2 • JUSTIÇA & CIDADANIA • NOVEMBRO 2008
EDIÇÃO 100 • novembro de 2008
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OUTRAS QUESTÕES POLÊMICAS: POLÍTICA E COSTITUIÇÃO
ARTIGO 290 DO CÓDIGO PENAL MILITAR E A LEI Nº 11.343/06
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Foto de capa: tntalk.wordpress.com ORPHEU SANTOS SALLES EDITOR TIAGO SANTOS SALLES DIRETOR EXECUTIVO DAVID RIBEIRO SANTOS SALLES Diretor jurídico ERIkA BRANCO SECRETÁRIA DE REDAÇÃO DIOGO TOMAZ DIAGRAMAÇÃO EDITORA JUSTIÇA & CIDADANIA AV. NILO PEÇANHA, 50/GR.501, ED. DE PAOLI RIO DE JANEIRO - RJ - CEP: 20020-906 TEL./FAX (21) 2240-0429 SUCURSAIS SÃO PAULO RAPHAEL SANTOS SALLES AV. PAULISTA, 1765 / 13°ANDAR SÃO PAULO - SP - CEP: 01311-200 TEL. (11) 3266-6611 PORTO ALEGRE DARCI NORTE REBELO RUA RIACHUELO, 1038 / SL.1102 ED. PLAZA FREITAS DE CASTRO CENTRO - Porto Alegre - RS CEP: 90010-272 TEL. (51) 3211-5344 SALVADOR FREDERICO DINIZ GONÇALVES RUA BARÃO DE ITAPUÃ, 60 / CONJ. 301 CENTRO EMPRESARIAL PORTO CENTER Salvador - BA - CEP: 40140-060 TEL. (71) 3264-3754 BRASÍLIA ARNALDO GOMES SCN - Q.1 – Bl. E / Sl. 715 EDIFÍCIO CENTRAL PARK BRASÍLIA - DF - CEP: 70711-903 TEl. (61) 3327-1228/29 CORRESPONDENTE ARMANDO CARDOSO TEL. (61) 9674-7569
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As Reformas São Urgentes
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O DESAFIO nA GESTÃO DE PESSOAS NO PODER JUDICIÁRIO
SUMÁRIO
CONSELHO EDITORIAL Alvaro Mairink da Costa ANDRÉ FONTES Antonio Carlos Martins Soares Antônio souza prudente Arnaldo Esteves Lima arnaldo Lopes süssekind aurélio wander bastos Bernardo Cabral carlos antônio navega carlos ayres britTo Carlos mário Velloso CESAR ASFOR ROCHA DALMO DE ABREU DALLARI darci norte rebelo denise frossard Edson CARVALHO Vidigal eLLIS hermydio FIGUEIRA Enrique ricardo lewandowski Eros Roberto Grau Fábio de salles meirelles fernando neves Francisco Viana Francisco Peçanha Martins Frederico José Gueiros GILMAR FERREIRA mENDES Humberto Gomes de Barros Ives Gandra martins Jerson Kelman Joaquim Alves Brito josé augusto delgado JOSÉ CARLOS MURTA RIBEIRO José Eduardo carreira Alvim luis felipe Salomão Manoel CarpeNa Amorim Marco Aurélio Mello Massami Uyeda MAURICIO DINEPI maximino gonçalves fontes nEY PRADO Paulo Freitas Barata Sergio Cavalieri filho Sylvio Capanema de Souza thiago ribas filho
Tortura é crime insuscetível de anistia
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esperança do mundo
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Revolução da Esperança
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CONSIDERAÇÕES SOBRE A REFORMA TRIBUTÁRIA
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aplicação do artigo 475-j do Código de Processo Civil
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PROGRESSOS E DESAFIOS NA ÁREA DA SAÚDE NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
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CARTÉIS E CONSUMIDOR
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DAS LIMINARES E DA ANTECIPAÇÃO DE TUTELA
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HONORÁRIOS DE SUCUMBÊNCIA NA JUSTIÇA DO TRABALHO
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1964 – A MALFADADA ODISSÉIA NO NAVIO PRESÍDIO RAUL SOARES III (FINAL)
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Tortura é crime insuscetível de anistia
N
ão é porque o Editor esteve preso e foi agredido durante a Ditadura Militar – mesmo porque as prisões e violências sofridas não se concretizaram em tortura física –, que vê consolidada a firme e inarredável convicção, albergada pelo texto constitucional de 1988, de que a prática da tortura é crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia. Por outro lado, cabe destacar que não foi o Exército, a Marinha e a Aeronáutica, como Instituições respeitáveis, que procederam aos nefandos crimes e atos de tortura. Os membros dessas três Armas que se tornaram torturadores, são excrescências que ocasionalmente usavam fardas e as emporcalharam, não constituindo portanto, uma nódoa a aviltar todas as Instituições. Da mesma forma, também as entidades representativas das três Instituições, o Clube Militar, o Clube Naval e o Clube da Aeronáutica – que tantas participações cívicas desenvolveram na vida republicana –, estão imunes de qualquer responsabilidade sobre os problemas e mazelas causados pelos torturadores. É também de uma oportunidade ímpar a transcrição de um parágrafo do Manifesto da ABI – Associação Brasileira de Imprensa, assinada por seu presidente Maurício Azêdo, pelo presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Cezar Britto e pela Sra. Lúcia Stumpf, presidente da União Nacional dos Estudantes (Une), divulgado em 28.08.2008, em Brasília: “O debate que está posto não significa afronta às Forças Armadas enquanto instituição nacional, mas sim o prestígio de sua corporação frente àqueles que não respeitaram nem ao menos as regras do próprio regime ditatorial que proibia a prática da tortura e comprometeram a sua imagem.” 4 • JUSTIÇA & CIDADANIA • NOVEMBRO 2008
Assim como a infâmia e a vilania praticadas por um membro de qualquer Instituição não atingem toda a entidade, os atos e ações abomináveis praticados isoladamente por indivíduos desprovidos de moral, caráter e dignidade também não atingem a Instituição. Ao contrário senso, um estuprador, um seqüestrador, um incendiário e tantos desvairados que estão por aí perigosos e soltos, não podem, apenas por pertencerem ao gênero humano, contaminar e descriminar toda a humanidade. Há que se definir e separar o joio do trigo! As torturas e os torturadores É preciso remontar ao passado não muito longínquo, durante o governo do presidente Ernesto Geisel, quando certa manhã o aparelho de comunicação Policial Militar, fez publicar em todos os jornais uma foto de um “comunista que havia se enforcado numa cela”. O infeliz estava amarrado pelo pescoço com uma corda fixada em uma janela, encostado à parede e com as pernas dobradas rentes ao chão da cela. Era o jornalista Vladimir Herzog, funcionário da TV Cultura de São Paulo, que, intimado para prestar declarações nas dependências do DOI-Codi, havia se apresentado e sofrido durante os interrogatórios incríveis sofrimentos, violentas torturas que provocaram lancinantes gritos de dor, ouvidos por vários presos que se encontravam nas celas vizinhas, entre os quais o jornalista Rodolfo Konder, também barbaramente torturado, hoje Conselheiro da ABI. A afronta com que os responsáveis pelas horripilantes desgraças que ocorreram nas dependências do DOI-Codi, os seus diretores Carlos Alberto Brilhante Ustra e Audir Santos Maciel, mandando à publicação a foto de Vladimir Herzog,
Foto: Sandra Fado
na tétrica posição, ajoelhado e com a corda no pescoço pretendendo confundir e subtrair a verdade, induzindo o assassinato praticado com a tortura como se fosse suicídio – na vâ tentativa de enganar e iludir a opinião pública, como se esta fosse constituída de imbecis –, representou uma inominável farsa preparada por facínoras detentores do mando, que exerciam na ocasião, por delegação da Ditadura, o poder absoluto de dispor da vida de quem lhes caísse nas garras, fossem inocentes ou acusados de oposição ao governo. As violentas torturas seguidas de mortes ocorridas no DOI-Codi, de São Paulo, de responsabilidade criminosa dos citados Ustra e Maciel, causaram tamanha e tão péssima repercussão que, após as mortes do jornalista Herzog e do metalúrgico Manuel Fiel Filho, o presidente Ernesto Geisel, para dar uma satisfação à opinião pública, demitiu o comandante do II Exército como responsável administrativo daquele órgão militar. As milhares de vítimas de tortura durante os 20 anos da Ditadura Militar, muitos deles mortos e desaparecidos, jogados em alto mar ou enterrados em locais desconhecidos e inacessíveis, como o ex-deputado federal Rubens Paiva, seqüestrado, morto e cujo corpo sumiu. Igualmente desaparecidos os 70 guerrilheiros do Araguaia, ativistas do PCdoB, cujas famílias ajuizaram ação encabeçada pela mãe do guerrilheiro carioca Guilherme Lund, já com sentença transitada em julgado da juíza federal Solange Salgado, de Brasília, que determinou que a União informasse o local do sepultamento, para que se fizesse o traslado dos ossos e fornecesse os documentos para os atestados de óbitos, o que, entretanto, decorridos 4 anos ainda não foram entregues. As barbaridades e suplícios aplicados aos presos políticos se estenderam a quase todas as unidades militares no país, em
tentativas de obterem informações, denúncias e confissões, e, quando não satisfeitos com as respostas, eram aplicadas as formas mais torpes de tortura, pouco importando aos algozes torturadores se o infeliz era inocente ou não. A vasta literatura produzida sobre as torturas que praticaram durante o período infamante da Ditadura, afronta a dignidade da humanidade e não deve nem pode ser esquecida, para que os crimes escabrosos e definidos como hediondos que aconteceram, nunca mais venham a acontecer neste país. Assim, e na forma como a cláusula pétrea do inciso XLIII, do artigo 5º, da Constituição Federal, considera a prática de tortura insuscetível de graça ou anistia, e o inciso XLIV constitui e configura como crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados civis ou militares, torna-se difícil entender e aceitar a anistia para os torturadores, bem como, não considerar imprescritível os crimes praticados pelos grupos militares que operaram com selvageria nos DOICodi, instalados nos vários estabelecimentos militares do país. Como a questão é constitucional e já está posta em apreciação, cabe ao Supremo Tribunal Federal, intérprete da Carta Magna, decidir e pôr fim à celeuma.
Orpheu Santos Salles Editor 2008 NOVEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 5
esperança do
mundo
DA REDAÇÃO Mais que uma disputa eleitoral e uma vitória, a eleição de Barack Obama, representa a mensagem deixada pelo povo dos Estados Unidos da América de uma auréola em torno do universo a mostrar para a humanidade o renascer da esperança, tornando o dia 4 de novembro, sem exagero, um dia inesquecível para o resto do mundo, que aspira a volta da paz, do bom senso, do uso do raciocínio e da lógica, para esconder e suplantar os horrores, desgraças e malvadezas que sacrificaram e enlutaram o mundo nestas últimas décadas. Só o fato da mais poderosa e preconceituosa nação do mundo ter conseguido suplantar o atavismo do racismo e superar a segregação racial – inclusive nos estados mais recalcitrantes, onde a vitória de Obama teve expressivos resultados, consigna que a barreira do ódio tombou definitivamente. A vitória de Obama ressoa pela sua prédica no coração da humanidade, com o clamor do mais belo episódio expresso durante a sua caminhada: “– Vencemos todos!’’ A coincidência de um candidato culto, inteligente, socialmente bem estruturado, com uma oratória coordenada e ponderada, propiciou a radical mudança na opinião do povo branco americano, elegendo um negro, Presidente dos Estados Unidos da América. O presidente Barack Obama recebeu junto com os aplausos e a consagração dos americanos a consagração do mundo! O discurso que publicamos, pronunciado logo após a sua vitória, reflete o humanismo e o propósito de um estadista. Oxalá Deus o ajude a realizar os seus sonhos, para que a esperança que infundiu no mundo se concretize!
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“
Oi, Chicago. Se alguém ainda duvida que a América é um lugar onde tudo é possível, ainda pergunta se o sonho dos pioneiros ainda estão vivos em nossos tempos, ainda questiona o poder da nossa democracia, esta noite é sua resposta. É a resposta das filas que cercaram escolas e igrejas em números que essa nação nunca havia visto. Das pessoas que esperaram três horas e quatro horas, muitas pela primeira vez em suas vidas, porque acreditavam que desta vez precisava ser diferente, que as suas vozes podiam fazer diferença. É a resposta de jovens e idosos, ricos e pobres, democratas e republicanos, negros, brancos, hispânicos, asiáticos, índios, gays, heterossexuais, deficientes e não-deficientes. Americanos que enviaram uma mensagem ao mundo de que nós nunca fomos somente uma coleção de indivíduos ou uma coleção de Estados vermelhos e azuis. Nós somos, e sempre seremos, os Estados Unidos da América. É a resposta que recebeu aqueles que ouviram – por tanto tempo e de tantos – para serem cínicos, medrosos e hesitantes sobre o que poderiam realizar para que coloquem a mão no arco da história e torçam-no uma vez mais, na esperança de dias melhores. Faz muito tempo, porém, nesta noite, por causa do que fizemos nesse dia de eleição, nesse momento decisivo, a mudança chegou à América. Um pouco mais cedo nesta noite, recebi um telefonema extraordinariamente gracioso do senador McCain. Ele lutou muito, e por muito tempo, nesta campanha. Ele lutou ainda mais, e por ainda mais tempo, por esse país que ele ama. Ele enfrentou sacrifícios pela América que a maioria de nós nem pode começar a imaginar. Nós estamos melhores graças ao serviços desse líder bravo e altruísta. Eu o parabenizo e parabenizo a governadora Palin por tudo que eles conquistaram. Eu estou ansioso por traba-
Foto: www.washingtontimes.com
lhar com eles e renovar a promessa dessa nação nos próximos meses. Eu quero agradecer meu parceiro nessa jornada, um homem que fez campanha com o coração e que falou para os homens e mulheres com os quais cresceu, nas ruas de Scranton, e com os quais andou de trem a caminho de Delaware, o vicepresidente eleito dos EUA, Joe Biden. E eu não estaria aqui nesta noite sem a compreensão e o incansável apoio da minha melhor amiga dos últimos 16 anos, a rocha da nossa família, o amor da minha vida, a próxima primeira-dama dessa nação, Michelle Obama. Sasha e Malia (filhas de Obama) eu as amo mais do que vocês podem imaginar. E vocês mereceram o cachorrinho que irá morar conosco na nova Casa Branca. E, embora ela não esteja mais entre nós, eu sei que minha avó está assistindo ao lado da família que construiu quem eu sou. Eu sinto falta deles nesta noite. Eu sei que minha dívida com eles está além de qualquer medida. Para minha irmã Maya, minha irmã Alma, todos os meus irmãos e irmãs, muito obrigado por todo o apoio que me deram. Sou grato a eles. E agradeço ao meu coordenador de campanha, David Plouffe, o herói anônimo da campanha, que construiu o que há de melhor – a melhor campanha política, penso, da história
dos EUA. Ao meu estrategista-chefe David Axelrod, que tem sido um companheiro em todos os passos do caminho. À melhor equipe de campanha reunida na história da política: você fizeram isso acontecer, e eu serei sempre grato pelo que vocês sacrificaram para conseguir. Mas, acima de tudo, eu nunca esquecerei a quem essa vitória realmente pertence. Isso pertence a vocês. Isso pertence a vocês. Eu nunca fui o candidato favorito na disputa por esse cargo. Nós não começamos com muito dinheiro ou muitos endossos. Nossa campanha não nasceu nos corredores de Washington. Nasceu nos jardins de Des Moines, nas salas de Concord e nos portões de Charleston. Foi construída por homens e mulheres trabalhadores que cavaram as pequenas poupanças que tinham para dar US$ 5, US$ 10 e US$ 20 para essa causa. A campanha cresceu com a força dos jovens que rejeitaram o mito de apatia da sua geração e deixaram suas casas e suas famílias por empregos que ofereciam baixo salário e menos sono. Ela tirou suas forças de pessoas não tão jovens assim que bravamente enfrentaram frio e calor para bater às portas de estranhos e dos milhões de americanos que se voluntariaram e se organizaram e provaram que, mais de dois séculos mais tarde, um governo do povo, pelo povo e para o povo não desapareceu 2008 NOVEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 7
da Terra. Essa é a nossa vitória. E eu sei que vocês não fizeram isso só para ganhar uma eleição. E eu sei que vocês não fizeram tudo isso por mim. Vocês fizeram isso porque entendem a grandiosidade da tarefa que temos pela frente. Podemos comemorar nesta noite, mas entendemos que os desafios que virão amanhã serão os maiores de nossos tempos – duas guerras, um planeta em perigo, a pior crise financeira do século. Enquanto estamos aqui nesta noite, nós sabemos que há corajosos americanos acordando nos desertos do Iraque e nas montanhas do Afeganistão para arriscar suas vidas por nós. Há mães e pais que ficam acordados depois de os filhos terem dormido se perguntando como irão pagar suas hipotecas ou o médico ou poupar o suficiente para pagar a universidade de seus filhos. Há novas energias para explorar, novos empregos para criar, novas escolas para construir, ameaças para enfrentar e alianças para reparar. O caminho será longo. Nossa subida será íngreme. Nós talvez não cheguemos lá em um ano ou mesmo em um mandato. Mas, América, nunca estive mais esperançoso de que chegaremos lá. Eu prometo a vocês que nós, como pessoas, chegaremos lá. Haverá atrasos e falsos inícios. Muitos não irão concordar com todas as decisões ou políticas que eu vou adotar como presidente. E nós sabemos que o governo não pode resolver todos os problemas. Mas eu sempre serei honesto com vocês sobre os desafios que enfrentar. Eu vou ouvir vocês, especialmente quando discordarmos. E, acima de tudo, eu vou pedir que vocês participem do trabalho de refazer esta nação, do jeito que tem sido feito na América há 221 anos – bloco por bloco, tijolo por tijolo, mão calejada por mão calejada. O que começamos 21 meses atrás no inverno não pode terminar nesta noite de outono. Esta vitória, isolada, não é a mudança que buscamos. Ela é a única chance para fazermos essa diferença. E isso não vai acontecer se voltarmos ao modo como as coisas eram. Isso não pode ocorrer com vocês, sem um novo espírito de serviço, um novo espírito de sacrifício. Então exijamos um novo espírito de patriotismo, de responsabilidade, com o qual cada um de nós irá levantar e trabalhar ainda mais e cuidar não apenas de nós mesmos mas também uns dos outros. Lembremos que, se essa crise financeira nos ensinou uma coisa, foi que não podemos ter uma próspera Wall Street enquanto a Main Street sofre. Nesse país, nós ascendemos ou caímos como uma nação, como um povo. Resistamos à tentação de voltar ao bipartidarismo, à mesquinhez e à imaturidade que envenenou nossa política por tanto tempo. Lembremos que foi um homem deste Estado que primeiro carregou a bandeira do Partido Republicano à Casa Branca, um partido fundado sobre valores de autoconfiança, liberdade individual e unidade nacional. Esses são valores que todos compartilhamos. E enquanto o Partido Democrata obteve uma grande vitória nesta noite, isso ocorre com uma medida de humildade e de determinação para curar as fissuras que têm impedido nosso progresso. Como o ex-presidente Abraham Lincoln (1861-1865) afirmou para uma nação muito mais dividida que 8 • JUSTIÇA & CIDADANIA • NOVEMBRO 2008
a nossa: Nós não somos inimigos, e sim amigos. A paixão pode ter se acirrado, mas não pode quebrar nossos laços de afeição. E àqueles americanos cujo apoio eu ainda terei que merecer, eu talvez não tenha ganho seu voto hoje, mas eu ouço suas vozes. E eu preciso de sua ajuda. Eu serei seu presidente também. E a todos aqueles que nos assistem nesta noite, além das nossas fronteiras, de parlamentos e palácios, àqueles que se reúnem ao redor de rádios, nas esquinas esquecidas do mundo, as nossas histórias são únicas, mas o nosso destino é partilhado, e uma nova aurora na liderança americana irá surgir. Àqueles que destruiriam o nosso mundo: nós os derro taremos. Àqueles que buscam paz e segurança: nós os apoiamos. E a todos que questionaram se o farol da América ainda ilumina tanto quanto antes: nesta noite nós provamos uma vez mais que a verdadeira força da nossa nação vem não da bravura das nossas armas ou do tamanho da nossa riqueza mas do poder duradouro de nossos ideais: democracia, liberdade, oportunidade e inabalável esperança. Esse é o verdadeiro talento da América: a América pode mudar. Nossa união pode ser melhorada. O que já alcançamos nos dá esperança em relação ao que podemos e ao que devemos alcançar amanhã. Essa eleição teve muitos ‘primeiros’ e muitas histórias que serão contadas por gerações. Mas há uma que está em minha mente nesta noite,
Foto: chicago.about.com
sobre uma mulher que votou em Atlanta. Ela seria como muitos dos outros milhões que ficaram em fila para ter a voz ouvida nessa eleição não fosse por uma coisa: Ann Nixon Cooper tem 106 anos. Ela nasceu apenas uma geração após a escravidão; uma época na qual não havia carros nas vias nem aviões nos céus; quando uma pessoa como ela não podia votar por dois motivos – porque era mulher ou por causa da cor da sua pele. Nesta noite penso em tudo que ela viu neste seu século na América – as dores e as esperanças, o esforço e o progresso, a época em que diziam que não podíamos, e as pessoas que continuaram com o credo: Sim, nós podemos. Em um tempo no qual vozes de mulheres eram silenciadas e suas esperanças descartadas, ela viveu para vê-las se levantar e ir às urnas. Sim, nós podemos. Quando havia desespero nas tigelas empoeiradas e a depressão em toda parte, ela viu uma nação conquistar seu New Deal, novos empregos, um novo senso de comunidade. Sim, nós podemos. Quando bombas caíam em nossos portos e a tirania ameaçava o mundo, ela estava lá para testemunhar uma geração chegar à grandeza, e a democracia foi salva. Sim, nós podemos. Ela estava lá para ver os ônibus em Montgomery, as mangueiras em Birmingham, a ponte em Selma e um pregador de Atlanta que disse: ‘Nós Devemos Superar’.
Sim, nós podemos. Um homem chegou à Lua, um muro caiu em Berlim, um mundo foi conectado por nossa ciência e imaginação. Neste ano, nesta eleição, ela tocou o dedo em uma tela e registrou o seu voto porque, após 106 anos na América, através dos melhores e dos mais escuros dos tempos, ela sabe que a América pode mudar. Sim, nós podemos. América, nós chegamos tão longe. Nós vimos tanto. Mas há tantas coisas mais para serem feitas. Então, nesta noite, devemos nos perguntar: se nossas crianças viverem até o próximo século, se minhas filhas tiverem sorte suficiente para viver tanto quanto Ann Nixon Cooper, quais mudanças elas irão ver? Quanto progresso teremos feito? É nossa chance de responder a esse chamado. É o nosso momento. Esse é nosso momento de devolver as pessoas ao trabalho e abrir portas de oportunidade para nossas crianças; de restaurar a prosperidade e promover a paz; de retomar o sonho americano e reafirmar a verdade fundamental de que, entre tantos, nós somos um; que, enquanto respirarmos, nós temos esperança. E onde estamos vai de encontro ao cinismo, às dúvidas e àqueles que dizem que não podemos. Nós responderemos com o brado atemporal que resume o espírito de um povo: Sim, nós podemos. Obrigado. Deus os abençoe. E Deus abençoe os Estados Unidos da América.” 2008 NOVEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 9
Revolução da Esperança
Max Fontes Advogado Presidente da Harvard Law School Association of Brazil
O
pensador francês Alexis de Tocqueville, em sua célebre obra ‘A Democracia na América’, defendia a tese de que os americanos têm um modo especial de fazer história, afirmando que, enquanto outros países avançam por meio de revoluções violentas, traumáticas e, algumas vezes, contraproducentes, os EUA evoluem dentro de regras democráticas, em processos lentos, que preservam interesses anteriores e consolidam avanços mais consistentes. A eleição de Barack Hussein Obama representa um desses avanços extraordinários. Um novo começo da história democrática que merecer ser celebrado. Enquanto fenômeno político-social, a vitória do novo presidente representa uma conquista sem precedentes para o movimento racial iniciado há 50 anos, com a recusa da costureira negra Rosa Parks de ceder seu lugar a um passageiro branco, num ônibus do Alabama. Significa a concretização do antigo sonho de Martin Luther King, que apoiando o ato solitário de Parks, liderou uma verdadeira cruzada pacifista na luta contra a segregação, articulando o boicote em massa do transporte público naquele Estado, que contribuiu (de forma involuntária, porém decisiva) para a aprovação da Lei de Direitos Civis de 1964 naquele país. Além do salto histórico no longo caminho em direção à igualdade, o triunfo de Obama transmite a mensagem inequívoca de uma grande mudança no porvir, tanto para os norte-americanos quanto para o resto do mundo. Se confirmadas as promessas de campanha, o governo Obama promoverá profundas mudanças internas em diversas áreas: na economia, no mercado financeiro, na previdência 10 • JUSTIÇA & CIDADANIA • NOVEMBRO 2008
social e no sistema de saúde pública. Haverá igualmente transformações na política americana em relação às questões energéticas, ao combate ao aquecimento global e, sobretudo, na forma de enfrentar as duas guerras em andamento (Iraque e Afeganistão) e outra em processo de gestação (Irã). No plano externo, a mutação mais provável sugere uma ruptura com o modelo unilateral e impositivo adotado pela administração Bush nos últimos 8 anos. De acordo com o perfil do novo presidente, mais tolerante com as próprias diferenças e consciente da importância do diálogo entre os países, tudo indica que haverá um fortalecimento do multilateralismo nas relações internacionais e caminhos mais abertos para a negociação e a atuação da diplomacia. Essa é a transformação mais concreta e palpável que terá inicio a partir do dia 20 de janeiro de 2009, quando o primeiro presidente negro passar a despachar do salão oval da Casa Branca. Existe, contudo, uma mudança ainda mais radical em andamento, fruto de um processo intangível, que sensibiliza mentes e anima expectativas ao redor do globo. De fato, em poucos momentos como o que presenciamos, existe um sentimento mundial de vibração e renovação em função da eleição de um chefe de Estado. Um sentimento coletivo e contagiante que inspira não somente os americanos e os países desenvolvidos, mas também o espírito dos povos marginalizados, excluídos do processo de evolução civilizatória. Aqueles que sofrem pelo desencanto e opressão, subserviência e intimidação. Aqueles que buscam não somente novos líderes, mas, sobretudo, os que clamam por tipos inovadores de lideranças e de alternativas para o mundo de hoje.
Foto: Arquivo Pessoal
Múltiplo na sua origem e no seu destino, Obama incorpora essa nova forma de liderança pós-racial. Descendente de africano (Quênia), que nasceu nos EUA (Honolulu) e residiu na Ásia (Jacarta), o presidente eleito é filho de nosso tempo, produto do mundo globalizado, que tem raízes multiculturais e uma capacidade, ainda rara na política moderna, de conviver e valorizar as diferenças existenciais. Por esse exato motivo, a ascensão de Obama representa não somente a eleição de um novo commander-in-chief, mas a vitória de uma alternativa política capaz de viabilizar o reencontro dos EUA com seu povo e com o mundo. Simboliza uma inequívoca exortação à esperança, à nova ordem internacional e ao futuro papel das instituições democráticas. Na faculdade de Direito, o estudante Obama fez história ao ser eleito em 1990 como primeiro presidente negro do Harvard Law Review, o mais prestigiado periódico jurídico dos EUA. Com prenome africano (Barack), sobrenome árabe (Hussein) e tribal (Obama), e possuidor de inteligência excepcional, o novo líder transformou um déficit de legitimidade em ativo político, uma incerteza pontual em oportunidade institucional. No Senado Estadual (1997-2004) e Federal (2005-08), não foi candidato de uma raça ou de um grupo específico. Desde o início de sua carreira parlamentar, atuou de forma diferente e criativa, recusando-se a ser o ‘porta-voz’ dos negros, como fazia o reverendo Jesse Jackson e outros tantos políticos tradicionais afro-americanos. Acima de tudo, a jornada lírica do futuro presidente americano é significativa pela oportunidade que apresenta ao
Brasil para refletir sobre o seu caminho, enquanto projeto de Estado e de nação. Apesar da crise financeira que tem abalado os pilares das maiores democracias do planeta, nosso país tem demonstrado uma rara solidez estrutural. Da mesma forma, os três poderes de nossa República têm se mostrado receptivos à modernização institucional e à evolução de conceitos e práticas transformadoras. No Judiciário, a reforma silenciosa promovida pela legis lação infraconstitucional tem produzido efeitos positivos, especialmente através da adoção de institutos do Common Law (i.e. súmula vinculante, amicus curiae, repercussão geral, etc.), que conferem extrema agilidade ao sistema jurisdicional e ampliam o acesso às Cortes de Justiça. A Harvard Law School Association, entidade fundada há mais de 120 anos em Boston, com 35.000 membros ao redor do mundo atualmente, tem buscado servir de instrumento para o debate de idéias e projetos que visem ao fortalecimento do Estado de Direito e das instituições democráticas nos países em que atua. No Brasil, nossa associação tem buscado aglutinar cérebros e projetos, realizando seminários e eventos que promovam a aproximação de juristas, magistrados, profissionais e acadêmicos brasileiros com a comunidade jurídica norte-americana. Muito tem sido feito para estimular o intercâmbio de experiências e a criação de novas correntes de pensamento. A mais recente iniciativa nesse sentido é a parceria com a Revista Justiça & Cidadania. Como egresso de nossa alma mater, Obama faz parte de nossa associação. Como brilhante ex-aluno do atual ministro Mangabeira Unger, recebeu a influência filosófica desse notável pensador, que, aos 26 anos, se tornou um dos mais novos professores da história da Universidade de Harvard. Caso único no meio acadêmico nacional: um aluno de professor universitário brasileiro que se torna presidente da maior potência mundial. Numa perspectiva histórica, se podemos dizer que a queda das torres gêmeas em 2001 representou o 1º episódio do novo milênio, a eleição de Obama certamente representará o 2º capítulo do século XXI. Para as gerações do amanhã, esse período sombrio de terror, que se instaurou no mundo depois de 11 de setembro, será considerado como já encerrado diante do alvorecer de uma nova era iniciada em 04 de novembro passado, data do que podemos chamar de ‘Revolução da Esperança’. Um novo caminho de idéias e oportunidades surge no horizonte. Os fatos falam por si mesmos, para que a consciência aja por si própria. As possibilidades são inúmeras, assim como os desafios. John Kennedy, em seu discurso inaugural há 48 anos atrás, alertou que, certamente, “tudo não será atingido nos primeiros 100 dias. Nem nos primeiros 1.000 dias, nem durante este mandato, nem mesmo talvez enquanto estivermos neste planeta”. Talvez a realidade seja menos otimista que a nossa imaginação, mas para a esperança, a determinação e o sentimento que aflora em todo mundo depois da eleição de Obama, o mais importante é poder, ao menos nesse momento, recomeçar a escrever a história da democracia global. 2008 NOVEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 11
ARTIGO 290 DO CÓDIGO PENAL MILITAR E A LEI Nº 11.343/06
Carlos Alberto Marques Soares Ministro do STM
I
nicialmente, trarei à colação análise da natureza da Justiça Militar como Justiça Especial e a afinidade do Direito Penal e Processual Militar com os demais ramos do Direito, para, mais adiante, justificar a incidência do artigo 290 do Código Penal Militar e a inaplicabilidade da Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, na Justiça Militar da União. No dizer de José Frederico Marques, in “Competência em Matéria Penal”, fls. 135 e seguintes: “A Justiça Militar é das poucas jurisdições especiais cuja existência se justifica. Não se trata de um privilégio de pessoas, mas de organização decorrente, como lembra Astolpho Rezende, das ‘condições especiais que ligam pessoas e atos de índole particular atinentes ao organismo militar, como também pela natureza das infrações disciplinares, aptas a comprometer a ordem jurídica e a coesão dos corpos militares. Como diz um notável escritor italiano, tratam-se de juízes especiais, técnicos, juízos naturais do soldado, que sabem pesar os danos que à disciplina e ao serviço, ao bom estado militar podem custar as infrações e que a este dano proporcionam a adequada sanção’. Não se trata, como diz Crispi, ‘de uma justiça particular, no Estado, nem de privilégios pessoais, ou de prerrogativas de corporação, ou de classe de pessoas, mas de uma jurisdição especial,
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exigida e adequadamente justificada pela necessidade da disciplina’. Como notou Silgueira, não seria possível, ‘sem confundir noções essencialmente distintas, e sem afetar profundamente a organização do Estado, entregar aos princípios e disposições da lei comum, as relações jurídicas que os exércitos produzem. A instituição da Força Armada exige fórmulas legislativas expressas, inteiramente próprias e diversas das que correspondem à sociedade em geral. Os exércitos têm uma missão especial que não pode ser cumprida senão por eles’. Daí a exatidão do que disse M. de Broglie, ‘de que a legitimidade de uma Justiça Militar não poderia seriamente pôr-se em dúvida: ela é legítima porque é necessária’. Iguais considerações encontram-se em Castro Nunes, o qual, citando João Vieira, lembra que a jurisdição militar ‘não é um privilégio pessoal, nem uma prerrogativa de corporação ou seita, mas é ordenada sobre a essência do serviço militar, a qual não admite que a disciplina fique perturbada ou enfraquecida, que sejam subtraídas aos chefes militares a vigilância sobre as ordens, a subordinação e o juízo das violações delas’.” A disciplina é a força e a vida das instituições militares que, juntamente com a preservação dos princípios hierárquicos,
Foto: Arquivo STM
necessitam de uma legislação própria e de uma jurisdição especializada que possa dar garantia de sua manutenção. Esse foro especial se constitui na condição da boa administração da Justiça que, em razão das peculiaridades da carreira militar, exige um resultado penal célere. Ao palestrar no XIX Seminário Roma-Brasília, no Painel “Acesso à Justiça e Jurisdições Especiais”, com presença da insigne professora Ada Pellegrini Grinover, ficou consignado que uma Justiça Especial, como a Militar, só se justificaria à luz de uma legislação própria que atendesse às particularidades da sua existência. Em face dos ensinamentos dos mestres, é que tenho repelido interpretações açodadas, mais comprometidas com a busca preconcebida de novidades do que com a reflexão amadurecida de todo o sistema normativo Penal ou Processual Militar. O mestre chileno, professor Renato Astrosa Herrera em seu “Derecho Penal Militar”, 2ª Edición, ministra conceitos sobre a especialidade do Direito Penal e Disciplinar Militar nos seguintes termos: “Dessas normas jurídico-militares, as disciplinares e penais são as mais essenciais para o ordenamento jurídico militar, já que nelas repousa a disciplina militar, pressuposto para a existência de qualquer corpo armado. [...]
Entre os bens jurídicos protegidos pela Lei Penal Militar se encontram a segurança externa e interna do Estado, a segurança das instituições armadas, os deveres e honras militares, a subordinação e a hierarquia, os interesses materiais das instituições armadas, a propriedade militar e a fé militar.” O saudoso Professor chama a atenção para o estudo do Direito Penal e Processual Penal Militar ante as demais ciências jurídicas, posto que o Direito Militar se constitui numa derivação do Direito Penal comum. Assim, podese afirmar que as ciências jurídicas ou auxiliares que se relacionam com o Direito Penal comum, também informam ou complementam o Direito Penal Militar. Em conseqüência, o Direito Constitucional, o Direito Internacional, o Direito Administrativo e o Direito Privado têm íntima conexão com o Direito Penal Militar. O mesmo ocorre, e por idêntica razão, com as ciências auxiliares, como são a Filosofia, a Antropologia, a Sociologia, a Medicina Legal, a Psiquiatria Forense, a Política Criminal, etc. O ministro Jorge Alberto Romeiro acrescenta também o Direito Comparado e os Tratados Internacionais. Destaco, entretanto, o Direito Constitucional cuja relevância dispensa maiores considerações, em face da sua natureza hierárquica ante as demais leis ordinárias ou especiais. Na definição dos mestres, o Direito Processual 2008 NOVEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 13
“Ao contrário, quando se impõe a exceção, a Carta Magna o faz, como no caso do flagrante delito, em que ressalvou as punições disciplinares e os crimes propriamente militares.”
Constitucional tem em si a condensação metodológica e sistemática dos princípios constitucionais do processo (in “Teoria Geral do Processo”, de Antonio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco). Não se trata de um ramo autônomo do Direito Processual e muito menos do Direito Constitucional, mas de uma colocação científica, de um ponto de vista metodológico e sistemático, do qual se pode examinar o processo em suas relações com a Constituição (in mesmos autores). Ademais, como o processo legislativo em nosso país é extremamente moroso, com a edição da Constituição de 1988, criando e mantendo inúmeros princípios com características de normas pétreas em nosso ordenamento jurídico Penal e Processual Penal, culminou por impor aos operadores do Direito a aplicação dessas normas jurídicas que passamos a denominar de Direito Penal e Processual Constitucional. A meu sentir, nenhuma norma constitucional descaracteriza a natureza especial do Direito Penal e do Processo Penal Militar. Ao contrário, quando se impõe a exceção, a Carta Magna o faz, como no caso do flagrante delito, em que ressalvou as punições disciplinares e os crimes propriamente militares (art. 5º, inciso LXI, da CF/88). A nossa Legislação Penal e Processual Penal Militar tem sua vigência desde 1969 e a Constituição Federal é de 1988, daí deparamos com preceitos constitucionais que representam alterações substanciais do sistema Penal e Processual Penal, impondo mudanças significativas na interpretação de regras vigentes e produziram novos textos 14 • JUSTIÇA & CIDADANIA • NOVEMBRO 2008
legais ou motivaram projetos e anteprojetos (in “Processo Penal Constitucional”, Antonio Scarance Fernandes). Desse modo podemos concluir que alguns institutos da nossa lei substantiva e adjetiva passaram a exigir nova interpretação, sem que se desnaturalize a sua essência. Com essas considerações, ficou evidenciada a natureza especial da Justiça Militar e o contido em sua legislação só poderá ser revogado ou alterado quando a lei nova o disser expressamente e não conflitar com os princípios que justificam a sua existência. Com relação à “nova lei antidrogas”, ou seja, a lei que instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad) e a sua aplicabilidade na Justiça Militar da União, o Superior Tribunal Militar tem, por unanimidade, se manifestado contrariamente à sua recepção, colocandose em posição doutrinária antagônica à da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal. Na 2ª Turma do STF, em recente posição, os ilustres ministros têm se manifestado no sentido de que o princípio da dignidade da pessoa humana e a incidência do princípio da insignificância afastariam o critério da especialidade, determinando que a lei posterior mais benéfica, no caso, a Lei nº 11.343/06, seja aplicada ao caso, preterindo a norma esculpida no art. 290 do Código Penal Militar (HC 93.822 – SP e HC 94.085 – SP – Rel. Min. Celso de Mello; HC 92.961-3 – SP – Rel. Min. Eros Grau). Por outro lado, a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal tem sustentado posição diversa, no sentido de que é inaplicável a Lei nº 11.343/06 e que também não deve ser admitida, nos casos de porte de pequena quantidade de drogas, a incidência do princípio da insignificância (HC 92.462-0 – RS e HC 91.767 – SP – Rel. Min. Carmem Lúcia; HC 94.583 – MS – Rel. Min. Ellen Gracie; HC 91.759 – MG – Rel. Menezes Direito). O meu entendimento é que as decisões da 2ª Turma buscam aplicar a Lei nº 11.343/06 em razão do que dispõe o artigo 28, que estabelece as penas de “advertência”; “prestação de serviço à comunidade” e “medida educativa de comparecimento à programa ou curso educativo”, enquanto o CPM prevê penas de reclusão de 1 a 5 anos. Acontece que a douta Suprema Corte tem se baseado na “não prisão do usuário” prevista pela Lei nº 11.343/06 e, aplicando o princípio da insignificância ou da proporcionalidade, reforma a decisão do Superior Tribunal Militar e absolve o réu. Como podemos observar no Habeas Corpus nº 92.961-3 – São Paulo, cujo relator foi o insigne ministro Eros Grau, no corpo da ementa registra-se o fundamento maior da decisão em tela, que em parte concordo, quando diz: “Punição severa e exemplar deve ser reservada aos traficantes, não alcançando os usuários. A estes devem ser oferecidas políticas sociais eficientes para recuperá-los do vício”. Diante de tais posicionamentos e divergências, tenho aplicado somente aos militares conscritos, menores de 21 anos, em cujos pertences (carteira, mochila, etc.) tenha
“Em meu posicionamento, somente acolho o ‘princípio da insignificância’, no Direito Penal Militar, nos crimes contra o patrimônio, tendo em vista que a legislação especial é sempre voltada para a preservação dos conceitos que sustentam as Forças Armadas, quais sejam: a ‘hierarquia’, a ‘disciplina’, o ‘pundonor militar’ e o ‘decoro da classe’.”
sido encontrada ínfima quantidade de “maconha”, jamais cocaína, crack ou outras drogas de potencial elevado, e que nos dê a inquestionável conclusão de tratar-se de usuário que não tenha feito ou pretenda fazer uso no interior do Quartel, ou passá-la para outro militar ou civil. Daí, sem generalizar, como foi feito no mencionado aresto, trago como suporte da evidente desproporcionalidade, outro trecho da ementa, quando registra: “Exclusão das fileiras do Exército: punição suficiente para que restem preservadas a disciplina e hierarquia militares indispensáveis ao regular funcionamento de qualquer instituição militar”. Então, situo-me no vértice dos dois entendimentos, entre a posição da Primeira Turma e a da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, sendo que essa última fixou exegese seguida pela maioria do Superior Tribunal Militar. Não tenho acolhido o princípio da insignificância com relação a qualquer tipo de droga ou substância entorpecente, em face da natureza da atividade do militar engajado e profissional das Forças Armadas. Como acolher o princípio da insignificância, para um Oficial da Aeronáutica ou da Marinha, piloto de um jato de combate? De um graduado ou oficial da Marinha encarregados da condução de um navio de guerra? De um militar, graduado ou oficial do Exército incumbido de operar um tanque, canhão de guerra ou um helicóptero de combate? Os exemplos são inúmeros que repelem “de pronto” a banalização do uso de droga, de qualquer gênero no interior dos quartéis nas Forças Armadas. Socorrendo-me do princípio da proporcionalidade é que tenho me fixado na despenalização do jovem soldado,
prestador do serviço militar obrigatório, que esteja somente portando pequena quantidade de “maconha”, no interior do Quartel, tendo em vista a deficiência das instituições militares, especialmente o Exército, em levantar a vida social do conscrito, em face até mesmo do estabelecido no Estatuto da Criança e do Adolescente que impede o fornecimento de qualquer dado do menor infrator. Desse modo, a pena de um ano de reclusão, prevista no artigo 290, do Código Penal Militar, vem macular a ficha funcional e criminal desse jovem usuário que esteja prestando o serviço militar obrigatório, mesclando-o com o traficante ou até com o viciado, circunstância que nos leva à conclusão de que os efeitos extrapenais são infinitamente mais elevados do que o mal causado com a sua conduta de “trazer consigo ou portar” substância entorpecente para uso próprio. Poderíamos até questionar o elemento subjetivo do tipo, ao concluir que o jovem soldado que “esqueceu” em sua carteira ou mochila um cigarro ou até um pedaço do mesmo, não teria a intenção de introduzi-lo em local sujeito à administração militar. Tal questionamento não sucumbe mesmo diante do dolo eventual, de difícil tipificação em condutas do gênero. Outro ponto de inquestionável relevância, é que teríamos de aplicar o Código Penal Militar ao agente que fosse traficante, posto que a lei nova (Lei nº 11.343/06) é mais gravosa do que a legislação especial, e no mesmo processo em que um jovem soldado estivesse recebendo ínfima quantidade de substância entorpecente, aplicaríamos a Lei nº 11.343/06. 2008 NOVEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 15
A meu sentir estamos longe de uma conclusão que possa atender aos objetivos do melhor Direito ou da efetiva “Justiça”, em face das contundentes divergências acerca do tema nas nossas Cortes Superiores, nos Tribunais de Justiça, entre os Juízes de primeiro grau, sem falarmos na frontal oposição entre a 1ª e a 2ª Turmas do Supremo Tribunal Federal. Procuro conduzir o meu entendimento para o “princípio de política criminal”, acolhendo um dos mais elevados princípios constitucionais que é o da proporcionalidade, pois a apenação culmina como sendo inadequada. Num país em que a dificuldade de emprego ainda é inconteste, levaria esse jovem a ser excluído das Forças Armadas, a bem da disciplina, condenado por um crime que na Legislação Militar culmina pena de um a cinco anos, cujo artigo 290, mescla o simples usuário com o traficante, impedindo-o, ou dificultando-o em conseguir um emprego honesto, conduzindo-o, muitas vezes, às mãos ávidas do crime organizado ou traficantes. Já na tese de eminente colega da Corte, que também constitui a divergência em nosso Plenário, e da 2ª Turma do Pretório Excelso, apontando para o princípio da insignificância, interfere-se diretamente na tipicidade. Surgiu, o princípio em tela, com Claus Roxin, em 1964 que visava restringir a aplicação do Direito Penal, ou seja, dar uma interpretação restritiva aos tipos penais com a exclusão da conduta do tipo a partir da insignificante importância das lesões ou danos aos interesses sociais. Afasta-se, assim, a tipicidade da conduta apontada, pois não teria havido lesão ao bem jurídico tutelado, sendo ela penalmente irrelevante. Eugenio Raúl Zaffaroni e Jose Henrique Pierangli, assim lecionam acerca da matéria: “Não se concebe a existência de uma conduta típica que não afete um bem jurídico, posto que os tipos não passam de particulares manifestações de tutela jurídica desses bens. Embora seja certo que o delito é algo mais – e muito mais – que a lesão a um bem jurídico, esta lesão é indispensável para configurar a tipicidade.” (“Manual de Direito Penal Brasileiro”, 3ª ed., Editora Revista dos Tribunais: São Paulo, 2001. p. 462). Na mesma linha, incorre o pensamento de Damásio de Jesus: “De acordo com o princípio da ofensividade, o Direito Penal só deve ser aplicado quando a conduta efetivamente ofende um bem jurídico, não sendo
suficiente que seja imoral ou pecaminosa. Entre nós, esse princípio pode ser extraído do art. 98, I, da CF, que disciplina as infrações de menor potencial ofensivo. Nos termos do princípio da insignificância, ligado aos chamados crimes de bagatela (ou delitos de lesão mínima), recomenda-se que o Direito Penal, pela adequação típica, somente intervenha nos casos de lesão jurídica de certa gravidade, reconhecendo a atipicidade do fato nas hipóteses de perturbações jurídicas mais leves (pequeníssima relevância). (...) O fundamento se encontra no princípio constitucional da ofensividade, segundo o qual não há crime quando a ofensa ao bem jurídico é tão ínfima que o fato merece permanecer fora do campo do Direito Penal. Isso ocorre nas hipóteses em que o dano ao objeto material é insignificante, ensejando a aplicação da teoria da insignificância do resultado jurídico e da pequena lesividade causada ao objeto material (resultado naturalístico).” (Código Penal Anotado. 11ª ed. Saraiva: São Paulo, 2001. P. 988). Em meu posicionamento, somente acolho o “princípio da insignificância” no Direito Penal Militar nos crimes contra o patrimônio, tendo em vista que a legislação especial é sempre voltada para a preservação dos conceitos que sustentam as Forças Armadas, quais sejam: a “hierarquia”, a “disciplina”, o “pundonor militar” e o “decoro da classe”. Os bens jurídicos tutelados, elencados nos títulos da parte especial do Código Penal Militar, são diversos da legislação penal ordinária. Se acolhesse o “princípio da insignificância” em vez do da “proporcionalidade”, teria que fazê-lo mesmo que o agente fosse uma praça estável, graduado, até um sargento ou suboficial, e até mesmo para o oficial, eis que a “bagatela” não é voltada ao agente e sim ao ato lesivo ao direito. Tenho, pois, extrema dificuldade em analisar o princípio em tela, tendo como ponto principal as condições pessoais do agente ativo. Destarte, concluo em não acolher a aplicação da Lei nº. 11.343/06 no âmbito da Justiça Militar da União, sem com isso reconhecer a extrema necessidade de alterarmos a legislação substantiva e adjetiva castrense, no sentido de possibilitar ao Juiz a aplicação de uma “sanção” que não macule a folha penal do jovem militar, quando for encontrada consigo pequena quantidade de “maconha” que dê ao julgador a idéia de ser o mesmo apenas um eventual usuário.
BIBLIOGRAFIA MARQUES, José Frederico. Da competência em Matéria Penal. 1ª ed., Millennium, Campinas: 2000 HERRERA, Renato Astrosa Herrera. Derecho Penal Militar, 2ª ed. Ed. Jurídica de Chile, Chile: 1974 CINTRA, Antonio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini e DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo, 18ª ed., Malheiros, São Paulo: 2002 ZAFFARONI, Eugenio Raúl e PIERANGLI, José Henrique. Código Penal Anotado. 11ª ed., Saraiva, São Paulo: 2001
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CONSIDERAÇÕES SOBRE A REFORMA TRIBUTÁRIA
Ives Gandra da Silva Martins Professor Emérito das Universidades Mackenzie, UNIFMU, UNIFIEO, UNIP e CIEE Membro do Conselho Editorial
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ada obstante todo o louvável esforço do deputado Sandro Mabel para melhorar o confuso projeto de Reforma Tributária, enviado pelo Governo Federal ao Congresso – e foram muitas as modificações positivas – dúvidas remanescem. De início, tem-se a impressão – detectada entre todos os tributaristas de prestígio do país – que haverá aumento de carga tributária. Ganha a União Federal um novo imposto (IVA) incidente sobre todas as operações de circulação e bens e serviços, que será o mais importante imposto de seu elenco, abrangendo operações sobre bens e serviços, com espectro muito mais abrangente que o IPI, ICMS e ISS, que serão mantidos. Continua, por outro lado, a ter o direito de gerar quantas contribuições desejar, por força do artigo 149 da CF. Não equaciona, por outro lado, o problema dos estados, não havendo, fora as linhas gerais do projeto, textos capazes sequer de sinalizar um roteiro para a aplicação do novo ICMS, dos seus fundos de desenvolvimento e equalização ou do funcionamento do Confazão, que obrigará todos os estados a terem a mesma regulamentação, não feita por legisladores, mas por funcionários das Secretarias de Estado do país. O projeto sofre pressão de muitos estados. Para eles, o Governo deve pensar em sair da crise, que é grande, e para a qual ainda não conseguiu definir um plano estratégico capaz de minimizar os seus efeitos. Não desesperadamente, sem textos, projetos ou propostas regulamentadoras, insistir 18 • JUSTIÇA & CIDADANIA • NOVEMBRO 2008
numa reforma que, em tese sendo para simplificar, tem mais dispositivos constitucionais do que todos os sistemas constitucionais tributários de todos os países civilizados ou emergentes da atualidade. Em outras palavras, o Governo parece adotar a fórmula de que a melhor forma de simplificar é complicar, razão pela qual as dezenas de dispositivos que compõem o projeto e que se acrescentarão a outras dezenas de comandos não revogados, tornarão o sistema brasileiro irracional, complexo e casuístico, a dificultar, inclusive, uma integração comunitária. É necessário parar para refletir. Poder-se-ia ter eliminado o Imposto sobre Grandes Fortunas. Trata-se de tributo ideológico – cadáver tributário em outros países –, em face do viés governamental de retirar dos contribuintes que geram desenvolvimento, parte do que lhes tenha sobrado, após a enxurrada de tributos sobre a renda, patrimônio e circulação de bens e serviços. A melhor forma de afastar-se poupança e investimento é um tributo com este perfil, que está sendo abandonado em todos os países que o adotaram. É um tributo que propicia um protecionismo às avessas. Um empresário brasileiro que aplicar dinheiro no Brasil, em sua empresa, deverá pagá-lo. Já o empresário estrangeiro, seu concorrente, por não ter residência no Brasil, não o pagará. Um protecionismo a favor dos outros, como foi detectado nos países em que foi implantado. No livro coordenado por Paulo Rabello de Castro, Rogério Gandra da Silva Martins e por mim (“Tributos
Foto: Arquivo JC
no Brasil: Auge, declínio e reforma”, Fecomércio, 2008) Fátima Fernandes Rodrigues de Souza, Patrícia Garcia, Soraya David Monteiro Locatelli e meu filho Rogério Gandra da Silva Martins, co-coordenador da obra, enfocando facetas diferentes, demonstram ser este o tributo do atraso. Seria, novamente, o avanço do retrocesso no Brasil, só idealizado por teóricos marxistas ou socialistas, cujas experiências acadêmicas estão na proporção inversa de seu conhecimento da realidade econômica. Deveria ter sido eliminado esse cadáver, que poderá, ainda, ser utilizado ideologicamente, como forma de agravar a crise por que passa o país. O mérito do deputado Sandro Mabel foi ter incluído a necessidade de um Código de Defesa do Contribuinte. E isto se faz necessário, pois, como o Governo Federal não demonstra vontade maior em reduzir suas despesas e a economia real será contraída, para sustentar o moloque estatal, poderemos ter carga tributária maior, a agravar ainda mais o delicado momento por que passam o Brasil e o mundo. De se aplaudir, também, embora de difícil implantação, dispositivo que coloca teto para aumento da carga tributária, assim como outros mecanismos propostos pelo eminente parlamentar. Pessoalmente, por ser contra a criação de mais um imposto circulatório – passaram a ser 4 (ICMS, IPI, ISS e IVA Federal) – e a reformulação proposta para o ICMS, gostaria que a Reforma fosse aprovada apenas nos aspectos positivos propostos pelo deputado Sandro Mabel.
“De se aplaudir, também, embora de difícil implantação, dispositivo que coloca teto para aumento da carga tributária, assim como outros mecanismos propostos pelo eminente parlamentar.”
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OUTRAS QUESTÕES POLÊMICAS: POLÍTICA E CONSTITUIÇÃO
Francisco Rezek Ministro do STF aposentado
A
Constituição brasileira de 1988 é de extraordinária riqueza nos valores que consagra, nos princípios que adota, nos programas que determina. Tudo quanto nos aflige quando hoje refletimos sobre o império da lei fundamental é a frustração resultante do fato de que nem todas as políticas ali prescritas se puderam implementar. Algumas, já anunciadas em cartas anteriores, não ultrapassam os limites da previsão constitucional, dependentes da ação do legislador ordinário, e de que uma eventual concorrência de circunstâncias políticas favoráveis proporcione a dinamização dessas propostas – muitas delas há tanto tempo integradas no imaginário dos brasileiros. A política padece, inevitavelmente, de sua plasticidade, de suas astúcias, e de seu jogo de interesses. O que têm procurado em todas as épocas os mais percucientes de nossos estadistas é conciliar as inevitáveis mazelas da atividade política com os rigores da Constituição, com aquilo que da lei fundamental se pode extrair como pauta de princípios que nunca deveriam ser descartados, nem nos embates da política parlamentar nem no conseqüente exercício da atividade legislativa. Seria bom se pudéssemos acreditar que nossa legislação ordinária só teve má qualidade numa época em que elaborada por militares e economistas. Infelizmente, não é assim. Nossa legislação ordinária padece de uma crônica falta de controle de qualidade, mesmo em tempo de absoluta normalidade democrática. Isso é produto direto da condução inadequada do processo político, da formação e do funcionamento do Congresso Nacional. 20 • JUSTIÇA & CIDADANIA • NOVEMBRO 2008
Tem-se muitas vezes a impressão de que a sociedade brasileira tende a exigir mais da função pública do que exige das lideranças do setor privado, dos agentes econômicos e de si mesma. Esse tema tem sido recorrente na imprensa, nas reflexões dos analistas do fenômeno brasileiro contemporâneo. Dizemos, a todo momento, que não vivemos no Estado dos nossos sonhos, que não temos o governo dos nossos sonhos, mas raramente refletimos sobre a questão de saber se somos a sociedade dos nossos sonhos. Parece que aquilo que do servidor público, e em especial do governante, se exige não corresponde com muita exatidão àquilo que deveríamos exigir de nós próprios enquanto cidadãos. Sobretudo entre os comandos do setor privado, entre os mais operantes agentes econômicos, entre os formadores de opinião, há uma auto-indulgência que contrasta com o grau de exigência da sociedade em face da função pública. Ora, a ética na política não é apenas aquela do titular de um mandato eletivo ou de uma função pública obtida por concurso ou por outro meio seletivo. É também a do cidadão, a do contribuinte, sobretudo a do eleitor. Não temos como elevar o patamar das exigências populares ao procedimento das lideranças políticas e dos legisladores em geral, se não podemos afirmar, como premissa, que também correspondemos ao padrão ético que desejamos impor. Todo cidadão comum, mesmo o mais simples, tem o direito de exigir de seus governantes, conforme a especialização governativa a que se consagrem, um grau de conhecimento científico e de talento técnico que ele, cidadão, não há de
Foto: Gervásio Baptista/SCO/STF
Ministro Gilmar Mendes com o ex-membro do Supremo Tribunal Federal, Francisco Rezek.
pedir a si mesmo. Mas em estritos termos de ética, nada, rigorosamente nada, autoriza pessoa alguma a reclamar de governantes uma ética superior à sua própria. Nesse particular, aquilo que se exige de todos nós, governantes ou não, é algo absolutamente idêntico. Dois personagens de Boris Pasternak, dois homens de gerações diferentes, conversam numa casa de chá, em Moscou, por volta de 1917. Um deles diz que o outro é jovem demais para analisar com correção determinado tema. O mais jovem responde que não tem razão nenhuma para acreditar que a idade aperfeiçoa os seres humanos. O mais velho replica que com a idade as pessoas se tornam mais tolerantes. O mais jovem contesta que isto é certamente porque vão tendo, cada vez mais, o que tolerar em si mesmas. A tolerância é uma das mais belas virtudes da natureza humana. Mas há um momento em que ela significa algo mais patológico que saudável. Na medida em que as lideranças políticas se sentissem eleitas sem merecimento, na escala de valores que representam, e na medida em que os eleitores, em determinado país, passassem a condescender com defeitos sérios de comportamento dos governantes e a eleger pessoas de padrão ético duvidoso, emergiria a impressão de que isso resulta da quebra de escrúpulos do próprio eleitor. Ironicamente, na consciência do eleito, repontaria a idéia de que, nos seus desvios de conduta, está apenas representando adequadamente seu eleitorado. E nada de mais vicioso ou de mais reprovável poderia acontecer, dentro de determinado quadro político, do que isso. O mais alarmante, nos desvios de comportamento do
“Não temos como elevar o patamar das exigências populares ao procedimento das lideranças políticas e dos legisladores em geral, se não podemos afirmar, como premissa, que também correspondemos ao padrão ético que desejamos impor.”
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Poder Público, nos erros éticos e políticos, nas afrontas à lei, às vezes à própria lei penal, dos dirigentes políticos, é a repercussão que isso produz sobre o setor privado. Todas as pessoas de limitados escrúpulos no setor privado esperam ansiosamente por esse pretexto: a quebra de padrões éticos do setor público, para que possam justificar-se perante os próprios filhos pela sonegação fiscal, pelo mau tratamento dispensado a seus empregados, pela incivilidade, pelo oportunismo, enfim, por todos os desvios de conduta que ocorrem entre particulares e que pretendem justificar-se com o argumento de que o setor público pauta a sociedade com seu mau exemplo. Sobre a participação efetiva da cidadania na tomada de decisões, na definição dos destinos do país, na composição da ordem jurídica, ocorre que o art. 14 da Constituição anuncia formas variantes de democracia direta, mas faz depender de legislação ordinária a operação efetiva daqueles mecanismos. É natural, é humano que o legislador ordinário prefira guardar para si todo o poder de criação em lugar de compartilhá-lo com quem quer que seja, mesmo com o seu próprio eleitorado. Mas alguma coisa se deveria fazer a esta altura, no sentido de impulsionar o legislador ordinário a que regulamente aquelas normas, de tal modo que possam ser exercitadas. Temos, de todo modo, um sistema eleitoral que, em suas bases filosóficas fundamentais, é de extrema sabedoria. Curiosamente, um dos pontos contestados desse sistema figura entre aqueles que deveriam parecer mais sólidos: o voto obrigatório. Os que sugerem um caminho diferente lembram que em grandes democracias, européias e outras, o voto é facultativo, portanto aqui também o deveria ser. Sucede que nessas velhas democracias o establishment já se definiu 22 • JUSTIÇA & CIDADANIA • NOVEMBRO 2008
de modo claro, e as diferenças entre um partido e outro são quase sempre superficiais. O essencial não muda, quem quer que ganhe as eleições nos Estados Unidos da América e na maior parte das democracias da Europa. Nós não somos isso. Somos um país que ainda desenha seu perfil definitivo, que ainda formula suas opções. Na medida em que o voto seja obrigatório, ele motiva todas as pessoas ao acompanhamento do processo político. Ele incentiva todos à leitura, ao conhecimento de programas e propostas e à formulação de suas próprias escolhas. Se o voto não é obrigatório, há uma inercial e inevitável deserção majoritária. Aquilo que deveria ser um domínio da cidadania torna-se um domínio da militância. Livre-nos Deus do que seriam as conseqüências de a política brasileira fazerse à base apenas da militância. Poderíamos ter um neofacista no poder a qualquer momento, ou um stalinista. Não faltam essas categorias dentro do vasto espectro político nacional. E só não ganham fortaleza porque, com o sistema de voto obrigatório, todos os brasileiros são chamados a refletir e a opinar, e a não deixar o processo político por conta exclusiva dos profissionais da política. Sobre nossas mais recentes crises políticas, é honesto que se reconheça nelas um caráter benigno. Em primeiro lugar porque, no terreno dos conceitos, todos estiveram e estão de acordo. Ninguém, nem mesmo aqueles que flutuaram entre nuvens, pairando sobre as crises como que não querendo dar-se conta de sua gravidade, nem mesmo esses negaram a realidade de certos fatos, reprimidos pela lei, ou que a correção de rumos devesse ser imediata, e enérgica, e completa. Sobre esse ponto, portanto, estivemos todos de acordo. E até mesmo onde transbordou lama, esta não se manchou de sangue humano.
Pensemos, comparativamente, nos lamaçais que ainda hoje existem lá fora, mesmo em certos pontos do continente europeu, e que estão fortemente mesclados de sangue. Pensemos no que aconteceu com a organização internacional, no que aconteceu com o Direito internacional, com todos aqueles valores que vinham orientando, em certa medida, a convivência entre as nações. Pensemos na banalização do sacrifício da pessoa humana, no aviltamento dos padrões de convivência internacional, na destruição do multilateralismo, na assunção insolente de políticas de poder durante os últimos 20 anos. Reflitamos, então sobre o quadro reinante nesta República. Não somos, de início, um país dividido. Vimos há pouco tempo, naquilo que sempre festejamos como grandes democracias do Ocidente, o Poder Público se divorciar abertamente das ruas e, em assuntos da importância da paz e da guerra, tomar decisões à revelia de 50, 60, 90% das respectivas sociedades. Nem todos os governos que assim procederam foram imediatamente punidos pela sociedade. Somente alguns. Vale insistir no fato de que não somos, naquilo que mais profundamente pensamos, um país dividido. No Brasil de hoje, a 20 anos da Constituição de um novo tempo, a mais importante e mais interessante das divisões que antagonizam brasileiros é, provavelmente, aquela que extremiza de um lado os deslumbrados do neoliberalismo e, de outro lado, uma corrente radical na guarda dos ideais da esquerda dos anos 60, cujo sentido crítico não foi o bastante para perceber que parte daquele discurso esclareceu-se – embora alguns de seus elementos essenciais tenham permanecido inteiramente válidos: desde a crítica a uma dívida externa que já foi várias vezes paga e nunca se vê liquidada, até a consideração de que o desfecho da Guerra Fria, no começo dos anos 90, significou o triunfo de algumas bandeiras ocidentais, mas, decididamente, não de todas. Sabemos que não há mais lugar, em parte alguma, e destacadamente no Brasil, para o Estado Policial, para a república de beleguins e de esbirros. Sabemos que nenhum suposto interesse coletivo justifica a montagem de regimes de partido único. Isso foi varrido da história, felizmente. Sabemos também que o Estado não é o melhor gerente para a atividade econômica, e que uma parcela importante dessa atividade deve estar à conta do setor privado – desde que o Estado não deserte do seu dever de regular, sobretudo onde, no setor privado, as forças podem ser ainda tão desiguais como no Brasil. O Estado não pode, em nome da celebração
que sucedeu ao final da Guerra Fria, imaginar que deva abandonar seu poder regulatório – a necessidade absoluta de regrar o setor privado, não permite que a lei da selva governe a atividade econômica. Somos um país onde a atividade estatal não caiu fora de moda, não se tornou supérflua ou redundante. O Estado tem para com a sociedade, sobretudo para com as partes mais deserdadas da sociedade, compromissos que ele não poderia nunca desonrar. Mas vejamos: se esse contraste entre os neoliberais festivos e os radicais sombrios da política estatizante é o que temos de mais acalorado na dialética nacional do nosso tempo, isso mostra que somos um povo unido, uma vez que divisões dessa natureza não levam ninguém à guerra civil, não levam a ódios nem a ressentimentos duradouros, podendo resolverse no saudável debate político que nos mostre, afinal, os melhores caminhos para o Brasil. Pensem que somos um país fiel aos princípios que determinaram até hoje sua imagem entre nações. A imagem de um pais que construiu sua grandeza sem lesar ninguém, sem ter sido protagonista ou cúmplice de destruição, da exploração, da humilhação, de qualquer outro povo. Um país sem remorsos num mundo cheio deles, uma bandeira limpa entre tantas bandeiras ensangüentadas. Deste país são muitos os que esperam que esteja na linha de frente à hora de conseguir fazer valer, no plano global, aquilo que o próprio Brasil e tantas outras nações conseguiram no plano interno: a consagração do princípio democrático, a construção do Estado de Direito. É isto o que a sociedade internacional, neste momento histórico, infelizmente não conhece: o Estado de Direito. Vivemos lá fora um momento de eclipse do ideal de justiça, de desprezo pela regra de direito, de colapso da organização internacional, de afirmação arrogante de políticas de poder, de sacrifício generalizado da vida e da dignidade da pessoa humana. Não sabemos quanto tempo falta para superar nossos derradeiros dramas sociais, para superar a orfandade social e econômica que fustiga, ainda, tantos e tantos brasileiros, e que responde pela insegurança de tantos outros. Menos ainda sabemos quanto tempo falta para que a sociedade internacional reconstrua o Estado de Direito, ou quanto tempo falta para redimir a humilhadíssima Organização das Nações Unidas, e para fazer valer, em plano global, o primado do direito. Sabemos, entretanto, que a consciência do povo brasileiro, que revela grandeza e visão de mundo, que essa sociedade que em nenhum momento perdeu – quando tantas parecem ter perdido – a noção exata da fronteira entre crime e legalidade há de celebrar o novo tempo com o mesmo espírito com Texto extraído do livro “Constituição Federal – Avanços, contribuições e modificações no processo democrático brasileiro”. Coordenação Ives Gandra Martins e Francisco Rezek. São Paulo: Ed. RT. CEU – Centro de Extensão Universitária: 2008, pg. 30. 2008 NOVEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 23
As Reformas Política, Eleitoral, Tributária, Sindical e Trabalhista são urgentes
Da Redação
A
Editoria ouviu o ministro Sydney Sanches, exmembro do Supremo Tribunal Federal, sobre a sua participação, como presidente do Conselho Superior de Assuntos Jurídicos e Legislativos da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, nas questões relacionadas aos interesses das categorias empresariais. A alta experiência do eminente jurista tem proporcionado, com sua assistência, que a Fiesp e o seu dinâmico e competente presidente Paulo Skaf, alcancem para a categoria, perante os Poderes Executivo e Legislativo, inúmeras vitórias, entre as quais destaca-se pela relevância, a obtida perante o Congresso Nacional com a revogação da CPMF. A atuação do ministro Sydney Sanches à frente do Conjur ainda tem proporcionado importantes sugestões e providências em questões relacionadas às Reformas Tributária, Trabalhista, Sindical, Eleitoral e Política. A preocupação com os grandes questionamentos que afloram cotidianamente perante o Conjur, em reflexo da postergação do resultado desejado e pleiteado pelo empresariado, como as relacionadas aos precatórios, às excessivas instâncias recursais e principalmente ao funcionamento da Justiça, está realçada na entrevista do eminente jurista. 24 • JUSTIÇA & CIDADANIA • NOVEMBRO 2008
Revista Justiça & Cidadania – O senhor preside o Conselho Superior de Assuntos Jurídicos e Legislativos da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo. Qual a relevância deste órgão consultivo? Cite algumas resoluções recentes e importantes. Sydney Sanches – O Conjur é um órgão estratégico, com função opinativa sobre todos os assuntos de interesse da Fiesp, seja no âmbito das normas constitucionais ou infraconstitucionais já existentes, seja nos das meramente projetadas, ou, ainda, das que pretende sugerir. Em suas reuniões mais recentes, concluiu: a) pela inconstitucionalidade formal e substancial do ato normativo que instituiu o Sistema Público de Escrituração Digital (SPED); b) que as sociedades limitadas de grande porte também estão obrigadas a publicar suas demonstrações financeiras, a partir do ano-base de 2008; c) pela inconstitucionalidade do Projeto de Lei Complementar nº 306-B, de 2008, sobre a Contribuição Social para a Saúde – CSS; d) pela inconstitucionalidade formal e material do acordo celebrado entre os Governos do Brasil e dos Estados Unidos da América, para intercâmbio de informações relativas a tributos, firmado em 20 de março de 2007; e)
Foto: Kênia Hernandes
Ministro Sydney Sanches, presidente do Conjur da Fiesp
pela legitimidade da participação da iniciativa privada no sistema público da administração prisional, sem prejuízo das competências dos Poderes Executivo e Judiciário, inclusive mediante parceiras público-privadas. JC – Como as idéias do Conjur são transformadas em ação? Sanches – As conclusões do Conjur são encaminhadas à Presidência da Fiesp, para que a Diretoria as considere para adotar as providências que lhe parecer cabíveis. Para adotá-las o órgão operacional (do Conjur e da Fiesp) é o Departamento Jurídico (Dejur). JC – A questão tributária no Brasil está negligenciada? O senhor acredita que a Reforma Tributária caminhará antes da próxima eleição para presidente do Brasil? Sanches – Há grande morosidade do Congresso na conclusão do exame da PEC que trata da Reforma Tributária. Esperamos, porém, que ela esteja concluída antes da próxima eleição presidencial. JC – Quais os principais avanços recentes que o senhor
acredita que conquistamos a favor da segurança jurídica para viabilizar o setor produtivo? Sanches – As súmulas vinculantes do Supremo Tribunal Federal, o requisito da “repercussão geral” para o cabimento de recurso extraordinário, algumas decisões administrativas do Conselho Nacional de Justiça, a lei que possibilitou o julgamento simplificado dos chamados ‘casos repetitivos’ no Superior Tribunal de Justiça, mas, sobretudo, a jurisprudência de todos os Tribunais Superiores, quando não oscilante; a criação dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais; e os convênios que permitiram a difusão dos meios alternativos de solução de conflitos, como mediação, conciliação e arbitragem. JC – Na opinião do senhor, quais seriam as reformas mais urgentes da Constituição Federal brasileira, que completa 20 anos em 2008? Sanches – As Reformas Política, Eleitoral, Tributária, Sindical e Trabalhista. Em matéria de Judiciário as reformas mais urgentes são as relacionadas a precatórios e às excessivas instâncias de recursos (matéria constitucional) e ao melhor funcionamento da Justiça nas instâncias ordinárias (matéria infraconstitucional). 2008 NOVEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 25
aplicação do artigo 475-j do Código de Processo Civil
Alexandre Freitas Câmara Desembargador do TJ/RJ
Transcrição da palestra proferida no Seminário “Questões Jurídicas Relevantes no Transporte Coletivo”
“
A reforma da Execução tem dois aspectos distintos que acabaram por se mesclar, principalmente na Lei nº 11.232 de 2005, que tratou da reforma da execução dos títulos judiciais. Há, de um lado, um aspecto puramente teórico que é o de se modificar a opção originariamente adotada no nosso Processo Civil, de separação entre as figuras do processo de conhecimento e do processo de execução. Esse modelo teórico originariamente adotado, inspirado nas lições de Liebman, a partir de um determinado momento passou a ser combatido por alguns setores da doutrina brasileira. Primeiro, antes de qualquer outro, pelo professor Humberto Theodoro Júnior ainda na década de 80, depois, nos meados da década de 90, por alguns outros autores, e essa mudança teórica acabou chegando ao Código de Processo Civil com a Lei nº 11.232. Pegou-se o que antes eram dois processos distintos, o processo de conhecimento e o processo de execução, e transformouos no que hoje é um único processo com duas fases, a fase de conhecimento e a fase de execução. Assim, temos hoje um processo para resolver o que antes se resolvia em dois. Aliás, muito particularmente, dois processos que eram três, porque entre o processo de conhecimento e o processo de execução ainda havia o processo de liquidação. E dois processos que eram três, mas cá para nós, eram quatro, porque havia os embargos à execução. Então, era uma ‘dicotomia de quatro’, se é que isso é possível. E isso tudo agora se reúne em um só processo, que tem uma fase de conhecimento e uma fase de execução, que entre uma e outra pode ter um incidente de liquidação e, que pode ainda no curso da segunda fase, ter um incidente provocado pela defesa do executado, que recebeu o nome de impugnação. A novidade trazida para o Código por essa reforma, foi o 26 • JUSTIÇA & CIDADANIA • NOVEMBRO 2008
estabelecimento de um prazo de 15 dias, entre o término da fase de conhecimento e o início da fase de execução, para que o devedor possa cumprir espontaneamente a obrigação. Deu-se então ao devedor um prazo, durante o qual ele é intocável e tudo que pode-se fazer é aguardar. Se ele pagar, ótimo; se não pagar, teremos a necessidade de uma segunda fase, a fase de execução. Como forma de se tentar convencê-lo a pagar no prazo, o legislador fixou uma multa de 10% – que a meu ver foi uma infelicidade do legislador, porque multa de 10% só assusta à classe média e empresa pequena. Aliás, eu nunca consegui entender porque o credor de ‘obrigação de fazer’ pode usar como mecanismo de pressão a multa diária, o da ‘obrigação de não fazer’ também, o da ‘obrigação de entregar coisa’ também e o da ‘obrigação de pagar’ não. Por que não se cogitar de uma multa diária compatível com o valor da obrigação e com a capacidade econômica do devedor? Esse dispositivo que limitou a multa aos 10% acabou sendo um retrocesso, se considerarmos que já havia decisões, por exemplo, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em acórdãos relatados pelo desembargador Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, que é um notável processualista, assim como já havia decisões na Justiça do Trabalho do Ceará, fixando multa diária em obrigação pecuniária. E, de repente, o legislador estipula em 10%. Mas, como costuma dizer o professor José Carlos Barbosa Moreira: ‘opções do legislador, desde que não sejam inconstitucionais, devem ser acatadas’. Quinze dias para pagar, não pagou, incorre o devedor na multa de 10% e aí inicia a execução. Até aí, não há maiores dificuldades e eu tenho certeza que não fui muito além do óbvio no que disse até agora. O grande
Foto: Ari Kaye /Jornal do Commercio
Alexandre Freitas Câmara tomando posse como Desembargador do TJ/RJ
problema não está no que foi dito até aqui, mas no que eu tenho de enfrentar agora. O prazo é de quinze dias, mas quinze dias a partir de quando? Esse é o grande problema hoje. Qual é o termo inicial do prazo de quinze dias a que se refere o artigo 475-J, do Código de Processo Civil? Podemos dizer que hoje há duas grandes linhas de pensamento, duas grandes correntes a respeito disso, cada uma delas com os seus desdobramentos, mas originadas pela mesma discussão. Para que esse prazo comece a correr é preciso promover-se uma intimação ou o prazo corre automaticamente? Esta é a primeira grande questão. E é claro, só podemos ter duas correntes, uma que diz que é preciso intimar e outra que diz que não é preciso intimar. Os que dizem que não é preciso intimar, e que portanto o prazo corre automaticamente, vão entrar em uma discussão. Corre automaticamente a partir de quando? E aí vão surgir mais algumas subcorrentes. E os que dizem que é preciso intimar vão entrar em uma outra discussão. Como essa intimação é feita? E então nós vamos ter duas subcorrentes, por partes. No entanto, voltando ao início da discussão, há uma questão preliminar a enfrentar. É preciso intimar ou não é preciso? É muito conhecida uma decisão do Superior Tribunal de Justiça, em que foi relator o ministro Humberto Gomes de Barros, que diz que o prazo corre independentemente de intimação. Na ocasião de sua publicação essa decisão foi noticiada da seguinte forma: ‘STJ define termo inicial do prazo do artigo 475-J, do CPC’. Como foi usado o termo ‘define’, imaginei que tivesse sido através de súmula. Mas não, foi uma decisão, a única, proferida pela 3ª Turma, e foi a única decisão colegiada do STJ
sobre o tema até hoje. Será que uma única decisão sobre o tema pode ser considerada a definição da matéria no STJ? Todos serão capazes de se lembrar de matérias que já estavam sumuladas no STJ e depois foram canceladas por ter mudado o entendimento. Quem não se lembra da questão do valor residual garantido do leasing. Certamente há quem se lembre da questão da arma de brinquedo, se qualifica ou não qualifica o crime de roubo, que o STJ sumulou dizendo que qualificava e depois cancelou. Uma decisão, cabe frisar, que nem o STJ se preocupou muito em respeitar, porque o que não foi muito divulgado é que depois daquela decisão houve dois processos de homologação de sentença estrangeira, onde a competência originária é do STJ, em que houve condenação ao pagamento de custas e honorários. E se a execução da sentença estrangeira homologada é feita na Justiça Federal de 1ª instância, por outro lado, a execução das custas e dos honorários fixados no processo de homologação é feita no próprio STJ, conduzida por seu Presidente. Depois daquela decisão então houve dois casos, em que ainda era presidente do STJ o ministro Barros Monteiro e em ambos ele determinou a intimação do devedor para que se iniciasse a contagem do prazo. Portanto, mesmo no STJ aquela decisão não foi capaz de resolver a questão. O grande argumento de quem diz que não precisa intimar é o fato de que o artigo 475- J não exige a intimação, o que é verdade. O artigo não diz quinze dias a contar da intimação. O que ele diz, pelo menos aproximadamente, é algo como: ‘condenado o devedor a pagar a quantia certa ou que venha a ser apurada em liquidação de sentença, deverá efetuar o pagamento no prazo de quinze dias, sob pena de incidência de 2008 NOVEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 27
multa de 10% sobre o valor da condenação’. Então, realmente, o texto não diz quinze dias a partir da intimação e o raciocínio é de que se não exige intimação é por que não precisa. Antes de querer analisar, teórica e criticamente, essa posição eu gostaria de ressaltar que a sua aceitação vai gerar um outro problema. Se não precisa intimar, é preciso, pelo menos, determinar qual é o momento exato em que esse prazo vai começar a correr. Se não é da intimação, são quinze dias a contar de quando? E aí alguns dirão: ‘– Do trânsito em julgado da sentença’. O que nem sempre é muito fácil de determinar quando ocorre, ainda mais se nós considerarmos que a decisão proferida no juízo de admissibilidade do recurso é meramente declaratória e, portanto, quando o Tribunal diz, por exemplo, que não conhece da apelação, o que ele faz com isso é declarar que a sentença contra a qual se apelou já havia transitado em julgado antes, porque contra ela não se interpôs recurso admissível. O Tribunal de Justiça de São Paulo está levando, em média, oito anos para julgar uma apelação, ou seja, passados oito anos da sentença, corre-se o risco da apelação não ser conhecida. Significa dizer que a sentença terá transitado em julgado oito anos antes daquele acórdão, e, portanto, quando observar que o seu prazo de quinze dias acabou, ele já terá acabado há sete anos e trezentos e cinqüenta dias. Além do que, se dissermos que são quinze dias do trânsito em julgado, correremos o risco de que partes economicamente poderosas e juridicamente mais bem aparelhadas recorram para protelar o trânsito em julgado, quando o objetivo da reforma não era esse, ao contrário, era a celeridade. Como é muito difícil definir o momento do trânsito em julgado da sentença condenatória, e muitas vezes esse momento é fixado em caráter retroativo, há quem sustente que se deve considerar que o termo inicial não é o trânsito em julgado da sentença, mas o trânsito em julgado da última decisão proferida no processo. Então, considerando-se o exemplo do Tribunal de São Paulo que levou oito anos para dizer que não conhece da apelação, eu entro com recurso especial, ele não é admitido, eu entro com agravo. O relator lá no STJ nega provimento ao agravo, eu entro com agravo contra a decisão dele, depois eu entro com embargos de declaração, depois com recurso extraordinário, com agravo contra a decisão que não admitiu o recurso extraordinário, com embargos de divergência, com ‘recurso eco’ (os conhecidos embargos de declaração em embargos de declaração em embargos de declaração em embargos de declaração…) e eu vou protelando durante vinte anos o trânsito em julgado, e quando a última decisão transitar em julgado começa o prazo de quinze dias. Mas era esse o objetivo da reforma? Certamente que não. Há quem diga que são quinze dias do momento em que os autos baixam à vara de origem, mas aí há um outro problema de ordem prática. Transita em julgado em Brasília e o réu quer retirar a guia para pagar. Indo a Brasília pegar a guia, é instruído a procurar a vara de origem; já na vara de origem, eles dizem: – Nós não temos os autos. Como o jurisdicionado vai saber o momento em que os autos chegaram na vara de origem? Isso é absolutamente surreal. Quem defende uma tese como essa não tem nenhum contato com a realidade prática. 28 • JUSTIÇA & CIDADANIA • NOVEMBRO 2008
Capeletti diz o seguinte: ‘É péssima qualquer teoria que não tenha contato com a realidade prática, assim como é péssima qualquer prática que não tenha embasamento teórico’. Precisamos construir uma teoria que seja capaz de se coadunar com a realidade. Desta forma, não pode ser quinze dias a contar do momento em que os autos chegam ao cartório. Após observados todos esses problemas práticos, analisemos teoricamente a idéia. Porque que não precisa de intimação? Porque o 475-J não a exige? Eu digo que precisa de intimação, exatamente por causa do silêncio do referido artigo, que prevê o prazo de quinze dias, mas não diz a partir de quando. O artigo 240 do Código de Processo Civil é expresso ao dizer que, salvo disposição em contrário, os prazos para as partes, para o Ministério Público e para a Fazenda Pública, correm da intimação. Dessa forma, para que não fosse necessária a intimação, o artigo 475-J teria de, expressamente, dispensála. Teria que informar expressamente quinze dias a contar de quando, modificando-se, portanto, o termo inicial que o próprio Código estabelece como regra, a exemplo de algumas de suas disposições. O artigo 241 já cria exceções quando diz que se a citação for por Oficial de Justiça o prazo corre da juntada do mandado; já não é mais do momento em que se toma conhecimento, mas em momento posterior. O art. 322 diz que para o revel que não tem advogado constituído nos autos, o prazo corre independentemente de intimação. Então, claro que podem haver exceções à regra geral, mas essas exceções precisam estar expressamente previstas. Como o 475-J não previu expressamente uma exceção, deve ser aplicada, a meu ver, a regra geral. O ministro Athos Carneiro, defensor da idéia de que não precisa haver intimação, costuma dizer o seguinte: ‘o problema dos que acham que tem que haver intimação é que eles ficam olhando para a lei nova querendo interpretá-la com base na velha, o que se precisa entender é que foi criado algo novo’. Em vários eventos, inclusive diante do próprio ministro Athos, já tive a oportunidade de demonstrar minha discordância com o seu ponto de vista, posto que, a meu ver, não foi criado nada de novo. Não se criou um sistema novo, até mesmo porque não se cria um sistema novo incorporando artigos a um Código. Para se criar um sistema novo, revoga-se o Código e faz-se um novo. Ao inserir artigos em um Código, estes deverão ser interpretados sistematicamente e têm de ser lidos de acordo com o sistema que o Código criou. O art. 240 está em vigor, portanto, salvo disposição em contrário, o prazo corre da intimação. No Tribunal do Rio de Janeiro, e em quase todos os tribunais locais, é esse posicionamento que está prevalecendo, ainda que não seja unânime. Surge então outro problema. Como intimar? Pelo Diário Oficial ou pessoalmente ao devedor? Apesar de muito debatida, sustento a posição de que a intimação deve ser dirigida pessoalmente ao devedor, e explico o porquê. O artigo 234 do Código de Processo Civil define intimação como sendo o ato pelo qual se dá ciência a alguém dos atos e termos do processo para que faça ou deixe de fazer alguma coisa. Assim, intimação é o ato pelo qual se dá ciência a alguém – que pode ser parte,
advogado, testemunha, perito –, para que faça ou deixe de fazer alguma coisa. O professor Moniz de Aragão, no seu ‘Comentários ao Código de Processo Civil’, analisa um ponto que sempre passa despercebido na doutrina. Ele diz que do texto do artigo 234 pode-se extrair uma pergunta: quem é o destinatário da intimação? Observe-se que ele falava isso muito antes de 475-J. Diz ele que, salvo expressa previsão em sentido contrário, o destinatário da intimação deverá ser encontrado a partir da leitura do artigo 234 do CPC. E se intimação é o ato pelo qual se dá ciência a alguém de que deve fazer ou deixar de fazer alguma coisa, destinatário da intimação é aquele de quem um certo comportamento processual é esperado. Aquele de quem se espera que faça ou deixe de fazer é que deverá ser intimado. Quando se espera um comportamento do advogado, intima-se o advogado; quando se espera um comportamento da testemunha, intima-se a testemunha; quando se espera um comportamento do perito, intima-se o perito; quando se espera um comportamento da parte, intima-se a parte, pessoalmente. Uma boa forma para ver como isso funciona é na audiência de instrução e julgamento, na qual a parte só deve comparecer pessoalmente se houver determinação para prestação de depoimento pessoal. Designada a audiência, o que se espera é que o advogado compareça e por isso a intimação é feita diretamente a este, pelo Diário Oficial. Quando for necessário o comparecimento da parte, ela deve ser intimada pessoalmente, porque a intimação feita pelo Diário Oficial dirige-se apenas ao advogado e não ao seu cliente. E observe-se que a intimação pessoal da parte não dispensa a intimação do advogado pelo Diário Oficial, porque de ambos há comportamentos esperados e, portanto, ambos têm de ser intimados. Aplicado esse raciocínio ao artigo 475-J, deve levar-se em conta o fato de que o comportamento esperado é o pagamento, e o pagamento não é ato esperado do advogado, é ato da parte. Se quem paga é a parte, esta deve ser a destinatária da intimação e não o seu advogado. Muitos têm criticado esse entendimento, dizendo que isso seria apenas mudar o nome do ato inicial de comunicação ao devedor, que antes era citação e agora é intimação. O que tem sido dito pelos críticos desse raciocínio é que uma das grandes falhas do sistema anterior era a complicação para citar o executado, e se era difícil citá-lo, difícil agora será intimálo. Com todas as venias, não foi levado em conta o fato de que a dificuldade na citação decorria da necessidade de observância de alguns elementos de forma que a intimação não exige. Basta observar o seguinte, no processo de execução a citação pelos Correios é proibida, conforme teor do artigo 222, alínea ‘d’, do Código de Processo Civil, mas, a intimação não o é. A intimação postal é possível, estando em vigor o parágrafo único, do artigo 238, do Código de Processo Civil, que diz ser considerada válida a intimação enviada por via postal para o endereço que a parte informou, sequer se exigindo a assinatura dela no aviso de recebimento. Basta que a intimação tenha sido encaminhada para o endereço por ela informado, visto que é ônus da parte informar qualquer mudança de endereço, definitiva ou temporária.
A aplicação desse dispositivo permitirá que se encaminhe a intimação para o devedor por via postal, sem que isso comprometa a celeridade do processo, sem que se tenha de observar aquela série imensa de requisitos formais que são restritas à citação, e sem que se ponha em xeque o conceito de intimação do artigo 234 do Código de Processo Civil. Agora, na era da informatização do processo, essa intimação poderá até, desde que observados os requisitos da lei, se fazer por meios eletrônicos, dirigida à parte e não ao advogado. O cuidado que se deve tomar, a meu juízo, é o de se tentar evitar que em nome da busca de celeridade comprometam-se os conceitos. Depois de inserido no artigo 5º, da Constituição, o inciso LXXVIII, que diz que todos têm direito à duração razoável do processo, sendo dever do Estado assegurar a sua célere tramitação, surgiu uma sanha aceleratória, que deve ser recebida com muito cuidado. Costumo sempre fazer referência ao texto da Convenção Americana de Direitos Humanos, o Pacto de São José da Costa Rica, que tem um artigo destinado a tratar das garantias judiciais no plano dos Direitos Humanos, o artigo 8º. E o primeiro item desse artigo diz assim: ‘todos têm direito, com respeito às garantias, a um julgamento em tempo razoável por um Tribunal imparcial’. A garantia de celeridade não pode levar à supressão das garantias do processo. Duração razoável do processo não é o direito a um processo rápido a todo custo. Duração razoável do processo é a garantia de que o processo não demore nem mais nem menos do que o tempo necessário para produção de um resultado justo. Ele não pode demorar demais, como acontece em alguns estados, mas não pode demorar de menos, de forma a se criar um sistema de processos instantâneos. O processo precisa do respeito às garantias, precisa do respeito aos conceitos. Não podemos, em nome da celeridade, abandonar o sistema processual que está em vigor. É claro que isso pode mudar, basta que se altere o 475-J e se estabeleça um outro termo inicial. Mas, enquanto isso não for feito, nós teremos de ler o artigo 475-J com base no sistema em que ele se insere. E, a meu ver, é muito auspicioso o fato de que no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro já existem decisões exatamente nesse sentido que eu tenho sustentado. A 13ª Câmara Cível, por exemplo, tem reiteradamente decidido nesses termos. Há um dado adicional que eu queria trazer à reflexão dos senhores. Se, no caso concreto, tomar-se qualquer outra opção que não seja essa aqui proposta; se considerar, por exemplo, que basta intimação do advogado pelo Diário Oficial, o que pode acontecer na prática? O devedor não paga, inicia-se a execução e ele a impugna dizendo que ainda não podia ser executado porque o prazo não tinha começado, já que dependia de intimação pessoal e perder-se-á algum tempo então discutindo se o prazo já começou, ou não começou. Agora, se o devedor for intimado pessoalmente, pelos Correios, pode-se até perder alguns dias agora, mas ganhar-se-á muito tempo depois. Se tivermos uma visão do tempo do processo, não microscópica, não olhando para estes quinze dias, mas macroscópica, pensando na duração total do processo, o ganho é gigantesco se a intimação for feita pelos Correios.” 2008 NOVEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 29
PROGRESSOS E DESAFIOS NA ÁREA DA SAÚDE NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
Ricardo Levy Sadicoff Procurador do Estado do RJ
Pedro Dimasi Procurador do Estado do RJ
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Governador do Estado do Rio de Janeiro, em diversas ocasiões, já se manifestou no sentido de que a Saúde é uma das áreas prioritárias em sua gestão. Obviamente, essa visão é extremamente benéfica à sociedade; todavia, traz como conseqüência inafastável uma maior responsabilidade de todos aqueles que trabalham na Secretaria de Estado de Saúde e Defesa Civil (Sesdec), possibilitando o acesso da população fluminense ao Sistema Único de Saúde. Honrados com o convite da Dra. Lúcia Lea Tavares Guimarães, Exma. Procuradora-Geral, para assumir a Consultoria Jurídica da Sesdec, o presente ensaio busca listar resumidamente os avanços e desafios de início vislumbrados nesta área. Medidas relativas às aquisições de bens e serviços Falhas foram verificadas nos processos internos de aquisição de bens e serviços. O grande volume de insumos utilizados nos hospitais, comprados diretamente pelas unidades, muitas vezes sem prévio procedimento licitatório, gerava uma discrepância injustificada, pois o mesmo produto era vendido para os diversos hospitais da rede estadual por preços diversos. Além disso, não havia a economia obtida nas compras de grandes quantidades. Uma das primeiras medidas adotadas para debelar esse quadro envolveu todas as áreas da Secretaria: centralizar todas as compras e realizar grandes processos licitatórios, com vista a realizar o princípio da economicidade. A vantajosidade 30 • JUSTIÇA & CIDADANIA • NOVEMBRO 2008
da medida, no que tange aos medicamentos que compõem o Programa de Dispensação Excepcional (que são aqueles fornecidos regularmente), reflete-se nos seguintes dados: em 2006 o custo mensal por paciente era de R$ 32,24; em 2007 esse valor foi reduzido para R$ 15,48; e em 2008 está em R$ 12,11, indicando uma redução em dois anos de 65%. Observou-se, ainda, que havia um elevado gasto de recursos públicos em análise laboratorial com um serviço insatisfatório. Dessa forma, foi realizada a terceirização do serviço de laboratório, com base na Tabela do SUS. Ou seja, o Estado paga pelos procedimentos exatamente o mesmo valor estabelecido pelo Ministério da Saúde para repassar aos entes e pagar os prestadores de serviços conveniados. Além de uma melhora na eficiência do serviço – uma vez que o resultado de um hemograma atualmente é conhecido em poucas horas, quando poderia demorar dias à época em que o serviço era próprio – a economia foi assombrosa. Em 2006, antes da terceirização, o Estado gastou 135 milhões de reais em serviços de laboratórios de Patologia. Já em 2008, após a terceirização e com o aumento do número de exames, uma vez que houve a abertura das UPAs 24 horas e de novos leitos nos hospitais, o valor gasto é de aproximadamente 20 milhões. Um terceiro processo de suma importância foi a realização de processos regulares para o abastecimento dos medicamentos excepcionais. Como o estoque do Estado não estava regularmente abastecido, havia um enorme contingente de pacientes que não possuía acesso contínuo
Foto: Olinda Fabiana Gil
Da esquerda: Ricardo Levy Sadicoff e Pedro Dimasi
aos medicamentos excepcionais, o que ofendia o direito constitucional à saúde e aumentava o número de ações judiciais. Para sanar o problema, instaurou-se uma série de procedimentos licitatórios de aquisição e realização de registros de preços, além de adesões – o chamado carona – a registros de preços de outros entes federativos. Em relação aos mandados judiciais, em particular, em detrimento das dispensas emergenciais, corriqueiras outrora, optou-se pela realização de licitações dos diversos medicamentos que usualmente são pleiteados judicialmente. Conforme se verifica nos gráficos abaixo, houve um considerável aumento do número de atendimentos:
Verifica-se, portanto, a busca pela eficiência dos serviços e pela diminuição dos gastos públicos. A participação da Subsecretaria Jurídica foi de grande relevância na consultoria e análise da legalidade dessas medidas. Apontamentos sobre a Fundação Estatal: novo modelo de gestão O Ministério do Planejamento da União elaborou projeto de criação de Fundação Pública, com natureza de Direito
Privado, para diversas áreas, dentre as quais a Saúde. O mencionado projeto se baseia em entendimentos doutrinários e jurisprudenciais, inclusive do Supremo Tribunal Federal (RE 101.126/RJ, RE 219.900-1/RS e MS 24.427-5/DF), de que o Poder Público pode instituir fundações públicas com natureza de Direito Privado ou com natureza de Direito Público. A Secretaria, após amplo debate, entendeu que a Fundação Estatal se apresentou como o modelo institucional mais adequado para profissionalizar a gestão dos hospitais públicos, aperfeiçoar o atendimento aos usuários do SUS e melhorar as condições de trabalho dos profissionais de saúde. Com o intuito de implantar esse novo modelo e em observância ao art. 37, XIX, da Constituição da República, foi criada, no âmbito do Estado do Rio de Janeiro, a Lei Complementar n° 118/2007, que definiu a área da Saúde como área de atuação passível de exercício por Fundação Pública de Direito Privado. Posteriormente, foi instituída a Lei Estadual nº 5.164/2007, que autorizou a criação de três fundações: do hospital de urgência, dos hospitais gerais e dos institutos. Merecem ser citadas as principais diretrizes que regerão as fundações estatais: • possuem autonomia gerencial, orçamentária e financeira; • integram a rede do Sistema Único de Saúde, devendo organizar seus serviços com base na universalização do atendimento, na eqüidade dos serviços e na integralidade da assistência; • é vedada a cobrança de qualquer forma de remuneração dos usuários; • submete-se ao controle interno da Administração Pública, e de órgãos externos, bem como ao controle social; • as compras de bens e aquisições de serviços se submetem a prévio procedimento licitatório; • o ingresso no quadro de pessoal dependerá de prévia aprovação em concurso público de provas ou de provas e títulos; • os empregados da Fundação ocupam empregos públicos e, portanto, se submetem ao regime de trabalho CLT; • os atuais servidores estatutários são fundamentais para o sucesso desse modelo e, cedidos à Fundação, farão parte de sua estrutura e funcionamento; • há previsão de prêmio pecuniário pelo bom desempenho das atividades; • celebra contrato de metas com o Poder Público, e; • o repasse de recursos pelo Poder Público à Fundação fica vinculado ao alcance de metas quantitativas e qualitativas estabelecidas individualmente para cada unidade. 2008 NOVEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 31
O projeto da Fundação Estatal surge com o intuito de trazer um modelo mais eficiente de gestão, com transparência e cobrança de resultados, objetivando um atendimento mais digno aos usuários do Sistema Único de Saúde e a valorização profissional. Política pública de fornecimento de medicamentos e judicialização Está aí um problema que aflige, em maior ou menor grau, as Secretarias de Saúde de todos os estados. A Constituição Federal de 1988 proporcionou a universalização dos serviços públicos de saúde, consagrou que “a saúde é direito de todos e dever do Estado”, instituiu o “acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção e recuperação” e estabeleceu ser o serviço de saúde competência comum de todos os entes da Administração. Porém, para o correto sentido desse comando, veja-se a lição do ilustre procurador do Estado Luis Roberto Barroso: “Como todas as esferas de governo são competentes, impõe-se que haja cooperação entre elas, tendo em vista o ‘equilíbrio do desenvolvimento e do bem- estar em âmbito nacional’ (CF/88, art. 23, parágrafo único). A atribuição de competência comum não significa, porém, que o propósito da Constituição seja a superposição entre a atuação dos entes federados, como se todos detivessem competência irrestrita em relação a todas as questões. Isso, inevitavelmente, acarretaria a ineficiência na prestação dos serviços de saúde, com a mobilização de recursos federais, estaduais e municipais para realizar as mesmas tarefas. Como todas as esferas de governo são competentes, impõe-se que haja cooperação entre elas, tendo em vista o ‘equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional’.” (CF/88, art. 23, parágrafo único). Segundo a Portaria nº 3.916/98 do Ministério da Saúde, cabe à União formular a Política Nacional de Assistência Farmacêutica, auxiliar os gestores estaduais e municipais e elaborar a Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename). Os estados são responsáveis, sobretudo, pela aquisição, com a colaboração da União Federal, e pela distribuição de medicamentos excepcionais, além de repassar recursos e medicamentos aos municípios. Já os municípios ficam responsáveis por definir a relação municipal de medicamentos essenciais, com base na Remane, e executar a assistência farmacêutica. Todavia, há inúmeros medicamentos que não se encontram padronizados na lista elaborada pelo Ministério da Saúde. Estão na denominada zona cinzenta, pois nem estados nem municípios são por eles responsáveis. Daí verifica-se a relevância e compreende-se a conclusão de Barroso, em seu trabalho já citado, quando assevera que para os medicamentos não previstos em nenhuma lista (isto é, não fornecidos pelo sistema público), a única ação cabível será a coletiva, inadmissível a individual. Aduz, também, que um ente não pode ser compelido a fornecer medicamento já previsto na lista de outro, sendo mister sua exclusão do feito. 32 • JUSTIÇA & CIDADANIA • NOVEMBRO 2008
Este entendimento vem sendo adotado no TJ/RJ, como ocorreu em recente sentença da ilustre magistrada Alessandra Tufvesson, ao excluir o Estado de demanda na qual não se pleiteava medicamento excepcional, com base no estudo de Luis Roberto Barroso. Ademais, se a ação pugna pelo fornecimento de medicamento ou insumo não incluído nas listas oficiais – elaboradas pelo Ministério da Saúde – como estados e municípios podem ser responsabilizados por isso? A União deve fazer parte deste processo, pois a mora, nesse caso, e se houver (pois depende de critérios técnicos alheios ao mundo jurídico), é somente dela. O TJ/MG já decidiu estar “ausente a verossimilhança do direito do autor ao recebimento de tratamento de saúde não fornecido pelo sistema público...” por não ser possível ao magistrado determinar que o ente estatal suporte os custos de medicamentos que não foram previamente selecionados mediante critérios técnicos (Processo 1.0024.07.486861-3/0001(1), rel. Des. Dídimo Inocêncio de Paula, publicação:11/10/2007). Para auxiliar o Judiciário, em especial o TJ/RJ no enfrentamento dessa penosa questão, a Administração tem de colaborar. Como primeiro passo, já exposto, a Sesdec buscou regularizar as aquisições dos itens de obrigação do próprio Estado. Após, em conjunto com o Município, criou-se um único órgão para recebimento de mandados judiciais e de ofícios da Defensoria Pública; os técnicos dos dois entes fazem imediatamente a divisão do que é obrigação do Estado e do que é do Município, evitando a duplicidade de entrega do medicamento e que um ente cumpra obrigação que pela ótica do SUS é atribuída a outro. Tais medidas redundam também no resgate da credibi lidade da Secretaria junto ao Poder Judiciário, Defensoria Pública e Ministério Público. Acordos foram feitos. O primeiro, realizado com a Defensoria Pública do Estado, estabeleceu que quando se tratar de medicamento que integra a lista oficial, ela se compromete a oficiar o ente competente para que o medicamento seja fornecido administrativamente em certo prazo, o que gerou redução no volume de ações, com benefícios para os entes, para o Judiciário e para o paciente, atendido mais rapidamente. Atualmente, encontra-se em implantação projeto piloto com o Egrégio Tribunal de Justiça, pelo qual a Secretaria irá fornecer profissionais da área de saúde (médicos, farmacêuticos, enfermeiros e nutricionistas) para que os juízes tenham maiores subsídios técnicos para proferir suas decisões liminares ou sentenças nas demandas de fornecimento de medicamentos e insumos. Sistema semelhante já foi implementado pelo município de Ribeirão Preto em São Paulo. Após sua criação verificou-se que cerca de 30% (trinta por cento) das demandas não prosseguem por não apresentarem evidências científicas da droga ou pela composição do medicamento ainda não ser registrada no Brasil. Obviamente, todos esses fatos narrados são apenas pequenos atos para se resgatar um serviço de saúde pública digno à população fluminense. Apesar da caminhada longa e cheia de obstáculos, os primeiros passos foram dados.
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CARTÉIS E CONSUMIDOR Aurélio Wander Bastos Advogado Doutor em Ciências Políticas Membro do Conselho Editorial
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mercado como estrutura dinâmica do capitalismo, sempre esteve suscetível a crises econômicas, muitas vezes localizadas, mas, modernamente, de extenso alcance internacional, devido ao processo de globalização das relações comerciais e industriais. Inicialmente, ainda na virada dos anos de 1900, as iniciativas jurídicas pioneiras (Sherman Act), para evitar essa sobrecarga leviatânica que provocava a sucumbência dos concorrentes e submetia os consumidores, voltaram-se inicialmente para evitar a concentração de empresas, ou, mais especificamente, as fusões e incorporações, o que permitiu que a literatura sobre a matéria ficasse denominada de “leis” antitruste, na exata tradução de se impedir a dominação de mercado por oligopólios e monopólios. Paralelamente, mesmo em períodos antecedentes às primeiras “leis” antitruste, a legislação foi sendo suplementada por políticas e iniciativas jurídicas destinadas a inviabilizar a formação de cartéis, não propriamente os irmãos gêmeos dos oligopólios e monopólios, mas agrupamentos temporários de empresas que visavam através de combinações artificiais, mas de profundos efeitos no mercado, pôr preços ou definir a composição de produtos e serviços, de tal forma que entre si mais se assemelhassem do que se dessemelhassem, confundindo o consumidor e tumultuando o mercado. Os cartéis, de qualquer forma, na evolução da legislação internacional e inclusive brasileira, tomaram uma característica infrativa, que em muitas ocasiões alcança efeitos significativos de criminalidade. No Brasil, as Constituições mais recentes, principalmente a partir de 1946, depois de algumas frustradas tentativas legislativas, evoluíram para regulamentar e proibir os abusos do poder econômico, sendo que, todavia, o modelo praticado evoluiu diferentemente dos Estados Unidos, berço desses mecanismos protetivos do mercado depois de experiências isoladas na Inglaterra. A nossa legislação sobre práticas anticoncorrenciais caminhou pari passu com as leis protetivas do consumo do povo, o que permitiu que o Conselho de 34 • JUSTIÇA & CIDADANIA • NOVEMBRO 2008
Administração e Defesa Econômica (Cade) e a Sunab viessem a ser criadas na mesma época. Esses mecanismos vieram a ser complementados pelo aperfeiçoamento autárquico do Cade e pela criação do Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC) na Secretaria de Direito Econômico (SDE) como órgão da administração direta. Todavia, as leis brasileiras que sucederam à pioneira Lei nº 4.137/62, especialmente após os anos 90, não desprezaram as leis antitruste, ampliando inclusive o seu alcance teórico e os seus fundamentos econômicos. As políticas de mercado traduzidas não apenas nas práticas comerciais, industriais e de serviço, procurando acompanhar os procedimentos fortalecidos pelos processos de globalização, de certa forma desviaram-se das políticas de repressão às concentrações e fusões, aliás, pelo contrário, estas práticas mais as viabilizaram sem subtrair as competências de governo. Por outro lado, tornou-se imprescindível incentivar políticas de repressão aos cartéis, porque na verdade se os atos de concentração estavam sob observação governamental direta, principalmente através do Cade e das Agências Regulatórias, os cartéis poderiam sobreviver no contexto geral do mercado com graves danos para o consumidor e para a economia. O ministro da Justiça, Tarso Genro, recentemente, tomou expressiva iniciativa preventiva na área de avaliação dos cartéis na sociedade brasileira, principalmente sua potencial influência sobre remarcação de preços num cenário de presumíveis flutuações de mercado. As sociedades capitalistas tradicionalmente desenvolveram-se a partir de um processo diversificado de acumulação de capitais, determinado, por um lado, pelo processo, nem sempre lógico, da concorrência (os movimentos concorrenciais são centrífugos) e, por outro lado, pelo processo lógico da concentração econômica (o processo de enriquecimento é centrípeto). Estes processos não são entre si absolutamente antinômicos, de tal forma que podemos afirmar que não há concentração sem concorrência, ou seja, concentrar é restringir o espaço de mercado (a concentração é a reversão
Foto: Arquivo JC
de movimento centrífugo), mas pode não impedir a concorrência, muito embora possam existir mercados de livre concorrência sem concentração. Todavia, à medida que os mercados buscam oferecer produtos e serviços de melhor qualidade, tendem a restringir as possibilidades de negociação da concorrente, que, ou melhora o seu padrão de oferta, ou sucumbe diante da pressão concorrencial, falindo ou buscando novos aliados. Esta aliança pode se manifestar através da simples fusão ou incorporação de uma empresa por outra (truste) – política de certa forma predominante no mundo global (diversamente do passado) –, ou através de acordos ou compromissos (que em geral não têm natureza jurídica) para resistir à concorrência (cartéis), mais visíveis nas políticas brasileiras recentes. Neste caso, não necessariamente as concentrações empresariais ocorrem em função da dinâmica do próprio mercado, mas de ajustes ou acordos que as empresas, entre si, estabelecem, para dominar o mercado relevante, ou para limitar ou prejudicar a livre concorrência. Estas são as situações que foram ressaltadas no ‘Dia Nacional do Combate aos Cartéis’, ocorrido no Ministério da Justiça.
Ressalte-se, por isso, que, quando as empresas entre si se coordenam (cartel), para alcançar objetivos concorrenciais abusivos, a concentração deixa de refletir a livre dinâmica do mercado e assume a natureza infrativa indicada como conduta concorrencial ilícita em nossa legislação, sujeita às especiais formas de sanções aplicáveis através de autoridades administrativas ou judiciais – Cade, SDE, Agências Regulatórias, etc. Esta é a razão pela qual podemos distinguir interação de empresas no mercado com objetivos lícitos, e dominação abusiva, como não poderia deixar de ser, com objetivos ilícitos ou excessivos. De qualquer forma, entendemos que, nas circunstâncias cautelares que estamos ultrapassando, estas questões precisam ser aprofundadas, considerando, muito especialmente, as dimensões abertas dos direitos do consumidor, que sofrem os principais e imediatos efeitos da cartelização, principalmente em momentos de flutuação de mercados, mas, muito especialmente, considerar os novos patamares conceituais introduzidos pela experiência européia, marcada pioneiramente pela crise global, e os riscos de efeitos residuais. 2008 NOVEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 35
DAS LIMINARES E DA ANTECIPAÇÃO DE TUTELA
Massami Uyeda Ministro do STJ Membro do Conselho Editorial
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estudo dos institutos da liminar e da antecipação de tutela há de relacionar-se com os escopos do processo e sua efetividade como instrumentos de urgência de prestação jurisdicional. Na impossibilidade de se alcançar o padrão de justiça ideal – segundo o qual, na sugestiva imagem formulada por Cirrel Czerna, no Olimpo dos Deuses Gregos, uma colisão de bigas, sob o olhar atento e vigilante de Themis, a deusa da Justiça, instantaneamente seria reparada, com o certeiro, preciso e infalível dardo da sentença divina, repondo as coisas no seu status quo ante, dando a cada um o que é seu –, a justiça entre os seres humanos há de ser feita, banida a realização de justiça pelas próprias mãos, por meio de regular processo judicial, sob o patrocínio e condução do Estado-Juiz. O processo, como instrumento da efetivação do direito, assume contornos de garantia individual constitucional, consagrada no dístico do due process of law. Nessa ordem de idéias, o processo deve amoldar-se ao direito material de modo a não simplesmente assegurar a composição do litígio e a reparação do dano suportado pelo titular do direito lesado, mas a proporcionar a mais adequada, objetiva e rápida concretização do direito da parte que tem razão, como sustenta Theodoro Junior (in “Curso de Direito Processual Civil”, Forense, vol.II, 42ª ed., pág. 736). Contudo, como conciliar o fator tempo de duração do processo com o da segurança jurídica, se, para se alcançar esta segurança jurídica, há que se observar, no desenrolar da lide posta em juízo, os postulados do contraditório, da ampla 36 • JUSTIÇA & CIDADANIA • NOVEMBRO 2008
defesa, do duplo grau de jurisdição, os quais demandam concessão de prazo temporal para seu exercício? Se a insatisfação do direito material da parte é um dano imediato que a outra parte já lhe impôs, e ao processo corresponde a tarefa de repará-lo, a delonga processual, que é inerente ao regular andamento do processo, pode acarretar um novo dano. É certo que os mecanismos da imposição de juros moratórios, da correção monetária e de outros acessórios visam a compensar o dano decorrente da demora na prestação jurisdicional, mas, por óbvio, não promovem a restitutio in integrum do direito material lesionado. A doutrina tem denominado este dano, assim configurado, como “dano marginal”, decorrente do descumprimento do dever jurídico pela parte faltosa e é causado ou agravado pela demora processual. Este cenário fático não passou despercebido ao legislador, que, como forma de atenuar os efeitos deletérios da delonga processual, criou institutos jurídicos que permitem efetivação jurisdicional mais célere, como o dos títulos extrajudiciais, os quais dispensam a fase cognitiva para a constituição do título executivo, possibilitando-se a imediata execução; reduziu fases procedimentais ao instituir o rito sumaríssimo; implantou Juizados Especiais, tanto Cíveis, quanto Criminais; adotou a ação monitória; estimulou a adoção de meios alternativos para a resolução de conflitos de interesse. Entretanto, tais medidas ainda são insuficientes para se chegar a um mínimo de efetividade da prestação jurisdicional. Estas considerações são aqui feitas no pressuposto de
“Se a insatisfação do direito material da parte é um dano imediato que a outra parte já lhe impôs, e ao processo corresponde a tarefa de repará-lo, a delonga processual, que é inerente ao regular andamento do processo, pode acarretar um novo dano.”
Foto: Sandra Fado / STJ
que a parte autora é quem, ao final do trâmite processual, venha a ser declarada vencedora, entretanto, há considerar-se a hipótese de que a parte contrária, contra quem se propôs a ação, é quem possa vir a ser declarada vitoriosa. Exatamente, para que se possa aplicar o Direito ao caso concreto, para que se possa decidir a lide, faz-se necessário o processo. O processo instrumentaliza o direito de ação. E o direito de ação afigura-se um direito subjetivo que a parte supostamente lesionada em seu direito busca sua reparação perante o Poder Judiciário. Trata-se de direito subjetivo, cujo exercício é prestigiado pela Constituição como garantia individual (art.5º, inciso XXXV). A pretensão da parte autora de ver satisfeita a reparação de seu direito violado há de percorrer um itinerário processual, cujo escopo é obter-se o reconhecimento da violação do direito, constituindo-lhe um título judicial executivo. Vê-se, assim, que a efetivação do direito da parte de quem viu seu direito violado por outrem, para que possa se concretizar, demanda tempo que, na maior parte das vezes, não repõe a integralidade da reparação desejada. Por isso é que o próprio legislador editou normas que possibilitam a expedição de medidas de urgência, seja por meio de medidas liminares, seja por medidas antecipatórias, como forma de prevenir os danos que advenham da delonga, sob a ótica de que, ao se aguardar a regular tramitação do processo, proclamada a procedência da ação, ao se efetivar a execução, o objeto da demanda pode não mais existir. Estas medidas configuram a tutela de urgência.
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Estas tutelas de urgência ensejaram o surgimento de uma outra espécie de processo. Ao lado do processo de conhecimento – que é aquele que tem por objetivo a declaração e constituição de um direito, com a formação de um título executivo judicial –, e da conseqüente execução, necessário, para a efetivação e realização do título executivo, o processo cautelar. O processo cautelar é um processo que tem por finalidade acautelar o processo principal. Ou, em outras palavras, é um processo que visa a prevenir e acautelar os efeitos da demora no feito principal, possibilitando-se a prolação de sentença que seja útil ao processo principal. No processo cautelar não há satisfação do direito material perseguido pelo autor. O que se objetiva no processo cautelar é a proteção do direito disputado na ação. Na antecipação de tutela, ao contrário, há uma prévia antecipação do direito material, ou seja, há prévia antecipação da procedência do pedido do autor. Ambas medidas servem ao propósito de possibilitar uma outorga antecipada da providência, seja no campo processual, seja no campo do direito material. Exemplifiquemos, para melhor compreensão. Medida cautelar de separação de corpos de casal há de servir ao propósito de alicerçar e preparar ação de separação. Na medida cautelar, não se indaga quanto ao mérito, se o autor é quem está com a razão ou não. Pede-se a separação de corpos como medida acautelatória da separação, sendo necessária sua concessão, para evitar-se dano maior, posto que os cônjuges, estando em litígio, não é prudente exigir-se devam conviver sob o mesmo teto. Nesta hipótese, a medida cautelar é antecedida por um pedido de concessão de medida liminar para que, antes mesmo de se ouvir a parte contrária, se defira a separação de corpos ao cônjuge requerente. Liminar tem o sentido de inicial, no limiar, na soleira, na entrada da ação. E diz-se inaudita altera pars porque concedida sem a oitiva da outra parte. Vê-se, portanto, que uma medida assim deferida há de preencher requisitos para sua concessão, sob a prudente apreciação do Juiz. A ação cautelar serve como preparatória da ação principal. E, por isso, seu propósito é servir de garantia do processo. No caso de antecipação de tutela, o que se tem é uma antecipação do próprio direito que se persegue na ação. É o caso, por exemplo, do autor de uma ação de reparação de danos decorrentes de acidente automobilístico quando pleiteia a antecipação do pagamento de despesas decorrentes de intervenção cirúrgica. Este pedido tem natureza de uma antecipação do próprio direito perseguido na ação. Por isso é que se diz que na tutela antecipatória há uma satisfação do direito material. Ambas as modalidades de tutelas de urgência, para que possam ser concedidas, devem observar requisitos essenciais, os quais serão analisados e sopesados pelo Juiz. No caso das liminares em medidas cautelares, necessária a configuração do fumus boni juris e do periculum in mora. Por fumus boni juris (fumaça do bom direito) deve-se entender que a alegação há de ter a aparência de bom direito, ou seja, 38 • JUSTIÇA & CIDADANIA • NOVEMBRO 2008
que a alegação repouse em fundamento jurídico consistente, que o direito seja plausível. E, por periculum in mora, devese entender o risco que a delonga processual possa causar ao requerente, de tal sorte que, ao final da tramitação processual, proclamada a excelência de seu direito, o objeto da controvérsia possa até mesmo não mais existir. Já no tocante às tutelas antecipatórias, na forma do artigo 273 do Código de Processo Civil, é necessário que haja a verossimilhança da alegação; sob pena de, caso não seja concedida a antecipação, ao final pereça o direito; ou que possa a parte contrária opor injustificada resistência no decorrer do processo ou evidenciar-se manifesto propósito protelatório do réu. Em ambas as situações, há que se pautar o Juiz por critérios de razoabilidade e proporcionalidade. E há que se decidir motivadamente (art.93, inc. IX, da Constituição Federal). E aqui se faz necessário abrir um parêntese para uma confissão: na difícil tarefa de julgar, de dar a cada um o que é seu, o Juiz, no momento em que é convocado a apreciar um pedido de concessão de liminar ou de antecipação de tutela jurisdicional, sente a solidão que o cerca, pois, sem ter a oportunidade de ouvir a parte contrária, diante da relevância da questão apresentada, premido pela necessidade de decidir rapidamente, pois emergencial a situação que se apresenta, há de confiar em seu “feeling”, lastreado em seus conhecimentos jurídicos e sua formação, para deferir ou indeferir o pedido. Sem sombra de dúvida que, neste momento, o Juiz sente ter sobre seus ombros a pesada carga de responsabilidade de ter de decidir até mesmo o destino de uma pessoa, de uma empresa ou de uma coletividade. Tanto as medidas liminares quanto as decisões que deferem a antecipação de tutela têm natureza provisória, podendo ser revistas no curso do processo. E também não se circunscrevem apenas às hipóteses de cabimento e concessão initio litis, ou seja, no limiar da propositura da ação. Podem ser concedidas em outras fases processuais, como, por exemplo, após audiência de instrução; no corpo da própria sentença; em ações cautelares incidentais à interposição de recursos. Esclareça-se, ainda, que as medidas de urgência, concedidas liminarmente ou em antecipação jurisdicional, acham-se sob o crivo de recursos para a instância superior. Embora se considere que “não há nada de novo sob o sol”, segundo visão e perspectiva macroscópica da História, não se pode deixar de considerar que, no cotidiano de todos, os fatos da vida são dinâmicos e cambiariformes, os quais assemelhamse às imagens vistas num caleidoscópio. O Direito, como conjunto de normas que visam reger as relações jurídicas dos integrantes do corpo social, traça diretrizes de conduta, delimitando direitos e obrigações. Entretanto, nem todas as situações e ocorrências são cobertas pela dicção da lei. Como conciliar, portanto, a aplicação da lei a tais situações? Cabe ao intérprete e ao aplicador da lei especificá-la ao caso concreto. Esta, pois, a razão de se dizer que a sentença judicial especializa a lei ao caso concreto.
HONORÁRIOS DE SUCUMBÊNCIA NA JUSTIÇA DO TRABALHO
Benedito Calheiros Bomfim Advogado Membro da Academia Nacional de Direito do Trabalho
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esmo depois da Constituição de 88 (art. 133), do CPC (art. 20), do Código Civil de 2002 e do Estatuto da Advocacia (Lei nº 8.906/94), continuam a vigir o art. 791 da CLT e a Súmula 219 do Tribunal Superior do Trabalho, com base nos quais consideram-se indevidos honorários de sucumbência no Judiciário trabalhista. A negativa de honorários de sucumbência na Justiça do Trabalho, pois a tanto equivale restringir sua admissão à hipótese prevista na Lei nº 5.584/70, fere os princípios constitucionais da isonomia (art. 5º), da duração razoável do processo (art. 5º, LXXVIII,) da essencialidade do advogado à administração da Justiça (art. 133), da ampla defesa (art. 5º, LV), do direito ao devido processo legal (CF, art.5º, LIV), do primado do trabalho e da justiça social (art. 193). Ao manter, incidentalmente, a vigência do art. 791 da CLT, por entendê-lo compatível com a Carta Política de 1988, o Supremo Tribunal Federal, confirmando entendimento do Tribunal Superior do Trabalho, adotou uma interpretação – mais que desarrazoada –, ultraconservadora; em suma, uma exegese de comprometimento político. Essa mesma hermenêutica levou nossa mais alta Corte de Justiça a interpretar restritivamente o inciso I, do art. 1º, do Estatuto da Advocacia, ao decidir não ser privativa de
advogado a postulação na Justiça do Trabalho, ratificando, assim, a validade do art. 791 da CLT. Note-se – o que é mais estranho –, que esse entendimento cristalizou-se sem que haja na legislação trabalhista nenhum preceito vedando a concessão de honorários sucumbenciais. Mesmo juízes que julgavam devida a verba honorária, diante da sumulação da jurisprudência em sentido contrário, deixaram de ressalvar sua opinião pessoal. A maioria dos advogados optou por idêntico procedimento, de vez que, uma eventual condenação em honorários advocatícios ensejaria êxitoso recurso de revista, oponível pela parte contrária, alongando desnecessariamente a tramitação do processo. Admita-se que a persistência da mais alta Corte trabalhista e do Supremo Tribunal na manutenção do jus postulandi, possa não ter viés ou inspiração patronal, mas que favorece o empresariado, incentiva a litigiosidade em detrimento do trabalhador e em prejuízo da celeridade processual, disso não resta a menor dúvida. E isso na contramão da moderna tendência de todo o Direito, que é o de garantir amplo acesso à Justiça e lhe emprestar celeridade, efetividade e a mais completa garantia de defesa aos jurisdicionados. Note-se que tal entendimento reforça a inefetividade dos direitos constitucionais assegurados formalmente aos trabalhadores. É que estes, pelo real temor 2008 NOVEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 39
Foto: Arquivo Pessoal
Dr. Benedito Calheiros Bomfim
de serem despedidos, só recorrem à Justiça do Trabalho para reclamar a reparação dos direitos sonegados depois de extintos seus contratos de trabalho, quando não raro alguns deles já se encontram prescritos. A negação de honorários de sucumbência tem efeito impactante na Justiça do Trabalho, em cujas pendências uma das partes – o trabalhador – é hipossuficiente e os litígios, por envolverem verbas de natureza salarial, relacionam-se com sua sobrevivência e de sua família, enquanto na Justiça comum os processos têm por objeto bens patrimoniais. Hipertrofia e formalização da Justiça do Trabalho A Justiça do Trabalho, sob o influxo da industrialização e do desenvolvimento econômico e social do país, cresceu, expandiu-se, hipertrofiou-se, formalizou-se, solenizou-se, tornou-se enfim complexa. Compõem hoje o Judiciário trabalhista mais de 1.000 varas do Trabalho e, por elas, anualmente, tramitam 2 milhões de processos. Por não existir Código de Direito Material nem Processual do Trabalho, a Justiça do Trabalho passou a adotar, supletivamente, a legislação processual e material Civil, Tributária, Comercial, Administrativa, Penal, naquilo em que a CLT for omissa, desde que com esta compatível. A própria Consolidação das Leis do Trabalho, ao longo de sua vigência, sofreu cerca de mil alterações, nos caput de seus artigos, parágrafos, incisos, alíneas. Tornou-se árduo, aos próprios advogados, acompanhar incessantes mudanças da legislação 40 • JUSTIÇA & CIDADANIA • NOVEMBRO 2008
trabalhista e a extensa e cambiante jurisprudência de seus Tribunais, com suas súmulas, orientações jurisprudenciais, precedentes normativos. A Justiça do Trabalho, em suma, não apenas assimilou os procedimentos do Direito Processual comum, como também os vícios da Justiça comum, com seus formalismos, ritos e complexidades. Adotou institutos como a ação rescisória, tutela antecipada, pré-executividade, ação de atentado, consignatória, reconvenção, assédio sexual, dano moral, requisito de transcendência no recurso de revista, intervenção de terceiro, denunciação da lide, litispendência, ação monitória, desconsideração da pessoa jurídica, mandado de segurança, recurso adesivo, habeas corpus. Diante dessa pletora de inovações, a desafiarem até profissionais menos experientes, sustentar que o trabalhador está apto, possui capacidade técnica para postular e se defender pessoalmente, utilizar os recursos processuais disponíveis, entender os aludidos institutos processuais, atuar em liquidação de sentença, com as implicações jurídicas desta, beira a falta de bom senso, a irracionalidade, o absurdo. Nessas circunstâncias, o jus postulandi, que funcionou originariamente como um meio prático, eficaz e imediato de o empregado e pequeno e microempregador defenderem-se, e verem reconhecidos seus direitos, tornou-se, já de algum tempo, inviável, particularmente se exercitado pelo trabalhador. E, se exercido o jus postulandi, sê-lo-ia em desfavor deste, inclusive porque o empregador excepcionalmente apresenta-se desassistido de advogado, desequilibrando a situação das partes. É fácil imaginar a incapacidade técnica do empregado, bem como do pequeno e microempresário, que constituem a grande maioria do patronato, para, pessoalmente, interpor recurso ordinário ou de revista, observar prazos, oferecer contra-razões, sustentar oralmente o apelo. Em boa fé ou sã consciência, alguém pode achar que qualquer desses litigantes, máxime o empregado, tenha condições técnicas de, ainda que com o mínimo de proveito, se desincumbir de tais encargos processuais? Trata-se de uma prerrogativa que, originariamente destinada a proteger as partes, com o passar do tempo reverteu contra seus interesses, notadamente do trabalhador, ao qual, principalmente, visava a proteger. O jus postulandi constituiu um instituto adequado, justo, útil e necessário para a época, mas já cumpriu, e talvez bem, seu papel histórico, não mais se justificando sua manutenção. Incompatibilidade do art. 791 da CLT com o art. 133 da CF É inadmissível, em sã consciência, negar a evidência de contradição entre o artigo 791 da CLT, que considera facultativa, opcional, a assistência de advogado, e o art. 133 da CF, que prescreve ser o “advogado indispensável à administração da Justiça”. O preceito da Lei Maior, como se vê, não excetuou dessa regra obrigatória a Justiça do Trabalho. Sem essa expressa exclusão, não pode a CLT dispor em contrário, ou seja, que nesse ramo especializado do Judiciário a intervenção do advogado é prescindível.
“O jus postulandi constituiu um instituto adequado, justo, útil e necessário para a época, mas já cumpriu, e talvez bem, seu papel histórico, não mais se justificando sua Manutenção.”
Nesse conflito entre um preceito constitucional e outro infraconstitucional, qual deve prevalecer? A resposta, por óbvia, esta sim, é dispensável. Tão flagrante é a incompatibilidade entre as duas normas, de hierarquia diversa, que isso se torna visível aos olhos de qualquer leigo. Se um dispositivo de lei é incompatível com Constituição, o dever do juiz, no mínimo, é negar-lhe aplicação. O jus postulandi, hoje, não passa de uma obsolecência, de uma ficção jurídica encravada na lei, que sobrevive graças ao conservadorismo dos Tribunais de cúpula. Comentando o art. 133 da CF da 88, José Afonso da Silva observa que “o princípio da essencialidade do advogado na administração da Justiça é agora mais rígido, parecendo, pois, não mais se admitir postulação judicial por leigos, mesmo em causa própria, salvo falta de advogado que o faça”. (“Curso de Direito Constitucional Positivo”, Malheiros Editores, 9ª edição, pág. 510). Ao restringir os honorários de sucumbência aos casos em que o reclamante, percebendo dobro do salário mínimo, está assistido pelo Sindicato e, ainda mais, fazendo reverter ao ente sindical os honorários, a jurisprudência trabalhista, no que teve o beneplácito do STF, está, por outro lado, criando óbice ao acesso à Justiça, o que contravém o art. 5º, XXXV, da Carta Maior. E, ao atribuir ao assalariado o ônus dos honorários de seu advogado particular, atenta, de outra parte, contra o princípio da gratuidade, que informa a Justiça do Trabalho. A negativa de honorários e o Código Civil Ademais, obrigado a desembolsar dinheiro para honorários de seu advogado particular, retirado do montante reconhecido por sentença judicial, a reparação obtida pelo trabalhador, conquanto considerada de natureza alimentar, é parcial, incompleta. Embora compelido a recorrer à
Justiça para fazer prevalecer a lei e o contrato de trabalho inadimplido pelo empresário, que lhe sonegou verbas a que tinha direito, e depois de vê-las reconhecidas em Juízo após anos de tramitação, ainda assim só receberá parte da reparação pecuniária, porque terá de destinar parcela da mesma ao pagamento do advogado de sua confiança, que achou necessário constituir. Esse desfalque dos direitos do pleiteante contraria os arts. 389 e 404 do atual Código Civil (de aplicação subsidiária à Justiça do Trabalho), o primeiro dos quais dispõe que, não sendo cumprida a obrigação, o devedor responde “por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado”. Por sua vez, o art. 404, do mesmo Código, estatui que as perdas e danos nas obrigações de pagamento em dinheiro compreendem “juros, custas e honorários de advogado, sem prejuízo da pena convencional”. Se, para obter a recomposição do prejuízo sofrido, o reclamante teve de contratar profissional, é irrecusável o direito de ser ressarcido por quem o levou à contratação de advogado. Por outro lado, sabendo-se desonerado de honorários de sucumbência, o empregador sente-se estimulado a sonegar direitos trabalhistas, a litigar, resistir e protelar a solução final do pleito, com o que aumenta a quantidade de reclamações, tornando, em consequência, mais congestionado e mais lento o Judiciário trabalhista. Com o assim proceder, contraria a garantia constitucional da “duração razoável do processo”, o que também implica dificultar o acesso à Justiça. Pois a morosidade, não apenas traz prejuízo ao trabalhador, mas, muitas vezes, o induz a desistir de ingressar na Justiça, quando não a firmar acordo lesivo a seus interesses. Demais disso, reconhecer honorários sucumbenciais ao trabalhador quando pleiteia e vence na Justiça comum, e não fazê-lo na Justiça do Trabalho, na qual o objeto do pedido 2008 NOVEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 41
é de natureza alimentar, além de gritante incongruência, contravém o princípio constitucional da isonomia. O direito subjetivo da parte de, na Justiça do Trabalho, contratar os serviços do profissional de sua confiança – como ressalta o magistrado trabalhista Francisco C. Lima Filho – “integra o núcleo essencial do direito fundamental de acesso à Justiça que pressupõe uma defesa efetiva, como constitucionalmente garantido no inciso XXXV, do art. 5º, do Texto de 1988”. Não se objete que, se extinto o direito de auto-representação das partes, o reclamante, quando sucumbente, seria onerado com honorários advocatícios, uma vez que, segundo o inciso LXXIV, do art. 5º, da CF, comprovado o estado de pobreza, estaria ele isento de tal ônus, isso para não falar no benefício das Leis nº 1.060/50 e nº 7.115/83. Inexiste vedação legal à concessão de honorários Acresce-se que, na ótica do juiz trabalhista Marcelo Luis de Souza Ferreira, “não há na lei expressa vedação à concessão de honorários advocatícios para os casos de assistência por advogado particular nem tampouco dispositivo que afaste do Direito do Trabalho o princípio da plena reparação de danos (...). Desta forma, a se entender que o art. 16 da Lei nº 5.584/70 restringe a concessão de honorários advocatícios na Justiça do Trabalho à hipótese de assistência judiciária, estamos diante de uma interpretação ampliativa (...) contrária aos princípios de direito material e processual do trabalho, pois vem em flagrante prejuízo do trabalhador, impondo-lhe o ônus de suportar sozinho os custos da assistência profissional necessária”. Mais ainda, aduzimos, a recusa à concessão da verba honorária neutraliza o princípio basilar de toda a legislação do trabalho, a qual, para contrabalançar a superioridade econômica do empregador, outorga superioridade jurídica ao assalariado. Ao transferir tal ônus para o assalariado, retira-se o caráter tutelar e protecionista do trabalhador que informa a legislação trabalhista. Acontece mais, que após a Emenda Constitucional nº 45/04, que ampliou a competência da Justiça do Trabalho, o Tribunal Superior do Trabalho, através da Instrução Normativa nº 27, de 22.02.2005, admitiu honorários de sucumbência nas lides decorrentes da relação de trabalho. Evidencia-se, assim, novamente, tratamento desigual e discriminatório, e, desta vez, na mesma Justiça, com quebra frontal do princípio constitucional da isonomia. Entre os enunciados aprovados na ‘Jornada de Direito Material e Processual na Justiça do Trabalho’, realizada na sede do Tribunal Superior do Trabalho, em novembro de 2007, com a participação de magistrados, advogados e associações trabalhistas, aprovou-se o de nº 79, com este teor: “Honorários de sucumbência na Justiça do Trabalho. As partes, em reclamatória trabalhista, e nas demais ações da competência da Justiça do Trabalho, na forma da lei, têm direito a demandar em juízo através de procurador de sua livre escolha, forte no princípio da isonomia (art. 5º, caput, da Constituição da República Federativa do Brasil), sendo, 42 • JUSTIÇA & CIDADANIA • NOVEMBRO 2008
em tal caso, devidos os honorários de sucumbência, exceto quando a parte sucumbente estiver ao abrigo do benefício da justiça gratuita”. Sem a verba honorária, repise-se, a reparação não será completa, plena. Destarte, pode-se afirmar que os honorários advocatícios não decorrem apenas do estatuído no Código Civil, consoante o princípio da reparação integral do dano ( art. 944 do mesmo Estatuto), mas, principalmente, da regra constitucional da indispensabilidade do advogado em qualquer Juízo. Reacende-se a polêmica do jus postulandi Diante de tão significativas mudanças e transformações, próprias do dinamismo do Direito do Trabalho, reacendese a velha polêmica, que parecia adormecida, sobre o jus postulandi na Justiça do Trabalho. Entre as iniciativas nesse sentido, inclui-se a da OAB/RJ, que acaba de criar uma Comissão de Honorários de Sucumbência na Justiça do Trabalho, da qual é vice-presidente o ministro Arnaldo Sussekind. Embora ainda de forma tímida, juízes e alguns Tribunais Regionais começam a reconhecer o direito a honorários de sucumbência. Entre os TRTs, citam-se: “O reclamado, segundo o princípio revitalizado pelo novo Código Civil, deve ressarcir todas as despesas que a autora teve para o ingresso da presente ação, e essas despesas não podem representar redução das verbas trabalhistas a que o trabalhador faz jus. Entendo, por isso, que a recorrente deve pagar à recorrida os honorários advocatícios.” Ac. TRT 12ª Reg., 2ª T. (RO 003932003-011-12-00-00), Rel. Juiz Roberto Basilone Leite, in “Justiça do Trabalho”, 283/HS, pág. 44. “Honorários advocatícios. Devidos. Inadimplemento de obrigação trabalhista. Aplicação dos arts. 389 e 404 do CC/02. Hodiernamente, na Justiça do Trabalho, também são devidos honorários advocatícios pelo inadimplemento da obrigação trabalhista, por aplicação subsidiária dos arts. 389 e 404 do CPC, cuja novação deve ser prestigiada como forma de reparação dos prejuízos sofridos pelo trabalhador, que, para receber o crédito trabalhista, necessitou contratar advogado às suas expensas, causando-lhe perdas. De sorte que a reclamada deve responder pelos honorários advocatícios, a fim de que a reparação do inadimplemento da obrigação trabalhista seja completa, ou seja, a reparação deve incluir juros, atualização monetária e ainda honorários, cujo ideal está em perfeita sintonia com o princípio fundamental da proteção ao trabalhador. Honorários advocatícios da ordem de 20%, a favor do reclamante (não se trata de honorários de sucumbência)”. Ac. TRT 15ª Reg. 11ª T. (RO 1381/2003), DOESP de 22/7/2005, “Justiça do Trabalho”, 283/HS, pág. 45 “Honorários advocatícios convencionados. Percen tual estabelecido em lei própria. Reembolso das despesas efetuadas. Possibilidade. Os honorários convencionados
“Mais ainda, aduzimos, a recusa à concessão da verba honorária neutraliza o princípio basilar de toda a legislação do trabalho, a qual, para contrabalançar a superioridade econômica do empregador, outorga superioridade jurídica ao assalariado.”
– uma das formas asseguradas pela Lei nº 8.906/94 de recebimento, pelos advogados, dos serviços prestados, além dos sucumbenciais e dos arbitrados judicialmente – não podem ser inferiores ao estabelecido na tabela organizada pelo Conselho Seccional da OAB. Assim, restando controversa a pactuação verbal no percentual de 30%, incabível a sua fixação em valor menor, com fulcro na norma processual que trata de honorários sucumbenciais. Além disso, optando por contratar advogada que reside e possui escritório em outra cidade, deve a parte reembolsar as despesas efetuadas com deslocamentos e demais gastos com o processo por ela patrocinados. Inteligência do item 3 da Tabela de Honorários da OAB/SP c/c art 676 do Código Civil”. Ac.TRT 15ª Reg. 6ª T. (ROPS 946/2005.048.15.85-0), Relª. Maria Cecilia Fernandes Leite, DJ 29.02.08, p. 79, “RDT”, 14-03/55. “Recurso adesivo do Reclamante. Honorários advocatícios concedidos com base no novo Código Civil. Manutenção da sentença. Com a edição do novo Código Civil, em vigor a partir de janeiro de 2003, por meio de seu art. 389, estabeleceu-se que os honorários advocatícios não mais decorreriam somente da sucumbência, mas, agora, do inadimplemento da obrigação. Assim, seria violar os princípios elementares de Direito, concluir que, para as dívidas civis o devedor deveria pagar honorários advocatícios, ao passo que para as verbas trabalhistas não, ainda que seja inegável sua natureza alimentar. Considerando-se que o reclamante deve ser reparado pelo gasto que teve com a contratação de advogado para receber seus direitos trabalhistas, inadimplidos pela reclamada, com base nos arts. 389 e 404, entendo cabíveis os honorários advocatícios”. Ac. TRT 15ª Reg., 6ª C. (R0 0247-2002-003-15-00.3), Rel. Juiz Luiz Carlos Araujo, DOE,15.09.2006, “Justiça do Trabalho”, 274/HS.
Conclusão A CF/88, o Estatuto da Advocacia, o Código Civil, a ampliação da competência da Justiça do Trabalho, somados às medidas tomadas para a celeridade e efetivação da prestação jurisdicional, estão fazendo ressurgir a polêmica sobre a validade do vetusto art. 791 da CLT. Estamos diante deste paradoxo: enquanto na Justiça comum adotam-se medidas, entre elas a redução de recursos, para agilizar a tramitação processual, na Justiça do Trabalho, que, por sua natureza e destinação, deveria ser a mais célere, incentiva-se a litigiosidade, através da desoneração de honorários sucumbenciais, em benefício precípuo do empregador. É, pois, chegado o momento de varrer a obsoleta figura do jus postulandi. Nós, advogados, somos cerca de 630 mil; contudo, pouco valemos e representamos enquanto isolados, dispersos, atuando individualmente. Mas, se solidários, agrupados, coesos, organizados, congregados em nossa associação de classe, constituíremos uma força, um poder capaz de nos fazermos ouvidos e respeitados, uma entidade influente e prestigiosa suficiente para tornar decisivo o triunfo dos objetivos sociais e políticos da advocacia. Isso acontece até no mundo vegetal. Tome-se um feixe de varas, as quais, enquanto separadas, isoladas, desunidas, são flexíveis, vergáveis, dobráveis, mas, uma vez agrupadas, entrelaçadas, formando um feixe, tornamse resistentes, indobráveis, não se deixam quebrantar. Cumpre, pois, aos profissionais do Direito, particularmente aos que atuam na esfera trabalhista, se organizarem e mobilizarem os órgãos da corporação e demais associações jurídicas, bem como as entidades sindicais de trabalhadores, a fim de extirpar o malsinado art. 791 da CLT e extender à Justiça do Trabalho o princípio da condenação em honorários advocatícios por força da sucumbência. Para tanto, por uma questão pragmática e de celeridade, há que se apoiar e tornar vitorioso um dos vários projetos de lei que, nesse sentido, tramitam no Congresso Nacional. 2008 NOVEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 43
1964 – A MALFADADA ODISSÉIA NO NAVIO PRESÍDIO RAUL SOARES III (FINAL)
Orpheu Santos Salles Editor
Conseqüências da publicação da carta ao Presidente da Comissão Geral de Inquéritos omo previa, após alguns dias da visita de minha mãe e filhos e a postagem da carta na agência dos Correios em Santos, fui levado perante o Comandante, responsável pelos inquéritos, Capitão de Mar e Guerra Júlio de Sá Bierrenbach, estando presentes todos os oficiais responsáveis pelos inquéritos em andamento, sendo logo interrogado pelo mesmo: “A carta que escrevestes foi publicada e eu quero saber a quem tu subornastes para postá-la no Correio”. Respondi que não havia subornado ninguém, mesmo porque o dinheiro que possuía havia sido acautelado na ocasião da minha chegada ao Navio, e quanto à carta ela foi uma das muitas por mim escritas e jogadas ao mar, acondicionadas nos vasilhames de refrigerante, e, por certo, por eu ser conhecido dos pescadores e profissionais que velejavam pelo canal – em razão de ter sido Delegado do Trabalho em Santos –, por solidariedade aos seus companheiros presos no Navio e, também, pelo conteúdo da carta, atenderam ao meu pedido colocando-a no Correio. A resposta provocou um burburinho entre os presentes e logo um Tenente da Marinha se adiantou aos demais e me interpelou: “Você acha que nós somos imbecis e vamos acreditar nessa sua lorota?”. Tentando manter a calma respondi: “Bem, Tenente, aceite ou não a minha verdade, essa é a que tenho”. O Tenente esbravejou e me ofendeu até ser interrompido pelo Comandante, que dirigiu-se a mim e disse: “É difícil acreditar na tua versão, mas como dizem os italianos em situações iguais: non è vero, ma è bene trovato e, virando-se para o
C “O Tenente ficou pálido, aproximou-se de mim e desferiu-me violenta bofetada, a qual retribuí de imediato com um bem dado soco no nariz, que, ao jorrar sangue, ensangüentou a blusa da sua farda.”
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seu subordinado, disse-lhe: “Pode continuar inquirindo-o se quiser, mas não quero violência”, e afastou-se. O Tenente continuou me insultando, e inopinadamente me interpelou: “Você sabe que o seu líder prendeu meu pai?”, ao que respondi: “Não sei a quem o senhor se refere e também não vejo o que pode relacionar a prisão do seu pai com a minha prisão aqui”. Respondeu o Tenente: “Refiro-me ao seu líder Getulio Vargas, que prendeu meu pai no Dops do Rio de Janeiro, na Ditadura em 1944”, ao que respondi-lhe: “Vamos esclarecer, senhor Tenente. O presidente Getúlio Vargas já morreu, e eu não sou espírita para que ele seja meu líder. O meu líder, hoje, é o presidente João Goulart, que encontra-se exilado no Uruguai. Quanto à prisão do seu pai no Dops em 1944, saiba o senhor que também nesse tempo, em mês que não me ocorre, eu estive preso no Dops, em razão de uma manifestação estudantil feita em frente ao Teatro Municipal, mas recordo-me que, como aqui onde os senhores qualificam os presos de comunistas e ladrões, naquela ocasião os carcereiros qualificavam os detentos de comunistas, integralistas e facistas; o senhor sabe como o seu pai era qualificado?”. Dentre os oficiais presentes houve novo burburinho e um deles falou: “Bem feito, avisei para não se meter, quem procura sarna só arranja coceira!”. O Tenente ficou pálido, aproximou-se de mim e desferiu-me violenta bofetada, a qual retribuí de imediato com um bem dado soco no nariz, que, ao jorrar sangue, ensangüentou a blusa da sua farda. O Tenente, entre surpreso e espantado com o sangue a lhe escorrer do nariz, esbravejou, chamando-me de “bandido! comunista!”. No mesmo instante veio-me à lembrança as recomendações do
professor Caio Prado Júnior, de não aceitar provocações e não perder a calma, quando, inesperadamente, recebi violenta cacetada nas costas dada por um Policial, o que me fez ajoelhar, momento em que o Tenente aproveitou para desferir-me uma série de pontapés na altura do estômago, no peito e nos braços, o que me deixou prostrado no chão. O Comandante interveio, mandou que o Tenente se afastasse e deu ordens para que eu fosse levado à enfermaria do Navio, onde, examinado por um enfermeiro e feitas as radiografias necessárias, restaram constatadas fraturas em 3 costelas, ocasiando o enfaixamento de meu tórax. Passadas 24 horas na enfermaria, voltei à cela. Decorridos cerca de 15 dias fui levado novamente ao mesmo salão, estando presentes o comandante Júlio de Sá Bierrenbach, todos os oficiais presidentes dos IPMs, e, com surpresa, vi e reconheci o general Ernesto Geisel, que sabia ser o Chefe da Casa Militar da Presidência da República – que havia conhecido quando da transmissão da posse do presidente João Goulart para o presidente Ranieri Mazzilli. O General mandou que eu me aproximasse e disse: “Estou aqui em razão da carta que enviastes fazendo denúncias de violências contra tua esposa. Tu as confirma? Ao que respondi: “Senhor General, confirmo a carta e todas as denúncias, mas não trata-se da minha esposa, que não tenho pois sou desquitado, e sim da esposa do sargento Argeu, que se encontra também preso aqui no Navio. O senhor mande buscá-lo e ele dirá o acontecido com ela”. “Tu tens certeza que o Sargento confirmará o que denunciastes? Ou isto é uma trampa que inventastes?”, inquiriu o General e ato contínuo, sem esperar por resposta, mandou que chamassem o Sargento. 2008 NOVEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 45
“lembrei da infinita tristeza dos dias de visitas aos presos, com crianças e mulheres chorosas e famélicas, que sequer podiam abraçar seus entes queridos, afastados que ficavam por mesas e tabiques.”
O sargento Argeu foi trazido; estava pálido, quando normalmente tinha a tez avermelhada, tinha um físico forte e era mais alto que o General. Postou-se à sua frente, em posição de sentido, fez continência e assim permaneceu até o General dizer: “À vontade”, e logo começou a inquirição. “Sargento, este civil, teu companheiro de prisão fez uma denúncia de que tua esposa teria sofrido violência por um militar, em sua residência, às altas horas da noite. Tu confirmas essa denúncia?”. Ao que o Sargento respondeu: “Confirmo!”. O General continuou perguntando: “Esse militar que foi à sua residência está presente no recinto? Se está, aponte-o”. Argeu não titubeou, avançou uns passos e apontou o dedo indicador na direção de um TenenteCoronel da Aeronáutica e disse: “É este o canalha!”. O Coronel estrebuchou, e gritou: “É mentira, é uma farsa, estive realmente na residência do Sargento, de madrugada, fazendo uma diligência em companhia de uma equipe, onde arrolei diversos documentos do Sargento e de outros companheiros seus, comprometidos com a subversão. Não cometi nenhum ato contra a esposa dele, apenas a empurrei porque ela não queria permitir que eu mexesse nos papéis que se encontravam no armário, nada mais”. Argeu virou-se para o General e disse: “Senhor General, eu não sei o que vai acontecer comigo daqui para o futuro, mas eu espero sair desta porque eu não sou comunista e a minha participação foi ter ficado junto com os meus companheiros, solidário ao presidente João Goulart, e quando me livrar dessa enrascada eu vou pegar este canalha, que entrou na minha casa e no meu lar para abusar de minha esposa, passando as suas mãos sujas em seu corpo, e somente não a violentou porque ela gritou e meu sogro chegou para impedir que ela fosse estuprada. Eu juro senhor General, que, com estas mãos que o senhor está vendo, eu vou estraçalhar o peito deste patife, canalha, filho de uma égua e vou arrancar as entranhas desse miserável e vou dálas aos cães”. Após o seu desabafo Argeu entrou em um choro convulsivo, seguido de soluços e dizia repetindo: 46 • JUSTIÇA & CIDADANIA • NOVEMBRO 2008
“Canalha! Canalha!” enquanto o Coronel também bradava: “É mentira! É mentira!”. Foi um espetáculo extremamente dramático! A balbúrdia de todos falando ao mesmo tempo fez com que o General gritasse: “Silêncio!”, e em seguida ordenasse ao Comandante que retirasse o Coronel do local, dirigindose a Argeu e dizendo: “Sargento, eu vim ao Navio para saber das denúncias, que serão apuradas e esteja certo que providências serão tomadas. Tu estás liberado”, e saiu do salão. Passou-se cerca de uma hora. No salão, os oficiais, surpreendidos com a presença do General e o ocorrido com as declarações de Argeu e a reação do Coronel, teciam os mais variados comentários; uns acreditando no Sargento, pela contundência da acusação, outros acreditando no Coronel, face o evidente corporativismo. Decorrido algum tempo fui conduzido a uma sala onde se encontravam o comandante Bierrenbach e o general Geisel, que perguntou-me: “O Comandante estava me dizendo que tu mandastes a carta através de uma garrafa jogada ao mar, mas tu não achas que esta é uma alegação muito fantasiosa?”. Ao que respondi: “Senhor General, o Comandante usou o provérbio italiano non è vero ma è bene trovato que se aplica bem ao caso, mas asseguro ao senhor General que a carta seguiu sem que eu usasse de qualquer ato de corrupção, foi questão de inteligência e oportunidade, e ela, com a sua presença aqui no Navio, atingiu o objetivo esperado, que era a vinda de uma autoridade importante e do alto escalão para constatar ao vivo as condições de miserabilidade, sujeira e imundice que vivem as centenas de presos alojados nos porões infectos deste Navio, considerando ainda que a maioria são trabalhadores que sequer têm vinculação política, presos apenas por serem dirigentes sindicais”. O General fez menção para que eu parasse e perguntou: “Eu te conheço mas não lembro de onde. Tu tens alguma referência de onde?”. “Claro, foi na posse do presidente João Goulart em Brasília. O senhor estava ao lado do presidente
Ranieri Mazzilli e eu acompanhava o ex-presidente Jango desde Montevidéu, e, apesar da confusão havida, tive oportunidade de cumprimentá-lo”. O General então perguntou: “Tu estás respondendo a que crime?”. Ao que respondi: “Por crime de subversão que não cometi, porque fui preso na noite do dia 31 de março, quando ao microfone da Rádio Marconi, em São Paulo, pregava e defendia o governo constituído de então, e como o presidente João Goulart só foi destituído pelo Congresso no dia 1º de abril eu não posso ser acusado de crime de subversão, tampouco de ser comunista, o que não sou. Pessoalmente, apesar da flagrante injustiça, não tenho nada a reclamar, mas, aproveito a oportunidade para pedir ao General que, se possível, dê uma descida aos porões para constatar a situação miserável que se encontram os pobres trabalhadores”. O General me olhou fixamente e apenas disse: “Vim aqui para isso. A tua carta, apesar de impertinente e atrevida, serviu para alguma coisa. Tu estás dispensado, pode se retirar”. Fui levado de volta à minha cela, conjeturando que a publicação da carta, com a vinda do general Geisel ao Navio, talvez trouxesse-nos algum resultado favorável. Felizmente, em conseqüência de sua vinda, 20 dias após, os presos na sua maioria foram libertados, inclusive eu, mas alguns foram transferidos para outros presídios. Foram 6 meses de cárcere naquele fétido e malfadado Navio Presídio, onde, ao contrário do tempo encarcerado no Dops de São Paulo, vivenciei o período mais dramático da minha vida, não no sentido pessoal, que sempre tive ânimo e energias para suportar as agruras e dificuldades que se apresentaram, mas pela impossibilidade de ajudar ou minorar as desgraças que se abateram injustificadas sobre pobres e desgraçadas pessoas que sofreram horrores, angústias e que quedaram-se pasmos, inertes e desesperançados pela tragédia que lhes acontecia e inclusive às suas famílias. Lembrei então do medo quando cheguei ao convés do Navio, com a ostensiva atitude dos policiais apontando as metralhadoras em minha direção; da dura realidade quando fui ao sanitário e a atitude inamistosa do Policial; lembrei do choque ao descer no porão do Navio e constatar a situação infame de velhos conhecidos, aprisionados num local onde os excrementos dos presos corriam pelo chão e da triste cena do velho líder sindical Waldemar Guerra, que ao me ver agarrou meus braços entre as grades e soluçou, arrancando também minhas lágrimas de solidariedade e angústia; lembrei da conversa com o velho estivador de Santos, preso conjuntamente com seu filho e seu neto, por vários meses, devido ao comparecimento no comício de 13 de março, no Rio de Janeiro; lembrei dos depoimentos de sindicalistas presos, desesperados por terem deixado as famílias ao desamparo e passando fome; lembrei das denúncias sobre as infâmias cometidas por militares às esposas e filhas de presos; lembrei dos sofrimentos do jornalista Nelson Gato, dos sindicalistas Manoel de Almeida e Argeu Anacleto, do
compositor Geraldo Vandré, todos eles espancados pelos esbirros da Polícia Marítima por reclamarem do tratamento que lhes era ministrado nos xadrezes dos porões; lembrei dos insetos que infestavam o Navio e as ratazanas que circulavam nos porões, tendo inclusive arrancado com mordidas orelhas e dedos de presos enquanto dormiam; lembrei do horror que representava a figura tétrica daquele negro navio, velho e enferrujado, vindo do Rio de Janeiro e fundeado propositadamente na enseada de Santos, para infundir e afligir medo aos trabalhadores portuários, com o objetivo de que se abstivessem de reivindicações salariais, greves ou paralisações; lembrei da infinita tristeza dos dias de visitas aos presos, com crianças e mulheres chorosas e famélicas, que sequer podiam abraçar seus entes queridos, afastados que ficavam por mesas e tabiques. E foi com este pensamento que, ao ser solicitado pelo companheiro e jornalista Nelson Gato, autor do livro “Navio Presídio”, colaborei e escrevi seu prefácio, com o poema:
O NAVIO PRESÍDIO E quando a noite pesada de silêncio Chegou torturando as multidões aflitas, O Torquemada indígena reeditou a sina Que afligiu a terra ibérica latina. E a Inquisição renasceu em nossa pátria Ferindo forte com vingança e infâmia, Como se este povo não fosse só de irmãos, Trabalhadores, poetas, professores e cristãos. Da Guanabara loira, radiosa e bela, A opressão mandou o carcomido barco, Com seu casco negro, infecto, apodrecido Para encarcerar pais, irmãos, filhos e netos. Oh! negro navio de triste sina! Antes te houvera o mar tragado, Quando navegavas impávido e imponente, A te transformares no terror da tua gente!
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O DESAFIO nA GESTÃO DE PESSOAS NO PODER JUDICIÁRIO
Agostinho Teixeira de Almeida Filho Desembargador do TJ/RJ
O
Direito Administrativo brasileiro está em mutação. Desde o início dos anos 90 o Estado vive profundas alterações. A Reforma Administrativa, levada a efeito por diversas emendas constitucionais e leis ordinárias, atribuiu mais agilidade ao Poder Público para responder aos desafios da sociedade moderna e tornar eficiente a gestão dos escassos recursos existentes. Uma dessas importantes transformações está relacionada à burocracia estatal. De acordo com a opinião pública quase unânime, muitas vezes injusta, o passado fincou raízes profundas nas organizações públicas e na forma como elas são administradas. Além disso, os servidores seriam ineficientes e despreparados, se comparados aos da iniciativa privada. Dentre as modificações idealizadas para melhorar a qualidade dos serviços prestados à população houve a introdução em nosso sistema jurídico do princípio constitucional da eficiência administrativa (CRFB, art. 37, caput). De acordo com a doutrina de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, o conceito de eficiência previsto na Constituição deve ser entendido como a “melhor realização possível da gestão dos interesses públicos, em termos de plena satisfação dos administrados com os menores custos para a sociedade”. Em outras palavras, impõe-se ao administrador 48 • JUSTIÇA & CIDADANIA • NOVEMBRO 2008
o dever de adotar a melhor solução, pelo menor custo possível para a sociedade. Apesar de essa inovação haver ocorrido com a promulgação da Emenda Constitucional nº 19/1998, houve poucos avanços no sentido por ela indicado. Ainda há um consenso na sociedade de que os serviços públicos estão muito longe dos padrões mínimos de eficiência que deles se espera. E o Poder Judiciário, de uma forma geral, não escapa a essas críticas. A maior delas diz respeito à demora na solução de litígios, falta de juízes e serventuários e excesso de recursos. E como lembra Maurício Rands, “se os Poderes do Estado não conseguem entregar os serviços públicos que esperamos, somos logo tentados pelas soluções simplistas. Quando a Justiça é lenta a tentação é a de fazê-la com as próprias mãos”. Alguns Tribunais, entretanto, têm adotado providências eficazes para minimizar esses problemas. O Judiciário fluminense conquistou destaque no cenário nacional em decorrência de acertada decisão política adotada em meados de 1996, quando foi editada a Lei Estadual nº 2.524, que instituiu o Fundo Especial do Tribunal de Justiça (FETJ), transferindo a gestão dos recursos provenientes da taxa judiciária e das custas judiciais para o próprio Tribunal. É com as verbas do FETJ que o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro investe na informatização, construção e
Foto: Luis Henrique
reforma de suas instalações . Houve, então, uma perceptível aceleração do trâmite processual. E isto fez do Poder Judiciário fluminense um dos mais ágeis do país. Mas, a prestação jurisdicional ainda precisa ser mais célere e eficiente. Embora o tempo de duração do processo tenha sido sensivelmente reduzido, é possível oferecer serviços com mais qualidade e menos custo. Daí a necessidade de direcionamento do foco para a capacitação e motivação de servidores e magistrados. E não basta a Justiça rápida; ela precisa ser de boa qualidade para que seja aceita pelo destinatário e com isso produza o efeito apaziguador que dela se espera. Esse objetivo só será plenamente alcançado com o desenvolvimento de estratégia que incentive e recompense os servidores nela engajados. A melhoria dos serviços jurisdicionais – passe o truísmo – depende, em grande parte, de gestão, treinamento e capacitação de pessoas. A preocupação deve ser com o aumento de produtividade e a racionalização de rotinas e funções. Porque o desafio é melhorar a qualidade sem novas contratações ou aumento de despesas. Deve haver investimento constante no ser humano: o servidor e os magistrados. A moderna Administração Pública deve primar pela adoção de práticas eficientes de avaliação, gerenciamento e controle. Difundir a idéia de
accountability, expressão inglesa, sem correspondente no vernáculo, compreendida como “o dever de prestar contas” e a necessidade de “responsabilização” do agente público. Não se pode ignorar que o Direito está em constante modificação e, por isso, os seus profissionais necessitam de permanente atualização. A velocidade das mudanças sociais, econômicas e tecnológicas desatualiza, rapidamente, o saber e as informações. Para que qualquer arte, profissão ou ciência seja bem consolidada é imperioso o contínuo relacionamento entre educação avançada e o mundo prático. Nenhuma empresa ou instituição pública pode se considerar atualizada a não ser por alguns momentos. A motivação do servidor para essa tarefa é extremamente dificultada pela impossibilidade de ascensão funcional nas carreiras públicas. E aí muitos se acomodam e deixam de se reciclar. As organizações públicas oferecem estabilidade aos seus integrantes, mas exigem muito pouco em contrapartida. Raramente há incentivos ao aperfeiçoamento ou ao desenvolvimento de novas ferramentas de gestão pelo próprio servidor. Mas sem motivá-lo não será possível alcançar a eficiência desejada. Os critérios de acesso aos cargos disponíveis no âmbito do Poder Judiciário Estadual devem ser repensados. Como se sabe, para os cargos de Técnico Judiciário exige-se o 2º grau completo, ao passo que para a investidura na carreira de 2008 NOVEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 49
Analista Judiciário pede-se que o candidato tenha formação em qualquer curso superior. Em razão disso, o concurso atrai uma enormidade de pessoas graduadas em carreiras que não têm a mínima pertinência temática com a natureza da função a ser exercida. Conquanto a falta de restrições à participação de candidatos inegavelmente amplie a concorrência, razão de ser do concurso público, não se pode perder de vista que a gestão de servidores com formação heterogênea traz dificuldades. Por outro lado, a motivação, como não se ignora, está diretamente relacionada à remuneração e à perspectiva de evolução patrimonial de qualquer empregado. É preciso, assim, buscar alternativas para premiar servidores eficientes e inovadores, sem elevar despesas. Merece, sob esse aspecto, especial atenção o disposto no §7º, do art. 39, da Constituição da República, que estabelece: §7º – Lei da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios disciplinará a aplicação de recursos orçamentários provenientes da economia com despesas correntes em cada órgão, autarquia e fundação, para aplicação no desenvolvimento de programas de qualidade e produtividade, treinamento e desenvolvimento, modernização, reaparelhamento e racionalização do serviço público, inclusive sob a forma de adicional ou prêmio de produtividade. Embora esse dispositivo represente um vigoroso instrumento para aprimorar a gestão racional de pessoas no serviço público, o alcance dessa norma constitucional parece ainda não haver sido apreendido pela grande maioria dos administradores públicos do Brasil. A exceção que confirma esta regra é o estado de Minas Gerais. Em meados de 2001, a Assembléia Legislativa daquele estado aprovou emenda à Constituição Estadual e editou Lei Estadual instituindo a premiação pecuniária por desempenho do servidor. Desde então, o Poder Executivo paga remuneração adicional aos seus servidores que cumprem metas de produtividade e desempenho fixadas objetivamente, a cada ano. A iniciativa é salutar e certamente já trouxe enormes benefícios à população mineira, com a melhoria dos serviços públicos. É preciso implementar medida semelhante em outros estados, ampliando a sua incidência a todos os Poderes. Embora o Poder Judiciário seja assediado por muitas pressões externas que exigem modernização, forças antagônicas a essas pressões mantêm a Instituição muitas vezes em estado de inércia, impedindo que ocorram as transformações necessárias e tão demandadas pela sociedade. Em estimativa realizada no Brasil no ano 2006, havia algo em torno de 54 milhões de processos em andamento no Judiciário. Se o sistema não passar por uma reforma profunda rapidamente, esse número dobrará em 10 anos. Assim, práticas que incentivem o desenvolvimento profissional de serventuários e magistrados e maior racionalização dos trabalhos forenses trariam importantes benefícios para a sociedade, tornando efetivo o princípio constitucional da eficiência. 50 • JUSTIÇA & CIDADANIA • NOVEMBRO 2008
“Embora esse dispositivo represente um vigoroso instrumento para aprimorar a gestão racional de pessoas no serviço público, o alcance dessa norma constitucional parece ainda não haver sido apreendido pela grande maioria dos administradores públicos do Brasil.”
NOTAS 1 Sobre as mudanças pelas quais o Direito Administrativo vem passando tem-se desenvolvido, nos últimos anos, enorme produção doutrinária. Alguns importantes estudos são elencados a seguir: MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do Direito Público, Renovar, Rio de Janeiro: 2006; MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do Direito Administrativo. 3ª edição, Renovar, Rio de Janeiro: 2006; BINENBOJM, Gustavo. Uma Teoria do Direito Administrativo: Direitos Fundamentais, Democracia e Constitucionalização. Renovar, Rio de Janeiro: 2006. 2 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. 14ª edição, Forense, Rio de Janeiro: 2006, p. 107. 3 Sobre eficácia normativa dos princípios veja-se o importante estudo de ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 3ª edição, Malheiros, São Paulo: 2004. 4 RANDS, Maurício. Ativismo Judicial: É sempre legítimo? In: Jornal Folha de São Paulo, 14.05.2008. 5 A arrecadação do FETJ subiu de R$ 4,1 milhões em 1996 para aproximadamente R$ 270,00 milhões em 2005. 6 O art. 2º da Lei Estadual nº 2.524/96 só autoriza a aplicação dos recursos do FETJ na modernização e reaparelhamento do Poder Judiciário, por meio de: “I – elaboração e execução de programas e projetos; II – construção, ampliação e reforma de prédios próprios do Poder Judiciário e de imóveis objeto de comodato, bem como despesas de capital ou de custeio, exceto as pertinentes à folha de pagamento de pessoal dos quadros permanentes, e respectivos encargos; III – ampliação e modernização dos serviços informatizados; IV – aquisição de material permanente.” 7 Cf. palestra proferida por Maria Elisa Macieira para turma de Mestrado da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro, em maio de 2008. 8 Atualmente, está em vigor, nesse sentido, a Lei Estadual nº 17.600/2008. 9 Roberto Paduan – Revista Exame de 13.09.06.
Foto: Arquivo Pessoal 2008 NOVEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 51
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