cesarianas e um índice de anestesias peridurais ainda mais baixo que na Holanda.
O FUTURO DA RELAÇÃO ENTRE O OFÍCIO DE PARTEIRA E A OBSTETRÍCIA
Estas comparações entre países inspiram muitos comentários e perguntas. Indicam claramente que, de modo geral, os partos são mais fáceis nos países onde o médico é afastado. No que se diz respeito ao parto, há uma disparidade tão grande entre países com padrões de vida equivalentes, que perguntas inevitáveis serão levantadas no futuro próximo. Os pesquisadores terão de olhar a evolução de características culturais em relação a como nascem os bebês. Podemos imaginar, por exemplo, porque as ruas de Amsterdã são mais seguras que as de Paris, e porque a Holanda tem os menores índices de aborto, de encarceramento, e de gravidez de adolescentes no Ocidente, com taxas relativamente baixas de vício em drogas, apesar da venda aberta de maconha e haxixe. Tais comparações também deveriam ajudar a perceber que a discrepância entre os países tende a se aprofundar, caso soluções radicais sejam perigosamente adiadas. Nos países onde há uma pequena quantidade de parteiras e, portanto, um controle médico pleno do parto, muitas parteiras nasceram e deram à luz num ambiente industrializado. Elas não têm uma experiência pessoal, visceral do parto em condições fisiológicas. Isto leva a perguntas sobre a natureza do saber e da prática autênticos da parteira.
RUMO AO AUTÊNTICO OFÍCIO DE PARTEIRA A mudança para um saber e uma prática autênticos de parteira é mais que uma questão de números. Implica numa boa compreensão das razões para o trabalho da parteira. Precisamos voltar constantemente às perguntas inspiradas por considerações fisiológicas: como pode uma parturiente se sentir segura sem
135
136
O CAMPONÊS E A PARTEIRA
se sentir observada ou julgada? A presença de uma mãe pode reconciliar tais necessidades. Na época do parto sob controle médico, a parteira é percebida como uma enfermeira-obstetra, ou seja, membro de uma equipe médica. Uma parteira autêntica deve ser percebida em primeiro lugar como figura materna. Isso leva a uma pergunta central e inevitável na aurora da época pósindustrializada: como selecionar as mulheres que entrarão para as escolas de formação de parteiras? A política que transformará a maneira pela qual nascem os bebês é inspirada por uma observação simples que cabe em considerações fisiológicas: se uma mulher teve seu(s) próprio(s) bebê(s) por via vaginal sem medicação, está garantido que sua presença num parto não irá atrapalhar a evolução do trabalho deste parto. O aspecto crítico das medidas extremas às quais precisamos recorrer é o modo de seleção das alunas para a formação de parteira. Devemos reconsiderar radicalmente os critérios em uso hoje. O pré-requisito para entrar em tal escola deverá ser uma experiência de parto não-medicado. Lembremos que na maioria das sociedades tradicionais uma parteira era uma mãe ou avó que tinha tido muitos filhos. As mulheres que tinham muitos filhos normalmente eram aquelas que tinham partos fáceis. Tal programa, fácil de resumir numa frase, com certeza enfrentará muitas dificuldades e terá de superar obstáculos previsíveis. O primeiro grande obstáculo será a reação típica à idéia de que uma parteira autêntica deve ter tido a experiência de um parto “normal”. As pessoas reagem imediatamente, afirmando que conhecem parteiras maravilhosas que não são mães. Têm razão. Conheço muitas delas, e eu mesmo tenho prática como parteiro domiciliar embora, por motivos óbvios, nunca serei mãe. O ponto é que estamos nos preparando para o futuro e
O FUTURO DA RELAÇÃO ENTRE O OFÍCIO DE PARTEIRA E A OBSTETRÍCIA
estamos pensando em termos da civilização. Ao selecionar as mulheres que tiveram uma experiência positiva do parto de seu(s) próprio(s) filho(s), oferecemos uma garantia que não pode ser fornecida por qualquer outro modo de seleção. Os responsáveis pela seleção de alunos para a formação de parteiras devem superar seus próprios conflitos interiores. Devem aprender a enxergar o futuro. Também devem superar muitas doutrinas anteriores e idéias recebidas. Escutei vários instrutores de parteiras européias _ inclusive na Holanda _ afirmarem que preferem aceitar jovens estudantes que não estão assumindo uma família, e que sejam bastante maleáveis antes de ter uma experiência pessoal da vida. Colocam que a prática da parteira é incompatível com a maternidade. Todas essas contradições desaparecerão quando existir um número bem maior de parteiras e o trabalho delas se tornar, em conse-qüência, uma ocupação em tempo parcial. É verdade que as jovens que têm um histórico limitado e padronizado podem se orgulhar mais facilmente de serem técnicas altamente especializadas. Supõe-se que uma parteira autêntica deva ser antes de tudo uma “mulher sábia” (sage-femme). Ser uma mulher sábia é o oposto de ser uma técnica de visão estreita. Após décadas de parto industrializado, haverá outro obstáculo para a adoção destes critérios de seleção radicalmente novos. Precisamos nos dar conta de que, em muitos países, o número que mulheres que tiveram uma experiência positiva de parto vaginal não-medicado já é insignificante. É precisamente nesses lugares que há uma necessidade urgente de implantar e desenvolver muitas escolas de formação de parteiras e de detectar muitas parteiras potencialmente autênticas. Para poder romper o círculo vicioso, será necessária uma política que encoraje insistentemente as poucas mulheres que deram à luz
137
138
O CAMPONÊS E A PARTEIRA
sozinhas a se tornarem parteiras, pelo menos durante uma determinada fase da sua vida. Estas considerações sobre o futuro da relação entre a parteira e o obstetra subverterão a ordem das principais preocupações que a humanidade terá de enfrentar no futuro próximo. Não é comum dar tanta importância à seleção de estudantes para a formação de parteiras, mas também não é usual afirmar que aqueles que são responsáveis pela seleção das futuras parteiras provavelmente terão maiores responsabilidades que os líderes políticos mais conhecidos no que diz respeito ao futuro da nossa civilização.