2 • JUSTIÇA & CIDADANIA •DEZEMBRO 2008
EDIÇÃO 101 • DEZembro de 2008
16 o desafio da
12 nasprescrição ações de
segurança jurídica
ressarcimento de dano ao erário
Foto de capa: Assessoria de Imprensa/TJSP ORPHEU SANTOS SALLES EDITOR TIAGO SANTOS SALLES DIRETOR EXECUTIVO DAVID RIBEIRO SANTOS SALLES Diretor jurídico ERIkA BRANCO SECRETÁRIA DE REDAÇÃO DIOGO TOMAZ roberto monico DIAGRAMAÇÃO EDITORA JUSTIÇA & CIDADANIA AV. NILO PEÇANHA, 50/GR.501, ED. DE PAOLI RIO DE JANEIRO - RJ - CEP: 20020-906 TEL./FAX (21) 2240-0429 SUCURSAIS SÃO PAULO RAPHAEL SANTOS SALLES AV. PAULISTA, 1765 / 13°ANDAR SÃO PAULO - SP - CEP: 01311-200 TEL. (11) 3266-6611 PORTO ALEGRE DARCI NORTE REBELO RUA RIACHUELO, 1038 / SL.1102 ED. PLAZA FREITAS DE CASTRO CENTRO - Porto Alegre - RS CEP: 90010-272 TEL. (51) 3211-5344 SALVADOR FREDERICO DINIZ GONÇALVES RUA BARÃO DE ITAPUÃ, 60 / CONJ. 301 CENTRO EMPRESARIAL PORTO CENTER Salvador - BA - CEP: 40140-060 TEL. (71) 3264-3754 BRASÍLIA ARNALDO GOMES SCN - Q.1 – Bl. E / Sl. 715 EDIFÍCIO CENTRAL PARK BRASÍLIA - DF - CEP: 70711-903 TEl. (61) 3327-1228/29 CORRESPONDENTE ARMANDO CARDOSO TEL. (61) 9674-7569
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Tribunal Digital
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a Evolução das Companhias no Direito Brasileiro
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CONSELHO EDITORIAL Alvaro Mairink da Costa ANDRÉ FONTES Antonio Carlos Martins Soares Antônio souza prudente Arnaldo Esteves Lima arnaldo Lopes süssekind aurélio wander bastos Bernardo Cabral carlos antônio navega carlos ayres britTo Carlos mário Velloso CESAR ASFOR ROCHA DALMO DE ABREU DALLARI darci norte rebelo denise frossard Edson CARVALHO Vidigal eLLIS hermydio FIGUEIRA Enrique ricardo lewandowski Eros Roberto Grau Fábio de salles meirelles fernando neves Francisco Viana Francisco Peçanha Martins Frederico José Gueiros GILMAR FERREIRA mENDES Humberto Gomes de Barros Ives Gandra martins Jerson Kelman Joaquim Alves Brito josé augusto delgado JOSÉ CARLOS MURTA RIBEIRO José Eduardo carreira Alvim luis felipe Salomão Manoel CarpeNa Amorim Marco Aurélio Mello Massami Uyeda MAURICIO DINEPI maximino gonçalves fontes nEY PRADO Paulo Freitas Barata Sergio Cavalieri filho Sylvio Capanema de Souza thiago ribas filho
Caiu mais uma fortaleza da imprensa
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Equilíbrio, Prudência e União
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A Gestão do maior tribunal do MUNDO
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Ensaio Sobre o Testemunho Infantil
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Poder concedente municipal, estadual e federal – Conflito de Competência
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REMENDA, NÃO; REFORMA, SIM
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20 ANOS DO CASO DO NAVIO “SOLANA STAR”
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Fera Acuada
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O IMPLACÁVEL E ENVOLVENTE PODER MIDIÁTICO
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QUEM PAGA A CONTA?
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encontro de diretores de escolas de magistratura
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OPINIÃO
Foto: Sandra Fado
CAIU MAIS UMA FORTALEZA DA IMPRENSA
Orpheu Santos Salles Editor
E
stupefato, mas não surpreso, no dia 1º de dezembro deste ano, li o editorial de Hélio Fernandes, comunicando o encerramento das atividades do seu jornal, a Tribuna da Imprensa, soltando o rugido do tigre enfurecido e impotente contra a adversidade, principalmente governamental, que há muito vem se abatendo sobre os seus posicionamentos contundentes, libertários e nacionalistas, feitos incessantes e sempre intransigentes na defesa dos interesses da Povo e da Pátria. Hélio é herói obstinado, corajoso, irreverente e até atrevido na pregação de suas arengas panfletárias, defendendo o que acredita e postula, o que lhe custou – além das prisões, desterros e complicações de toda espécie – o fechamento do seu vibrante bordão e da intemerata Tribuna da Imprensa. Dos 60 anos de existência da Tribuna, os primeiros 14 correram por conta do apoteótico jornalista e controvertido político Carlos Lacerda; os seguintes 46 foram exercidos por Hélio Fernandes, até este 1º de dezembro. Foram anos de lutas e verdadeiras guerras contra os detentores do poder, protegidos e apaniguados, que, na sua maioria, aviltaram as funções exercidas com desmandos e desbragada corrupção. Durante essas quase 5 décadas, Hélio não transigiu, não perdoou, usando sempre da sua verrina mais inflamada, causticante, desabrida contra os ladrões dos dinheiros públicos, a infundir-lhes com contundência a pecha e o labéu da infâmia e do descrédito. As posições e atitudes de Hélio, entretanto, têm lhe custado caro. Sofreu prisões, agressões, desterro na sua própria Pátria, processos de várias procedências e inúmeras tentativas visando a falência e o fechamento do jornal. Além das prisões e sofrimentos pessoais, também a “Tribuna” foi violentada, com a invasão, depredação, quebra das impressoras, incêndio, destruição da Redação e a perene 4 • JUSTIÇA & CIDADANIA •DEZEMBRO 2008
e constante censura sofrida durante os 20 anos da Ditadura Militar. Com a democratização e volta das garantias constitucionais, retomou no jornal o seu pendor libertário, nacionalista, defensor do patrimônio público, da moralidade política-administrativa e passou a desancar, com rigor, as medidas liberais do Governo, principalmente do presidente Fernando Henrique Cardoso – em especial contra a estatização de empresas públicas rentáveis, contra os juros escorchantes, o pagamento da dívida pública, a supressão de direitos dos trabalhadores, tornando-se, com o seu jornal, o mais ferrenho opositor de FHC, pondo à nu as mazelas públicas, os políticos e a corrupção, principalmente a prorrogação do mandato presidencial, que considerou um escárnio contra a democracia, pela compra desbragada de votos no Congresso Nacional. Saudou com laudatórias matérias jornalísticas a eleição do presidente Lula, mas, logo de início, passou a criticar, com fundamentadas razões, as escolhas governamentais, se indispondo com a cúpula petista que riscou a “Tribuna” da distribuição da propaganda oficial. Com isto, voltou ao que sempre foi: o mais combativo jornalista brasileiro a externar suas opiniões sempre sarcásticas, cruéis e malévolas contra tudo e todos, que, na sua opinião, no exercício de cargos públicos, não defendem os legítimos interesses do Povo e da Nação. A pendência judicial que mantém contra a União, pleiteando indenização e ressarcimento pelos prejuízos sofridos com as violências e a censura ao jornal, além de danos morais, postergada como são todas as demandas contra o Governo e agravada com a difícil situação comercial e financeira da “Tribuna”, produziu a debacle explicitada em seu libelo de 1º de dezembro. É uma lástima. Mais uma trincheira livre da imprensa que cai. Prazo aos céus que possa ser temporária.
EDITORIAL
Foto: Faesp
Equilíbrio, Prudência e União
Fábio de Salles Meirelles Presidente da Faesp-Senar/SP e do Sebrae/SP Membro do Consellho Editorial
O
avanço do conhecimento tecnológico nos vários setores da atividade humana e o relacionamento entre os países, notadamente nas transações comerciais, proporcionaram o cenário global que estamos presenciando, de tal forma que um fato ocorrido em um continente pode repercutir em outro. Embora não queiramos, já estamos sentindo o início de uma crise econômica global iniciada em outro continente, conforme as afirmações e fatos seguintes. O Diretor-gerente do Fundo Monetário Internacional afirmou que a economia global pode cair em uma crise prolongada se os governos não implementarem os estímulos prometidos; o Presidente da China, por sua vez, declara que o mercado de trabalho em 2009 será, naquele país, impiedoso; e, segundo as notícias veiculadas pela imprensa, está se prevendo uma redução nas arrecadações públicas, o que poderá, em consequência, diminuir a manutenção do equilíbrio das contas públicas. Por outro lado, em nosso País, o Presidente do Banco Central afirmou que podemos experimentar uma desaceleração do forte ritmo de crescimento que vínhamos ostentando. Várias multinacionais já demitiram empregados, ainda que, em alguns casos, sob temor da crise; outras preparam cortes nos investimentos; o Presidente da Vale iniciou uma pressão junto aos sindicatos e ao Governo objetivando a flexibilização temporária das normas trabalhistas como forma de evitar a demissão em massa. Inegavelmente é a crise que se inicia no nosso País. Ante o quadro que se apresenta entendemos que o processo de crise deve ser analisado de forma ampla para a adoção de medidas pragmáticas com a participação de todos os segmentos e órgãos governamentais, institucionais,
empresariais, de forma a agirem unidos e em sintonia. A História, essa “mestra da vida”, tem nos ensinado que nos momentos críticos surgem as grandes idéias, iniciativas e união de forças para superar os problemas. Assim ocorreu na época da crise do café em 1929 e na década de 30, quando surgiram as primeiras conversações e movimentos de agropecuaristas paulistas com o intuito de unirem-se em um sistema associativista rural, surgindo assim a Federação das Associações Rurais do Estado de São Paulo, hoje a eficiente e dinâmica Federação da Agricultura e Pecuária do Estado de São Paulo – FAESP. Desta forma estamos em um momento que exige união para ações globais, equilibradas e prudentes, de forma abrangente, envolvendo todos os segmentos da vida pública e privada, em busca de soluções conjunturais e estruturais, pois assim venceremos qualquer ameaça e/ou princípio de crise. Oportuno afirmar a enorme importância – nesta fase de preocupações, que podem redundar em incompreensões, desajustes e até conflitos – de confiarmos em nossos Tribunais e em nossos mestres das ciências jurídicas para as orientações à sociedade, bem como ao Poder Público e aos conflitos de interesses econômicos internacionais. Os homens e mulheres, com as suas responsabilidades, menores ou maiores, devem manter a tranquilidade e a confiança em nossas autoridades constituídas e no valor da competência e do espírito criativo do Homem brasileiro. Assim agindo, essa crise internacional, cujos ventos já nos alcançam, não virá nos assolar. Concluindo, reafirmamos e recomendamos equilíbrio, prudência e união, mantendo sempre a força construtiva do trabalhador. 2008 DEZEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 5
A Gestão do maior tribunal do MUNDO
O
Presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, desembargador Roberto Antonio Vallim Bellocchi, em entrevista à Revista Justiça & Cidadania sobre o primeiro ano de sua gestão à frente do maior Tribunal do mundo em carreira hierarquizada, dentre tantos assuntos polêmicos, falou pontualmente sobre a participação do Tribunal no orçamento do Estado, sobre a revisão da Lei Orgânica da Magistratura, o uso de algemas e a autonomia financeira dos Tribunais. Revista Justiça & Cidadania – Quais os maiores desafios até agora encontrados na gestão do maior Tribunal do País e o que fez ou pretende fazer para solucioná-los? Quais as suas prioridades? Vallim Bellocchi – Inicialmente o 1º semestre deste ano foi usado para compreender, conhecer como está o Tribunal de Justiça como um todo por dentro. Desenvolveu-se, em conseqüência, o plano de reocupação do Palácio da Justiça, que é uma obra-prima. Está tramitando fortemente o plano de reforma do Palácio João Mendes, que é o maior fórum da América Latina, com circulação de 25 mil pessoas e protocolo de 11 mil petições por dia. Para isto, há necessidade de melhorar as condições de trabalho dos cartórios, das secretarias de apoio e dos gabinetes de trabalho dos juízes e das juízas. Existe também a necessidade de uma replanificação de 6 • JUSTIÇA & CIDADANIA •DEZEMBRO 2008
cargos e carreiras, que já vem sendo desenvolvida. Porque têm-se, ou tinham-se, inúmeros cargos absolutamente sem função. Já prestaram serviço no passado e hoje não têm mais razão de ser. Além disso, precisamos investir nas condições de trabalho dos fóruns regionais. Eu tenho visitado fóruns regionais nos quais a prestação de serviços judiciários é deficiente, não por culpa de magistrados e magistradas, mas pelas condições dos prédios, que vêm sendo utilizados de uma maneira precária. Está sendo feito um trabalho modesto, à semelhança de outros, sem alarde como é necessário, junto à Secretaria da Justiça, por exemplo. Depois, caso a caso, temos prioridades. Traçou-se, e já está em grande parte avançado, o plano de transmissão das seções do Órgão Especial – cúpula que decide colegiadamente pelo Tribunal de Justiça – pela intranet, ou seja, reservadas somente a juízes e desembargadores nos seus gabinetes, e está se experimentando a transmissão via Internet, por enquanto para nove entidades de forma experimental. Isto já vem ocorrendo e, até onde eu sei, tem boa receptividade. Em seguida, sempre em ordem de prioridade, o Plano de Cargos e Carreiras dos servidores do Tribunal de Justiça. Não haveria a necessidade da Constituição prever. Isto decorre do exercício do serviço público. Há ainda o projeto das custas judiciais que são atribuídas pela Emenda nº 45/04 aos Tribunais de Justiça, privativas destes e das quais nenhum órgão mais participa; nem poderia, porque a Constituição da República não permite.
Foto: Assessoria de Imprensa/TJSP
Este projeto está em vias de ser encaminhado, aguardando o momento político para se desenvolver. É preciso acirrar, no sentido de aprofundar, a discussão, já que estas custas são fundamentais para o trabalho do Tribunal de Justiça, e isto envolve a transferência de receitas, ocasionando a necessidade de que se converse, como sempre se conversou e vem se conversando, com os demais Poderes. O outro projeto é o de estagiários para os juízes de 1ª instância, que precisam de uma assessoria, porque têm suas condições de trabalho cada vez mais reduzidas pela falta de funcionários, motivada, ao longo do tempo, por aposentadorias, desligamentos, transferências e também pelo aumento vegetativo. Cada Vara de São Paulo, posso dizer central e regional, trabalha com volume superior a 8 mil, 9 mil processos. É uma necessidade para o magistrado de 1º grau, que dá o 1º combate. Existe também um projeto para completar o ciclo de assessores dos desembargadores, que, por sua vez, também precisam deste apoio, até porque o acervo, ou seja, os processos que aguardam julgamento em 2ª instância estão estimados em torno de 500 mil. Mas esta conta não é do Tribunal de Justiça. Esta conta deve ser atribuída à Emenda nº 45/04, que, como num passe de mágica, “acabou com o atraso” do Poder Judiciário no País. É um sonho de verão, mas nós sentimos os efeitos desagradáveis provocados por esta Emenda em relação ao volume de processos para o maior Tribunal de Justiça do País. A informática dá um
impulso enorme, no entanto as restrições orçamentárias, em razão do orçamento recebido a partir deste ano, estão impedindo que ela se desenvolva de forma acentuada. É necessário dosar a velocidade, para que outros setores não fiquem desamparados. É exatamente por isso que espero que o novo orçamento do Estado para o Tribunal repare esta injustiça. Em linhas gerais, são essas as prioridades que vêm sendo realizadas com custo, com apoio e, sobretudo, com discrição e com economia doméstica razoável pela Comissão de Orçamento. JC – A Lei de Responsabilidade diz que o Judiciário pode receber até 6% do orçamento do Estado. O Poder Judiciário de São Paulo faz uso desse percentual? VB – Não. O gasto do TJ/SP é inferior a 6%, aliás esta Lei de Responsabilidade Fiscal precisa ser retificada nessa parte. É uma questão de bom senso que esses 6% não possam ser considerados como teto, têm que ser piso. Isso amarra o orçamento dos Tribunais. O Tribunal está abaixo do seu gasto e necessita de um gasto maior, daí a insistência de a alíquota de 6% ser piso e não teto. Esse é um dos itens da autonomia financeira, que é a maior probabilidade de receita para maior quantidade de projetos, cumprindo a tarefa constitucional de organizar o Poder, e não de “reformar” o Poder. A falta de numerário atrelada à necessidade de pagamento das obrigações pelo Tribunal de Justiça impedem a instalação 2008 DEZEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 7
de varas e comarcas. Esses 2 projetos estão suspensos por falta de verbas. Transferência de funcionários não vai resolver, porque desta forma abre-se uma vaga aqui para benefício de outro acolá, quando o servidor é o mesmo. Nós não temos essa disponibilidade financeira e nem de pessoal. Dentro disso, e retornando ao item prioridade, a Presidência do Tribunal de Justiça também deve encaminhar à Assembléia Legislativa, em pouco tempo, embora sempre de uma forma elegante, harmônica, franca, cavalheira, os projetos de interesse do Tribunal, dentre eles, o de liberação de verba para contratação de 1 mil escreventes, já que temos inúmeros concursos terminados. Esta mão-de-obra é fundamental e nós precisamos disto. Porém, em termos constitucionais, tudo deve ser conversado, pois o princípio da República, apelidada democrática, é o entendimento, é o consenso. O litígio constitucional é em último caso. Quando esgotados os meios de entendimento, é que apela-se ao Poder Judiciário. JC – O Sr. falou em contratação de assessores para os desembargadores. Quantos são hoje e qual seria o contingente satisfatório? VB – É necessário o acréscimo de mais 1 ou 2 assessores para cada Desembargador, que hoje trabalha assessorado por 2 assistentes e 2 escreventes, para estoque, de uma maneira em geral, de 1.200 processos por gabinete; ao passo que outros Tribunais têm um número maior de assistentes. O Tribunal de Justiça de São Paulo precisa de instrumento de trabalho. E instrumento de trabalho não é custeio, é investimento. JC – Quantos processos hoje aguardam distribuição? VB – Aproximadamente 500 mil. O Tribunal de Justiça dá um belo exemplo, pois todos os processos que entram são julgados. Este acervo é antigo, não foi criado agora, decorrente 8 • JUSTIÇA & CIDADANIA •DEZEMBRO 2008
Foto: Assessoria de Imprensa/TJSP
“O Tribunal de Justiça de São Paulo precisa de instrumento de trabalho. E instrumento de trabalho não é custeio, é investimento.”
da Emenda nº 45/04 e da falta de estrutura existente na época, considerando-se que eram quatro Tribunais. A Emenda nº 45/04 unificou esses Tribunais e determinou que todos os processos aguardando distribuição fossem distribuídos. Isto foi magia maravilhosa, mas, como toda magia, não é real, e com isso nós ainda temos essa dificuldade: um acervo para quem trabalha efetivamente, graças à informática que ajuda muito e graças a essa assessoria pequena, porém eficiente, que os desembargadores têm. Como decidem em última instância no Estado precisam ter uma situação de trabalho mais justa. JC – O Sr. falou que as custas nem sempre são totalmente destinadas à administração do Tribunal. Qual é o percentual de custas destinadas, hoje, ao Tribunal? VB – Eu não sei lhe dizer o número exato, porque essas custas envolvem o Governo do Estado, vão para o caixa do Estado e vêm para cá. Acho que são 30%. O Poder Judiciário é um órgão que arrecada bem, porém fica, me parece, com não mais do que 30%. O objetivo da Emenda, que nesse ponto foi sábia, é que as custas arrecadadas pelo Tribunal de Justiça fiquem com ele. Como vai se defender a autonomia orçamentária se a contradição está no próprio sistema? JC – Sobre a questão da autonomia financeira do Tribunal, existe algum projeto de criação de um fundo de gestão? VB – O Tribunal tem o fundo especial de despesa e para ele são destinadas várias verbas, orçamentárias ou não. Exemplos de verbas não-orçamentárias são as arrecadadas com os concursos públicos, aluguel de espaço, as verbas para a chamada modernização; elas pertencem às partes e estão provisoriamente em estabelecimentos bancários, mas virão para o Tribunal de Justiça, que é seu titular. Todo este montante compõe o fundo especial do Tribunal de
Justiça, que é muito bem administrado pela Comissão de Orçamento. A Presidência do Tribunal de Justiça não toma uma decisão sem ouvir a Comissão de Orçamento. JC – A Lei Orgânica da Magistratura está para ser revista. O TJ/SP está, de alguma forma, participando desse processo? VB – A Lei Orgânica da Magistratura tem aproximadamente 30 anos e foi inspirada à égide do então regime ditatorial que havia no País, procurando disciplinar organicamente, ou seja, na sua estrutura, a carreira da Magistratura. Compete privativamente ao STF elaborar o projeto da Lei Orgânica, que deverá ser oportunamente remetido para apreciação do Congresso Nacional. A visão que o Tribunal de Justiça tem é a de que muitos assuntos que estão sendo tratados esparsamente ou pontualmente – por exemplo: férias, direitos, vantagens, obrigações – na lei atual, devem ser reciclados. Em 30 anos o quadro mudou, inclusive o perfil do Magistrado. Ainda não se tem o formato completo na visão do Tribunal de Justiça, e espera-se que atenda aos anseios atuais e futuros da Magistratura, pois pertence a um passado que serve de lição, mas não de um dado recorrente permanentemente, porque precisa de uma modificação. Como eu disse, isto é privativo do STF, que tem toda a estrutura, inclusive financeira, para atender esta demanda, mas se precisar de apoio do Tribunal de Justiça de São Paulo o terá a hora que desejar. JC – No Tribunal Federal de São Paulo, dos 41 desembargadores, 18 são mulheres, quase 50%. Aqui no Tribunal Estadual, apenas pouco mais de 3% são mulheres. A que se deve a ausência feminina na composição deste Tribunal? VB – Eu não sinto só no Tribunal Federal de São Paulo, mas em vários estados do país, da justiça estadual, a participação feminina exemplar. O TJ/SP tem um perfil conservador, clássico, mas não atrasado. O maior Tribunal do país é um Tribunal avançado em muitos itens do segmento social, porém não abre mão de certos princípios que são clássicos – não atrasados, repito. Havia, há tempos, um sentimento de que a mulher não se ajustaria à carreira da Magistratura, mas isto era no passado. A vantagem do tempo é que ele nos dá várias lições. Nós precisamos aprender com a vinda das ilustres damas que tanto têm orgulhado este Tribunal. Hoje o número é pequeno, 13 desembargadoras – falando somente em Tribunal de Justiça –, mas há um enorme contingente feminino na 1ª instância. No entanto, espero que cresça cada vez mais. As mulheres dominam o mundo com a inteligência e o coração. JC – O Tribunal criou um prêmio para homenagear representantes de diversos segmentos da sociedade. Como surgiu essa idéia e quais foram os aspectos considerados para a escolha do presidente da FIESP, Sr. Paulo Skaf, como o mais recente homenageado?
VB – Não foi necessariamente uma criação, porque o Tribunal de Justiça, como disse, tem o perfil clássico; tem uma Comissão de Honraria e Mérito, tem o Colar do Mérito Judiciário, a Medalha do Mérito Judiciário, que são atribuídos, via de regra, a quem se destaca na área judicial, ou tem colaboração estreita com a tarefa judiciária. E isto exige, portanto, alguém com perfil apropriado à comunidade judiciária, não apenas por ser membro deste ou daquele Tribunal. O fato de estar no Tribunal não justifica nada. Respeito sim, mas fazer jus a essas honrarias não, porque depende do seu trabalho em relação ao Tribunal de Justiça de São Paulo na área judiciária. Para o Dr. Paulo Skaf, e com isso se homenageou o segmento da indústria, a motivação foi outra. Foi uma homenagem simples, porém sincera, como se diz na toada popular, a quem vem demonstrando uma parceria simpática, desinteressada e profícua com o Tribunal de Justiça de São Paulo. Nós temos, na Fiesp, por exemplo, ex-ministros, ex-presidentes, desembargadores aposentados, que prestam um trabalho notável e aos quais a Fiesp abriu espaço para que aplicassem a sua experiência. Na medida em que a Constituição da República estabelece um limite de 70 anos, o país caminha na contramão da história, e todos nós sabemos disso. O serviço público rejeita a experiência, a empresa privada a aproveita. A Fiesp dá uma lição de cidadania, daí termos convênios com ela, inclusive no segmento da conciliação. O TJ/SP tem convênio também com a Associação Comercial e com o CIEE (Centro de Integração Empresa Escola). Em homenagem a essa participação da sociedade através da indústria, como poderia ser com outras entidades, o Tribunal de Justiça houve por bem prestar um agradecimento à Federação das Indústrias de São Paulo, representada por um homem de bem, alguém que é uma unanimidade nacional de respeito. Foi esse o sentido, diferentes as honrarias, portanto. JC – Foi firmado então um convênio para cooperação entre a FIESP e o Tribunal? VB – É isso. Temos que estimular a conciliação, e isto é fundamental, como ocorre, além da Fiesp, com a Associação Comercial e com o CIEE. É a maneira de se fortalecer corretamente a jurisdição voluntária, que vem através da conciliação, da mediação, ou da arbitragem, que são formas de resolução de conflitos. O Estado, no seu formato atual, é incapaz de atender aos reclames da sociedade no que tange à resolução de conflitos. Os Tribunais estaduais fazem a sua parte, mas a demanda é maior do que a oferta. JC – A imprensa brasileira reclama do isolamento do Judiciário. O senhor concorda com a afirmativa de que o magistrado só deve falar nos autos do processo? VB – O magistrado precisa ter cuidado ao dar uma entrevista ou comentar sobre aquilo que está se discutindo. Quanto ao segredo de Justiça, nem pensar. É proibida a divulgação de comentário sobre algo que está dentro de um processo. Na esfera criminal, por exemplo, em um crime de 2008 DEZEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 9
“Havia, há tempos, um sentimento de que a mulher não se ajustaria à carreira da Magistratura, mas isto era no passado. A vantagem do tempo é que ele nos dá várias lições. Nós precisamos aprender com a vinda das ilustres damas que tanto têm orgulhado este Tribunal.”
repercussão nacional, o magistrado precisa tomar cuidado, porque ele poderá decidir aquele caso e ser mal interpretado por alguém alegando que o magistrado emitiu uma opinião. Isto pode ferir a imparcialidade do magistrado, tanto no cível como no criminal. Portanto, o fato de o magistrado usar de cautela não significa distanciamento e nem impedimento da ação da imprensa, que merece ter todo o campo. Ele estará apenas resguardando os interesses das partes naquele processo. Não é a lei da mordaça, isso é algo que aqui no Estado de São Paulo não existe. Em momento algum o Tribunal de Justiça vai interferir, impedindo qualquer magistrado de dar alguma declaração. Os magistrados são suficientemente prudentes para tomar as cautelas devidas. É isto que deve ser exposto. O Poder Judiciário tem o dever de zelar pelos interesses das partes quando estão litigando, para que amanhã uma declaração meramente informativa, por exemplo, não seja usada como elemento capaz de afetar a imparcialidade do magistrado, e isto em momento algum cerceia, absolutamente. O que se cria é um mito. Mas o que não é mito no Brasil? Então vamos descer à realidade. JC – Muito se questiona hoje sobre o uso da algema. O senhor é contra ou a favor? VB – É uma proteção em certos casos, sem generalizar. Mas nos momentos em que o episódio criminal representa sinais de perigo para as autoridades que interferem em um júri ou em uma Vara Criminal, por exemplo, sou plenamente favorável. Lógico que deve ser respeitada a dignidade de cada um, mas a probabilidade de alguém, perigoso, que está sendo acusado de algo grave, atacar um juiz num júri ou numa audiência é grande. Isto não fere a dignidade, isto é 10 • JUSTIÇA & CIDADANIA •DEZEMBRO 2008
uma cautela natural; assim como ter um segredo de Justiça que protege os interesses particulares. A algema, do ponto de vista criminal, precisa ser entendida como um recurso de proteção que não agride alguém que, usando uma linguagem romântica, está em conflito com a lei. JC – O senhor entende então que o uso das algemas deve se dar apenas na questão criminal? VB – Ah, sim, nas questões civis ou fazendárias isto é muito raro. Em tantos anos de magistratura, e lá se vão 42 anos, eu não me recordo do uso de algemas em uma questão civil. Os crimes fazendários têm que ser entendidos na visão fazendária ou tributária. São três os pressupostos para o uso de algemas: a proteção do policial, ou de alguma autoridade; o risco de fuga; e o risco da autolesão. Eu, como magistrado de carreira, de longa vivência, vejo a algema como necessária em qualquer tipo de crime que pressuponha risco para a administração da justiça ou para a segurança das autoridades que efetuem a prisão e até mesmo para a sociedade. Agora, sem pirotecnia. Temos que ter o bom senso. JC – O senhor entende a Lei nº 11.672 de 2008 como restritiva à atuação dos tribunais estaduais? VB – Não a vejo com o objetivo de restrição, mas sim com o de disciplina. Porque nós temos no Tribunal de Justiça, que é o maior do país, o maior número de distribuição de recursos especiais e extraordinários. Nota-se, claramente e constantemente, a repetição de assuntos: 30, 40 recursos sobre o mesmo tema, gerando conseqüentemente despachos que os negam ou admitem. O objetivo dessa lei – idéia que
nasceu em São Paulo há muito tempo, mas que por razões políticas e de oportunidade, não foi transformada em projeto de lei – é disciplinar, evitando que o número sem conta de recursos repetitivos tenham seguimento; isso congestiona o Tribunal de Justiça de São Paulo e também os Tribunais aos quais os recursos são dirigidos. Portanto, do ponto de vista da disciplina, para eliminar a repetição, que não é uma boa companheira, é que advém esta Lei Federal. Espera-se que dê certo e que não seja apenas mais uma boa notícia, e nem uma boa idéia. Que seja efetiva. JC – Como é formado o TJ/SP? VB – Existem Cortes Constitucionais de cassação, de fundo constitucional, em número variado, 500, 400, 300, mas são Cortes de natureza política, com mandato de 2, 3 anos. Na magistratura estadual do País, há uma hierarquia de fundo constitucional, que têm como ápice o STF. Está na Constituição, o STF, o STJ, os Tribunais de Justiça estaduais, os Tribunais Regionais Federais e os Tribunais Regionais do Trabalho, têm carreiras hierarquizadas constitucionalmente, não têm mandato. Nessa ordem, o Tribunal de Justiça de São Paulo é o maior do mundo, são 488 membros aproximadamente, entre 360 desembargadores e 85 juízes substitutos de 2ª instância. É um universo respeitabílissimo. O Tribunal Pleno, nos termos em que a Constituição o instituiu aqui no Estado de São Paulo, é composto de 360 desembargadores. O Pleno se reúne para eleições que envolvam a mudança dos cargos de cúpula e de direção, para discussões relativas à vida diária deste Tribunal, o Órgão Especial é quem o representa. E para o Órgão Especial existe em relação a 12 cargos, porque a Constituição da República estabeleceu que na composição dos Tribunais de Justiça que tenham, por exemplo, acima de 11 membros – 25 membros, como é aqui – metade será por antigüidade, e metade eleita por 2 mandatos. Um mandato e mais uma recondução. Este talvez tenha sido o ponto mais importante da Emenda nº 45, porque levou a uma mescla entre juízes antigos e juízes mais novos no Órgão Especial, ainda que sejam antigos no Tribunal. Esta mistura tem produzido bons resultados. JC – Uma oxigenação na administração? VB – Não digo uma oxigenação. Este termo é muito perigoso, porque parece, ou poderia parecer, que os juízes mais antigos não têm mais oxigênio. Eles não morreram. A experiência que eles têm dificilmente vai ser substituída. Daí a mescla, a juventude do argumento, não necessariamente da idade. Dos que são eleitos, a juventude do argumento, a beleza do argumento, a controvérsia do argumento ante a experiência no trato dos mesmos argumentos. Isto produz uma maturidade, uma substância maior, um peso a mais nas decisões. E o Tribunal de Justiça de São Paulo se orgulha do seu Órgão Especial. Na verdade, o Tribunal de Justiça se orgulha de tudo. Desde o servidor mais humilde, porém nobre, até o Presidente.
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prescrição nas ações de ressarcimento de dano ao erário RECURSO ESPECIAL Nº 1.069.779 – SP (2008/0137963-1) Relator: Recorrente: Advogado: Recorrido: Procurador:
MINISTRO HERMAN BENJAMIN COESA ENGENHARIA LTDA. LUÍS EDUARDO MENEZES SERRA NETTO E OUTRO(S) MUNICÍPIO DE BAURU MARISA BOTTER ADORNOGEBARA E OUTRO(S)
Ementa PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO DE RESSARCIMENTO DE DANO AO ERÁRIO. PRESCRIÇÃO. NÃO-OCORRÊNCIA. INÉPCIA DA INICIAL NÃO CONFIGURADA. INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. NÃOCABIMENTO. 1. Hipótese em que a empresa recorrente busca, com base no art. 17, § 8º, da Lei nº 8.429/1992, a suspensão do prosseguimento de ação ordinária, na qual se apuraram irregularidades na celebração e na execução do contrato para construção de unidades habitacionais. 2. O art. 23 da Lei nº 8.429/1992, que prevê o prazo prescricional de 5 (cinco) anos para a aplicação das sanções, disciplina apenas a primeira parte do § 5º do art. 37 da Constituição Federal, já que in fine esse mesmo dispositivo teve o cuidado de deixar “ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento”, o que é o mesmo que declarar a sua imprescritibilidade. Precedentes: MS 26.210/DF, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, j. 4.9.2008; e REsp 403.153/SP, Rel. Ministro José Delgado, j. 09.09.2003, DJ 20.10.2003. 3. A pretensão de ressarcimento pelo prejuízo causado ao erário é imprescritível. 4. O Município tem legitimidade para propor ação de improbidade administrativa contra ex-prefeito e 12 • JUSTIÇA & CIDADANIA •DEZEMBRO 2008
outros servidores municipais. Descabido, in casu, falar em confusão entre credor e devedor, na forma do art. 381 do Código Civil. 5. Não se configura inépcia da inicial se a petição contiver a narrativa dos fatos configuradores, em tese, da improbidade administrativa e, para o que importa nesta demanda, do prejuízo aos cofres públicos. 6. Sob pena de esvaziar a utilidade da instrução e impossibilitar a apuração judicial dos ilícitos nas ações de improbidade administrativa, a petição inicial não precisa descer a minúcias do comportamento de cada um dos réus, individualmente; bastando a descrição genérica dos fatos e imputações. 7. Na hipótese dos autos, a descrição genérica dos fatos e imputações é suficiente para bem delimitar o perímetro da demanda e propiciar o pleno exercício do contraditório e do direito de defesa. 8. Impertinente à objeção de inadequação da via eleita, sob o argumento de que a licitação ocorreu e o contrato foi celebrado antes da vigência da Lei nº 8.429/1992, quando, na verdade, noticiam-se irregularidades na celebração do contrato (antes da Lei da Improbidade) e também na sua execução (na vigência da Lei da Improbidade). 9. Inexistência de ofensa ao princípio da irretroatividade da lei. A Lei nº 8.429/1992 não inventou a noção de improbidade administrativa, apenas lhe conferiu
Foto: www.apesp.org.br Ministro Herman Benjamin, do Superior Tribunal de Justiça
regime jurídico próprio, com previsão expressa de novas sanções não fixadas anteriormente. 10. Antes da Lei nº 8.429/1992, a prática de improbidade administrativa, sob o prisma do Direito material, já impunha ao infrator a obrigação de ressarcimento aos cofres públicos. 11. Na hipótese dos autos, trata-se de ação de reparação fundamentada na de ocorrência de dano patrimonial ao erário, proposta pela Prefeitura de Bauru, sob o rito ordinário, em que o autor pede, expressamente, na petição inicial, a condenação dos réus “ao ressarcimento dos danos sofridos pelo erário municipal, que deverão ser apurados mediante perícia técnica e contábil, à vista dos documentos juntados aos autos e das conclusões do Tribunal de Contas da União”. 12. Possibilidade ainda de aplicação das sanções previstas na Lei nº 8.429/1992 a alterações contratuais ilegais praticadas na sua vigência, mesmo que o contrato tenha sido celebrado anteriormente. Isso porque, na aplicação do princípio tempus regit actum em matéria de incidência da Lei nº 8.429/1992, considera-se o momento da prática do ato ilícito, e não a data da celebração do contrato. 13. Após a promulgação da Lei nº 8.429/1992, as sanções nela previstas aplicam-se imediatamente a contratos com execução em andamento, mas somente
se os ilícitos em questão tiverem sido praticados já na vigência da nova lei. 14. Recurso Especial não provido. ACÓRDÃO Brasília (DF), 26 de agosto de 2008 (Data do Julgamento) Ministro Herman Benjamin Relator Relatório O Exmo. Sr. Ministro Herman Benjamin: Trata-se de Recurso Especial interposto, com fundamento no art. 105, III, “a”, da Constituição da República, contra acórdão assim ementado (fl. 196): AGRAVO DE INSTRUMENTO – RECURSO INTERPOSTO CONTRA DECISÃO QUE REJEITOU AS PRELIMINARES ARGÜIDAS PELA AGRAVANTE – PETIÇÃO INICIAL QUE NÃO PADECE DE INÉPCIA – DOS FATOS NARRADOS DECORRE LOGICAMENTE O PEDIDO – PRESCRIÇÃO – INOCORRÊNCIA, POR FORÇA DO § 5º DO ART. 37 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL – INAPLICABILIDADE DO ART. 23 DA LEI Nº 8.429/92 – AS DEMAIS QUESTÕES ESTÃO LIGADAS AO MÉRITO DA DEMANDA E SERÃO APRECIADAS OPORTUNAMENTE – RECURSO IMPROVIDO. 2008 DEZEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 13
“O Município tem legitimidade para propor ação de ressarcimento decorrente de improbidade administrativa contra ex-prefeito e outros servidores municipais.”
Originariamente, o Município de Bauru ajuizou Ação Ordinária Condenatória contra a empresa, ora requerente, e outros, em que se busca o ressarcimento de danos ao erário, tendo em vista irregularidades na celebração e execução do contrato para construção de unidades habitacionais. Em manifestação prévia, a empresa Coesa Engenharia Ltda. apontou a existência de vícios processuais que impediriam o regular processamento da demanda, quais sejam a ocorrência de prescrição, confusão, falta de interesse de agir, inépcia da inicial e outras questões inerentes ao mérito, tais como inexistência de ato de improbidade. O juízo de 1º grau afastou as preliminares indicadas pela empresa e determinou o prosseguimento do feito, dando ensejo à interposição de Agravo de Instrumento ao TJ/SP, o qual lhe negou provimento. Contra essa última decisão, a empresa interpôs o presente Recurso Especial, com base nas seguintes violações: a) do art. 295, I e parágrafo único, c/c o art. 282, III, do CPC (relativas à inépcia da inicial); e b) dos arts. 17, § 8°, e 23, I, da Lei nº 8.429/1992 (inadequação da via eleita e prescrição). O Tribunal local inadmitiu o Recurso Especial (fls. 476477). Interposto o Agravo de Instrumento – autuado no STJ como AG 956.549/SP –, determinei a subida do apelo da empresa para melhor exame da matéria. É o relatório. Correto o entendimento do TJ/SP. De fato, é imprescritível a pretensão de ressarcimento de dano ao erário, nos termos do art. 37, § 5º, in fine, da CF. Nesse sentido: PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. MINISTÉRIO PÚBLICO. LEGITIMIDADE. DANO AO ERÁRIO. LICITAÇÃO. ECONOMIA MISTA. RESPONSABILIDADE. (...) 6. É imprescritível a Ação Civil Pública visando a recomposição do patrimônio público (art. 37, § 5°, CF/88). (...) 12. Recursos das partes demandadas conhecidos 14 • JUSTIÇA & CIDADANIA •DEZEMBRO 2008
parcialmente e, na parte conhecida, improvidos. (REsp 403.153/SP, Rel. Ministro José Delgado, Primeira Turma, julgado em 9.9.2003, DJ 20.10.2003, p. 181) O egrégio Supremo Tribunal Federal reiterou a imprescritibilidade das ações de ressarcimento ao erário no início deste mês, ao julgar o MS 26.210/DF (Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, j. 4.9.2008). Transcrevo a notícia veiculada pelo Informativo STF 518/2008: (...) Afastou-se, também, a apontada prescrição, ao fundamento de incidir, na espécie, o disposto na parte final do art. 37, § 5°, da CF (“A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento.”). (...) MS 26210/DF, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, 4.9.2008. (MS-2621O) Cito também a lição doutrinária: Vê-se, porém, que há uma ressalva ao princípio. Nem tudo prescreverá. Apenas a apuração e a punição do ilícito; não, porém, o Direito da Administração ao ressarcimento, à indenização do prejuízo causado ao erário. (José Afonso da Silva. Comentário Contextual à Constituição, 5. ed., p. 349). São, contudo, imprescritíveis as ações de ressarcimento por danos causados por agente público, seja ele servidor público ou não, conforme estabelece o artigo 37, § 5°, da Constituição. Assim, ainda que para outros fins a ação de improbidade esteja prescrita, o mesmo não ocorrerá quanto ao ressarcimento dos danos. (Maria Sylvia Zanella di Pietro. Direito Administrativo, 14. ed., p. 695) Voto O EXMO. SR. MINISTRO HERMAN BENJAMIN: De início, constato que a empresa busca a extinção da ação, com base no art. 17, § 8°, da Lei nº 429/1992, in verbis: Art. 17. A ação principal, que terá o rito ordinário, será proposta pelo Ministério Público ou pela pessoa jurídica interessada, dentro de trinta dias da efetivação da medida cautelar. (...) § 8° Recebida a manifestação, o juiz, no prazo de trinta
dias, em decisão fundamentada, rejeitará a ação, se convencido da inexistência do ato de improbidade, da improcedência da ação ou da inadequação da via eleita. O dispositivo acima visa a evitar o processamento de ações temerárias, manifestamente infundadas. Ocorre que as razões apresentadas pela recorrente não demonstram a existência de lide temerária de modo a legitimar a rejeição liminar da ação, como se pretende. No que tange à alegação de ter havido prescrição, conforme prevista no art. 23 da Lei nº 8.429/1992, percebo que o Tribunal de origem aplicou ao caso o disposto no art. 37, § 5º, da CF, nos moldes do excerto seguinte (fls. 197-198): (...) Com efeito, trata-se de ação pleiteando o ressarcimento de prejuízos causados ao erário público, hipótese prevista no art. 37, § 5º, da Constituição Federal, que assim dispõe: “§ 5º A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causarem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento”. Assim, não se poder falar em prescrição em relação ao pedido de ressarcimento dos prejuízos causados ao erário público, de modo que o é inaplicável o disposto no art. 23 da Lei nº 8.429/92, que prevê que a ação de improbidade prescreverá em cinco anos após o término do mandato. Ademais, ainda que se admita o prazo prescricional vintenário, saliento que os fatos ilícitos ocorreram a partir de 1990 (fl. 47). Considerando que a ação foi proposta em 20.11.03, não haveria falar em prescrição. O Município tem legitimidade para propor ação de ressarcimento decorrente de improbidade administrativa contra ex-prefeito e outros servidores municipais. Descabido, in casu, falar em confusão entre credor e devedor, na forma do art. 381 do Código Civil: PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS POR IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA PROPOSTA CONTRA EX-PREFEITO. MALVERSAÇÃO DE APLICAÇÃO DE VERBAS RECEBIDAS DE CONVÊNIO FIRMADO COM A UNIÃO. IMPORTÂNCIA INCORPORADA AO ERÁRIO MUNICIPAL. LEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM DO MUNICÍPIO. OFENSA AO ART. 3° DO CPC RECONHECIDA. (...) 2. A verba liberada por meio do convênio firmado com a Fundação Nacional de Saúde foi incorporada ao erário municipal (tendo sido creditada em contacorrente na data de 11.6.02, detendo, pois, o Município a legitimidade para perseguir judicialmente a reparação pelos danos sofridos. (...) 4. Recurso Especial conhecido e provido determinando-
se o retorno dos autos ao juízo de primeiro grau para que prossiga a análise da ação. (REsp 1024648/MG, Rel. Ministro José Delgado, Primeira Turma, julgado em 22.4.08, DJe 21.5.08) As alegações aduzidas no Recurso Especial, de violação do art. 295, I e parágrafo único, c/c art. 282, III, do CPC, relativas à inépcia da inicial da ação proposta pelo Município, também não merecem prosperar. Constato que a exordial (fls. 42-84) contém a narrativa dos fatos configuradores, em tese, da improbidade administrativa, e isto é o que basta, diante das normas contidas nos arts. 9°, 10 e 11 da Lei nº 8.429/1992, para que seja possível aplicar as sanções previstas no art. 12 da referida lei, se for o caso. Sob pena de esvaziar de utilidade a instrução e impossibilitar a apuração judicial dos ilícitos nas ações de improbidade administrativa, a petição inicial não precisa descer a minúcias das ações ou omissões praticadas pelo réu. Na hipótese dos autos, a descrição genérica dos fatos e imputações é suficiente para bem delimitar o perímetro da demanda e propiciar o pleno exercício do contraditório e do direito de defesa. Impertinente a objeção de inadequação da via eleita, sob o argumento de que a licitação ocorreu e o contrato foi celebrado antes da vigência da Lei nº 8.429/1992, quando, na verdade, noticiam-se irregularidades na celebração do contrato (antes da Lei da Improbidade) e também na execução do contrato (na vigência da Lei da Improbidade). De fato, o contrato foi aditado posteriormente ao advento da Lei de Improbidade Administrativa. Transcrevo trecho do voto-condutor do acórdão recorrido (fl. 197): Os atos supostamente lesivos se estenderam no tempo já na vigência da Lei de Improbidade, cujo rito especial prevalece. Não há ofensa ao princípio da irretroatividade. A Lei nº 8.429/1992 não inventou a noção de improbidade administrativa, apenas lhe conferiu regime jurídico próprio, com previsão expressa de novas sanções, não fixadas anteriormente. Além disso, não é razoável que a recorrente aceite a incidência da Lei nº 8.429/1992 para fins de manifestação prévia e rejeição liminar da ação, consoante preceituado no art. 17, § 8°, do mesmo diploma legal, e, ao mesmo tempo, defenda a não-aplicação da norma aos fatos, por ser posterior. Registre-se, a esse respeito, que, antes mesmo da vigência da Lei nº 8.429/1992, o ressarcimento do dano ao erário estava previsto no ordenamento jurídico, seja como obrigação legal genérica estatuída no Código Civil, seja, no caso específico de improbidade, na Lei nº 4.717/1965 (Ação Popular). Após a promulgação da Lei nº 8.429/1992, as sanções nela previstas aplicam-se imediatamente a contratos em andamento, mas somente se os ilícitos em questão tiverem sido praticados já na vigência da nova lei, como é o caso dos autos. É indiscutível, portanto, a aplicação da Lei nº 8.429/1992, conforme decidiu o Tribunal de origem. Por tudo isso, nego provimento ao Recurso Especial. É como voto. 2008 DEZEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 15
Princípios e direitos fundamentais: contradições, cláusulas pétreas e o desafio da segurança jurídica
Manoel Gonçalves Ferreira Filho Professor Titular da USP Presidente do Instituto “Pimenta Bueno”
Foto: AIDE
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“O primeiro ponto a salientar concerne a seu perfil de Constituição ‘aberta’, que, além de regras, enuncia princípios cogentes. De fato, o texto é fértil na imposição de princípios.”
O Introdução
s vinte anos de vigência da Constituição de 1988 ensejam um exame de suas instituições quanto às conseqüências que têm. Estas formam a ordem constitucional concreta que rege o País. Sim, porque as Constituições a amoldam, não na sua letra, mas na sua concretização real. É certamente importante, e instrutivo, examinar alguns de seus caracteres mais salientes e os resultados que deles decorrem. A “abertura da Constituição” O primeiro ponto a destacar concerne a seu perfil de Constituição “aberta”, que, além de regras, enuncia princípios cogentes. De fato, o texto é fértil na imposição de princípios. São estes enunciados, por exemplo, no art. 1º, caput, como “fundamentos” do “Estado Democrático de Direito”, este mesmo um dos princípios num rol em que se encontram a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, o pluralismo político. Somem-se a estes o disposto no caput do art. 37, tal qual é hoje vigente, que comanda a observância da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Mais os de legitimidade e os de economicidade, mencio nados no plano da fiscalização financeira (art. 70, caput). Acrescentem-se, quanto à atividade econômica, os princípios do art. 170, no caput: a valorização do trabalho humano e livre iniciativa; e nos seus incisos: a soberania nacional, a propriedade privada, a função social da propriedade, a livre concorrência, a defesa do consumidor, a defesa do meio ambiente, a redução das desigualdades regionais e sociais, a busca do pleno emprego, o tratamento favorecido para as empresas brasileiras de pequeno porte. Igualmente, os que hão de reger as relações internacionais do Brasil, que são a independência nacional, a prevalência dos direitos humanos, a autodeterminação dos povos, a nãointervenção, a igualdade entre os Estados, a defesa da paz, a solução pacífica dos conflitos, o repúdio ao terrorismo e ao
racismo, a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade, a concessão do asilo político (art. 4º). Não se olvidem ainda – deixo de transcrever por falta de espaço e tempo – dos princípios da educação, no art. 206. E também não enumero outros que aparecem travestidos de “deveres”, ou refletem interesses difusos. E lembro, enfim, que para a importante escola contem porânea que está na moda e conta no Brasil com numerosos adeptos os direitos fundamentais devem ser vistos também como princípios, o que traria para o rol deles o disposto nos arts. 5º, 6º, 7º, bem como o direito ao meio ambiente, “ecologicamente equilibrado” (art. 225, caput), e o direito à saúde (art. 196, caput). Ora, estes princípios são obrigatórios, imediatamente aplicáveis, mas, como tais, são normas generalíssimas que, segundo Robert Alexy e seus seguidores, fixam mandados de otimização e são suscetíveis de ponderação. A incidência de princípios em situações de fato depende de uma concretização dos mesmos que incumbe evidente mente ao aplicador. Este, assim, é que no fundo faz a norma, conforme seu juízo quanto ao conteúdo do princípio e o grau de otimização que comporta. Ademais, como na maioria dos casos concretos, vários princípios concorrem, ou colidem, isto é, de um ou outro ângulo o concernem. O aplicador tem a tarefa de ponderar, quer dizer, avaliar que peso cada um terá naquele caso e qual, por exemplo, deverá prevalecer. Além disto, o princípio – entende essa escola – é o começo de tudo, como diz o nome; e assim pode sobrepujar a regra, sua (mera) concretização legislativa. Ou seja, tudo se resolve pela Constituição, pondo-se de lado o Código referente à matéria. Surge o Direito Constitucional isto ou aquilo, que no fundo é o espelho das convicções do aplicador. A lei, ora a lei. Com efeito, a ponderação pode justificar que num caso específico, por exemplo, deve prevalecer a defesa do consumidor sobre a livre concorrência, ou vice-versa1. Neste quadro arbitrário qualquer tese é sustentável, e com a invocação da Constituição, mesmo que importe no fundo em reescrevê-la2. Sublinhem-se algumas conseqüências, dentre muitas, que daí resultam. 2008 DEZEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 17
“Não é outra a razão que tornou a Lei Magna em vigor uma verdadeira Constituição ‘oceânica’, tratando de tudo e procurando petrificar o tratamento de tudo. Assim, ela invadiu o campo que, na sabedoria do passado, era deixado à normação infraconstitucional.”
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A primeira é a judicialização da política, e isto em vários sentidos. O mais neutro deles é que nenhuma lesão ou ameaça a direito pode ser excluída da apreciação judicial. Todas as decisões do Governo podem ser submetidas ao juiz, que poderá julgá-las aplicando princípios outros que o da legalidade. Conformando-as, portanto, segundo o seu entender. É o que facilita a supressão da instância infraconstitucional. Claro está que disto deflui a insegurança jurídica. Ninguém pode prever se, numa decisão, vai prevalecer a legalidade ou a moralidade, a eficiência ou a economicidade. Certamente este quadro não se coaduna com o princípio – outro paradoxo – do Estado de Direito. Também não se ajusta ao cerne do sistema político. É este no Brasil a democracia e, como está no parágrafo único do art. 1º da Carta Magna, “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos, ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Ora, são os representantes, eleitos pelo povo, que fazem as leis, as quais devem intermediar a Constituição e sua aplicação, salvo lacunas específicas, que são excepcionais. Assim, a supressão da instância legislativa é violação de um princípio, o mais importante de todos, na ordem política: o princípio democrático. A “petrificação” direcional A Constituição é, entretanto, contraditória, e duplamente contraditória, visto que, se dá lugar a essa extremada abertura, por outro lado parece petrificar o futuro e sua obra. Tenha-se em mente que na Constituinte de 1987-1988 uma forte corrente pretendeu fazer da Lei Magna uma Constituição dirigente3, nos moldes que então pregava o grande mestre José Gomes Canotilho4. E isto nos dois sentidos da expressão. Quer dizer, no sentido explícito, de uma Constituição que dirigiria os governos para a realização de determinados objetivos, e, no sentido implícito, de que estes objetivos traduziriam a transição para o Socialismo – o que é a significação de Estado democrático de Direito na pena de Elías Díaz, o inventor da expressão. O direcionamento da atuação governamental seria formalmente assegurado pelo controle de constitucionalidade, inclusive pelas novidades, a ação de inconstitucionalidade por omissão e o mandado de injunção. Materialmente, ele o seria por meio das prescrições que, analiticamente, foram estipuladas sobre as mais variadas matérias a serem objeto de tal atuação. Não é outra a razão que tornou a Lei Magna em vigor uma verdadeira Constituição “oceânica”, tratando de tudo e procurando petrificar o tratamento de tudo. Assim, ela invadiu o campo que, na sabedoria do passado, era deixado à normação infraconstitucional. O constituinte de 1987-1988 dá a impressão que se suponha dotado de um conhecimento infinito das questões de governo e possuidor da solução para todos os problemas nacionais. Apesar disso, muitas de suas normas resultaram de composições ambíguas que poderiam ser lidas de modo contraditório, como não raramente sucede.
Ora, disso sobressaem dois inconvenientes. De um lado, o fato de que a instauração de novas linhas de ação política – linhas estas decorrentes da orientação do eleitorado, ou tornadas evidentes pela mudança dos tempos, por exemplo, no plano econômico e mesmo social – pressupõe mudança da Constituição. Ou seja, a adoção de emendas constitucionais, o que reclama mobilização de votos, freqüentemente muito custosas. Isso é demonstrado pelo número de emendas adotadas nestes vinte anos. De outro que, em face da preordenação do conteúdo norma tivo operada pelo detalhismo da Constituição, tudo seja objeto de contestação de constitucionalidade. Tal fato sobrecarrega o Judiciário, especialmente o guardião da Constituição, o Supremo Tribunal Federal, e retarda a realização de políticas públicas, pois o controle difuso, com liminares, pode produzir uma babel, se não jurídica, ao menos judicial. A “petrificação” constitucional A petrificação da Constituição atinge o ápice por meio das cláusulas enunciadas no art. 60, § 4º. Já se vê que faço alusão às cláusulas pétreas, que proíbem seja objeto de deliberação proposta de emenda tendente a abolir a forma federativa de Estado (inciso I), o voto direto, secreto, universal e periódico (II), a separação dos Poderes (III) e os direitos e garantias individuais (IV). A fixação de pontos imutáveis numa Constituição é prática antiga, pois já existe na Constituição da Filadélfia de 1787 5. Doutrinariamente, justifica-se com a invocação erudita de Carl Schmitt, segundo o qual a Constituição é decisão do povo sobre o modo de vida em comum. Ela, todavia, contraria a abertura da Constituição, por sua adaptação a novos tempos e condições. Tomada de modo absoluto, importa em reclamar, para as mudanças, a revolução; ou seja, a quebra da Constituição. Este entendimento radical depreende-se das lições, comuns até, de que nada pode ser alterado quanto a direitos fundamentais, em decorrência do inciso IV, lido logicamente, pois não tem cabimento supô-lo resguardando uma espécie apenas de direitos fundamentais, as liberdades, mas todos eles, incluídos os direitos sociais. Verdade é que o texto constitucional pode ser interpretado como apenas vedando a supressão do direito, não a alteração de seu regime, tese que conta com abono em decisão do Supremo Tribunal Federal. Ou atenuar a vedação, entendendo-se que somente protege os “verdadeiros” direitos fundamentais, os direitos fundamentais ex natura, não meros direitos entendidos como importantes pelo constituinte6. Em termos absolutos, a inamobilidade realmente petri ficaria a Constituição. A cláusula I proibiria se tocasse na estrutura federativa, o que inclui – note-se – a repartição de tributos e rendas. Não está nisto a própria condição da autonomia de Estados, Distrito Federal e Municípios? Já foi invocada até para impedir a revisão constitucional pelo voto da maioria absoluta dos membros do Congresso, a pretexto do papel federativo do Senado. A cláusula II – vá
lá – assegura a democracia que é possível. A III, ao proteger a separação dos Poderes, como está na Constituição, não se filia ao padrão clássico – basta lembrar que aceita a delegação legislativa e o poder normativo primário do Executivo, que bloquearia o aprimoramento das instituições. A separação dos Poderes A análise da separação dos Poderes tal qual a conforma a Carta Magna vigente, menos na sua letra que na sua prática, oferece uma visão instrutiva de que as instituições sofrem mutações, sem terem sido alteradas formalmente. Numa visão certamente simplista, mas que corresponde ao espírito da separação dos Poderes, um Poder administra, ou executa ações – o Executivo; um Poder legisla – estabelece o conteúdo dos atos normativos primários, as leis (a faculté de statuer de Montesquieu) – o Legislativo (embora nisso colabore o Executivo ao não usar do veto, a faculté d’empêcher); o terceiro julga, isto é, aplica contenciosamente as leis aos casos concretos – o Judiciário. E, complete-se o perfil, estes Poderes hão de ser independentes e harmônicos (como está no art. 2º da Constituição), além de ficar em equilíbrio, pois este é imprescindível para que “o poder detenha o poder”, para que sirvam de freios e contrapesos uns para os outros. É assim que se governa o Brasil? Primeiro, é fato que a Constituição dá preeminência e proeminência ao Executivo, e a um Executivo unipessoal, que coincide com o Presidente da República. Afora os papéis clássicos de chefe de Estado, chefe do Governo, chefe da Administração, comandante das Forças Armadas, condutor das Relações Exteriores, é ele quem comanda a economia e tem nas mãos a grande massa dos recursos públicos. Também é o grande empresário, controlador das empresas estatais. Igualmente, o protetor dos menos aquinhoados, porque dele dependem o INSS e especialmente o SUS. Ademais, o seu modo de eleição – majoritária e direta – o faz o representante por excelência do povo, o possuidor do máximo possível de legitimidade democrática. É ele, mais, o verdadeiro detentor do poder de legislar. Dele emanam os projetos de lei que vingam, porque é ele que tem força (poder) para fazê-los aprovar (o que, aliás, se passa pelo mundo afora). Entretanto, ele não apenas origina a legislação como a edita por meio das medidas provisórias com força de lei. Estas devem ser coonestadas pelo Legislativo – e isto raramente não sucede – mas sua vigência e eficácia são imediatas, valem assim desde o início como se leis fossem7. O Legislativo fica dessa forma reduzido a uma Câmara confirmatória. Consola-se com os poderes investigatórios que a Constituição lhe atribui. As comissões parlamentares de inquérito parecem resumir, e sem dúvida é isto que se dá aos olhos do público, a atividade desse Poder. Ele investiga e, nisto, perde de vista que o papel das comissões é essencialmente o de colher dados para sua atuação como legislador. Ao invés, torna-se o grande inquisidor, o implacável perseguidor do crime e da corrupção (que, não raro, respinga nele próprio). 2008 DEZEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 19
O papel político do Judiciário Quanto ao Judiciário, este vem passando por uma profunda transformação, em parte resultante da Constituição, em parte de um ativismo que toma conta de não poucos magistrados. Já se apontou, ao tratar dos princípios, que a abertura da Constituição enseja um papel de decisão política para o Judiciário. Por outro lado, a utilização de instrumentos já antigos, como a ação popular (de alcance estendido por um enten dimento amplo do que seja lesividade e com o caráter preventivo que pode assumir) e o mandado de segurança, bem como novos, a ação civil pública, para tanto muito contribuem. Ademais, não se pode ignorar que também o favorece, embora indiretamente, o controle de constitucionalidade, por exemplo, por meio da ação declaratória de constitucionalidade. Do mesmo modo, ações com outra destinação específica, mas que se refletem no plano das políticas de governo, como o mandado de injunção e a argüição de descumprimento de preceito fundamental. Na verdade, o Judiciário não mais fica no controle negativo, a desfazer atos inconstitucionais ou ilegais, mas vem assumindo um papel de controle positivo, impondo ações e políticas. Vale salientar algumas decorrências disto. Uma, o controle negativo, é freqüente, já na primeira instância, a determinação de políticas públicas, ou de ações individualizadas, em nome do direito à saúde, à educação, para a proteção de minorias, etc. Em substância, essas decisões configuram atos de execução, mas atos, quando judiciais, qualificados pela coercitividade. Outra, controle positivo, num nível mais alto. O Supremo Tribunal Federal assumiu claramente o papel de conformador do ordenamento constitucional. Dir-se-á que isto sempre ocorreu, contudo não na medida atual e do modo que se passa. Tenha-se em mente que hoje ele pode “modular” os efeitos da declaração de inconstitucionalidade. É o que resulta do art. 27 da Lei nº 9.868/99. O STF pode restringir os efeitos da declaração ao fixar o termo a quo do desfazimento dos efeitos de ato inconstitucional. Pode fazê-lo, com fundamento em “razões de segurança jurídica” – o que é amplo; ou de “excepcional interesse social” – o que é amplíssimo. E é uma apreciação política, no sentido de uma apreciação de oportunidade e conveniência. Sim, porque “interesse social” abrange tudo o que concerne à vida em sociedade e excepcionalidade é um juízo de valor. E, para corroborar que se trata de uma apreciação política, exige-se para tanto a maioria de dois terços e não a maioria absoluta reclamada para a mera declaração de inconstitucionalidade. Ora – não fujamos à realidade – restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade é admitir a sobrevivência de ato inconstitucional, é mudar a Constituição, ou conformá-la ao menos. Acresce a isto o poder, conferido ao mesmo Tribunal pela 20 • JUSTIÇA & CIDADANIA •DEZEMBRO 2008
Emenda Constitucional nº 45/2004, de editar súmulas (art. 103-A da Constituição). São estas enunciados normativos, destinadas a definir “a validade, a interpretação e a eficácia de normas (constitucionais) determinadas” (art. 103-A, § 1º). Tais súmulas equivalem, no fundo, a leis interpretativas, pois têm efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Judiciário e da administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal. Seriam elas a condensação da jurisprudência, após “reiteradas decisões sobre matéria constitucional”. Entre tanto, o que se tem visto é a edição de súmula, logo após o primeiro julgamento da questão. Aqui, de novo, o quorum exigido e o fundamento justificativo demonstram o caráter político de tal instituto. Tal quorum é a maioria de dois terços dos membros da Suprema Corte e a isto se aplica o que mais alto já se disse. Dois são esses fundamentos. Um é a “grave insegurança jurídica”, o que já é uma inegável abertura, visto que enseja, ao menos, uma avaliação de gravidade. Outro, a “relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica”. E a referência à relevância representa também incontestável latitude de apreciação política. E há mais a assinalar. Trata-se da integração do ordenamento infraconstitucional. As súmulas vinculantes já importam na passagem do constitucional para o infraconstitucional. Neste último plano, o Judiciário tem nitidamente avançado também. O constituinte de 87/88 temeu que preceitos constitu cionais se tornassem letra morta por falta de regulamentação, sobretudo legal, que permitisse a sua aplicação. Inscreveu, por isso, no texto, dois instrumentos que conduziriam a tal regulamentação. Um, a Ação de Inconstitucionalidade por omissão; outro, o Mandado de Injunção. A primeira não mereceu mais do que um parágrafo, inserido no art. 103. Conduziria apenas a dar “ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias”. Ou seja, serviria para constituir em mora o Poder competente, o mais das vezes o Legislativo. Sua utilidade restrita levou-a (quase) ao esquecimento. O Mandado de Injunção é uma criação do constituinte de 87/88, tendo sido infrutífera a busca de precedente estrangeiro a seu respeito. Está ele previsto no art. 5º, LXXI, e destina-se a tornar viável “o exercício de direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania”, quando isso for obstado pela falta de regulamentação. A interpretação desse preceito acarretou forte polêmica, porque – ironia – ele não é completo, pois não enuncia quem haveria de editar tal regulamentação, o órgão judiciário ou o “Poder competente”, caso em que daria ciência a este da falta, como ocorre na ação de inconstitucionalidade por omissão. A jurisprudência evoluiu. De início, seguiu a tese da comunicação da omissão, depois veio a abalançar-se a suprir
a lacuna. É o que fez o Supremo Tribunal Federal, em 2007, mandando aplicar à regulamentação do direito de greve do servidor público as normas que regem este instituto no Direito privado8. Ora, este suprimento é incontestavelmente um ato político, pois equivale a uma legiferação. Outro exemplo dessa integração do ordenamento infra constitucional pelo Judiciário é o que se deu, ainda em 2007, a respeito de tema que concerne à própria conformação da ordem política e assim é de enorme importância. Ela transparece de decisões do Tribunal Superior Eleitoral e do Supremo Tribunal Federal, que se interligam. Ao Tribunal Superior Eleitoral cabe, entre outras, a competência de responder a consultas sobre matéria eleitoral e partidária. Ora, em resposta exatamente a consultas, teve ele de examinar a delicada questão da relação entre o partido e aqueles que, sob sua legenda, se elegeram, mas posteriormente o deixaram. Concretamente, a dúvida se os eleitos por um partido perderiam o mandato caso o deixassem. Tal tema, aliás, não mereceu norma explícita na Constituição, embora o art. 17, § 1º, desta comande que os estatutos partidários tratem da fidelidade e da disciplina partidárias. Entendeu o Tribunal Superior Eleitoral que, embora a Constituição não disponha sobre a sanção do abandono do partido, tal sanção estaria nela implícita: seria a perda do mandato, salvo motivo justo. E isto tanto para os eleitos segundo o sistema de representação proporcional – deputados – como para os eleitos em eleição majoritária – como senadores9. Tal orientação foi corroborada pelo Supremo Tribunal Federal quanto à questão da perda do mandato dos eleitos pelo sistema proporcional que tinham abandonado o partido pelo qual se haviam elegido10. Posteriormente, o Tribunal Superior Eleitoral editou uma Resolução (nº 22.610) dispondo sobre o assunto. Substituiu-se, pois, ao legislador omisso. Evidentemente desempenhando uma tarefa política de natureza legislativa. Observações finais Cabe concluir com um registro. A Constituição, há vinte anos promulgada, deu lugar a profundas transformações no Direito brasileiro. Não que todas façam jus a aplauso. Nem que elas se devam a seu mérito como documento jurídico, que é discutível, pois o texto tem vários defeitos bem conhecidos. Nem que isto resulte da sua adequação às necessidades do País, eis que peca, e muito, quanto à governabilidade. Mas sim, paradoxalmente, em razão de algumas peculiaridades de valor duvidoso. Entretanto, deve-se reconhecer a sua influência, maior que a de outras Constituições brasileiras, afora haver superado crises e desafios, o que representa um incontestável aspecto positivo.
“A Constituição, há vinte anos promulgada, deu lugar a profundas transformações no Direito brasileiro. Não que todas façam jus a aplauso.”
NOTAS 1 Ou, o que ainda não se deu, mas poderá ocorrer, que a proibição da tortura deve ceder às exigências do direito à segurança. Ou que a redução das desigualdades sociais deve preponderar sobre a propriedade privada. 2 No julgamento da ADPF nº 144 pelo Supremo Tribunal Federal, o voto do Min. Eros Grau demonstra sua indignação com essas manipulações: “É bom que se diga, mais uma vez, que ninguém está autorizado a ler na Constituição o que lá não está escrito, prática muito do gosto dos neoconstitucionalistas e/ou pós-positivistas, gente que reescreve a Constituição na toada de seus humores”. 3 Ainda na atualidade há quem pretenda que a Constituição de 1988 seja uma Constituição dirigente. 4 Que hoje abjurou da Constituição dirigente, conforme já escreveu muitas vezes, para descontentamento de alguns admiradores, que saudosisticamente preferem o “velho” Canotilho I ao “novo” Canotilho II. 5 A sua relatividade também é fácil de demonstrar. Basta lembrar que a revisão da Constituição portuguesa de 1976 suprimiu cláusula pétrea para desconforto dos mestres constitucionalistas lusitanos. 6 Por exemplo, a gratuidade de certidões de óbito (art. 5º, LXXVI, “b”). 7 É certo que o quadro se atenuou depois da Emenda Constitucional nº 32/2001, mas de modo geral ocorre o que se apontou. 8 Mandados de injunção: MI 670, Rel. para o acórdão, Min. Gilmar Mendes; MI 708, Rel.: Min. Gilmar Mendes; MI 712, Rel.: Min. Eros Grau. 9 Sobre deputados que deixaram o partido pelo qual se tinham elegido: TSE, consulta nº 1.398, Relator: Min. César Asfor Rocha. Sobre eleitos em eleição majoritária, TSE, consulta nº 1.407, Relator: Min. Carlos Britto. 10 Mandados de segurança MS 26.602, Rel.: Min. Eros Grau; MS 26.603, Rel. Min. Celso de Mello; MS 26.604, Min. Cármen Lúcia.
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Ensaio Sobre o Testemunho Infantil
Alexandre Chini Juiz de Direito do TJ/RJ
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Introdução odos aqueles que militam nas varas de competência criminal certamente já se depararam com hipóteses em que a responsabilidade penal do réu é trazida ao processo através do chamado testemunho infantil, consubstanciado no depoimento de crianças. A questão que se propõe é justamente esta: um conjunto probatório baseado exclusivamente no testemunho de crianças é suficiente para sustentar um decreto condenatório? Para a perfeita solução da questão, revela-se necessária uma breve análise do sistema de provas no Código de Processo Penal. Do sistema de provas Pois bem, deve-se consignar, desde logo, que a Exposição de Motivos do Código de Processo Penal noticia a adoção do princípio do livre convencimento motivado, também conhecido como sistema da persuasão racional, aduzindo o seguinte: VII – O projeto abandonou radicalmente o sistema chamado de certeza legal (...) Não serão atendíveis as restrições à prova estabelecidas pela lei civil, (...) nem é prefixada uma hierarquia de provas (...) Todas as provas são relativas; nenhuma delas terá, ex vi legis, valor decisivo, ou necessariamente maior prestígio que outra. Referido princípio vem materializado em nossa legislação processual penal no art. 157 do Código de Processo Penal, 22 • JUSTIÇA & CIDADANIA •DEZEMBRO 2008
na medida em que diz que “o juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova”. Nesse enfeixe, os arts. 239 e 408 do Código de Processo Penal também encampam o sistema de livre convicção. Destarte, segundo a sistemática idealizada pelo Código Processual Penal, o juiz pode fundamentar sua decisão através de livre convicção, motivada por qualquer meio de prova válido, dentre eles o indício. Assim sendo, nada impede que o magistrado, em uma contração lógica, levando em consideração circunstâncias conhecidas e provadas, por indução, conclua pela existência da responsabilidade penal do acusado, baseado na prova indiciária, desde que, evidentemente, esta se revista dos requisitos de gravidade, precisão e concordância. Em outras palavras, significa dizer que esses indícios podem assumir a condição de prova suficiente ao decreto condenatório. O art. 329 do Código de Processo Penal considera indício a circunstância conhecida e provada que, tendo relação com o fato, autoriza, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias (art. 239 do Código de Processo Penal). Resumindo, “indício é o fato provado que, por sua ligação com o fato probando, autoriza a concluir algo sobre esse”.1 Assim, se o julgador se convencer da existência do crime, bem como da existência de indícios sérios, suficientes e concretos, impregnados de elementos positivos de credibilidade, relativos à autoria da infração penal, poderá,
Foto: Mariana Bueno
“A questão que se propõe é justamente esta: um conjunto probatório baseado exclusivamente no testemunho de crianças é suficiente para sustentar um decreto condenatório?”
só com base nesses elementos indiciários, proferir decreto condenatório. Valor jurídico dos meios de prova De início, impõe-se registrar que, muito embora possa o magistrado proferir decreto condenatório com base em qualquer meio de prova, esse livre convencimento não pode prescindir de certas regras que compõem a sistemática probante como um todo. De fato, a questão do valor jurídico dos meios de prova é questão de direito, até porque o livre convencimento não quer dizer mero arbítrio na apreciação das provas2. O tema torna-se relevante quando se enfrenta a questão referente ao testemunho infantil. Efeitos jurídicos do testemunho infantil Segundo a regra do art. 202 do Código de Processo Penal, toda pessoa poderá ser testemunha, não sendo tomado o compromisso a que alude o art. 203 do CPP aos doentes e deficientes mentais e aos menores de 14 anos, art. 208 do CPP, nem às pessoas ligadas ao acusado por laços afetivos ou de consangüinidade, art. 206 do CPP. Diz-se que a prova testemunhal tem a finalidade de resgatar a verdade histórica dos acontecimentos, através do depoimento das pessoas que tomaram ciência de determinado fato, de forma direta ou indireta, na busca, juntamente com outros meios de prova, da certeza necessária para a elaboração de uma decisão judicial.
Quanto mais próximo, direto e imediato o contato da testemunha com o fato, maior o valor do seu depoimento; até porque a prova testemunhal é como água das correntezas: quanto mais se afasta de suas fontes mais se altera3. As crianças, igualmente, podem testemunhar, inexistindo qualquer óbice para que assumam e desempenhem essa função, observadas as ressalvas do art. 208 do CPP. Na pureza de espírito das crianças, na sua ingenuidade e ausência de malícia, já se consignou que os depoimentos infantis são tidos como a exata expressão da verdade. Nesse sentido, podemos destacar algumas decisões que afastam a idade das testemunhas como fator de incerteza4. Tratando-se de vítima menor de doze anos, ainda não menstruada, acolhem-se as declarações que prestou em juízo, minuciosas, denotando inocência, ignorância em matéria sexual e, por isso mesmo, merecedoras de fé. (RT 161/53) A existência de crianças mentirosas não basta para averbar-se de suspeição geral o testemunho infantil. (RT 262/630) Contudo, como adverte Fernando de Almeida Pedroso5, tal regra não é exata, isso porque: “falta à criança a experiência da vida, elemento indispensável para o bom entendimento e a crítica dos fatos (Lições de Medicina Legal. 11. ed. Companhia Editora Nacional, 1973, p. 557), motivo por que é extremamente maleável e vulnerável às sugestões, dominando-lhe a atividade mental e a imaginação. O 2008 DEZEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 23
“Mas não é só isso, quando dispostas a mentir, as crianças enganam, iludem, e intencionalmente ocasionam grandes males. As pessoas não resistem à palavra de uma criança, por supor sempre a sinceridade.”
romanesco e as aventuras heróicas a fascinam (Hélio Gomes. Medicina Legal. 16. ed. Freitas Bastos, p. 269)”. Como se sabe, as crianças são mais vulneráveis à sugestão, possuindo uma memória que atende às expectativas do que “deveria acontecer” ou às expectativas ou pressões de terceiros, podendo, inclusive, ser sua narrativa falsa, fruto de uma distorção proposital dos fatos (mentira) ou de distorção da memória (falsa memória)6. Mas não é só isso, quando dispostas a mentir, as crianças enganam, iludem e, intencionalmente, ocasionam grandes males. As pessoas não resistem à palavra de uma criança, por supor sempre a sinceridade7. Evaristo de Morais (in O Testemunho Perante a Justiça Penal. Editora Jacinto, 1939, p. 79) já alertava sobre o problema do depoimento infantil8. Floriam, em sua obra “Delle Prove Penale9”, argumenta: “O testemunho dos menores requer um mais acurado exame, visto que os poderes de percepção, de atenção, de memória se desenvolvem com a idade”. “Ademais, falta neles o freio da crítica e a fantasia se desencadeia fortemente, substituindo os dados da realidade pelos fantasmas da sua imaginação”. Enrico Altavilla, citado pelo magistrado Pedro Gagliardi, quando do julgamento da Ap. 452.141-910, adverte: “o comportamento da criança pode facilmente induzir em erro: a criança mente, com freqüência, de má-fé, mas não é raro acontecer deixar-se sugestionar e deixar acreditar também em tudo aquilo que afirma”. Por tais razões, inúmeros julgados têm lembrado o perigo consistente em se condenar alguém unicamente com base no chamado depoimento infantil, pela falta de sinceridade de que por vezes é cercado, podendo gerar a dúvida11: Frágil é o contingente probatório emanado de depoimento prestado por criança de poucos anos de idade. Mínima é a sua capacidade de percepção, memorização e reprodução do observado, além do alcance moral de sua afirmação. (RT 251/130) 24 • JUSTIÇA & CIDADANIA •DEZEMBRO 2008
Pouco ou quase nada pode esperar a prova criminal de depoimento de menores. Absurdo é pedir-lhes um testemunho verdadeiro; são incapazes de dizer a verdade, porque incapazes de compreendê-la. Tudo aconselha, pois, a deles duvidar, inclusive quando prestados por vítimas. (RT 225/117) Contudo, afigura-se-nos que, entre estas duas posições, há de ser estabelecido um ponto de equilíbrio, buscandose uma solução eclética. Até porque, face ao princípio da verdade real, deve o juiz buscar todos os meio lícitos de prova para atingir a certeza necessária à formação do seu convencimento. A harmonia entre o depoimento e outros elementos constantes dos autos, deve ser avaliada sob o prisma da extensão, profundidade e segurança do conjunto probatório que deve delinear o convencimento a respeito da responsabilidade penal12. Sem dúvida que há de se examinar com cautela o testemunho infantil, conhecida, como é, a fertilidade da imaginação da criança, capaz de levá-la a afirmações inverídicas. Desde, porém, que não apareça isolado nos autos, encontrando amparo em outros elementos, não deve ser desprezado, mormente quando prestado por vítima de crime contra os costumes. (RT 388/110) Malgrado a reserva, a prevenção mesmo, com que se deve acolher a palavra de menores, não é ela de ser rejeitada quando avulta um conjunto probatório que se afirma em extensão e profundidade, capaz de fundamentar, com segurança, um convencimento positivo a respeito da responsabilidade criminal. (RT 415/88) Conclusão A busca por esta harmonia probatória retira do julgador a difícil tarefa de tentar descobrir o material psíquico oculto, na mente da testemunha, da criança, livrando-o das dificuldades inerentes a tal investigação13.
Depois de alinhar as restrições que pesam contra a credibilidade do testemunho infantil, decorrentes da organização psíquica incompleta (defeitos de atenção; percepção sincrética e não analítica dos fatos; riqueza de imaginação; fragilidade de memória e extraordinárias emotividade e sugestionabilidade), Enrico Atavilla conclui que as crianças são, todavia, “boas observadoras do que se passa em seu ambiente familiar. A sua casa é o seu reino: é o conjunto de percepções que, repetindo-se continuamente, se gravaram profundamente no seu cérebro. (...) São, além disso, muito zelosas de seus afetos familiares, e revoltam-se contra as intromissões, vêem logo um perigo em tudo aquilo que perturbe o normal desenvolvimento de sua vida”. Recomenda, então, a exemplo de prescrições objetivas existentes em alguns países, a participação de peritos em psicologia como coadjuvantes do juiz, seja para vencer o estado inicial de inibição, seja para “conseguir tornar sincera a narração da criança” (Psicologia Judiciária, tradução de
Fernando de Miranda, 2. ed. Coimbra: Coleção Studium. Vol. I, pp. 76/111). Conclui-se, portanto, que, devido a sua natureza especialíssima, o depoimento infantil deve ser colhido de forma a permitir a realização da instrução criminal com técnica apurada, a viabilizar uma coleta de prova oral rente ao princípio da veracidade dos fatos havidos14, como, por exemplo, na experiência do projeto “Depoimento sem Danos”, instrumento de humanização e aperfeiçoamento do ato processual15. A preocupação com o tema tratado tem origem na própria experiência do cotidiano forense. Nessas poucas linhas, tentou-se tão-somente trazê-la à pauta face a sua relevância. Assim, diante da possibilidade do fato ser fruto da fantasia ou de ser reprodução de violências anteriores sofridas, tal testemunho deve ser confrontado com outros elementos de convicção e, se possível, acompanhado por uma equipe técnica qualificada.
notas TORNAGHI, Hélio. Curso de Processo Penal. 10. ed. São Paulo: Saraiva. Vol. I, p. 460. Sobre o assunto, vale destacar parte do voto do Ministro Evandro Lins e Silva, quando do julgamento do habeas corpus nº 40.609 Guanabara, 15.7.1964, concedido pelo Excelso Plenário do Colendo Supremo Tribunal Federal que assentou: “Nunca é demais advertir que o livre convencimento não quer dizer puro capricho ou mero arbítrio na apreciação das provas. O juiz está livre de preconceitos legais na aferição das provas, mas não pode abstrair-se ou alhear-se de seu conteúdo. Livre convicção não é a emancipação absoluta da prova, nem julgamento contrário à prova ou à revelia da prova. Não é, tão pouco, julgamento ex-informata conscientia, com o qual não se confunde, porque pressupõe unicamente a livre apreciação da prova, jamais a independência desta, no ensinamento de Manzini. (...) A liberdade da apreciação da prova pelo juiz está necessariamente subordinada à natureza do fato que deva ser provado”. 3 AYARRAGARAY, Carlos. Crítica do Testemunho. Salvador: Progresso, 1956. 4 RT 170/479, 392/315, 396/102, 157/618, 430/344, 496/268 e 420/89. 5 PEDROSO, Fernando de Almeida. Prova Penal. 1. ed. Editora Aide. 6 Osnilda Pisa e Lilian Milnitsky Stein (RT – 857/457). 7 Motet, depois de transcrever as justas observações de Bordin, aduzia: “Nada conheço de mais emocionante do que a narração de uma criança contando os detalhes de um crime de que pretendia ter sido testemunha, ou vítima. A ingenuidade da linguagem e a simplicidade da encenação aumentam singularmente o interesse, impulsam a confiança. Deixam-se os circunstantes facilmente dominar pela crescente emoção, logo seguida de indignação e da piedade que uma aventura monstruosa inspira.” (...) “Por processo compreensível, parentes, amigos, vizinhos, aceitam, sem maior exame, o fato, verdadeiro ou falso; ajuntam, incessantemente, novos detalhes, constituindo narração bem mais completa do que a primitiva; a criança se apodera de tudo isto, assimila a narração aperfeiçoada, e a reproduz, sem variantes, diante da magistratura, acusando com terrível precisão”. Les Faux Temoignage des Enfantis Devanti La Justice, 1887, p. 7 e 8, LACASSAGEM, Médicine Lègale, ed. 1906. 8 “No entanto, as conclusões científicas, alcançadas com intuitos outros, ilustram, sobremodo, os estudos dos psicólogos do testemunho. Pelo lado da moralidade, desfez a pedologia a crença na bondade e na candura das crianças. Supunha-se, vulgarmente, que a criança não tinha maldade, adaptando-se a “amável ficção” de Platão e de Wordsworth. Demonstrou, em contrário, entre outros, Dr. Rassier que na criança sobrepuja a tendência para o mal, sendo ela acessível a quase todas as paixões que atormentam o adulto. Pedagogos, criminólogos, policiais, magistrados, se ajustam na apresentação de casos em que se descobre o espírito malfazejo de crianças de tenra idade. Pais, mães, parentes próximos, imbuídos de justificado afeto, não divulgam as manifestações desse espírito; levam a conta de brincadeiras o que nada mais exprime do que satisfações do egoísmo, da vaidade, da inveja. “A presunção da inocência infantil cobre, por vezes, a pesada carga de paixões que precocemente se expandem”. 9 Milão: Casa Editora Francesco Vallardi, 1924. V. II/365. 10 RT 621/327. 11 RT 178/582, 579/351, 195/354, 451/364, 604/332, 390/102, 407/110, 573/352, 442/376 e 621/324. 12 RT 426/348, 446/378, 470/334, 497/320, 257/148, 256/45, 170/479, 417/95 e 430/344. 13 Freud in “A Psicanálise e a Determinação dos Fatos Jurídicos” (1906): “No neurótico, o segredo está oculto de sua própria consciência; no criminoso, o segredo está oculto apenas dos senhores (juízes). No primeiro existe uma autêntica ignorância, embora não em todos os sentidos, enquanto no último só existe uma simulação de ignorância”. (Freud, Volume IX, p. 102). 14 MS Nº 70.013.748.959, DV/M 89 – 16.2.2006 – p. 13, SEXTA CÂMARA CRIMINAL, RS. 15 Experiência pioneira no Brasil, o projeto “Depoimento sem Danos” foi implantado em maio de 2003 na 2ª Vara da Infância e da Juventude de Porto Alegre – RS, com o objetivo de promover a proteção psicológica das vítimas, permitindo a realização de instrução criminal com técnicas mais apuradas, com a participação de especialistas, psicólogos e assistentes sociais. 1 2
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Poder concedente municipal, estadual e federal Conflito de Competência Flávio de Araújo Willeman Procurador do Estado do Rio de Janeiro
Transcrição da palestra proferida no Seminário “Questões Jurídicas Relevantes no Transporte Coletivo”
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rimeiramente, me preocuparei em demonstrar as competências já firmadas para a prestação do serviço de transporte na Constituição Federal e na Constituição do Estado do Rio de Janeiro, para em seguida, discutir cinco casos concretos envolvendo conflito de competência. Esses conflitos advêm ou de invasão de competência de um ente sobre o outro ou por ambigüidade ou dubiedade legislativa, que gera dúvidas sobre qual o meio competente para prestar o serviço em determinado momento. Iniciando a primeira parte da minha exposição, informo que a Constituição da República de 1988, no artigo 175, estabelece que ao Poder Público incumbe a prestação de serviços públicos de forma direta ou mediante concessão ou permissão. Por certo, para que um ente público preste um serviço público deverá ser ele titular desse serviço ou receber de outro ente da Federação, que assim o seja, uma delegação. É o caso do transporte ferroviário no Estado do Rio de Janeiro. A Constituição da República, no artigo 21, inciso XII, e no artigo 30, estabeleceu competências expressas para a prestação do serviço de transporte. No artigo 21, inciso XII, alínea “d”, a Constituição determinou que compete à União Federal explorar, diretamente ou mediante autorização concessão ou permissão, “os serviços de transporte ferroviário e aquaviário entre portos brasileiros e fronteiras nacionais, ou que transponham os limites de Estado ou Território”. Na alínea “e” prevê “os serviços de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros”. No artigo 30, incisos I e V, determina o constituinte de
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88 que compete aos municípios: “Legislar sobre assuntos de interesse local; (...) organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial”. No que tange ao Estado, a Constituição Federal foi silente sobre as suas competências – à exceção da competência estadual para prestar o serviço público de gás canalizado – atribuindo-lhe uma competência residual, ou seja, o estado pode executar todos os serviços que não lhes sejam vedados pela Constituição. Diante deste panorama, temos expressamente delimitadas na Constituição Federal as competências da União e dos municípios para prestação de serviço público de transporte, e a Constituição do Estado do Rio de Janeiro, valendo-se dessa competência residual, tratou de especificar e determinar a competência do Estado do Rio de Janeiro para a exploração de alguns serviços, dentre eles o de transporte. O artigo 242, da Constituição do Estado do Rio de Janeiro, informa que a este compete a prestação de serviços públicos, de forma direta ou mediante permissão ou concessão, que sejam de interesse estadual, metropolitano ou microrregional, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial. Diante deste panorama legislativo, trazendo para discussão regras da Constituição Federal e da Constituição Estadual, temos que à União é possível apenas explorar, ou seja, prestar e regular o serviço público de transporte ferroviário sem qualquer restrição, e o aquaviário entre portos brasileiros. Lanço, então, a primeira discussão: Qual é o conceito de porto para fim
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de delimitação da competência da União para prestar esse serviço de transporte aquaviário? É aquele que transponha os limites do Estado, cabendo à União prestar o serviço de transporte rodoviário interestadual e internacional. E temos na Constituição Federal a limitação da prestação dos serviços de transporte pelo Município, que nos dá a idéia de um transporte intramunicipal que tenha interesse local. Penso que a competência do Município para explorar os serviços de transporte submergirá se presentes estiverem estes dois requisitos: transporte intramunicipal e interesse local. E ao Estado, temos a competência para prestar e regular o serviço de transporte coletivo que ultrapassar as raias geográficas de um Município e que tenha interesse estadual de região metropolitana ou microrregional. Hoje é necessário descobrir quem é o poder concedente e o poder competente para regular a prestação do serviço, muitas vezes relegada a particulares em situações onde ocorre verdadeira invasão de um ente na competência de outro, ou hipóteses em que não conseguiremos de plano detectar qual o ente competente. Inicio, então, a partir de um fato concreto que não foi oriundo do Estado do Rio de Janeiro, mas de um outro Estado da Federação, quando a União Federal pretendeu explorar o serviço de transporte ferroviário ligando um Estado da Federação a outro. Não há dúvida que, a priori, esse serviço é de competência da União, mas por certo esta linha férrea cortará diversos municípios dos estados envolvidos. Imaginemos que – e no caso concreto foi isso que aconteceu – a União Federal tenha, dentro de sua competência regulatória para melhor organizar a prestação
do serviço, determinado que um dos pátios de manobra dessa ferrovia será em determinado Município. Este Município, por sua vez, a pretexto de regular e implementar políticas ligadas ao meio ambiente, resolve ou proibir a inserção desse pátio ou limitar a realização das manobras pelas composições férreas a determinado período do dia. Utilizando o argumento, por exemplo, de que esta atividade provocará ruído e ao Município compete, à luz do artigo 23, inciso VI, da Constituição Federal, proteger o meio ambiente contra qualquer tipo de danos. Como é que fica essa situação jurídica? Se olharmos ligeiramente a questão a competência é da União e não há problemas para regular e prestar o serviço de transporte ferroviário. Mas vemos aqui também uma competência do Município para tutelar o meio ambiente. E essa competência principal para tutelar o meio ambiente não é privativa ou exclusiva, é concorrente com a União e os demais estados. De modo que, assim agindo, o Município estaria violando a competência da União para regular e disciplinar as técnicas e as formas da prestação de um serviço que é de sua titularidade por força constitucional. Há exceção? Creio que sim. Imaginemos que a União tenha elegido esse Município e que ele seja tombado pelo Patrimônio Histórico Cultural. Se o Município provar um desvio de finalidade na atuação técnica da União Federal, em ponderação de valores, poderá exercer e fazer frente à União Federal nessa escolha de regular o serviço de transporte ferroviário. Todavia, em não havendo uma demonstração evidente de desvio de finalidade, penso que esse interesse municipal de tutelar o meio ambiente deve, de 2008 DEZEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 27
certa maneira, ceder frente ao interesse razoável da União de implementar o serviço público de transporte ferroviário. Se uma hipótese, como a relatada anteriormente, é posta à discussão do Poder Judiciário, imagino que os aspectos envolvidos se inserem em um campo de tecnicidade que torna difícil não se privilegiar o pacto federativo e as competências eleitas pelo constituinte originário; em outras palavras, a não ser que se comprove tecnicamente a inviabilidade da escolha feita pela União Federal e que esta repercuta na esfera municipal, penso que a opção técnica da União deve ser prestigiada. Um segundo caso interessante para o debate diz respeito à licitação para a concessão das linhas de ônibus da Baixada para a Barra da Tijuca. Naquela oportunidade não ocorreu propriamente uma hipótese de usurpação de competência de um ente por outro, mas sim a pretensão de dois entes federativos em atuar na defesa de valores constitucionais legitimamente assegurados pela Constituição da República. Fomos, enquanto Procuradores do Estado, instados a defender o Estado do Rio de Janeiro e, à margem da discussão que envolvia a licitação, surpreendeu-nos o fato de, às vésperas da licitação, o Prefeito da Cidade do Rio de Janeiro baixar um decreto proibindo que os ônibus percorressem determinada rodovia municipal, a pretexto de organização de política urbanística. Temos aqui um hard case, para usarmos a conhecida expressão de Ronald Dworkin. O caso é, efetivamente, muito difícil de resolver porque, acredito, não temos aqui usurpação de competência. Temos aqui dois entes federativos defendendo a titularidade de duas competências constitucionalmente garantidas. Penso que não pode o Município inviabilizar o interesse de outro ente da Federação constitucionalmente garantido, e tampouco pode o Estado, a pretexto de implementar valor jurídico constitucional, inviabilizar ou aniquilar um bem jurídico que é constitucionalmente conferido à defesa do Município. No caso em análise penso que se o Município, a pretexto de tutelar o meio ambiente ou a política urbanística da cidade, entende que os ônibus não devem transitar naquela via pública, nenhum outro coletivo deve poder pela mesma via transitar, ou o Município deve fornecer ao concedente uma alternativa técnica dentro do parâmetro de razoabilidade e dos limites por ele traçados na modelagem da descentralização do serviço para que seja eficazmente implementado. O que não se pode é, sob o argumento de tutelar valor jurídico constitucional – que é o plano urbanístico ou o meio ambiente – aniquilar ou impedir que o Estado-membro ou qualquer outro ente federativo implemente uma competência constitucional sua. Tem-se em jogo aqui a idéia de ponderação de valores e de razoabilidade, em que o julgador deve escolher a opção que menos onere a sociedade e que menos sacrifique o bem jurídico constitucional que se sobrepõe à luz dos casos concretos. Dando continuidade, tenho um exemplo que talvez 28 • JUSTIÇA & CIDADANIA •DEZEMBRO 2008
“o julgador deve escolher a opção que menos onere a sociedade e que menos sacrifique o bem jurídico constitucional.”
seja o mais difícil de ser enfrentado e que veio à tona também no Estado do Rio de Janeiro na época dos Jogos Pan-americanos. Foi noticiado nos jornais que o Prefeito do Município do Rio de Janeiro constituiu uma comissão para estudar a viabilidade do transporte aquaviário de passageiros entre a Barra da Tijuca e a Praça XV, no Centro da Cidade. Eu não sei o resultado do estudo realizado pelo Município, mas adianto que o caso é difícil e não é novo – no âmbito do Estado do Rio de Janeiro esse tema vem sendo estudado há pelo menos uma década por sua Procuradoria-Geral. Esse tema envolve severas discussões quanto à competência para execução desse serviço. Qual é o ente competente para a prestação desse serviço público? A União, o Município ou o Estado? A União Federal poderá arvorar-se como ente competente diante do que consta no artigo 21, inciso XII, alínea “d”, da Constituição, quando diz competir à União o transporte aquaviário entre portos brasileiros. Parte dessa travessia não seria realizada na Baía de Guanabara, mas sim em mar aberto. Penso que, apesar de sedutora, a tese não socorre a União Federal porquanto não se tem aqui a prestação de serviço de transporte entre portos e sim entre pontos de atracação. O conceito de porto organizado está previsto em lei, mais especificamente no artigo 1º da Lei nº 8.630, e, assim sendo, acredito que a competência não é da União Federal para explorar esse serviço e tampouco para regulálo. Contudo, no que diz respeito a Estado e Município, temos uma discussão bastante importante, bastante difícil, com argumentos sólidos e plausíveis para ambos os lados. O Município tem em seu favor o argumento de que o serviço de transporte ocorrerá intramunicípio, ou seja, se iniciará e será ultimado dentro do Município do Rio de Janeiro. A cidade
vai defender que trata-se de transporte coletivo de pessoas e representará iminente tutela ou iminente efetividade de interesse local; ou seja, o interesse de transporte de pessoas que saem ou que chegam à Barra da Tijuca para o Centro da Cidade do Rio de Janeiro. Não é fácil transbordar esses argumentos do Município. O Estado, por sua vez, terá como argumento para defender eventual posição de titularidade desse serviço a idéia de que, nada obstante ocorrer dentro do Município do Rio de Janeiro, existe nítido interesse metropolitano ou regional. Ninguém mora no Centro da Cidade do Rio de Janeiro, salvo algumas exceções. O transporte entre a Barra da Tijuca e a Praça XV traria benefícios à toda a Baixada Fluminense, a Niterói, a São Gonçalo, e a todas as pessoas que necessitam atravessar a Baía de Guanabara e eventualmente trabalhar na Barra da Tijuca. Poderá defender o Estado do Rio de Janeiro, então, que esta competência é sua por se tratar de região metropolitana ou de um interesse estadual ou microrregional, e mais, poderá sustentar que na Lei Orgânica do Município não há previsão expressa para prestação de serviço aquaviário, somente para serviço terrestre. Adianto que a posição da Procuradoria do Estado, pelo menos em dois pareceres antigos – um do professor Luís Roberto Barroso e outro do professor Marcos Juruena –, é pela competência estadual para prestação do serviço. O fato é que todos os que defendem ser competência do Estado se baseiam na idéia de que esse serviço beneficia uma região metropolitana, e hoje a discussão sobre as competências de uma região metropolitana não é mais puramente acadêmica ou entre advocacias públicas. A questão está posta para decisão no Supremo Tribunal Federal há quase uma década no que diz respeito à competência para prestação do serviço de saneamento público – que não foi resolvida com a lei que definiu o marco regulatório do saneamento público, talvez propositadamente – através da ADIn 1.842. Há um voto, do ministro relator Maurício Corrêa, entendendo que a competência é estadual por se tratar de região metropolitana e há um voto, do ministro Joaquim Barboza, entendendo que a competência é dos municípios, porque não se poderia aniquilar a autonomia municipal por conta da instituição de uma região metropolitana. E para complicar a situação, recentemente, agora em abril, o ministro Gilmar Mendes, que tinha pedido vistas, proferiu um voto entendendo que a competência não é do Estado e também não é do Município. Entendeu o Ministro que há necessidade de criação de uma entidade para representar a região metropolitana, citando Sua Excelência, inclusive, talvez a necessidade de criação de uma agência reguladora, ou uma entidade, que seria composta por membros dos municípios afetados e do Estado para regular o serviço. Esta é a opção que, aparentemente, mais se coaduna com a idéia de pacto federativo, porque não aniquila competências do Município e não fortalece demais o Estado em detrimento delas, mas,
por outro lado, cria uma dificuldade jurídica de reunião de todos esses municípios e estados para organizar a prestação do serviço. Enquanto isso, nada se define em relação à competência e discussões são levadas ao Judiciário de forma indefinida. Então, se é difícil a celebração de um convênio, consórcio ou acordo entre um Município e o Estado, imagina criar uma entidade nova que terá competência para gerir uma região metropolitana. A situação não é fácil e ainda depende de manifestação do Supremo, sendo temerária, com a devida vênia, qualquer manifestação afirmando hoje compulsivamente se a competência para gestão de região metropolitana é do Estado ou do Município. Dando seqüência, para saber de quem é a competência para regular o transporte alternativo de passageiros e se é possível a regulação por parte do Estado desta atividade, é preciso, em um primeiro momento, discutir se o transporte alternativo de passageiros é ou não serviço público. Uma pessoa comprar uma Kombi ou uma van e transportar pessoas de um ponto a outro é considerado um serviço público de transporte passível de ser regulado pelo Estado ou é uma atividade econômica que está inserida dentro da livre iniciativa? Em sendo atividade econômica poderia o Estado de alguma forma regulá-la? Sabemos que o conceito de serviço público sofre mutações ao longo do tempo e já há muito deixou de ter como necessidade seus três principais elementos, que seriam: a prestação pelo Estado, a essencialidade e a normatização integral por parte de normas de Direito Público. Hoje, segundo a doutrina mais abalizada, é considerado serviço público aquilo que a Constituição ou a lei retira da livre iniciativa, total ou parcialmente. Havendo norma expressa em Constituição Estadual, em Lei Orgânica Municipal ou em norma infraconstitucional, atribuindo a essa atividade de transporte alternativo o caráter de serviço público, não há discussão quanto à sua possibilidade de regulação pelo Estado ou pelo Município, dependendo se a atividade é realizada de maneira intra ou intermunicipal. Contudo é preciso salientar que boa parte da doutrina vem considerando a atividade de transporte alternativo como uma atividade econômica que está inserida na regra da liberdade de iniciativa, mas a doutrina que se dedica sobre esse tema – e aí temos a doutrina do Dr. Marçal Justen Filho, do Dr. Marcos Juruena e do Dr. Horácio Augusto Mendes de Souza –, vai considerar que o sistema de transporte alternativo é uma atividade econômica, mas de interesse eminentemente social e de interesse eminentemente público, fato que permite ao Estado, ainda assim, impor condicionamentos e regulação se não sob o pálio serviço público, sob o pálio do seu poder de polícia ou polícia administrativa. Assim sendo, é extreme de dúvidas que o Estado quer que seja considerada a atividade de transporte alternativo como serviço público ou como uma atividade econômica inserida na regra da livre iniciativa. Os entes do Poder Público têm competência para dar efetiva regulação 2008 DEZEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 29
porquanto a sociedade cada vez mais se utiliza desse serviço para se locomover e é dever do Estado regular essa atividade de forma eficaz – quer o Estado quando o serviço for intermunicipal, quer o Município quando o serviço ocorrer dentro do próprio Município. O professor Marcos Juruena proferiu um parecer para uma agência reguladora administrada por um outro Estado da Federação em que municípios estavam concedendo autorizações. Talvez esse seja o instrumento, nem permissão nem concessão, mas uma autorização de uma atividade econômica de interesse social para determinadas vans funcionarem dentro de seus municípios e elas extrapolam, prestando serviços para outro Município. O Poder Judiciário local entendeu que bastava a autorização concedida pelo Município para permitir que essas vans trafegassem por outros municípios prestando esses serviços. Com o devido respeito, entendo que se uma van sai de um Município com sua autorização para prestar serviço em outro, esse serviço não é mais municipal e sim intermunicipal, sobressaindo para o Estado o poder de realizar a devida fiscalização e regulação. Um quinto caso que trago à discussão envolve a sobreposição de modais ou alteração na forma de prestação de serviço, situação que vem se tornando comum, muitas vezes prevista em contratos de concessão, mas que chama a atenção de alguns estudiosos – ao menos a parte acadêmica. Não é incomum o usuário de metrô verificar que ao final da linha do trem deste modal existe uma integração com ônibus, havendo previsão no contrato de concessão; não há, ou pelo menos a meu ver diminui, margem para discussão. No entanto, não havendo essa previsão originária, penso que essa atividade pode constituir sobreposição de modal. A concessão, que é inicialmente para a prestação do serviço de metrô, se transforma em metrô e ônibus. Esta atividade, caso não seja objeto de consenso, pode influenciar, e muito, nos contratos de concessão, nas permissões de linhas de ônibus, alterando estrutura tarifária e equilíbrio econômicofinanceiro. Mesma coisa aconteceu no Estado do Rio de Janeiro, quando a Procuradoria foi instada a se manifestar num pleito da Concessionária Barcas S/A para interromper o serviço de transporte aquaviário em determinado período da noite porque segundo alegado as barcas saíam do Rio de Janeiro para Niterói, e vice-versa, sem nenhum passageiro, ou seja, havia a ocorrência de um custo e sem nenhum passageiro. A empresa solicitou à agência reguladora que paralisasse o transporte aquaviário e colocasse à disposição dos passageiros, que porventura se dispusessem a fazer a travessia, um ônibus da Praça XV à Estação Araribóia, já que para a empresa o custo seria menor. A discussão é bastante importante porque indica sobreposição de modal. A concessão é para prestação de serviço aquaviário. Há necessidade de integração? Sim, mas essa atividade pode alterar as regras do contrato; pode alterar o equilíbrio econômico-financeiro do contrato; pode interferir na concessão de outros serviços de transporte prestados por outro concessionário. 30 • JUSTIÇA & CIDADANIA •DEZEMBRO 2008
“o Poder Judiciário deve procurar interferir o menos possível em atividades técnicas, objeto da regulação, e premiar, quando muito, a dignidade humana do cidadão, à luz do critério de ponderação de interesses.”
O argumento defendido pela concessionária é de que não iria competir com os outros modais, na medida em que jamais pararia durante o percurso; apenas pegaria a pessoa e levaria até a Estação Araribóia. O argumento é interessante e seduz, mas restam discussões quanto ao equilíbrio econômico-financeiro do contrato e da consensualidade com os demais players desse mercado. Com este caso encerro e passo à conclusão, afirmando que não há tranqüilidade na definição da competência entre os entes federados que se predispõem a prestar ou a regular algum serviço público. Temos na Constituição algumas regras, que não parecem tranqüilas, para serviço de transporte coletivo que não parecem determinar ou definir esses conflitos. Na maioria das vezes esses conflitos chegarão ao Poder Judiciário, que é chamado a se manifestar diante de dois interesses legitimamente defendidos, dois valores constitucionais devidamente defendidos pelos entes da federação, e a decisão é muito difícil. Penso, e esta é uma opinião acadêmica, que o Poder Judiciário deve procurar interferir o menos possível em atividades técnicas, objeto da regulação, e premiar, quando muito, a dignidade humana do cidadão, à luz do critério de ponderação de interesses, se preocupando sempre em proteger o interesse que naquele momento se manifesta de forma superior a outro interesse tutelado pelo ente que discute ou legitima a competência para a prestação dos serviços.
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REMENDA, NÃO REFORMA, SIM
Paulo Skaf Presidente da Federação e do Centro das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP/CIESP)
Foto: Roosewelt Pinheiro/ABr
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á muito, o Brasil padece de um vício nocivo à sociedade, que promove o gasto perdulário do Estado e impede nosso desenvolvimento: o aumento de impostos. Há tempos, o cidadão brasileiro clama pela famosa Reforma Tributária. O Brasil precisa de uma reforma que desonere, simplifique e agilize nosso crescimento econômico. A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) é a favor de um projeto que acabe com a guerra fiscal e com a competição desleal. No entanto, fomos surpreendidos com mudanças colocadas no texto discutido na Comissão Especial que, a rigor, significam inexplicável retrocesso. Diversos pontos do projeto atual vão exatamente contra a vontade explícita da sociedade de desonerar a carga tributária. Aliás, desejo esse já demonstrado quando, em cruzada cívica nacional, derrubamos a CPMF no ano passado. Temos sido, de maneira crônica, vítimas da criação de impostos que reduz o poder de consumo das pessoas físicas e jurídicas. No início de 2009, esse relatório, que não atende aos interesses dos brasileiros, deve tramitar na Câmara, com o risco de aprovar a Reforma Tributária contrariando os interesses do País. Não podemos aceitar que o governo inclua, de maneira repentina, benefícios que não foram debatidos
“Diversos pontos do projeto atual vão exatamente contra a vontade explícita da sociedade de desonerar a carga tributária. Aliás, desejo esse já demonstrado quando, em cruzada cívica nacional, derrubamos a CPMF no ano passado.”
e não integravam a proposta original. A sociedade deseja a redução da carga tributária do País e, por conseguinte, a diminuição dos gastos públicos. Nossa economia não pode esperar por muito tempo, mas é preferível dialogar agora e atender todas as questões polêmicas a aprovar, intempestivamente, um projeto que não seja pelo menos satisfatório. Vamos destacar alguns pontos que contrariam uma proposta democrática de Reforma Tributária: • O atual documento eleva a contribuição do setor de mineração de 2% sobre o faturamento líquido para 3% do faturamento bruto. Ou seja, quase dobra o imposto. Vai onerar a cadeia produtiva e aumentar a carga tributária, o que é inaceitável; • Permite a continuidade da condenável prática de criação de novos impostos por Medida Provisória; • Deixa de lado um velho pedido do consumidor brasileiro que é o de haver mais transparência na cobrança dos tributos. É importante que o cidadão pague suas contas sabendo a real quantidade de impostos embutidos nelas. O cálculo deveria ser feito por fora, para evitar a incidência múltipla; • Mantém a chamada guerra fiscal por meio de medidas como o alongamento do prazo de transição para implan tação das normas legislativas do ICMS, de oito anos para
12 anos. Além disso, o relatório constitucionaliza incen tivos ilegais, revalidando benefícios passados, sem o aval do Confaz. E ainda concede benefícios portuários, o que facilita a importação desleal de mercadorias, medida prejudicial à Indústria Nacional e ao País; • Deve ser incluído no texto constitucional, como também foi proposto por nós – previsão explícita e autoaplicável que não permita aumento da carga tributária –, um gatilho que dispare toda vez que houver incremento da arrecadação em relação ao PIB. Neste ano de 2008, já sem a CPMF, a Receita Federal vem anunciando seguidos recordes de arrecadação. As projeções para 2008 mostram um aumento na arrecadação de R$ 70 bilhões apenas para o Governo Federal. O valor é quase o dobro do valor que seria propiciado pela desnecessária contribuição. Não podemos perder a oportunidade, após tantas batalhas, de criar e de participar de que contemple, em primeiro lugar, os interesses do povo brasileiro. Este é o momento, em meio a uma crise mundial financeira que já atinge nossa economia, de, juntos – Municípios, Estados, União e setor privado –, discutirmos com cautela e trabalharmos pelo crescimento do País, deixando de lado barganhas e opções individualizadas. A reforma é urgente, mas não permitiremos que, travestida de novidade, venha onerar ainda mais os brasileiros. 2008 DEZEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 33
Tribunal Digital
Henrique Nelson Calandra Desembargador do TJ/SP Presidente da Apamagis
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ão importante quanto a Revolução Industrial, que remodelou consideravelmente o modo de viver, tem sido a Revolução da Informática. Com uma velocidade inesperada, ela está mudando a indústria, a ciência, a cultura, permeando desde as menores células do convívio social até a globalização mundial. A informática, que tem sido entendida como informação automática, propicia ao homem comunicar-se de forma célere e eficiente, cada vez mais derrubando as fronteiras da distância. Tem efetivamente se tornado o instrumento social de comunicação, suplantando televisão, rádio, correio, dando acesso a lugares novos e instigantes, despertando no homem a curiosidade e a busca pela diversidade. Assim, surge outra concepção de vida em sociedade, novos tempos aos quais o Estado de Direito precisa adaptar-se de forma a não se tornar errante, pois esse mundo dinâmico é uma situação consolidada e irreversível. O Poder Judiciário deve adequar-se a essa realidade, principalmente para suprir suas próprias necessidades técnicas decorrentes do dinamismo social e, assim, acompanhar o Homem em seu caminhar rumo à globalização. Os Tribunais do País têm enfrentado essa questão. Em 1999, por exemplo, a edição da Lei nº 9.800, de 26 de maio do mesmo ano, permitiu às partes a utilização de sistema de transmissão de dados para a prática de atos processuais. Contudo, foi com a Lei nº 11.419, de 19 de dezembro de 2006, que a informatização do processo judicial ganhou vida. Desde então, o Tribunal de Justiça de São Paulo tem caminhado de forma mais objetiva e determinada para a consecução desse ideal. Em muitas comarcas, os novos processos são distribuídos digitalizados e, na capital, isso também é uma realidade em 34 • JUSTIÇA & CIDADANIA •DEZEMBRO 2008
Juizado Especial e no Fórum Regional da Freguesia do Ó. A expectativa é de que, dentro de alguns anos, o processo digital alcance todos os fóruns paulistas, de modo que todo feito distribuído seguirá totalmente sem papéis. Outra importante conquista é o Diário da Justiça Eletrônico. Com base no artigo 4º da Lei nº 11.419/06, o Tribunal de Justiça conduz de forma autônoma, com o apoio das parcerias realizadas, a comunicação oficial do Judiciário. Trata-se de um serviço totalmente gratuito, cujo acesso diário gira em torno de 25 mil. Dentre as vantagens advindas em função dessa conversão eletrônica, encontram-se a redução do custo – a Corte investia cerca de 5 milhões de reais somente em assinaturas – e a economia de papel e, conseqüentemente, de muitas árvores. Com esse investimento em informatização, o Tribunal de Justiça de São Paulo objetiva imprimir celeridade no andamento processual, permitindo a eficácia, com razoável duração do processo, pilar que hoje integra os direitos fundamentais do cidadão, conforme prescreve o inciso LXXVIII, do artigo 5º da Constituição Federal, incluído pela Emenda nº 45/04. Todavia, informatizar o Judiciário paulista exigirá adequações, reformulações e a superação de entraves graves, como a falta de previsão orçamentária para tamanho investimento. Entre os problemas de ordem prática destacamse, por exemplo, a diversidade de equipamentos, como é o caso das impressoras, em que ocorre ausência de padronização, gerada por várias aquisições parciais. Outro ponto nevrálgico é a questão da segurança dos dados. Ao todo, são 700 prédios, que representarão uma gigantesca rede a ser administrada. O Brasil é o país recordista em atividades hacker. Em 2004, a Polícia Federal divulgou
Foto: Divulgação
que de cada 10 hackers no mundo, 8 estão aqui. Isso é algo bem preocupante. Com o objetivo de garantir confidencialidade, integridade e disponibilidade das informações geradas, a Corte de Justiça paulista está adotando a certificação digital, de forma que todo funcionário terá um cartão com uma senha secreta, desconhecida inclusive da própria autoridade certificadora. Vale ressaltar ainda que a assinatura digital confere aos documentos o mesmo valor jurídico dos documentos em papel assinados de próprio punho, nos termos da Medida Provisória nº 2.200/02, que criou a ICP-Brasil. Muitos certificados já foram adquiridos com a Serasa, que é autoridade certificadora vinculada à ICP-Brasil (Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira – ICP-Brasil). No entanto, ainda será necessária a aquisição de muitos outros, para toda a demanda de serventuários. Tudo isso acarretará gastos. Cabe ressaltar que todo funcionário do Tribunal de Justiça de São Paulo tem o seu computador; mas, com a plena informatização, são muitos os equipamentos a serem obtidos para a nova plataforma tecnológica. Hoje, o Tribunal de Justiça de São Paulo não possui total independência financeira, como previsto no artigo 99 da Constituição Federal. Apenas entrega proposta orçamentária ao Executivo Estadual. A autonomia financeira constitui fundamental instrumento para a real e efetiva implementação do processo virtual. Não obstante o avanço e todas as possibilidades da informática, é preciso observar que nada abstrai o uso do bom senso e de um olhar humano, porque os sofrimentos, as disputas não são meras memórias digitais de um computador.
“A autonomia financeira constitui fundamental instrumento para a real e efetiva implementação do processo virtual.”
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20 ANOS DO CASO DO NAVIO “SOLANA STAR”
Wanderley Rebello Filho Advogado Presidente da Sociedade Brasileira de Vitimologia
J
á se passaram 20 anos desde aquele verão do ano de 1987 para 1988! Talvez o verão mais famoso do Estado do Rio de Janeiro, haja vista que até hoje é lembrado: é cantado em versos, é matéria de jornais e de revistas, é passagem de filmes, e aparece em muitas outras manifestações, artísticas ou não. Uma coisa é certa, para os usuários ou não de maconha, o “Verão das Latas” ou deixou lembranças ou deixou saudades. Naquela época, eu era um jovem advogado com apenas 7 anos do exercício da advocacia criminal e 29 anos de idade. Formado pela PUC/RJ em 1980, jamais imaginei que um dia me envolveria em um dos casos mais badalados de nosso Estado, ao menos não tão cedo. Hoje, confundo o caso processual com a história real vivida por Stephen Skelton, contada em meu livro “1988: O Verão das Latas de Maconha – O Processo”, lançado em 2006 pela Editora Letra Capital. O caso nos mostra como podem ser falhas as nossas leis e que o que verdadeiramente importa é que o julgador e todos os participantes de um julgamento ( isto inclui o Ministério Público ) tenham sempre em mente o mais nobre dos nossos objetivos: fazer justiça! A justiça não existe, ela tem que ser feita! Vamos ao caso. “Era uma vez...” A história do cozinheiro Stephen G. Skelton pode começar assim, como uma fantasia, ou como uma história fantástica, ou de terror. A “casa mal assombrada” ficará por conta do Presídio Ary Franco, no bairro de Água Santa, onde Stephen ficou preso por quase um ano. Eu fui o advogado que acompanhou, desde o início, o processo conhecido como “O Caso das Latas de Maconha”, ou como “O Verão das 36 • JUSTIÇA & CIDADANIA •DEZEMBRO 2008
Latas”. Foi quase um ano de atuação até a decisão final pelo extinto Tribunal Federal de Recursos. Mas, resumidamente, o que aconteceu? Em um dia qualquer, no mês de setembro de 2007, fui chamado na carceragem da Polícia Federal para falar com um estrangeiro que havia sido preso: era Stephen Skelton. Começamos a conversar, e ele me contou a sua história. Fora contratado, meses antes, em março ou abril de 1987, para fazer parte da tripulação do navio Solana Star, que faria uma viagem de Singapura ao Brasil para buscar, segundo soube Stephen, uma carga de latas de tomate, entre outros produtos brasileiros. Cozinheiro profissional, Stephen foi contratado para trabalhar como cozinheiro do navio e, como tal, pouco contato ele mantinha com o Comandante e com o resto da tripulação. O navio Solana Star passou por vários países antes de chegar ao Brasil, onde aportou com sérios problemas nos motores. Por este motivo, em vez de seguirem viagem para o Nordeste brasileiro, o Solana Star aportou no cais da Praça Mauá, em frente ao prédio do Departamento de Polícia Federal. Stephen desceu com a tripulação e todos se hospedaram em um hotel. Poucos dias depois, a tripulação voltou para os Estados Unidos, apenas Stephen ficou no país aguardando o conserto e a liberação do navio. Tão logo este ficasse pronto, uma nova tripulação viria ao Brasil e todos seguiriam viagem de volta. No Brasil, havia um agente aduaneiro responsável pelo conserto do navio e pela estadia de Stephen, RVG. Um dia, ligaram para ele e pediram que levasse Stephen ao Departamento de Polícia Federal para prestar declarações, o que foi feito. Queriam saber acerca de uma carga de mais
de 20 (vinte) toneladas em latas de maconha, que, supostamente, estaria no navio Solana Star. É óbvio que ele desconhecia esta informação. Foi liberado. Dias depois, folheando um jornal de nossa cidade, Stephen viu uma foto do navio Solana Star na capa, e dentro, na matéria, o seu nome. Foi, então, ao Consulado Ameri ca no para saber do que se tratava, quando o Vice-Cônsul orientou-o a voltar ao Departamento de Polícia Federal acompanhado, mais uma vez, de RVG, o agente do navio americano, para prestar mais esclarecimentos. Em um fatídico dia de Setembro de 1987, Stephen Skelton foi preso. E aí o processo começou! Fui para o escritório e fiz contato com a família de Stephen, especificamente com a sua filha, que morava em Naples, na Flórida. Ela já havia tomado conhecimento da prisão de Stephen no Brasil, e estava 2008 DEZEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 37
Foto: www.trupedaterra.com.br
Navio Solana Star
ansiosa aguardando um contato. Pediu-me que mantivesse o atendimento prestado ao seu pai e avisou-me que em breve alguém me procuraria no Brasil. Dias depois, recebi um telefonema de Stephen de dentro da carceragem da Polícia Federal. Ele me pedia para comparecer à Delegacia, pois queria urgentemente conversar. Eu já o havia visitado outras vezes, e Stephen já confiava muito em mim. Eu estava com procuração e acompanhava a tramitação do processo. Stephen me disse que recebera de um policial um aviso de que alguém iria visitá-lo a determinada hora, e que por isto havia me pedido para ir lá também. Era outro advogado, mas ele queria que eu continuasse atuando no processo. O outro era indicação de seus “irmãos”. Momentos depois, chegou à carceragem o advogado PG com um cartão, que ele mostrou a Stephen. Como se fosse um código, Stephen disse umas palavras em inglês, mas o advogado não entendeu: ele não falava inglês. Eu fiquei como intérprete. No cartão havia um símbolo, e pouco tempo depois soube que tratava-se de um símbolo da Maçonaria; tanto o advogado carioca que estava se apresentando quanto Stephen eram da Maçonaria, e como tal se reconheceram. Stephen disse que, a partir daquele momento, estava se sentindo mais protegido. Tudo esclarecido, fiz contato com a filha de Stephen em Naples, na Flórida, e ela me pediu que fosse até lá para me conhecer e pegar algum dinheiro para ajudar na manutenção de Stephen na cadeia, e para os meus honorários, é claro. Como acabara de ter um bebê, o médico desaconselhara a viagem ao Brasil, e eu fui para a Flórida. Em Naples conheci a filha de Stephen, sua netinha e seu melhor amigo Kurt Newman, que fora um famoso surfista americano. Eles estavam visivelmente desesperados com a situação de Stephen, tendo Kurt me 38 • JUSTIÇA & CIDADANIA •DEZEMBRO 2008
avisado que em breve viajaria ao Brasil para visitá-lo. De volta ao Brasil, a guerra estava apenas começando! Vamos ao que aconteceu! O Departamento de Polícia Federal, no Estado do Rio de Janeiro, recebeu uma denúncia de um agente do DEA informando que um navio, chamado Solana Star, passaria na costa do Rio de Janeiro transportando maconha. A Polícia Federal mobilizou dezenas de agentes federais, e até a Marinha de Guerra brasileira, para que procurassem a tal embarcação. A Fragata Independência, por duas vezes, seguindo coordenadas fornecidas pelo agente do DEA vasculhou a costa carioca, mas não encontrou a embarcação. Depois, foi a vez do contra-torpedeiros Sergipe, que também seguiu, inutilmente, as coordenadas fornecidas pelo DEA. Enquanto a Polícia Federal, em suas lanchas, e a Marinha brasileira, em seus navios, vasculhavam a nossa costa, o navio Solana Star, há algum tempo, permanecia ancorado no cais da Praça Mauá, de onde todos partiam. Acho que se esqueceram de olhar em volta! Brincadeira à parte, o Solana Star, como já dissemos, estava ancorado e com o motor danificado, e sua tripulação já estava em terra enquanto procuravam o navio. Ao mesmo tempo em que tudo isto acontecia, centenas de latas de maconha eram encontradas em alto mar, de Búzios a Angra dos Reis, e algumas até no litoral de Santa Catarina. E todos presumiam que elas haviam sido lançadas ao mar pela tripulação do navio Solana Star. Por isso Stephen foi preso! Quanto ao processo, vou omitir, propositalmente, os nomes de todas as autoridades envolvidas para evitar “problemas”, judiciais ou não. Mas, podem estar certos de que tudo o que for lido aqui nesse resumo será a expressão da verdade. Este processo – assim como o livro – quase de ficção trata, também, de um pouco de nosso Direito Penal. Vou
narrar os fatos, ou melhor, a minha versão sobre os fatos, e a aplicação do Direito e da Justiça. Neste caso, a meu ver, a verdadeira justiça foi feita! Stephen Skelton, depois de uma condenação de 20 anos de prisão em primeira instância, foi absolvido pelo extinto Tribunal Federal de Recursos, que entendeu que não havia provas do envolvimento de Stephen nos fatos criminosos. Todos os outros tripulantes do navio foram condenados e, como foram julgados à revelia (não recorreram), assim permaneceram. No entanto, a prova obtida em sede policial foi bastante precária, haja vista que, após vistoriar o navio três vezes, somente na quarta tentativa os policiais federais, supostamente, encontraram alguns “centigramas” de maconha. Esta prova não foi bem aceita pelo Tribunal. Com certeza os demais tripulantes só restaram condenados em razão de terem fugido para os EUA antes mesmo da prisão de Stephen – foram embora dias após desembarcarem do navio e jamais retornaram. Portanto, o livro trata de um caso dos mais comentados que já tivemos em nosso Estado, mas fala também, um pouco, de Direito e de justiça. Direito, todos os senhores sabem, vem do latim, e significa muitas coisas: justo, correto, justiça, razão, dirigir, conduzir, guiar, entre outras coisas. Porém, para nós advogados, parece que o ideal é entendê-lo como sendo aquilo que nos guia, que nos conduz. Kant dizia que jamais uma definição de Direito irá agradar a todos. Logo, tire as suas próprias conclusões, sempre! Resumindo, Direito, para mim, é o conjunto de regras (leis, normas, resoluções, portarias, jurisprudências) de conduta e de organização, dotadas de força impositiva, ou seja, de coação. Em resumo, leis são comandos a serem cumpridos; “lei é lei”, diz o ditado, e nós temos que cumpri-las, sejam elas boas ou não. Então, para mim, o Direito, o “bom direito”, é apenas o guia: ele serve para nos conduzir. Mas, para onde? Para a verdadeira, ou ao menos, para a melhor justiça. Entre cumprir a lei e fazer justiça, eu ficarei sempre com a última, e vocês vão se deparar com este dilema ao longo de toda a carreira. Às vezes, cumprir a lei pode revelar uma injustiça. Quanto à justiça, mas não à justiça concretamente falando (tudo o que pertence ao, ou faz parte do Poder Judiciário), mas sim à “justiça do que é justo”, desta não podemos jamais nos afastar. “A justiça não existe”, como dizia Alain, “a justiça pertence à ordem das coisas que se devem fazer justamente porque não existem. A justiça existirá se a fizermos. Eis o problema humano.” (Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, de André ComteSponville, Ed. Martins Fontes). Desde Aristóteles e São Tomás de Aquino, passando por Hobbes, Montesquieu e Rousseau, sustenta-se que cabe à lei definir o que é justo e o que é injusto. Justo seria o que está permitido em lei; e injusto, o que está proibido. No entanto, modernamente, não se admite mais isto, ainda mais depois que o Fascismo mostrou o que é possível se fazer de uma sociedade usando do Poder Legislativo de forma ilegítima. No passado essa concepção tinha um fundamento, que era o de acreditar que
jamais o governante usaria do poder para prejudicar o bem público ou o bem comum. Não se tinha ainda a noção de que uma classe social poderia usar do poder em seu proveito exclusivo, instaurando um ordenamento jurídico que mais lhe conviesse, embora aparentando falar em nome de toda a sociedade. Hoje, não há mais dúvida de que não cabe tão-somente à lei definir o que é justo, reconhecendo-se ao juiz moderno amplos poderes de interpretação desta mesma lei, face às circunstâncias sociopolíticas do caso concreto e das conjunturas históricas; hoje se sabe também que nem todo o direito de uma coletividade está nas leis, e que não é pelo fato de existir uma lei que toda a situação ou hipótese previstas por ela passam a ser automaticamente justas” (Enciclopédia do Advogado, Leib Soibelman, Thex Editora). A justiça tem que ser o objetivo de toda e qualquer lei! Uma injustiça é inaceitável, imperdoável. É um problema que encontramos em Kant, e que voltaremos a encontrar em Dostoiévski, Bergson, Camus ou Jankélévitch: se para salvar a humanidade fosse preciso condenar um inocente (torturar uma criança, diz Dostoiévski), teríamos que nos resignar a fazê-lo? Não, respondem eles. A cartada não valeria o jogo, ou antes, não seria uma cartada, mas uma ignomínia. Porque, se a justiça desaparece, escreve Kant, é coisa sem valor o fato de os homens viverem na Terra... Ser injusto por amor é ser injusto – e o amor não é mais que favoritismo ou parcialidade. Ser injusto para sua própria felicidade ou para a felicidade da humanidade é ser injusto – e a felicidade nada mais é do que egoísmo ou conforto. A justiça é aquilo sem o que os valores deixariam de ser valores (não seriam mais do que interesses ou móbeis), ou não valeriam nada (Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, idem). O que importa, então, é a justiça! “A cada um o que é seu”, disse Cícero; e, “a justiça é o vínculo das sociedades humanas, e as leis emanadas da justiça são a alma de um povo”, disse Juan Luis Vives. A justiça é o resultado da verdade, “é a verdade em ação”, como dizia Joubert, e ela é “imutável como Deus, enquanto as leis são perecedoras e instáveis como o homem”, dizia Juan Donoso Cortés. Uma vez ouvi de um juiz, repetindo um filósofo, que ele haveria de preferir absolver cem culpados a condenar um inocente. De lá para cá, nunca mais vi as leis com os mesmos olhos. E, neste caso, foi feita a verdadeira justiça! Não havia qualquer prova apontando o envolvimento de Stephen nos fatos criminosos (ele era o cozinheiro do navio); e pior, não havia provas de que as latas teriam sido lançadas do navio Solana Star! Existia apenas um telegrama de um agente americano informando que o tal navio poderia estar conduzindo uma carga de maconha, mas este agente jamais veio ao Brasil para ser ouvido (apesar de ter sido arrolado pelo Ministério Público), nem foi ouvido por carta rogatória. A “prova” se limitou a um telegrama, jamais confirmado, e aos infames centigramas de maconha possivelmente plantados no Solana Star! E, porque a justiça tarda, mas não falha, Stephen Skelton foi absolvido! 2008 DEZEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 39
Fera Acuada
Rodolfo Konder Jornalista
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NOTA DO EDITOR Rodolfo Konder, companheiro no Conselho Deliberativo da ABI, escritor e poeta, tem 19 livros publicados, o último “As Areias de Ontem”. Foi contemporâneo de Wladimir Herzog no DOI-Codi, prisioneiro do indigitado torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra. Membro do Conselho Municipal de Educação de São Paulo, da Academia Paulista de Educação, Conselheiro do MASP e do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. É Diretor Cultural da FMU. Exilado de 1964 a 1978, no México, Uruguai, Canadá e Estados Unidos. 40 • JUSTIÇA & CIDADANIA •DEZEMBRO 2008
ma convenção, aprovada por consenso pela Assembléia Geral da ONU a 10 de dezembro de 1984, consagra o princípio de jurisdição universal obrigatória sobre os torturadores. Isso quer dizer que um torturador, a menos que seja extraditado para sofrer processo em outro país, será processado em qualquer nação onde se encontre. Além disso, a convenção impede o repatriamento forçado ou a extradição de pessoas que corram o risco de ser torturadas. Mais: exclui a “obediência a ordens superiores” como defesa contra uma acusação de tortura. Obriga ainda os Estados a investigar quaisquer informações sobre a prática de tortura e de outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. E cria um Comitê contra a tortura, que examina informes, investiga denúncias, busca esclarecimentos, acolhe informações. Para as inúmeras vítimas de tortura, que vivem num campo minado pela memória de horrores muitas vezes indescritíveis, a convenção representa um certo alívio. Digo “certo alívio” porque há aqui outra questão envolvida. Há cura para a tortura? Podemos, e devemos, punir duramente os torturadores. Mas, e os torturados? No mundo inteiro, jornalistas como eu têm sido detidos e torturados por defenderem pacificamente suas opiniões. Eles são vítimas da opressão oficial, como milhares de dissidentes políticos, artistas, intelectuais, menores e mulheres.
Foto: Arquivo Pessoal
Na Turquia, nas Filipinas, em El Salvador, na Síria, na Índia, na Etiópia, no Marrocos, temos inúmeros registros de mulheres torturadas, sexualmente humilhadas pelos agentes da lei e da ordem. Mesmo enfrentando graves dificuldades para denunciar as violações dos seus direitos, enfermeiras, professoras, advogadas, juízas, assistentes sociais, estudantes, jornalistas, religiosas, militantes e parentes de pessoas perseguidas têm revelado os abusos estarrecedores cometidos contra elas pelas autoridades. Os governos – cumpre lembrar – são responsáveis pelo respeito às normas internacionais de proteção aos Direitos Humanos. São os governos, portanto, que as vêm estuprando, em dezenas de países. Diante do torturador, olhamo-nos num implacável espelho. Nossa própria imagem se parte, fragmenta-se em mil pedaços. Isso não nos deixa mais espaço, por exemplo, para qualquer crença ingênua na bondade intrínseca dos seres humanos. A experiência da tortura torna as pessoas mais solitárias, deixa seqüelas quase insuperáveis. Sugere inclusive uma “síndrome do torturado”, semelhante à “síndrome do prisioneiro da guerra”. O Canadian Center for Investigation and Prevention of Tortura (Centro Canadense para Investigação e Combate à Tortura), em Toronto, e o Rehabilitation Center for Torture Victims (Centro de Reabilitação das Vítimas da Tortura), em Copenhague, são as únicas instituições que se dedicam
à questão da tortura e suas seqüelas, como objeto precípuo de suas atividades. A organização canadense funciona desde 1984; a dinamarquesa, desde 1982. Em ambos os casos, há estudos perturbadores, conclusões chocantes, que envolvem inclusive a configuração de uma “síndrome do torturado”. A vítima carrega pesada carga do passado, sofre uma espécie de inversão moral (vê nas outras pessoas propósitos perversos, intuitos cruéis e posturas mentirosas), convive com um atormentador sentimento de culpa, sofre de depressões freqüentes, sente-se perdida, desorientada, perde o sono ou tem insistentes pesadelos. Sua crença mais profunda no ser humano lhe foi retirada, ou, no mínimo, rudemente golpeada. Relatório recente da Anistia Internacional revela que a tortura ainda é praticada com regularidade em “mais de noventa países”. Irã, Paquistão, Turquia e Líbia encabeçam a longa lista. Em 1975, nos subterrâneos da Ditadura Militar, conheci a tortura – talvez a pior das fraturas da alma humana. Naqueles tempos, multiplicavam-se os regimes autoritários na América Latina. Hoje, felizmente, conquistamos a democracia e vivemos em liberdade. Embora a prática da tortura persista em muitos países, crescem as pressões da opinião pública mundial em defesa dos Direitos Humanos, como parte de uma nova cultura planetária que está surgindo. 2008 DEZEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 41
O IMPLACÁVEL E ENVOLVENTE PODER MIDIÁTICO
Edvaldo Pereira de Moura Desembargador do TJ/PI
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professor Celso Lafer, catedrático de Direito Internacional Público e de Filosofia do Direito da Universidade de São Paulo, em judicioso estudo sobre a mentira, com a clareza de sempre, mostra que a vida moral e a vida do poder dão a impressão de correr paralelas, com raras convergências; e que o desencontro entre ética e política incomoda e revolta a todos os que querem ver e sentir a presença de virtudes na condução dos negócios públicos. A escritora sueca Sissela Bok também escreveu sobre a mentira, após ter verificado que desde o século XVII, excetuandose alguns momentos da literatura, do teatro e do cinema, reina profundo silêncio quanto ao dilema do dizer a verdade, na vida pública e na vida privada. Acodem-nos, aqui, ainda, as sábias palavras proferidas pelo Padre Antônio Vieira, no Sermão da Quinta Dominga da Quaresma, em 1654, na Igreja Maior da cidade de São Luís do Maranhão. A verdade é filha legítima da justiça, porque a justiça dá a cada um o que é seu. E isto é o que faz e o que diz a verdade, ao contrário da mentira. A mentira ou vos tira o que tendes, ou vos dá o que não tendes; ou vos rouba, ou vos condena. Estaria neste enunciado sumulada a solução satisfatória para o contencioso social no âmbito político-administrativo? É que resolvidos os efeitos causais das virtudes que as tradições consideram relevantes para a ação política, poder-se-ia alcançar o simulacro pernicioso do grande arsenal de desagregação de valores morais contíguos ao Bonum Honestum, que é famigerada indústria da mídia. No limiar do século XX, precisamente a partir de sua segunda década, iniciou-se um movimento novo, no tocante às idéias políticas, com o advento do chamado Estado-Cientista, póstero da Nação-Estado. Esse Estado passou a ser o entrelaçamento da ciência e da técnica em função de um novo eldorado capitalista. Nele, as universidades perdem o estatuto de simples formadoras 42 • JUSTIÇA & CIDADANIA •DEZEMBRO 2008
da elite do ter e do fazer, para associarem-se aos laboratórios de investigação, aos centros tecnológicos, à prática manufatureira terceirizada. Visa-se, definitivamente, à produção em série de tudo, e à infinita diversidade de produtos para atender a uma famélica geração de consumidores daquilo que a técnica e a ciência geram em proveito dos interesses pessoais, sociais, políticos e econômicos do Homem. Paralelo à expansão dos interesses dos fabricantes de produtos para consumo de todos, desenvolve-se o aparelhamento da massificação informativa. Os aparelhos, os órgãos e os meios de comunicação tomam lugar privilegiado na atenção dos capitalistas, por serem meios de anunciar seus produtos aos consumidores. As técnicas e os meios de comunicação, associados à publicidade e à mercadologia, vão formar o complexo daquilo que se chama indústria da mídia. Mas a indústria da mídia não é somente mercadológica. Ela é, também, ideológica. Vende de tudo, desde o sabão em pó, que lava mais e mais branco do que o concorrente, até a imagem de um candidato à Presidência da República. Nada escapa aos artifícios da boa mídia – boa porque ontologicamente ela o é. Há mídia para vender frutas na banca da esquina e mídia para vender navios e aviões. A diferença entre uma e outra técnica está na qualidade intelectual e instrumental do anunciante usada para transmitir a mensagem, e no valor do produto anunciado. A mídia atingiu tal poder de fogo, que uma empresa do porte da Rede Globo, se o quiser, poderá conduzir da maneira que bem lhe aprouver o comportamento do comprador, do eleitor, do político, dos padrões éticos da sociedade, das decisões do governo, do estado de espírito dos habitantes de todo o País, e tudo mais que lhe traga o retorno ideológico e o lucro financeiro pretendidos. O poder interveniente da mídia, como é de sabença geral, elegeu Collor. Esse mesmo poder o aniquilou. Se Collor tiver o mesmo empenho e o mesmo dinheiro, poderá ressurgir das cinzas da humilhação e do ostracismo a qualquer hora.
Foto: Dinavan Fernandes de Araújo/TJPI
A indústria da mídia é moralmente neutra. Faz o bem e faz o mal com a mesma competência. Em doses mitridáticas ou em dimensões astronômicas. Ela é um poder formidável do progresso, cuja capacidade de fazer ou desfazer o que quiser está cada vez mais ganhando força e sofisticação. A força da mídia é, na sua essência, a força dos interesses econômicos de qualquer sociedade moderna. O apelo dos meios de comunicação é de um poder quase mágico, praticamente anestesiante. A Bíblia, no seu Antigo Testamento, nos dá a figura maliciosa e embusteira da serpente no Éden, chamando a atenção de Adão e Eva para as delícias do fruto proibido. Hoje e sempre nada nos desce pela garganta sem primeiro edulcorar nosso paladar, agradar o nosso olfato e pulular de cores admiráveis os nossos olhos. A propaganda do cigarro e da bebida alcoólica vem sempre com um desafio, quase infalível, de nos obrigar a fazer hodiernamente aquilo que os atores estão fazendo nos aprazíveis ambientes bem escolhidos e nas invejáveis circunstâncias em que eles virtualmente se encontram. Outro apelo menos material e mais devastador é aquele a que hoje assistimos na televisão: a eliminação sumária dos mecanismos da consciência que nos impelem ao remorso diante de qualquer atropelo das boas normas morais e da conduta saudável. As crianças e os adolescentes pautam naturalmente as suas condutas pelo que sai dos seus ídolos estilizados pela televisão e pelas revistas. Assim sendo, a própria televisão se vê na obrigação de produzir o que agrada a essa multidão, pois é para ela que se voltam avidamente os interesses dos fabricantes e, concomitantemente, dos comerciantes de qualquer produto. A televisão sabe que está multiplicando uma geração de clones, deformados pela imoralidade civil e religiosa. A sedução, o adultério, a prostituição, o incesto, o homossexualismo, o suicídio, o furto e o roubo inteligentes, a irresponsabilidade civil, tudo faz parte de um elenco que os filmes da televisão e as revistas licenciosas lançam cabeça adentro. A guerra contra os valores mais conservadores da decência na sociedade mantém ataques sem trégua. Nada se faz mais por negociação e consenso. Nas novelas da Globo, mal a mocinha se faz mulher engravida de um pai da mesma idade. O homossexualismo é coisa natural, o aborto, a prostituição por prazer, a droga, o divórcio irresponsável por omissão ou comodismo, são atos banais, cada vez mais sem a menor ascendência lógica diante da mais corriqueira falácia libertária. O resultado desastroso fica por conta de qualquer pessoa despreparada, que se deixar levar por essas propagandas enganosas. Em suma, a mídia tem uma força incrível para nos impor o que ela pretende, seja um produto qualquer, seja um comportamento inadequado. Isso, porém, não impede que se faça justiça a essa maravilha do presente e do futuro: a tecnologia da informática e da telemática, da imagem e do som. Ela já fez a sua parte; a sociedade é que precisa de soluções éticas para ver triunfar os valores morais. Mais uma vez é necessário que nos conscientizemos do fato de que as virtudes inspiradas na força e na astúcia devem ser substituídas pelo primado da verdade, filha da justiça, porque só a justiça dá a cada um o que é seu.
“Em suma, a mídia tem uma força incrível para nos impor o que ela pretende, seja um produto qualquer, seja um comportamento inadequado.”
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A Transformação da Propriedade e a Evolução das Companhias no Direito Brasileiro Ana Tereza Palhares Basílio Membro da Comissão Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional
André R. C. Fontes Desembargador do TRF-2a Região Membro do Conselho Editorial
O
século passado foi marcado por rápidas e profundas transformações na sociedade, na política e na economia. E a mudança da concepção de propriedade como um poder absoluto e ilimitado foi, certamente, um dos efeitos dessas novas perspectivas. A propriedade no século XIX foi elevada a centro e motor do sistema produtivo, mas entrou em crise nos anos novecentos, em decorrência das novas concepções, que surgiram por ocasião da Revolução Industrial e afloraram em todas as décadas do século XX. Os processos econômicos e sociais que se assentaram tiveram por conseqüência a subtração da propriedade de sua posição central e absoluta e modificaram o seu papel interno no sistema de produção e valorização dos recursos. Nesse grandioso e complexo processo de modificação da riqueza, a humanidade deparou-se, desde os estertores do século XVIII, com a mudança de uma economia preponderantemente agrícola – a riqueza, por excelência, e os recursos econômicos mais importantes eram representados pelos bens imóveis, e em particular pela terra – para a afirmação da atividade industrial e dos serviços; evolui-se para uma economia, de um modo geral, mais sofisticada. A terra e a propriedade imobiliária tornaram-se recursos produtivos de menor relevância e, como decorrência desse fenômeno,
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outros tipos de bens valorizaram-se. Mercadorias, máquinas, bens instrumentais ou de consumo e, sobretudo, títulos de crédito e ações das sociedades anônimas, dentre outros bens móveis, foram alçados ao patamar de relevantes propulsores das atividades econômicas. E, nesse contexto, a concepção clássica da propriedade imobiliária perdeu, indubitavelmente, os alicerces que lhe davam sustentação. Os processos de mobilização das riquezas tiveram, pois, um ulterior e expressivo impulso: com a afirmação das atividades bancárias, associadas às industriais, transferiram-se para os bens financeiros as mesmas definições dadas aos bens em geral, dentre as quais destacam-se a de “valores mobiliários” e a de “mercados mobiliários”, como conseqüência do desenvolvimento do mercado financeiro, que passou a ser o mais relevante instrumento de geração e circulação de riquezas. Como corolário dessa transformação, notabiliza-se o processo de desmaterialização da riqueza. O desenvolvimento econômico e os processos produtivos tornaram-se cada vez mais dependentes do conhecimento e do uso de tecnologias inovadoras. As invenções de novos produtos, ou novos métodos produtivos, e o emprego de outras criações de engenho humano, tais como fórmulas publicitárias, slogans ou signos de identificação, passaram a ser essenciais ao sucesso de um produto no mercado. É uma nova e importante
Foto: Arquivo JC
modalidade de riqueza econômica, cuja característica principal é não consistir em bem material. De fato, as patentes de invenção, as marcas de fábrica ou de comércio, o direito do autor e, notadamente, o desenvolvimento de programas de computador, estão inseridos na categoria de bens imateriais. Todos esses bens imateriais agregam o conceito de propriedade, mas não em sua concepção tradicional; pois que, na sua feição originária, propriedade era só propriedade de coisas materiais. É emblemática a constatação de que as maiores fortunas pessoais migraram das terras para as grandes indústrias, tais como automotivas, mineração e siderurgia, e hoje são detidas por titulares de programas de computadores e de redes de telefonia. É relevante conseqüência desses fatos o processo de dissociação entre titularidade da propriedade e o controle das riquezas. A noção de separação entre a propriedade e o controle da riqueza manifesta-se por meio de um processo de cisão entre o papel do proprietário e o papel do empreendedor. Nas economias pré-capitalistas, as figuras do empreendedor e do proprietário geralmente coincidiam: quem possuía os meios de produção os organizava e os utilizava, pessoalmente, para fins produtivos. Na atualidade, o proprietário (capitalista) disponibiliza o capital, mas não é ele, via de regra, quem o organiza e faz a sua gestão diretamente. Essa tarefa é do
empreendedor, que gere e desfruta do capital que não é seu. A gestão e a vantagem se realizam através de competentes tecnologias e gerenciamentos, que na economia moderna tendem a substituir o direito de propriedade como suporte e verdadeiro fator de impulso do processo produtivo. Esse fenômeno manifesta-se, sobretudo, na tendência mundial das grandes sociedades anônimas de pulverização do seu capital social, com a emissão de um grande número de ações, distribuídas a heterogêneo e expressivo número de acionistas. Esses numerosos acionistas minoritários são investidores em busca de dividendos e de valorização de suas ações; não visam, entretanto, a influir na gestão da companhia através de votos em assembléia. Nesse cenário, que já predomina no mercado norteamericano e vem se alastrando pela América Latina, inclusive pelo Brasil, é possível deter o controle de uma sociedade sem dispor de uma larga maioria aritmética do capital social. Um grupo de poucos sócios, vinculados por um acordo de acionistas, pode comandar uma companhia detendo, por exemplo, 5% (cinco por cento) do seu capital social. Ou seja, embora sejam titulares de um reduzido percentual do capital social, poderão controlar a totalidade da riqueza da companhia, enquanto a grande massa das centenas de milhares de pequenos acionistas, proprietários, no seu conjunto, de expressivo percentual das 2008 DEZEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 45
Foto: Arquivo JC André Fontes, desembargador do TRF-2a Região
ações emitidas, não exercerá qualquer controle efetivo. A pulverização do controle acionário de grandes companhias afigura-se em um novo e salutar estágio na evolução da economia capitalista e na história do instituto da propriedade. As companhias, através da pulverização de suas ações, aumentam a captação de recursos, o que lhes propicia maior saúde financeira e capacidade de crescer e investir. Essa prática também torna mais sólidos e robustos os mercados acionários, irrigados por investimentos novos. Esse novo e promissor estágio do instituto da propriedade faz impositiva, no Brasil, a realização de uma relevante revisão da legislação societária. A Lei das Sociedades Anônimas em vigor foi promulgada nos anos 70 do século passado, em momento histórico no qual predominava perspectiva diversa. Naquela ocasião, conforme orientação do II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND) do governo do Presidente da República Ernesto Geisel, pretendia-se incentivar a criação, no País, de grandes conglomerados, capazes de concorrer, em igualdade de condições, com as temidas multinacionais. Para esse fim, era preciso fortalecer os acionistas controladores, conferindo-lhes instrumentos eficazes de gestão e domínio societário. Só assim seria possível atrair o desejado investimento de grandes capitais, detidos por poucos. O resultado dessa política é ostentado pela Lei das Sociedades Anônimas, que desprestigia os direitos e carece de instrumentos eficazes de proteção do acionista minoritário. Mas os tempos são outros. O Capitalismo, que começou preponderantemente industrial nos seus primórdios, passou pelas fases bancária e estatal, agora se afigura institucional ou societal, por estar diluído por todo um crescente segmento da sociedade, formado por investidores anônimos, fundos de 46 • JUSTIÇA & CIDADANIA •DEZEMBRO 2008
pensão, fundos de investimentos e fundos mútuos. O capital que se pretende atrair ao mercado de ações, no contexto das pulverizações, é o do pequeno poupador, que, no Brasil, ainda não é direcionado às bolsas de valores. Esse propósito, entretanto, só será alcançado se forem assegurados aos acionistas minoritários instrumentos consistentes de proteção do seu investimento. Em outras palavras, a legislação societária deverá sofrer alterações para conferir aos acionistas que detêm pequena parcela do capital social da companhia meios mais eficientes de fiscalização e proteção do seu investimento. Sem o incremento da segurança dos acionistas minoritários, que só poderá ser conferida pela lei, o Brasil não alçará, satisfatoriamente, esse estágio de evolução da economia mundial e do instituto da propriedade, cujas mutações devem estar em sintonia harmônica com a realidade econômica e social do País. O Novo Mercado, instituído pela Bolsa de Valores de São Paulo – Bovespa, estabelece normas mais eficientes para a defesa do investidor. Essas regras, no entanto, só serão seguidas pelas companhias que a ele aderirem. Trata-se, pois, de louvável iniciativa, incapaz, entretanto, de criar força coercitivo-legal, já que as disposições do Novo Mercado têm cariz meramente negocial. Nos sistemas orgânicos e sociais, a ocorrência de fenômenos de grande importância histórica transforma profundamente o valor e o papel do direito de propriedade na organização econômica da sociedade. E, por conseguinte, devem ser revigoradas as configurações jurídicas, em vista das novas realidades sociais. Dessas mudanças prestam fiel testemunho as normas sobre a propriedade contidas nas sucessivas Constituições brasileiras.
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QUEM PAGA A CONTA?
Gustavo Alves Pinto Teixeira Advogado
Foto: ah!Fotografia
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ecentemente, folheando um dos maiores jornais do país, meus olhos foram atraídos pela frase de um dos protagonistas da chamada Operação Satiagraha, afirmando que deveríamos escolher um caminho a
seguir. Temos a mesma indagação, mas certamente chegaremos a conclusões diametralmente opostas. De que adianta, no combate à violação da lei, infringi-la? Quando autoridades públicas, sob essa falácia, valemse da clandestinidade para “apurar” delitos, na verdade, prestam um desserviço à sociedade e legitimam a alegação de vícios insuperáveis, inconcebíveis em um verdadeiro Estado Democrático de Direito. Estaríamos vivenciando o inverso do histórico slogan do Plano de Metas de Juscelino Kubitschek: 50 anos de retrocesso em 5? Vivemos, sim, o início da fase adulta constitucional. Completamos vinte anos no dia 5 de outubro passado. Estamos deixando a puberdade, experimentando os arroubos da juventude, na expectativa da ponderação tranqüila da maturidade. A letargia ético-moral que preponderou na sociedade durante essa puberdade não pode servir de pretexto para que esqueçamos os princípios constitucionais que, salvo engano, ainda vigem. Se forem eles os que impedem a “eficaz” persecução criminal, que se mude a Constituição, mas que não a deixem como mera ficção. Todo o apelo emocional que se insurge nos dias atuais para que o Judiciário tenha uma pronta resposta não pode se sobrepor às garantias do devido processo legal, da ampla defesa, da presunção de inocência e de outros importantes princípios expostos na Constituição Federal de 1988.
“Houve uma transformação na carreira de juiz que fez surgir métodos e sistemas que valorizam a eficiência a todo custo, em atropelo às garantias individuais. prática incompatível com a difícil tarefa de julgar a vida dos outros.”
O filósofo belga Chaïn Perelman diz que somente a norma constitucional, enquanto fundamental, não terá de conformar-se a nenhuma norma preliminar. Assim, a tão questionada especialização de alguns juízos nos custou o que há de mais valioso na função de julgar: a imparcialidade. É claro que pessoas envolvidas anos a fio em um procedimento investigativo – às vezes com escutas intermináveis, ilegais em sua essência, ante o estampado desrespeito à lei de regência que apregoa o prazo de 15 dias renováveis por igual período – apreciariam ver bem sucedidos seus esforços. É desumano exigir de um indivíduo que, ao fim, julgue, imparcialmente, seu próprio trabalho. Houve uma transformação na carreira de juiz que fez surgir métodos e sistemas capazes de valorizar a eficiência a todo custo, em atropelo às garantias individuais. Prática incompatível com a difícil tarefa de julgar a vida dos outros. Terminantemente não pode ser admitida a valorização do critério de eficiência na punição rígida dos delitos, em detrimento das garantias indispensáveis à realização de um processo justo, como se essas exigências se excluíssem necessariamente e que a idéia de uma justiça sumária melhor atendesse aos objetivos perseguidos. Surgiu também um juiz enfronhado na própria investigação, que decide encastelado em seu gabinete, só ouvindo um lado durante anos, enquanto deveria, “apenas e tão-somente”, julgar a causa – trabalho já hercúleo – quando lhe é trazida ao conhecimento. A função do Ministério Público de propiciar o processamento das infrações penais é a das mais importantes, mas certamente a de guardião da lei é a que será mais exigida
pela sociedade nessa nova fase; o início da vida adulta de nossa recente democracia. Não podemos nos deixar levar por discursos maniqueístas, não há bem e nem mal em disputa. A equivocada impressão de que o combate ao crime é feito prendendo primeiro, condenando depois, desrespeitando princípios sob o argumento de que os tempos mudaram e as regras permanecem as mesmas, não passa de arremedo de justiça. Àqueles que acabam sendo absolvidos, mas já tiveram suas vidas desgraçadas pela pecha de criminosos, não lhes resta reclamar nem mesmo com o Papa. Antes de tudo, antes mesmo de querer punir qualquer delito praticado, bem como seu autor, o Estado deve ater-se à própria lei, pois, para aqueles que estão sendo submetidos a julgamentos por supostamente terem infringido a legislação, nada mais correto do que aplicar “tão-só” o que o ordenamento jurídico determina, sem abusos e sem ações precipitadas. A denominada “presunção de inocência” constitui princípio informador de todo o processo penal, concebido como instrumento de aplicação de sanções punitivas em um sistema jurídico no qual sejam respeitados, fundamentalmente, os valores inerentes à dignidade da pessoa humana. Como tal, deve servir de pressuposto e parâmetro de todas as atividades estatais concernentes à repressão criminal. Sob esse prisma, a garantia constitucional não se revela somente no momento da sentença, como expressão da máxima in dubio pro reo, mas se impõe, igualmente, como regra de tratamento do suspeito, indiciado ou acusado, que, antes da condenação final, não pode sofrer qualquer equiparação ao culpado, e, acima de tudo, indica a necessidade de se assegurar, no âmbito da justiça criminal, a igualdade do cidadão no confronto com o Estado, por meio de um processo justo, como vem afirmando a nossa Suprema Corte. Conquanto o princípio da presunção de inocência não seja, a rigor, novidade no ordenamento jurídico brasileiro – pois na vigência de texto constitucional anterior já era sustentada a compatibilidade do preceito com os direitos e garantias especificados (artigo 153, parágrafo 36, da Emenda nº 1 à Carta de 1967), sem contar ainda com a adesão do Brasil à Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, que expressamente o inclui entre os direitos fundamentais da pessoa humana – a proclamação clara e destacada feita pelos constituintes representa escolha evidente por uma concepção do processo penal em que a liberdade, a igualdade e a dignidade do ser humano são reconhecidas como valores centrais do sistema. Cumprir o que preceitua nossa Lei Maior é o primeiro e mais significativo passo para Democracia, é isso que concede a segurança jurídica necessária para que Estados possam se desenvolver, sob todos os prismas. Inspirado por JK, digo que “o otimista pode até errar, mas o pessimista já começa errando”. Quem paga a conta por esses desvios somos nós, regredindo que estamos no avanço da redemocratização do País. 2008 DEZEMBRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 49
Yuri Villacorta Escola Nacional de Magistratura
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ntre os dias 10 e 14 de dezembro, ocorreu o Encontro Nacional de Diretores de Escolas de Magistratura, realizado no Hotel Pirâmide, em Natal (RN). O diretor da Escola Nacional da Magistratura (ENM), desembargador Eladio Lecey, presidiu a mesa que deu início ao Encontro e destacou que o evento é de extrema relevância, já que proporcionará troca de experiências entre os diretores. O presidente do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte, Oswaldo Cruz, também participou da mesa e disse que o principal objetivo desses encontros é o compartilhamento de informações buscando melhorar a formação do juiz e garantir uma magistratura com excelência. A abertura contou com a palestra “Transformação do Estado e o Poder Judiciário – A importância das escolas na capacitação dos magistrados” que foi ministrada pelo professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Sérgio Guerra. Ele falou sobre os desafios enfrentados no ensino da magistratura, o uso de novas tecnologias, gastos financeiros e como o juiz precisa estar mais preparado para exercer a profissão. A programação do segundo dia do Encontro Nacional das Escolas de Magistratura começou com a palestra do ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Sidnei Beneti, que fez uma abordagem sobre as escolas de magistratura, além de demonstrar sua satisfação em participar do Encontro. Durante a palestra, Beneti falou sobre a importância das escolas que formam o futuro do Judiciário e frisou que a formação do magistrado deve ser levada muito a sério. O Ministro também comentou a ligação entre as associações de magistrados e as 50 • JUSTIÇA & CIDADANIA •DEZEMBRO 2008
escolas: “Os dois movimentos vêm a se complementar, ligados definitivamente, e têm o mesmo objetivo, que é promover o desenvolvimento do melhor serviço da magistratura, formando juízes cada vez mais aprimorados”. O Encontro teve seu momento mais importante na tarde de quinta-feira, dia 11 de dezembro. Foi a oportunidade em que os diretores das escolas puderam analisar, comentar e debater as propostas que serão entregues pela ENM para Lei Orgânica da Magistratura (Loman). Pela manhã, os diretores se dividiram em quatro grupos – estaduais, eleitorais, federais e trabalhistas – para trocar informações e formular as sugestões relativas a cada segmento. À tarde, os grupos se reuniram para comparar suas resoluções. Temas como a autonomia administrativa, o reconhecimento das escolas e de seus cursos, a escolha dos diretores e igualdades no concurso de ingresso foram assuntos abordados pelos diretores, que se mostraram motivados com a melhoria da formação e aperfeiçoamento dos magistrados. Durante o debate, o diretor da ENM, desembargador Eladio Lecey, falou sobre a satisfação de o Encontro conseguir reunir um número significante de diretores. Ele ainda se comprometeu a dar continuidade ao trabalho desenvolvido em gestões anteriores e comentou sobre o planejamento estratégico de cursos da Escola para 2009. Cursos presenciais, novos convênios internacionais, realização de cursos via satélite e temas como Direito do Consumidor, Direito Ambiental e Infância e Juventude foram alguns dos planos que o Desembargador declarou para o próximo ano.
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