ISSN 1807-779X
Edição 105 - Abril de 2009
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EDIÇÃO 105 • ABRIL de 2009 COMPROMISSO MORAL COM a mais antiga corte do país
O Descumprimento de Sentença Judicial e suas Consequências
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Foto de capa: Alziro Xavier ORPHEU SANTOS SALLES EDITOR TIAGO SANTOS SALLES DIRETOR EXECUTIVO DAVID SANTOS SALLES Diretor jurídico ERIkA BRANCO diretorA DE REDAÇÃO DIOGO TOMAZ DIAGRAMAÇÃO
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embargos de declaração: o abuso no seu exercício
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CONSELHO EDITORIAL Alvaro Mairink da Costa ANDRÉ FONTES Antonio Carlos Martins Soares Antônio souza prudente Arnaldo Esteves Lima arnaldo Lopes süssekind aurélio wander bastos Bernardo Cabral carlos antônio navega carlos ayres britTo Carlos mário Velloso CESAR ASFOR ROCHA DALMO DE ABREU DALLARI darci norte rebelo denise frossard Edson CARVALHO Vidigal eLLIS hermydio FIGUEIRA Enrique ricardo lewandowski Eros Roberto Grau Fábio de salles meirelles fernando neves Francisco Viana Francisco Peçanha Martins Frederico José Gueiros GILMAR FERREIRA mENDES Humberto Gomes de Barros Ives Gandra martins Jerson Kelman Joaquim Alves Brito josé augusto delgado JOSÉ CARLOS MURTA RIBEIRO José Eduardo carreira Alvim luis felipe Salomão Manoel CarpeNa Amorim Marco Aurélio Mello Massami Uyeda MAURICIO DINEPI maximino gonçalves fontes nEY PRADO Paulo Freitas Barata Sergio Cavalieri filho Siro Darlan Sylvio Capanema de Souza thiago ribas filho
integridade institucional em defesa da constituição
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A LIBERDADE DA IMPRENSA
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Música, sublime música
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“O estado tem que estar na frente da criminalidade”
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Justiça: Imprevisibilidade e Paradoxos
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Senadores não se entendem em relação às cotas raciais
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“O SERVIÇO DO TRANSPORTE COLETIVO É FUNDAMENTAL PARA A VIDA DOS CIDADÃOS”
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ORDEM PÚBLICA E AS MEDIDAS PROVISÓRIAS
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A FÚRIA ARRECADATÓRIA BRASILEIRA
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mandado de segurança para exame de atos judiciais
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EDITORIAL
A LIBERDADE DA IMPRENSA
“Não concordo com uma só das palavras que dizeis, mas defenderei até a morte o vosso direito de dizê-las.” Voltaire (1694/1778)
O
presente editorial, busca refletir sobre a preocupação de todo cidadão consciente dos direitos assegurados na Constituição Federal, sobre a sua liberdade e, em especial, a da
imprensa. Os tempos atuais e os direitos que advieram e foram implantados nos países democráticos, impuseram, por força do resultado das lutas libertárias em todo o universo, o respeito ao preceito da liberdade, que se tornou, pelas circunstâncias, imutável. No Brasil, a partir da proclamação da Independência, com exceção dos períodos em que o Congresso declarou os Estados de Sitio e de Guerra, e triste e infelizmente durante os anos de 1937/1945 e no período de chumbo da Ditadura Militar (1964 a 1985), o direito da liberdade de imprensa foi assegurado, inclusive com garantia dos Tribunais. Em 9 de fevereiro de 1967, foi sancionada a Lei nº 5.250, oriunda do Congresso Nacional (consentida pelos militares), que vigora até hoje, que pelos seus dispositivos constitui uma verdadeira excrescência contra a liberdade de imprensa e os jornalistas, conferindo penas até superiores à Lei de Segurança Nacional, decreto-lei nº 898, de 29 de setembro de 1969. As manifestações dos jornalistas expressadas nos jornais de todo o País, repudiando a vigente Lei de Imprensa (nº 5.250/67), motivaram os respectivos órgãos da classe, em especial a Federação dos Jornalistas Profissionais, e, principalmente, a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) — capitaneada pelo seu incansável e valoroso presidente Maurício Azedo, que, aproveitando as comemorações do centenário de sua fundação, promoveu diversas reuniões e manifestações imprecando contra a sufocante lei repressiva —, culminando com a feliz iniciativa do deputado federal Miro Teixeira, jornalista, conselheiro da ABI, autor da petição inicial da ação de arguição de descumprimento de preceito constitucional, ajuizada perante o Supremo Tribunal Federal, com relatoria
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do eminente ministro Carlos Ayres Britto. A brilhante sustentação oral de Miro Teixeira perante o Plenário da Corte em defesa do postulado merece destaque em um dos tópicos de sua oração: “A imprensa são os olhos do povo. Requeiro que desapareça a possibilidade de pena a jornalista ou responsável pela publicação sempre que houver causalidade com o direito do povo, e que possamos ter um país em que o povo possa controlar o Estado e não que o Estado possa controlar o povo, como temos hoje”. O primoroso e substancioso voto do ministro Ayres Britto, acompanhado pelo ministro Eros Grau, consagrou o princípio constitucional e resgatou o espírito da Constituição de 1988, no que se refere à liberdade de expressão, ressaltando no seu brilhante voto todos os trechos da Constituição que garantem o exercício “pleno e livre” da liberdade de expressão, e aproveitou para citar a célebre frase do ex-presidente dos Estados Unidos, Thomas Jefferson: “Se tivesse de decidir se devemos ter governo sem jornais ou jornais sem governo, eu não vacilaria um instante em preferir o último”. No seu voto, disse mais: “Em matéria de imprensa, não há espaço para o meio-termo ou a contemporização. Ou ela é inteiramente livre, ou dela já não se pode cogitar senão como jogo de aparência jurídica. É a trajetória humana, é a vida, são os fatos, o pensamento e as obras dos mais acreditados formadores de opinião que retratam sob todas as cores, luzes e contornos que a imprensa apenas meio livre é um tão arremedo de imprensa como a própria meia verdade”. É oportuno que rememoremos por incidente ao conteúdo deste editorial, a magnífica decisão proferida em defesa da liberdade da imprensa pelo ministro Peçanha Martins, quando apreciou no Superior Tribunal de Justiça, o habeas corpus requerido pelo senador Sérgio Cabral, contra ato do Ministro da Justiça que pretendia expulsar o jornalista William Larry Rohter Junior, repórter do “The New York Times”, por ter publicado que o Presidente da República Luiz Inácio Lula da
Silva era usuário de bebida alcoólica e dado à embriaguez. Por importante, transcrevemos na íntegra a decisão do referido processo, cujo resultado antecipou-se ao julgamento pelo Supremo Tribunal Federal. “HABEAS CORPUS nº 35.445 – DF (2004/0066761-3) Relator: Ministro Francisco Peçanha Martins Impetrante: Senador Sérgio Cabral Impetrado: Ministro de Estado da Justiça Paciente: William Larry Rohter Júnior Foto: Sandra Fado
DECISÃO Trata-se de habeas corpus requerido pelo senador Sérgio Cabral em favor de William Larry Rohter Junior, contra ato do ministro interino da Justiça que cancelou o visto do paciente, repórter do jornal “The New York Times”, por haver publicado matéria jornalística noticiando que o Presidente da República faria uso de bebida alcoólica. Reproduzo o texto da nota do Ministro publicada pelo jornal “O Globo” de hoje, dia 12.5.2004, transcrita às fls. 3 dos autos: “Em face da reportagem leviana, mentirosa e ofensiva à honra do Presidente da República Federativa do Brasil, com grave prejuízo à imagem do País no exterior, publicada na edição de 9 de maio passado do jornal “The New York Times”, o Ministério da Justiça considera, nos termos do artigo 26 da Lei nº 6.815, inconveniente a presença em território nacional do autor do referido texto. Nessas condições, determinou o cancelamento do visto temporário do senhor William Larry Rohter Junior”. Funda-se o requerente no art. 5º, incisos IV, IX e LII, da Constituição, pedindo seja concedida ordem liminar de habeas corpus, para suspender ‘os efeitos de ato violador da liberdade de locomoção no Brasil, a fim de fazer cessar o constrangimento ilegal praticado pela autoridade coatora’, requerendo ao final a concessão da ordem em definitivo após o trâmite legal. É o relatório. DECIDO O Brasil é um Estado Democrático de Direito e o Presidente da República contribuiu com intensa participação política para a instauração da democracia plena no País e se conduz com honra e dignidade. A imprensa é um dos pilares fundamentais da democracia e “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”, nos precisos termos do art. 5º, inciso IX, da Constituição. “A imprensa”, disse Rui Barbosa, “é a vista da nação” e “o jornalista às mais das vezes é isto; um refletor da luz que vem do público, dos sentimentos populares do meio que o cerca”. (in Laudelino Freire, Ruy, pág. 38, Ed. Casa de R.B., 1958 e Obras Completas, vol. XXIX, tomo V, pág. 186, respectivamente).
Orpheu Santos Salles, editor
O fato é que o paciente, jornalista estrangeiro, teve cancelado o visto de permanência no País, por ter assinado reportagem dita leviana, mentirosa e ofensiva à honra do Presidente da República Federativa do Brasil, publicada no “The New York Times”. Poderia o Ministro da Justiça fazê-lo? O ato de concessão ou revogação de visto de permanência no país de estrangeiro, em tese, está subordinado aos interesses nacionais (art. 3º da Lei nº 6.815/80). O visto é ato de soberania. Pergunto-me, porém, se uma vez concedido poderá ser revogado pelo fato do estrangeiro ter exercido um direito assegurado pela Constituição, qual o de externar a sua opinião no exercício de atividade jornalística, livre de quaisquer peias? Estaria tal ato administrativo a salvo do exame pelo Judiciário? Neste caso penso que não. É que no Estado Democrático de Direito não se pode submeter a liberdade às razões de conveniência ou oportunidade da Administração. E aos estrangeiros, como aos brasileiros, a Constituição assegura direitos e garantias fundamentais descritos no art. 5º e seus incisos, dentre eles avultando a liberdade de expressão. E dúvidas não pode haver quanto ao direito de livre manifestação do pensamento (inciso IV) e da liberdade de expressão da atividade de comunicação, ‘independentemente de censura ou licença’ (inciso IX). Mas dos autos só constam alegações e notícias publi cadas em jornais. Não acompanha a inicial a reprodução do ato administrativo e entendo necessário conhecer as razões que o determinaram. Urge, porém, assegurar ao paciente, cujo pleito vejo revestido da fumaça de bom direito, a plena eficácia das garantias constitucionais, pelo que lhe defiro salvoconduto até decisão do feito, nos termos do art. 201, IV, do RISTJ. 2009 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 5
Oficie-se ao Exmo. Sr. Ministro de Estado da Justiça comunicando a decisão e requisitando informações no prazo de 72 (setenta e duas) horas. Publique-se e intime-se. Brasília (DF), 13 de maio de 2004 Ministro Francisco Peçanha Martins Relator” Ainda há de se considerar e extrair do substancioso e bem posto voto do eminente ministro Carlos Ayres Britto, no seu acertado arrazoado que prima pelo absoluto primado da liberdade de imprensa, as lições deixadas no discorrer dos respectivos itens 30 e 46, ao citar o francês Aléxis Tocqueville (1805/1859): “numa democracia o modo mais eficaz de se combater os excessos de liberdade é com mais liberdade ainda”, e René Descartes (1596/1650): “a máxima de que não lhe impressionava o argumento de autoridade, mas, isto sim, a autoridade do argumento”. Também do esplendoroso voto do magnífico jurista extraímos outras preciosidades, como a do item 59: “Visto que imprensa livre e desembaraço total no desfrute das liberdades aqui exalçadas são, para a nossa Constituição, uma coisa só. Uma realidade inapartável.” E mais, item 67, fulminando a questão: “Sem maior esforço mental, por conseguinte, concluise que a lei em causa faz da liberdade de imprensa uma obra de impostura, distanciada a anos-luz da radical tutela que salta de uma Constituição apropriadamente apelidada de cidadã pelo deputado federal Ulisses Guimarães (presidente da Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988)”. A continuidade do julgamento no Supremo Tribunal Federal, dada a relevante importância que reveste a questão, deverá ser adiada por pedido de vista de outro eminente ministro para fundamentação de suas importantes razões. O resultado da causa, que afeta um dos alicerces maiores dos direitos da cidadania como assegurados na Carta Magna, trará consequentemente, até solução final da questão, outros relevantes depoimentos de eminentes membros da Suprema Corte. Dada a importância desse memorável julgamento sobre a liberdade da imprensa, a editoria da Revista publicará uma edição especialmente dedicada ao assunto, contendo desde a inicial promovida pelo jornalista e deputado federal Miro Teixeira, as sustentações orais produzidas na tribuna do STF e a compilação dos votos dos eminentes ministros do Supremo Tribunal Federal. Os jornalistas de todo o País, e até do exterior, aguardam esse resultado que, consequentemente, restabelecerá o direito impostergável assegurado pela Constituição Federal e soterrará a excrescência da Lei nº 5.250, sancionada em plena Ditadura Militar, em 9 de fevereiro de 1967, pelo presidente ditador Humberto Castelo Branco, que possibilitou nestes últimos 42 anos a instauração de processos e prisões de milhares de jornalistas, em afronta e desrespeito à liberdade da imprensa.
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Post Scriptum Homenagem póstuma a um bravo jornalista
O Editor aproveita o teor desta matéria para prestar uma derradeira homenagem ao jornalista Márcio Moreira Alves, falecido no Rio de Janeiro ao anoitecer do dia 3 de abril corrente. Nascido no Rio de Janeiro em 14 de julho de 1936, o jornalista ficou conhecido nacionalmente após um discurso pronunciado na tribuna da Câmara dos Deputados, em 2 de setembro de 1968, condenando a brutalidade das ações policiais e militares praticadas pelos vitoriosos da Revolução de 1964, sugerindo um boicote às comemorações do 7 de setembro como protesto contra o fechamento da Universidade Federal de Minas Gerais e a invasão da Universidade de Brasília. O discurso foi considerado ofensivo “aos brios das Forças Armadas”, e usado pelo Governo Militar como desculpa para a edição do Ato Institucional nº 5, em dezembro de 1968, tendo em vista que desde os primeiros dias de abril de 1964, o repórter Marcito, como era conhecido, havia percorrido o País, visitando prisões do Dops nos estados, nos navios de Marinha de Guerra e da Marinha mercante transformados em navios presídios e em quartéis das Forças Armadas, denunciando, através de reportagens e notícias publicadas no jornal “Correio da Manhã”, as brutalidades e tortura aplicadas aos presos políticos. Com as denúncias e entrevistas obtidas por Marcito na peregrinação pelo País, em delegacias de polícia e locais onde recebia informações de violências e torturas, Márcio publicou o livro “Torturas e Torturados”, onde este Editor é uma triste personagem, como relatado nas páginas 203 a 209, com as lamentáveis odisséias vividas durante seis meses no navio presídio Raul Soares, sofrendo injustiças e assistindo dramas, tragédias e sofrimentos vis aplicados com humilhação, rancor, ódio e tortura contra infelizes e desprotegidos trabalhadores sindicalizados. Márcio Moreira Alves foi um dos mais corajosos e destemidos jornalistas, e também dos primeiros repórteres a escrever e denunciar as barbaridades, atrocidades e torturas insufladas e praticadas inclusive por títeres da política beneficiados pelo golpe militar de 1964. Seu nome merece ser reverenciado pela grandeza de seu trabalho profissional como um dos grandes jornalistas brasileiros.
Orpheu Santos Salles Editor
música, sublime música
Cármine Antônio Savino Filho Desembargador do TJ/RJ
A
última semana da esplêndida série “Música no Museu”, dedicada ao repertório de piano, levou ao público, acostumado com grandes nomes da música no Brasil e no exterior, um recital da pianista Carol Murta Ribeiro, cuja virtuose eu já conhecia. O programa fechava a série pianística de 2008 e contemplava as Mazurcas de Chopin, a Suite Espanhola nº1, de Albeniz e Prelúdios, de Gershwin. À espera do início da apresentação, na companhia de um amigo na plateia, comentamos sobre a mazurca que iríamos ouvir. Lembramos que, em cada uma das sessenta composições, Chopin deixa impregnados os ritmos, as harmonias, os rasgos melódicos da música popular polonesa. Nessas peças, que revelam vários estados de ânimo, Chopin emprega recursos exóticos que impõem diversas dificuldades de execução. Carol entrou no palco, sentou-se ao piano e, como prescreveu Stanislavski, concentrou-se por alguns instantes. Em seguida, de olhos fechados, movimentou o dorso, os braços, as mãos, os dedos ágeis, e começou a tocar, abstraída do mundo em seu entorno. Mais que uma executante primorosa, Carol incorporou a personagem interpretativa. Toda a perfeição técnica, o refinamento estilístico e a elaboração harmônica do microcosmo musical de Chopin se revelaram com uma exposição completa de um estilo único de Carol. No primeiro intervalo, não resisti e comentei com meu amigo: o enlevo da pianista me fez lembrar a declaração do próprio Chopin, que certa vez escreveu ao amigo Tytus: “Quando componho, é como sonhar acordado em uma formosa noite de primavera à luz da lua... nesse instante, já não estou em mim, mas sim num espaço diferente e assombroso, como sempre, espaços imaginários...” Assim também parecia acontecer a Carol Murta Ribeiro. Ela entregava-se a um sentimento lírico que acaba por quebrantar a realidade.
A apresentação continuou com a Suite Espanhola nº 1, de Albeniz. Nascido nos Pirineus, Espanha, em meados do século XIX, famoso por suas composições de piano, converteu-se em uma das maiores figuras da história musical espanhola. Influenciado por Liszt, Debussy e Ravel, mas conservando um estilo muito pessoal, Albeniz captou os elementos da música pianística do século XVIII, mesclou-os com a música folclórica de seu país, o que contribuiu largamente para criar uma escola espanhola de música pianística. Agora, a interpretação de Carol, na força de sua execução, impunha sua presença por todos os cantos da sala. Retinha a sensibilidade de todos os presentes na reconstrução da melodia. Em seguida, chegou a vez de Gershwin, cuja música transita do clássico ao melhor jazz. Gershwin, um dos cinco “monstros sagrados” do musical americano, ao lado de Cole Porter, Jerome Kern, Irving Berlin e da dupla Rodgers/Hart, uma vez declarou: “Me agrada pensar na música como um ciência comovente”. Ciência da qual Carol deu seguidas provas de maestria ao exaltar com as mãos tudo aquilo que lhe ia à alma. O reconhecimento ao talento de Carol tem sido frequente. Ela foi a artista convidada pelo Governador Sérgio Cabral e Sra. a tocar no Palácio Laranjeiras, encerrando a temporada de Música no Museu, que completou seu 10° ano de consagração. Os amplos salões, com seus mosaicos de mármore com entalhes em ouro de 24 quilates, eram o décor mais que perfeito para ecoar os acordes de Bach e Mozart, pela magia das mãos talentosas de Carol. Ao se programar a lista de piano, sopro, canto e percussão para a temporada de 2009 da consagrada Música no Museu, desta vez por meio de consulta popular, o nome de Carol Murta Ribeiro foi um dos mais votados. Assim, teremos o gosto de ouvi-la outra vez.
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“O estado tem que estar na frente da criminalidade”
À
frente da Procuradoria-Geral de Justiça do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro há pouco mais de três meses, Cláudio Soares Lopes realizou mudanças consideráveis na estrutura da Instituição, como a implantação das Promotorias de Saúde, de Educação e de Execução de Medidas Socioeducativas de Menores Infratores e a criação do Núcleo de Combate ao Crime Organizado e Atividades Ilícitas. “Vamos reestruturar também, a Coordenadoria de Segurança e Inteligência, o braço operacional do MP. Em breve, a sociedade vai perceber uma mudança radical no combate a essas práticas”, disse o Procurador-Geral. Entre as iniciativas de sua gestão pode ser citada ainda a criação da Subprocuradoria de Atribuição Originária Institucional e Judicial, responsável, além de outras atribuições, pela atuação contra os crimes praticados por agentes políticos e pela apuração da improbidade administrativa de algumas autoridades, o que, segundo as palavras do Procurador, “é um avanço significativo para a sociedade e para o regime democrático”. Buscando como prioridades a aproximação do MP da sociedade, o combate ao crime organizado e o aperfeiçoamento da atuação dos membros e servidores do Ministério Público, a gestão de Cláudio Soares Lopes, durante o biênio 2009-2011, certamente trará significativos avanços ao Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro.
e, por outro lado, se sentir seguro também. Que ações o senhor pretende implementar nesses dois sentidos? Cláudio Soares Lopes – É simples, basta deixar as portas da Instituição abertas. Junto a isso, é preciso dar atenção a todo tipo de denúncia. Para tanto, precisamos divulgar mais o serviço de Ouvidoria, principalmente o telefone 127, um canal rápido e fácil para ser acessado pela população. E, por meio desse serviço, poderemos também informar melhor sobre nossas atribuições. Para ampliar a nossa atuação junto às camadas populares, lançamos o MP Comunitário, projeto que vai nos colocar dentro de algumas comunidades. Vamos criar também a Ouvidoria Itinerante, que circulará por locais de grandes concentrações.
Justiça & Cidadania – O senhor enfatiza sempre a necessidade de aproximar mais o MP da sociedade. Para isso, o cidadão precisa conhecer melhor o papel da Instituição
JC – É sabido que a atual Constituição Federal ampliou, e muito, as atribuições do Ministério Público. Em recente artigo publicado na imprensa, o senhor defendeu a elaboração
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JC – Em seu discurso de posse, o senhor ressaltou que é hora de desafios, para possibilitar a realização dos objetivos do MP. Quais são esses desafios e que mudanças a população já pode contar? CL – Foram implantadas recentemente as inéditas Promotorias de Saúde, de Educação e de Execução de Medidas Socioeducativas de Menores Infratores. Todos esses órgãos são importantes aliados da população. Por exemplo, em caso de epidemia de dengue, já há um Promotor específico para adotar medidas preventivas. Isso, por outro lado, é um desafio para a administração. Precisamos preparar o órgão para essas e outras atribuições que virão.
“Para ampliar a nossa atuação junto às camadas populares lançamos o MP Comunitário, projeto que vai nos colocar dentro de algumas comunidades.”
de um plano de gestão estratégico de longo prazo, para atender a essas funções. Quais as bases deste plano e como torná-lo realidade? CL – Temos que centrar o foco na atividade-fim, criando metas e estabelecendo prioridades de atuação ministerial. Evidentemente, tudo isto a partir de uma ampla discussão com toda a classe. Estabelecidas as metas, partiremos para o monitoramento constante dos resultados. Assim, alcançaremos metas e objetivos bem definidos, possibilitando aos Promotores e Procuradores atingir a principal finalidade de nosso trabalho, que é a efetivação dos direitos fundamentais e a proteção da dignidade. JC – O senhor está implantando uma nova dinâmica, não só na administração, mas na própria atuação do Ministério Público. Como pretende adequar seus Membros e Servidores a esses novos parâmetros? CL – A chave é a capacitação dos servidores e, também, dos Membros. Ela é corolário da necessidade de permanente modernização. A Administração Pública, de um modo geral, também precisa manter-se atualizada nas inovações tecnológicas e administrativas. Neste momento de globalização e de competição internacional, o Estado precisa ser um fomentador do desenvolvimento, e não, um peso para as empresas e a sociedade. Ele precisa atender as demandas sociais, da maneira mais eficiente possível. JC – Vivemos na era da tecnologia digital. Ela trouxe, também, uma nova gama de crimes, que ainda desafiam a Polícia e a Justiça. Como o MP está se preparando para
Foto: Alziro Xavier
Procurador-Geral de Justiça, Cláudio Soares Lopes
enfrentar os criminosos que usam o mouse como arma? CL – Precisamos acessar o conhecimento, onde ele estiver. Já no primeiro mês de nossa gestão, oferecemos dois cursos para os Promotores e Procuradores, resultado de parcerias com órgãos de segurança americanos e daqui mesmo do Brasil. O curso “Crimes Cibernéticos e Propriedade Imaterial: Computadores, Perícias e Internet”, um convênio do MP com a Embaixada dos EUA, teve a participação de 200 autoridades. Muitos outros serão oferecidos em breve. JC – Qual a importância da sua proposta de dotar as Promotorias de Justiça de bacharéis de Direito para auxiliar o trabalho de seus titulares? CL – Existem tarefas que podem ser supervisionadas pelos Promotores de Justiça. Isto dará maior agilidade ao trabalho, pois permitirá racionalizar a atuação das Promotorias de Justiça, subtraindo do agente político as tarefas rotineiras do cotidiano, permitindo, assim, maior disponibilidade para o enfrentamento das questões de relevância institucional, cada vez mais crescentes. JC – Outra prioridade enfatizada pelo senhor é o combate ao crime organizado, entendido como o tráfico de drogas e de armas, as milícias e a corrupção. É possível aumentar a atuação do MP nesta área ou isso depende da cooperação com outras esferas da administração e com órgãos de segurança dos Estados e da União? CL – Acabamos de criar o Núcleo de Combate ao Crime Organizado e Atividades Ilícitas, incluindo neste conceito as milícias e as atividades criminosas especializadas. Vamos 2009 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 9
Foto: Alziro Xavier
Procurador-Geral de Justiça, Cláudio Soares Lopes
reestruturar, também, a Coordenadoria de Segurança e Inteligência, o braço operacional do MP. Em breve, a sociedade vai perceber uma mudança radical no combate a essas práticas. O Estado tem de estar na frente da criminalidade, para melhor combatê-la. JC – O senhor criou uma Subprocuradoria de Atribuição Originária Institucional e Judicial. Nós sabemos que o MP investiga e denuncia, mas quem pune é o Judiciário. Quais as atribuições dessa Subprocuradoria e como ela pode contribuir para garantir a efetiva aplicação da lei? CL – Entre as suas atribuições está a de atuar contra os crimes praticados por determinados agentes políticos, que gozam de garantias e prerrogativas que podem levar à impunidade. Há, também, atribuição para apurar a improbidade administrativa de algumas autoridades. É um avanço significativo para a sociedade e para o regime democrático. JC – O MP do Rio de Janeiro já tem um órgão que atua no combate à sonegação fiscal, e sua ação vem resultando no aumento da arrecadação. É possível aperfeiçoar ainda mais a atuação nesta área? CL – Além de continuarmos atuando na fiscalização e na repressão à evasão fiscal no Estado, pretendemos ampliar esse trabalho no âmbito Municipal, também por meio de novos convênios. JC – A população, de modo geral, está recorrendo mais à Justiça. Além disso, o Judiciário está se modernizando rapidamente. Tudo isso gera um aumento no número de 10 • JUSTIÇA & CIDADANIA • ABRIL 2009
processos e, também, na movimentação deles. Em termos de infraestrutura, os Promotores e Procuradores de Justiça estão conseguindo acompanhar esse crescimento? O que pode ser melhorado para o trabalho deles? CL – Além de pretendermos dotar todos os órgãos de execução de primeiro grau de um profissional da área jurídica para o assessoramento no exercício das funções, damos continuidade ao processo de reengenharia institucional, com a criação e desmembramento de órgãos. Estimulamos, também, a atuação em grupo (forças-tarefas), por tempo certo e com finalidade determinada, nas diversas áreas de atuação em que haja procedimentos relevantes ou complexos, desde que com a anuência do Promotor natural. JC – O Ministério Público tem um grupo de policiais (civis, militares e bombeiros), o GAP, que presta auxílio permanente aos Promotores. O senhor falou, em sua plataforma, em trazer mais agentes qualificados de outros órgãos. Como vencer determinada resistência da sociedade em relação à transferência de policiais de seus órgãos de origem? CL – A resistência não é bem da sociedade civil, mas, sim, de certos setores políticos. No caso do Rio de Janeiro, há um projeto de lei tramitando na Assembleia, prevendo a retirada dos policiais cedidos ao MP e a outros órgãos. Por sua vez, o Governador baixou um decreto, condicionando a permanência dos policiais cedidos ao pagamento de seus salários. Para demonstrar a necessidade da permanência deles no MP, vamos arcar com esse custo, sem maiores problemas. Evidentemente, será o momento
de fazer uma reestruturação do GAP, que, segundo nossa visão, deve ter policiais civis, militares e federais. Todos, com suas experiências, contribuirão muito para o MP. É fundamental, para a sociedade, que o Ministério Público tenha esses policiais à sua disposição, não só para a realização de diligências investigatórias que são realizadas no âmbito do MP, essenciais para a apuração de certos crimes, principalmente quando envolvem policiais e alguns agentes públicos, mas, também, para dar suporte às Promotorias do Idoso, Infância e Tutela Coletiva, considerando que muitas diligências nessas áreas são realizadas em locais perigosos e, portanto, só podem ser realizadas com esse apoio. JC – Voltando ao crime organizado, o senhor afirmou recentemente, em uma entrevista, que o Rio está a um passo da Colômbia, em termos de violência. Como o MP pode ajudar a aumentar essa distância? CL – Investindo em inteligência e capacitação dos Membros e servidores que atuam nessa área e no treinamento dos policiais que atuam junto ao MP e nos demais organismos de apoio, como peritos. Fundamental, ainda, incrementar o número de Recursos Constitucionais em Brasília, a fim de tentar reverter algumas decisões desfavoráveis que ocorrem no Tribunal de nosso Estado. Além disso, estimular a combatividade de Procuradores e Promotores de Justiça, visando a atingir novos parâmetros institucionais e, consequentemente, protegendo a sociedade, ou seja, em uma visão sistêmica, em que cada órgão da Justiça tem sua função bem definida, fazendo, assim, a parte que toca ao Parquet.”
“Estimulamos também a atuação em grupo (forças-tarefas), por tempo certo e com finalidade determinada, nas diversas áreas de atuação em que haja procedimentos relevantes ou complexos, desde que com a anuência do Promotor natural.”
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Justiça: Imprevisibilidade e Paradoxos
Eliseu Fernandes Desembargador do TJ/RO
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osso sistema jurídico moderno, no dizer de Mauro Capelletti, sob qualquer aspecto, não está imune à crítica, e, por isso, é necessário saber a que preço e a benefício de quem funciona. O mestre italiano externou certo incômodo com o que chamou de invasão sem precedentes dos domínios do Direito por sociólogos, antropólogos, cientistas políticos, economistas e psicólogos, dentre outros. Asseverou, contudo, não pretender opor-se a essa invasão, mas que deveríamos respeitar suas opiniões, reagindo a elas de forma criativa. Por isso, a par do funcionamento do sistema jurídico, poderíamos ter tais críticos, oriundos de outras ciências, como aliados na luta por um projeto de efetivo acesso à Justiça. Salienta ser difícil a definição, mas que se deve compreender na expressão “acesso à Justiça” a postura de duas finalidades básicas do sistema jurídico posto pelo aparelho estatal à disposição dos cidadãos, de forma acessível a todos. Ao que se depreende de sua assertiva, Capelletti pretendeu estabelecer a compreensão da efetiva possibilidade de qualquer cidadão postular em juízo, sem dificuldade, e obter a resposta do pedido em tempo razoável e com deliberação eficiente, este, aliás, princípio constitucional inerente ao serviço público. É preciso salientar que essa reflexão foi externada pelo eminente jurista italiano antes da criação dos juizados especiais no Brasil, idealizados e postos à disposição dos cidadãos com a finalidade de simplificar e facilitar o acesso aos serviços públicos da Justiça. Contudo, parece-me ainda muito atual sua angústia. 12 • JUSTIÇA & CIDADANIA • ABRIL 2009
É que o Poder Judiciário, com seu sectário formalismo, de regra necessário, mas às vezes excessivo, mantém-se, como sói acontecer no serviço público, com deficiência, conquanto o clamor da necessidade de vazão à demanda reprimida, que se avoluma nos escaninhos do Judiciário, inclusive dos juizados especiais que se veem descaracterizados por não conseguir cumprir a contento a finalidade a que foram idealizados. Em decorrência, não é raro verem-se casos cuja solução não demandaria mais que 30 dias com audiências agendadas para cerca de um ano. O Código de Processo Civil, como a Constituição, se transforma “em colcha de retalhos”, sem apresentar, a meu ver, efetivamente, uma solução insofismável à eficiência da provisão jurisdicional. A bem dizer, a intenção tem sido das melhores, isto é, diminuir a burocracia do sistema processual e melhor concretizar a resposta por um serviço de efetivo resultado da justiça; contudo, parece prevalecer a máxima de que o homem não confia no homem, e, por isso, o processo precisa passar por três juízos diferentes para se ter decisão judicial com eficácia definitiva. A moderna legislação modificou parte do processo, mas preservaram-se canais de subterfúgio e recursos intermináveis das decisões do condutor dele. Nesse contexto, temos o exemplo do agravo de instrumento, cuja interposição foi retirada do primeiro grau a se fazer diretamente nos tribunais. No entanto, estabeleceu-se que o
Foto: Luiz Paulo - CCOM/TJ/RO
agravante deverá informar ao juízo da causa acerca do recurso, juntando, perante ele, cópia da petição; poderá o relator ao recurso negar seguimento quando for manifestamente inadmissível ou contrariar a jurisprudência dominante; poderá convertê-lo em retido, cabendo, dessa decisão, agravo interno; se o relator não o admitir ou negar-lhe seguimento, mandará o agravo à retenção nos autos da causa. Há quem entenda, contudo, caber impugnação a essa decisão por mandado de segurança. Devo dizer que já vi concessão de mandado de Segurança no tribunal contra decisão recorrível, a fim de determinar ao relator que dê seguimento a agravo que extinguira por sua manifesta improcedência, o qual, a final, no julgamento perante o colegiado, não fora sequer conhecido, pelos mesmos fundamentos da decisão monocrática impugnada. Sim. A parte pode ainda interpor recurso especial da decisão final do agravo de instrumento perante o Presidente do Tribunal, que, se o admitir, remetê-lo-á ao Superior Tribunal de Justiça, que, bem ou mal, poderá dar-lhe provimento, cabendo, dessa decisão, embargos de declaração, e, em seguida, poder-se-ão eventualmente interpor embargos infringentes, não estando de tudo afastada a hipótese de novos embargos de declaração sobre essa última decisão. Então, tudo recomeçará com nova possibilidade de retorno do processo à instância superior, agora já em razão do mérito da causa, sem embargo da hipótese de suspensão do processo se houver multiplicidade de recursos; isto é, se
possuírem idêntica fundamentação em questão de direito, pendente no Superior Tribunal, a teor do artigo 543 CPC, malgrado a inoportuna inovação inserida, no seu § 4º, pela Lei nº 11.672/08. É de se notar que, a um só tempo, a lei processual civil reformulou o processamento do agravo, com vistas não só a imprimir maior celeridade, mas, sobremodo, no intuito de reduzir o acúmulo de recursos impertinentes nos tribunais. Todavia, o que se tem visto é a pouca utilização das facilidades trazidas pela lei processual tanto quanto sua subversão, muitas vezes tributada à mera vaidade, a exemplo das decisões reiteradas que serviriam ao fim de propiciar o julgamento monocrático, mas que têm oferecido resistência a alguns relatores, à conta da possibilidade de impugnação por agravo interno e regimental. Com efeito, penso haver-se estabelecido certa perplexidade em face da incerteza do resultado, que perdura até o fim da maratona do processo, motivando, por isso, dúvidas de que efetivamente houve eficácia nas alterações do Código de Processo Civil. Referi-me especialmente ao agravo de instrumento, que deveria ter solução em 30 dias. Decerto não se há de negar algum progresso nessas alterações da lei processual, porém muito pouco significativas, ao fim do princípio da eficiência do serviço público da Justiça. Disso decorre que, malgrado a boa intenção, tais alterações ainda não desvendaram o enigma dos entraves da Justiça e 2009 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 13
sua ontológica morosidade, principal causa ou síndrome da presunção de impunidade, quando se lida, no processo civil especialmente, com as ações civis públicas, e, no criminal, com os crimes de corrupção, improbidade, etc.. Em verdade, no processo penal, há um despautério inaceitável, sem embargo de importantes criações da jurisprudência em relação à concepção de justiça. É velada a tendência excessiva de se construírem teses ou fundamentos venturosos com certo pretexto, a fim de reconhecer direitos à pessoa do delinquente, à conta do seu status social, em detrimento da sociedade vítima, postura que estimula recursos, habeas corpus e subterfúgios, que sugerem expedientes insólitos, tudo em nome da sectária vulgarização do princípio da presunção de inocência, a que se dá prioridade em detrimento de outros princípios constitucionais relevantes e de abrangência social. A esse fim, tem-se proporcionado ímpeto à delinquência. Veem-se então decisões de instâncias superiores, em determinadas circunstâncias, causando verdadeira imolação à eficácia e ao prestígio das instâncias aquém. Ora, não há razoabilidade em fazer-se tábula rasa do resultado de processo, no qual se efetivou cuidadosa instrução, sob a concretização do juízo natural, com a produção de prova necessária sob o contraditório e a ampla defesa; sentença exarada sob o eco da verdade real dos fatos, devidamente reexaminada em recurso perante o Tribunal de apelação, que a mantém, reconhecendo provadas a autoria, a materialidade, e bem aplicada a dosagem da pena. No entanto, não se pode executar a sentença por se presumir inocente o réu, conquanto julgado mediante o devido processo legal em duas instâncias. É um paradoxo dantesco. Em verdade, em tais circunstâncias, o que se caracteriza é a presunção de culpa; pois, se houve a celebração do rito e procedimento do devido processo legal, com ampla defesa, julgamento em duas instâncias, a presunção só pode ser de culpa, por tornar-se juris tantum a inocência e remota a possibilidade de reforma da decisão. Decerto, não desconheço ser a presunção de inocência um princípio constitucional de regra, mas toda regra tem exceções e deve ser examinada à luz de suas circunstâncias. Não quero, com isso, anatematizar o princípio da presunção de inocência, mas impõe-se a advertência de não ser razoável blindá-lo como conceito sectário, sobremodo no confronto com outros princípios constitucionais de igual ou maior relevância, como v.g. o da moralidade, na concepção pública. Disso decorre que tais questões fomentam o anseio por uma Justiça sem adjetivos. E se infere que o acesso à Justiça não se resume só à disponibilidade e à facilitação do ingresso do pedido em juízo, mas, sim, à certeza da finalização do processo com o devido respeito à dignidade do cidadão. Isto é, com a obtenção de uma resposta ágil e eficiente. Saliento, a bem da verdade, que não estou a maldizer o processo como instrumento de ordem constitucional, por meio do qual se garante o contraditório e a plena defesa. Compreendo o processo como instrumento de garantias 14 • JUSTIÇA & CIDADANIA • ABRIL 2009
constitucionais e, se conduzido com eficiência, com uma tramitação segura de modo a evitar impugnação que resulte nulidades e recursos protelatórios, observando seus restritos fins, têm-se aí o vetor fundamental à efetividade da prestação jurisdicional e a celebração do acesso à Justiça. O desembargador Cândido Dinamarco, quando escreveu “A Instrumentalidade do Processo”, lembrou-nos que o sistema processual, como instrumento, guarda perene correspondência com a ordem constitucional a que serve, inclusive acompanhando-a nas mutações por que passa. Contudo, nessa concepção, é imperativo estabelecerem-se objetivos e compromisso com a eficiência da provisão jurisdicional, princípio constitucional, de forma a administrar, dentre outras providências, a adoção de uma política judiciária que priorize o julgamento dos processos que efetivamente reclamem urgência e preferência, dentre os quais, necessariamente devem constar aqueles de maior repercussão, como os crimes de corrupção e improbidade administrativa, que, a meu juízo, têm caráter hediondo, e as ações civis públicas, por conterem relevante interesse público. Hans Kelsen, ao escrever “O Problema da Justiça”, incomodado por não encontrar resposta satisfatória inerente à teoria pura do Direito, a fim de responder a certas questões próprias à condição da existência social do indivíduo, afirmou: “Abri este ensaio com a pergunta: o que é a justiça? Agora, chegando ao fim, percebo nitidamente que não respondi. Não sei, nem posso dizer o que é a justiça, a justiça absoluta que a humanidade está buscando”. Pois bem. A par dessa concepção, penso, despreten siosamente, que a justiça absoluta dá-se quando vem a tempo, com eficácia e na medida do direito de cada um. Contudo, isso é o ideal que se persegue e cuja realização depende da compreensão, pelo Estado brasileiro, de que o serviço da justiça é essencial, a fim de impulsionar a adoção de reforma da percepção dos conceitos éticos e morais, perpassando pela reformulação dos valores da sociedade, de onde se originam seus representantes e servidores públicos, inclusive os juízes. Isso se impõe até para a plena aceitação de a decisão judicial constituir a vontade do Estado de Direito e é, por si, inegociável. Determinados réus, que gozam do injustificado privilégio de foro, lançam mão da prerrogativa como se fosse direito à impunidade e, quase sempre, se dizem vítimas de perseguição. Ora, não há como se fazer cumprir os verdadeiros fins da justiça, sem tributar-lhe a relevância devida no contexto do Estado de Direito, na medida em que essa seja conduzida com dignidade, de forma a merecer o respeito que se lhe é devido, não permitindo filigranas que levem a beneficiar espertos, oportunistas e incautos. Por isso, impõe-se ao Judiciário defender sua dignidade com independência, inclusive nos casos excepcionais, substituindo o Legislativo em suas omissões por força do princípio dos poderes implícitos, que lhe outorga a ordem constitucional. Isto é, demarcar sua independência não só na operação de seus fins, mas também no âmbito de suas
“Outro incômodo que aniquila a prosperidade do campo da justiça é o chamado academicismo, muitas vezes reflexo do ego vaidoso que necessita expressar a falsa cultura, de par com a prolixidade que transforma o singelo suficiente em complexo ineficiente.”
finanças, a fim de que se lhe aprovem condições logísticas e materiais a permitir-lhe dar eficiência a seus serviços e fazer cumprir incontinenti suas decisões. Douglass North disse que: “o desenvolvimento econômico, social e político dos países ocorre em conformidade com o desempenho de suas instituições. Quanto mais sólidas mais desenvolvidas, pois a previsibilidade jurídica e a existência do Estado de Direito são fundamentais para o crescimento da nação sob todos os pontos de vista”. Pois bem. Em nosso país, não se pode negar a imprevisibilidade das decisões da Justiça por sua morosidade motivada por diversas circunstâncias. Dentre elas, não se pode ignorar a relacionada à vaidade humana da pessoa do juiz que se revela, infelizmente. E não é privilégio dos magistrados de primeiro grau de jurisdição, alcançando os tribunais, inclusive. Primeiro tem-se o mal endêmico do começo da carreira, que se convencionou chamar “juizite”. Esse sintoma, quando ataca, e às vezes perdura durante toda a carreira, leva a prestação jurisdicional a uma “síncope”, ao sabor da vaidade, da arrogância, da falta de bom senso, da falta de vocação; inclusive, percebe-se que determinados indivíduos passam a exercer a função como simples burocratas, trabalhando tão-só pelo subsídio e pelo status do poder. Some-se a isso o tormento da antipatia ou animosidade que, às vezes, se dá entre magistrado e advogado, a intolerância e a insensibilidade com a angústia da parte. Por isso, se protela um simples despacho ou decisão, e o processo se arrasta, em repouso, nas gavetas. Pode ocorrer de se ver pedido de liminar demonstrando
evidência de lesão a direito ser indeferido, ou, em situações proporcionalmente inversas, à conta de não se diferenciar a impessoalidade — tanto quanto da confusão entre o dever de urbanidade com gentileza —, liminares impertinentes, às vezes, são deferidas sem um vislumbre sequer dos requisitos essencialmente necessários à pretensão, com um lastro de consequência inevitável, motivando mais um recurso e protelação. Outro incômodo que aniquila a prosperidade do campo da justiça é o chamado academicismo, muitas vezes reflexo do ego vaidoso que necessita expressar a falsa cultura, de par com a prolixidade que transforma o singelo suficiente em complexo ineficiente; sim, porque, para alguns, o operador do Direito precisa ser prolixo, rebuscado, sofista, hermético e ambíguo. Thomas Huxlei disse que a grande finalidade da vida não é o conhecimento, mas a ação. É preciso enfatizar o estágio de degradação em que vive a sociedade, exaltando inversão dos valores ético-morais, que são substituídos por novos códigos de conduta nem sempre dignos. Com efeito, o Judiciário, embora não devesse, às vezes também se vê às voltas com tais percalços, que violam a fidelidade ao dever de ofício na gestão pública. Quando se tem determinadas posturas contrárias ao perfil necessário à figura do magistrado, como a dificuldade de separar ato impessoal do interesse pessoal, tal comportamento inconveniente cria incerteza jurídica. É preciso, então, combater o espírito de corpus assim como controlar as vaidades no âmbito da instituição e realçar seus desígnios como tutora do equilíbrio das relações 2009 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 15
“Se o serviço público da justiça é, para quem necessita dela, tão relevante quanto o da saúde, é preciso compatibilizar e equacionar, em definitivo, sua situação orçamentária e financeira.”
da sociedade, porto em que se atracam as angústias e a esperança do cidadão. Por isso há de se reverenciar a moral e a ética, relegadas, nos últimos tempos, a uma concepção de somenos importância. Ressalto, no entanto, que, embora pontualmente, se venha constatando tal comportamento, não se pode dizer que seja reflexo da postura adotada pela maioria, e tampouco que integre o perfil de circunspecção, próprio daquele que se encontra investido do poder de dizer o direito e realizar uma provisão jurisdicional inquestionável e ansiada por todos. É preciso mais cautela com as divergências nos tribunais, que, por vezes, podem representar o mero prazer de dissentir, tanto quanto com pedidos de vista impertinentes, feitos, às vezes, tão-só com o intento de rebuscar, com cantilenas, a óbvia concordância com o relator, causando atraso no andamento do processo, quando se poderia fazer mera declaração de voto, sem comprometer a solução de continuidade de seu curso, em reverência à celeridade e efetividade. Decerto não estou a generalizar. Bem se sabe haver divergências que dão o necessário rumo e juízo consistente ao julgamento e acabam vencedoras. Há pedidos de vista que constroem o verdadeiro caminho da decisão. O que não se pode aceitar é o canto da vaidade, o intento desprezível, prejudicial à dinâmica do processo. Não se justificam, a meu ver, determinadas reformas de decisões nos Tribunais, às vezes à conta de questões processuais sem relevância por ausência de prejuízo ou por entendimento diverso, nem sempre coerente e razoável, que 16 • JUSTIÇA & CIDADANIA • ABRIL 2009
parecem ao só fim de, por mero prazer, desconstituir decisão do juízo aquém. Saliento, ademais, o caso do abominável estilo “rococó”, com floreios de teses, argumentos e citações verdadeiramente inúteis frente à singela evidência de se dizer o direito com eficiência e efetividade, parecendo evidenciar intenção de exibir conhecimento com argumento nem sempre auspicioso e relevante. Com efeito, é preciso repensar a verdadeira postura da função judicante, a fim de que haja maior previsibilidade e a instituição não permaneça depositária insensível de assombroso acervo de processos, dentre os quais aqueles decorrentes da corrupção e da improbidade, por anos a fio sem julgamento; tampouco que se transforme, por sua morosidade, em verdadeiro salvo-conduto a delinquentes, permitindo-lhes a permanência ou renovação de mandatos à frente de seus cargos nos negócios públicos, como se se tratasse de interesse particular, às vezes agindo com mais requinte, malgrado a possibilidade de o retardamento do curso da prestação jurisdicional implicar perda do poder de punir do Estado, pela prescrição. E, assim, tais indivíduos vão construindo seus “castelos” sobre o olhar compassivo da Justiça lenta. Lembro ainda não ser o descaminho privilégio só de outras hastes públicas, pois tem atingido também o âmbito do Judiciário, como se têm noticiado alguns casos que põem em dúvida a imparcialidade, com venda de sentenças, liminares, facilitação por advocacia administrativa, dentre outras mazelas. Tal comportamento é incompatível com os desígnios da Magistratura, posturas que precisam ser extirpadas por rigorosa investigação, com isenção e sem espírito de corpus, a fim de que a instituição, já marcada pela pecha da morosidade, não ganhe também o atributo do descrédito, passando a ser alvo de desmoralização. Se o serviço público da justiça é, para quem necessita dela, tão relevante quanto o da saúde, é preciso compatibilizar e equacionar, em definitivo, sua situação orçamentária e financeira, tormento constante em decorrência da incompreensão ou ignorância daqueles que têm o dever de municiá-la, a fim de viabilizar as condições necessárias a seu razoável funcionamento, com a prestação jurisdicional, em tempo e celeridade que se espera. Sem dúvida essa é uma outra questão a contribuir também para o emperramento dos serviços da Justiça, sobremodo nos Estados, e que precisa ser resolvida de modo a não deixar, como se vê acontecer, a Instituição, quase sempre, refém do Executivo. Em conclusão, há de se salientar que a ordem jurídica estatal estabelecida pela Constituição necessita de ampla previsão, pois sua função social consiste em determinar ou direcionar o processo de criação das normas. Assim se a função da jurisdição é constitutiva, a sentença judicial cria uma nova relação, concretizando o fato, situação desejada pelo legislador, portanto deve construir de forma eficiente a realização dos fins sociais do Estado.
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compromisso moral com a mais antiga corte do país
Discurso proferido pelo Ministro Carlos Alberto Marques Soares na cerimônia em que tomou posse como Presidente do Superior Tribunal Militar
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Minhas Senhoras e Meus Senhores, hoje, certamente, é o dia mais importante da minha vida profissional, em que sou conduzido ao ápice da minha carreira, graças à confiança de Vossas Excelências, senhores Ministros desta Augusta Corte, a mais antiga do País, em face do tradicional respeito ao princípio da antiguidade e à saudável alternância dos dirigentes e das instituições que compõem o escabinato do Superior Tribunal Militar. Como Ministro, sou o tricentésimo quinto (305º) e, ao assumir, no dia de hoje, a Presidência, sou o quinquagésimo sexto (56º) desta bicentenária Corte, constituída em 1º de abril de 1808 e que teve, como seus primeiros Presidentes, D. João VI, D. Pedro I, D. Pedro II, Marechal Deodoro da Fonseca e Marechal Floriano Peixoto. Numa reflexão sobre esse momento mágico que ora vivo, veio à minha mente o pensamento que estava à mesa do Presidente Kennedy, na Casa Branca: “Deus! Como é infinito o Seu oceano. Como é pequeno o meu barco”. Pesa sob a administração que ora se inicia imensa responsabilidade, por ser o primeiro ministro oriundo da Magistratura de carreira a assumir a Presidência e por um mandato de dois anos. Os olhos de meus eminentes colegas da Magistratura estarão sempre voltados para a nossa administração, sabedores dos meus ideais de juiz, voltados para o autêntico
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profissionalismo dos magistrados com o seu aprimoramento constante, o profundo respeito ao ser humano que julgamos, a conduta ética permanente e a busca pela agilidade processual, sem inovações que desacreditem o julgador. Saibam os eminentes pares e colegas magistrados que saberei ouvi-los e, nas matérias institucionais, tudo farei em harmonia com o Plenário, buscando manter as tradições da nossa bicentenária Corte, sem prejuízo de atingir a sua modernização, acompanhando as alterações da legislação penal e processual ordinária, no que couber. Assumo nesta data, o compromisso moral de jamais deixar sem resposta opiniões e reportagens de membros de outros poderes e de instituições veiculadas na mídia que venham fazer avaliações e comentários preconcebidos e depreciativos à nossa Instituição, alheios aos verdadeiros objetivos da Justiça Militar da União, mensurando o nosso pouco acervo processual com a relevância da nossa Instituição bicentenária, que tudo faremos para mantê-lo nos níveis atuais. Quando tomei posse como Ministro desta Corte, em 1998, deixei consignado que, na nossa Justiça Militar, toda peculiar na sua organização e funcionamento, temos a carreira dos magistrados que se inicia como Juiz-Auditor Substituto e se prolonga por mais de dez anos, até serem promovidos a Juiz-Auditor. Por sua vez, este se constitui no fim da carreira, por estar tolhida pela composição do Tribunal, em face da
injusta oferta de uma única vaga para Juiz. Poucos sabem das dificuldades desses magistrados que, às vezes, começam suas funções em Bagé ou Manaus, quando suas raízes familiares são do Rio de Janeiro, São Paulo, Recife, etc., e vice-versa, e passam parte da vida judicante buscando remoções até poder chegar mais perto do seu Estado natal. Tudo isso num país continental como o nosso. É a única carreira de Juiz na qual o magistrado se submete a tais dificuldades. Além da pouca autonomia de decisões monocráticas, em face da atual interpretação do Tribunal, à luz da nossa Lei de Organização Judiciária Militar, em evidente conflito com o Judiciário de hoje. Na forma de julgar somos a justiça viva, em todos os seus elementos, pois todas as audiências são públicas e os julgamentos, discussões das matérias de fato e de direito e os votos são tratados e tomados na presença do acusado, dos advogados, dos procuradores e de toda a assistência. Os juízes-auditores têm que explicar a matéria de direito aos quatro membros do Conselho na presença das partes, sem poderem se reunir em salas secretas para deliberar, como ocorria outrora, e tendo como Presidente dos Conselhos um não magistrado. Os que criticam a nossa justiça somente o fazem porque desconhecem a sua organização e o seu funcionamento. A Justiça Militar, como um dos órgãos do Poder
Judiciário, é constantemente alvo de investida dos mesmos que o fazem quando se aproxima a reforma constitucional, como já o fizeram na Assembleia Nacional Constituinte, com o objetivo de extinguir a Justiça mais antiga do Brasil. Alguns deles só conhecem a Justiça Militar por ouvir dizer e, assim mesmo, sobre época que nada tem a ver com o Brasil de hoje. O mais lamentável é que autoridades que deveriam conhecer com profundidade os órgãos do Poder Judiciário, quando buscamos modernizar a Justiça Militar, “opinam”, avaliando as alterações propostas, comparando o nosso acervo processual com o dos demais tribunais. Temos absoluta certeza de que sequer sabem como se processa a instrução criminal na Justiça Militar da União. A Justiça, que está repleta de processos, merece ser analisada com profundidade, porque ela é o efeito e não a causa. O mestre Ihering volta a sentenciar: “a força de um povo equivale à força do seu sentimento de justiça. O resguardo do sentimento nacional de justiça representa a melhor defesa de um Estado sadio e vigoroso”. Nesse sentido, muito tem sido feito pela Associação dos Magistrados Brasileiros com pesquisas de opiniões, promovendo congressos e encontros para se discutir o futuro do Poder Judiciário e o aprimoramento dos juízes em todo Brasil. De igual forma, o Supremo Tribunal Federal, o Superior Tribunal de Justiça e o Tribunal Superior do Trabalho têm discutido e aprimorado todo o sistema Judiciário brasileiro. Posso afirmar, sem sombra de dúvidas, conhecendo os atuais dirigentes da cúpula do Poder Judiciário, que, dentro destes próximos dois anos, o Poder Judiciário será outro, muito próximo do almejado por todos nós. Estamos crescendo perante as demais nações e saíremos dessa crise financeira mundial em situação muito mais positiva do que alguns países considerados “grandes”. Se os foros federais estão repletos de processos, impedindo uma prestação jurisdicional célere, será que não deveríamos questionar a atuação do Estado sobre o cidadão? Nos demais setores da Justiça, o questionamento é o mesmo. O ideal para uma sociedade é que a Justiça seja o mínimo acionada, em evidente sintoma de harmonia social. Na Justiça Militar Federal, em que, graças a Deus, temos poucos processos, resulta na conclusão lógica de que os militares estão delinquindo pouco. Na época de exceção, por exemplo, a Justiça Militar Federal, a primeira instância e o Superior Tribunal Militar se portaram com a dignidade e a altivez próprias da bicentenária, da mais antiga e tradicional Corte de justiça brasileira. Surpreendeu aqueles que achavam que a Justiça Militar seria o “braço forte” e de respaldo legal ao prolongamento da Revolução de 1964. 2009 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 19
Cerimônia de posse do ministro Carlos Alberto Marques Soares na presidência do STM
Cumpriu-se rigorosamente a lei, excepcional ou não, e foi através da tribuna de defesa nas Auditorias e aqui, no Superior Tribunal Militar, que a nobre classe dos advogados, defendendo seus clientes, propugnava pela reforma da Lei de Segurança Nacional e pela revogação dos Atos Institucionais e encontraram apoio nesta casa de justiça, tanto que ecoou na voz e nos votos de inúmeros ministros. Advogados de renome na época, alguns que hoje são políticos e ministros de nossos Tribunais, inclusive da Suprema Corte, sempre proclamaram a postura independente e competente da Justiça Militar naqueles momentos difíceis, como também destacavam os saudosos professores Heleno Fragoso e Evaristo de Morais e, o ícone da defesa pelas liberdades, Sobral Pinto. As falhas e erros que, porventura, ocorreram e ocorrem nos julgamentos são idênticos aos das demais justiças, próprios da condição humana dos julgadores. Manchetes recentes alardearam a extinção da Justiça Militar na Argentina e, com destaque, também, que lá o homossexualismo não é crime. Lá, como em outros países da América Latina, a Justiça Militar não pertence ao Poder Judiciário, estando “subordinada” aos comandos militares. Diante disso, tem sido péssimo exemplo durante os períodos revolucionários ou não. A Justiça Militar da União está incorporada ao Poder 20 • JUSTIÇA & CIDADANIA • ABRIL 2009
Judiciário brasileiro desde a Constituição de 1934. No Brasil, o homossexualismo não é crime. Crime é praticar ato libidinoso, homossexual ou não, em local sujeito à administração militar. Poderia o legislador descrever a figura típica em questão como “ato libidinoso heterossexual ou não”. Administrativamente, pune-se o militar, independente de sua opção sexual, que tenha atitudes sociais ou em atividade militar, que possam afetar o pundonor militar ou o decoro da classe. A Justiça Militar de nossos dias está voltada exclusivamente para os seus reais objetivos, sentido de sua existência, que é julgar os crimes militares definidos em lei, e tem como jurisdicionado o servidor militar e civil das Forças Armadas e, excepcionalmente, o cidadão comum, somente nos crimes perpetrados contra as instituições militares, como, aliás, não poderia deixar de ser, ante os princípios elementares de Direito. A Justiça Militar Federal é composta, em sua primeira instância, de magistrados de carreira, habilitados em concurso público com conhecimento de direito e títulos. São juízes de direito, apesar de serem denominados juízesauditores, por mera preservação de nossas raízes históricas. Nesse sentido, nas Justiças Militares dos Estados, os juízes-auditores passaram a ser denominados de juízes de direito.
O eminente jurista, exemplo de magistrado, Dr. José Carlos Moreira Alves, ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal, em conferência realizada a convite do nosso Tribunal, afirmou que: “Sempre haverá uma justiça militar, pois o juiz singular, por mais competente que seja, não pode conhecer das idiossincrasias da carreira das Armas, não estando, pois, em condições de ponderar a influência de determinados ilícitos na hierarquia e disciplina das Forças Armadas”. (in BJM Especial, nº 004, de 12/8/94). Aos que criticam a Justiça Militar Federal, lembramos que na época “excepcional” funcionavam no País o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Federal de Recursos, sendo que passaram pela Suprema Corte inúmeros recursos oriundos do Superior Tribunal Militar. Quando investem contra a Justiça Militar, procurando extingui-la, só lhes resta o infeliz e inconsistente argumento de que, com a retirada da Lei de Segurança Nacional de nossa competência, pouco “sobrou” à Justiça castrense para conhecer e julgar. Hoje, a Justiça Militar Federal, que detém o menor orçamento da União, 0,019% e 1,94% do orçamento do Poder Judiciário, está totalmente adequada ao seu acervo processual, informatizada, digitalizando todo o nosso acervo processual que permita uma prestação jurisdicional mais célere. Os nossos funcionários estão qualificados para o atendimento das partes como autênticos servidores públicos, nos moldes almejados por todos, com eficiência, urbanidade e assiduidade. A Justiça Militar, órgão que é do Poder Judiciário, e o Superior Tribunal Militar, a mais antiga Corte do Brasil, jamais poderão ter mensurada a sua relevância pelo número de feitos que examinam e julgam. Em sessão solene de posse do então presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro José Paulo Sepúlveda Pertence, publicada no DJ de 2/6/95, em saudação feita pelo ministro Carlos Mário Velloso, ao trazer à baila os problemas do Poder Judiciário, já naquela época, ressaltou que: “enquanto, na Alemanha, tem-se um juiz para cerca de 4.000 habitantes, no Brasil, temos um juiz para cerca de 25.000 habitantes”. Hoje temos, aproximadamente, um efetivo nas Forças Armadas de 330.000 servidores militares. Considerando que em cada Auditoria (18) existem dois juízes-auditores, um, inclusive, com funções de Diretor do Foro e ordenador de despesas, teríamos um juiz para cada 9.200 habitantes, servidores militares, sem levarmos em conta que o cidadão comum poderá responder a processo, a respeito de crime na Justiça Militar Federal, desde que venha a cometer delitos impropriamente militares, contra as instituições castrenses. Sempre defendi que a especialidade conduz também a uma redução natural dos processos. A Suprema Corte Federal dos Estados Unidos da América recebe, em média, 300 ações
por ano, levando a julgamento menos da metade. O Judiciário mostrou suas entranhas, submeteu-se a pesadas críticas, algumas construtivas e úteis, que nos possibilitaram mudar para melhor, outras absurdas, que só servem para demonstrar que ainda somos desconhecidos. Daí o importante papel dos dirigentes dos tribunais e juízes de primeiro grau, que efetivamente lidam diretamente com o jurisdicionado, em buscar esclarecer e informar ao público o que estamos fazendo ou procurando fazer para se chegar próximo da justiça ideal. Verifica-se, ao superficial exame, que se temos poucos processos em andamento é porque o grande número de nossos jurisdicionados não tem delinquido. Poucos são os desvios de conduta. O menor acervo processual do que o dos demais ramos da Justiça deve-se, especialmente, ao fato de que a vida do militar das Forças Armadas está sob a tutela de leis e regulamentos muito mais rígidos do que a do cidadão comum. As leis e regulamentos militares impõem ao homem da caserna condutas éticas de respeito aos seus camaradas e superiores, inclusive fora da vida militar, em que o seu descumprimento poderá ocasionar o enquadramento em algumas figuras típicas penais ou resultar em processo administrativo ético de exclusão das Forças Armadas e prisões disciplinares. Reafirmo como sentença: “O dia em que tivermos as prateleiras repletas de processos na Justiça Militar federal, o diagnóstico, certamente, será aterrorizador.” O Brasil tem enviado seus militares das Forças Armadas para fazerem parte da Força de Paz da ONU, como o fez para a defesa da paz em inúmeros países e, recentemente, no Haiti. Busca, junto à ONU, fazer parte do Grupo dos Grandes que são membros do Conselho de Segurança, e, como é sabido, nessa condição poderá intervir em outros conflitos dentre os muitos que existem no mundo. Temos poucos processos, muito pouco em relação às demais justiças, porém é resultado de que tutelamos as instituições que ainda gozam da maior credibilidade perante o povo brasileiro, conforme pesquisa divulgada recentemente. Senhoras e senhores, quero deixar consignado que procurarei dinamizar a administração da Justiça Militar, dando ênfase à prestação jurisdicional e aos nossos servidores. Não vacilarei em buscar aconselhamento com os nossos ministros de ontem e de hoje, assim como com os ilustres colegas e amigos de outras Cortes. Peço a Deus que me dê saúde, disposição e proteção para que possa alcançar nossos objetivos de modernizar a Justiça Militar e não medirei esforços em pedir aos nossos parlamentares que aprovem as leis de nosso interesse em tramitação no Congresso Nacional. Agradeço à administração anterior, na pessoa do presidente Ten. Brig. do Ar Flávio de Oliveira Lencastre, por ter me facilitado todo o processo de transição. Registro, com maior satisfação e honra, em ter como 2009 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 21
Vice-Presidente do Tribunal o Alm-Esq Marcus Augusto Leal de Azevedo, o mais antigo Oficial General das três Forças em atividade no Brasil, o qual considero fraterno e leal amigo, a quem ora presto as minhas homenagens, juntamente com sua esposa Sandra. Quero agradecer às gentis e fraternas palavras do Ministro Olympio, a maioria, sem dúvida, levada pela amizade e carinho que nutre pela minha família e conhecedor dos ideais de meu saudoso pai. Obrigado, Amigo. Agradeço, de igual forma, às palavras gentis da ilustre Procuradora-Geral do Ministério Público Militar Federal, Dra. Cláudia Márcia Ramalho Moreira Luz. Sinto-me profundamente honrado em ter sido saudado pelo ilustre advogado e amigo Técio Lins e Silva, símbolo vivo da luta pelas liberdades e incondicional combatente das injustiças de ontem, de hoje e de sempre. Ao Conselho Federal da Ordem dos Advogados Brasileiros, na pessoa de seu titular, Dr. Raimundo Cezar Britto Aragão, agradeço por ter, gentilmente, aberto mão de usar a sagrada tribuna dos advogados, sabedor dos laços históricos e de amizade do Dr. Técio para com a Justiça Militar, designando-o para saudar-me. Agradeço, também, às considerações cordiais e fraternas do ilustre amigo e Defensor Público Geral da União, Dr. Eduardo Flores Vieira. Por fim, quero prestar a minha homenagem a duas pessoas que foram muito importantes na minha formação profissional e que já nos deixaram e estão, certamente, ao lado de Deus-Pai, pelos homens que foram em vida. Exemplos de dignidade e espírito público: o ministro Deoclécio Lima de Siqueira, o qual sempre reverenciarei como gratidão pelo que me ensinou com a sua elevada cultura, honradez, visão humanitária e postura ética inerente aos homens de sua estirpe; e ao meu saudoso e querido pai, Dr. Mário Soares de Mendonça, que esteve neste Plenário, juntamente com a minha querida mãe, Amélia, hoje aqui presente na minha posse em 1998, e que, tenho certeza, está em espírito aqui ao meu lado. Sinto a sua presença como um Anjo da Guarda que se regozija com as minhas alegrias e chora comigo as minhas inquietações de juiz, marido e pai. Foi meu pai quem me ensinou o verdadeiro sentido de família, forjando a minha formação pela honestidade, respeito ao próximo e conduta ética. Meu saudoso pai, que ingressou na Justiça Militar em 1949, e, desde essa época, inconscientemente — achava eu, mas hoje tenho certeza de que era consciente —, dirigiu os meus rumos profissionais para a Justiça Militar. Instigou-me a deixar a advocacia militante e empresarial para ingressar no Tribunal em 1974, como Assessor de Ministro, até a minha aprovação em concurso público para ingresso na Magistratura, no ano de 1982, ocasião em que se aposentou, compulsoriamente, aos 70 anos de idade. Meu pai me passou a sua sagrada toga no dia em que assumi a Magistratura. 22 • JUSTIÇA & CIDADANIA • ABRIL 2009
Tenho certeza, pai, de que a honrei até os dias de hoje e jamais a macularei. Aprendi com ele, entre suas inúmeras virtudes, a coragem, a ética e a firmeza de caráter. À minha querida mãe, Amélia, aqui presente, não é só a mulher de verdade, mas o verdadeiro símbolo de mãe que jamais deixou de estender a mão a todos os seus filhos, netos e bisnetos. Sofre com os nossos sofrimentos e festeja com alegrias os nossos sucessos. Peço a sua benção, mãe. Aos meus irmãos, Ana Maria, Mário Sérgio e Leda Maria, o meu fraterno abraço. À minha irmã, Leda, aqui presente, obrigado por ter se dedicado aos nossos pais, em sacrifício da sua vida profissional. Você é o Anjo da Guarda da nossa mãe e foi o do nosso pai até ele nos deixar. Obrigado pela sua amizade. À minha querida e amada esposa, Alda, com quem estou casado há 39 anos, com mais 7 anos de namoro, dedico o meu sucesso profissional, pois, com todo sacrifício, acompanhoume, grávida de 7 meses da nossa primogênita, quando viemos para Brasília em 1974, depois fomos para Bagé, Fortaleza, Rio de Janeiro e Recife, e nos vários momentos de ausência, quando substituí em Belém (duas vezes), Campo Grande (duas vezes) e Brasília. Ela foi, e é, o exemplo de esposa e mãe, pois sempre esteve ao meu lado nos momentos de alegria e tristeza, nas vitórias e nos insucessos. Crescemos juntos, em todos os sentidos. Te amo e sempre te amarei. Às minhas filhas, Carla e Mariana, a quem tanto amo e confio no futuro, peço perdão por ter prejudicado tanto a adolescência e os estudos de vocês com essa vida nômade e, às vezes, ausente, que a carreira de Juiz nos impõe, singular na Magistratura. Vocês conseguiram superar a tudo, com muito sacrifício, é certo, mas isso uniu mais ainda a nossa família, que só tem me proporcionado alegrias. A minha benção e o meu amor. Aos meus genros, Daniel e Marcelo, o meu abraço de sogro, pai e amigo. À família de minha esposa, sogra, sogro e cunhados, obrigado por continuarem sendo, sempre, parte integrante de nossa família. Aos sobrinhos, Edgar e esposa, filhos de Mário e esposa, Marcus Vinicius e esposa, Guilherme, Mônica e marido, obrigado por virem representando minha irmã Ana Maria, que não pôde comparecer. Aos amigos queridos que vieram do Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Paraíba, Rio Grande do Sul e de outros Estados, obrigado pela amizade e carinho que nutrem por mim e minha família. Concluo com Fernando Pessoa: ‘O valor das coisas não está no tempo em que elas duram, mas, na intensidade com que elas acontecem. Por isso, existem momentos inesquecíveis — o que vivo agora —, coisas inexplicáveis — os acontecimentos em minha vida —, e pessoas incomparáveis — meu pai.’ Muito obrigado.”
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Senadores não se entendem em relação às cotas raciais
Paulo Alonso Reitor da UniverCidade, RJ, e do Grupo AngloAmericano, com unidades no RJ, PB, PR, SC e RS
Foto: Arquivo JC
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A
s discordâncias são muitas e em vários pontos. Assim sendo, a questão da reserva de cotas raciais nas universidades ainda demandará muita discussão no Parlamento do Brasil. E é claro que, no que depender da disposição dos membros da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado Federal, o Projeto de Lei da Câmara (PLC) dos Deputados nº 180/2008, que impõe reserva de vagas em todas as universidades públicas, está longe, e muito, de ser aprovado, ao menos da forma como fora concebido. Um levantamento feito recentemente junto aos 81 senadores da República deixa claro que a maioria desses parlamentares é contra a implantação de cotas étnicas para o acesso de estudantes negros, pardos e indígenas às escolas técnicas e às universidades federais. Até mesmo os senadores do bloco de apoio ao governo se mostram reticentes na hora de aderir às cotas raciais. No plenário e na própria CCJ, os debates são muitos e, sempre, acalorados. Dos vinte e quatro senadores –— vinte e três titulares mais a relatora, a suplente Serys Slhessarenko (PT-MT) — que decidirão sobre a questão, apenas três se declaram favoráveis às cotas étnicas enquanto onze são contra a aprovação do projeto incluindo critérios raciais. Quatro outros senadores ainda estão indecisos e seis preferiram não informar os votos. Se a reserva de vagas por critérios étnicos incomoda aos parlamentares, sobretudo os da oposição, a possibilidade de a cotas sociais serem estabelecidas conta com a simpatia da maioria.
“Quem defende a cota social argumenta que ela é mais abrangente, pois inclui, automaticamente, negros, pardos e indígenas, quase sempre, alunos das escolas públicas, e, também, os brancos menos favorecidos, e ainda, evitaria um problema futuro na hora de suspender a política de cotas.”
Dos onze contrários ao PLC, dois recusam qualquer tipo de cota e nove a defendem com base apenas em critérios sociais, como a obrigatoriedade de o aluno ter feito a educação básica em escola pública ou pertencer à família com renda mensal que não ultrapasse um salário mínimo e meio per capita. A discussão promete ainda muito barulho. No último dia 1º de abril, aconteceu uma audiência pública que contou com a presença do ministro da Igualdade Racial, Edson Santos, de reitores de universidades públicas e de representantes da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes). Apesar da reunião, dos posicionamentos e das argumentações dos parlamentares, não houve avanço objetivo em relação ao assunto. E o tema ainda voltará numerosas vezes ao plenário da Câmara Alta. O senador tucano Álvaro Dias, do Paraná, apresentou emenda ao projeto para que ele estabeleça apenas a cota social. Mas a relatora já avisou que não aceita a retirada do que, para ela, é a “essência” do projeto, a cota racial. Tudo indica que o parecer da senadora Serys será pela cota, considerando três cortes: ter frequentado escolas públicas, renda e etnia. Se continuar a pensar dessa forma, fica, desde já, confirmado que Serys rejeitará emendas como a de Álvaro Dias. A passionalidade tem marcado o discurso dos parlamentares que já se posicionaram sobre o tema. Quem defende a cota social argumenta que ela é mais abrangente, pois inclui, automaticamente, negros, pardos e indígenas, quase sempre,
alunos das escolas públicas, e, também, os brancos menos favorecidos, e ainda, evitaria um problema futuro na hora de suspender a política de cotas. Já o senador Gilvam Borges, do PMDB-AP, acredita que o problema não está na cor da pele, mas na base da pirâmide; por isso, de acordo com ele, é imprescindível tratar o assunto como uma questão social. A questão tem suscitado dúvidas até em parlamentares do PT, como o senador Eduardo Suplicy (SP), que ainda não sabe de que forma votará. Convicto, o senador gaúcho Pedro Simon (PMDB) demonstra a mesma paixão pelo tema que aqueles que pretendem retirar os holofotes da questão racial. Para ele, é uma grande balela esse argumento de criar um novo problema. Problema, para Simon, é o que existe hoje, com 80% dos negros nas favelas, nas cadeias e não nas universidades. Autora de uma das propostas que deram origem ao PLC, a petista Idelli Salvatti (SC) julga desnecessário o critério de renda, que viria sobrepor-se à obrigação de o estudante ter frequentado escola pública. Para Salvatti, há muitos cortes, o que torna o projeto complexo. O melhor, ainda de acordo com Salvatti, é que prevaleça o critério da proporcionalidade étnica aliado ao de escola pública. Enfim, a questão promete muita discussão, muitas brigas e disputas, e talvez não se chegue a nenhum consenso. O tema é o da vez e a Esplanada dos Ministérios e o Palácio do Planalto acompanham os desdobramentos dessa questão, que, sem dúvida, é de grande interesse para a vida nacional. 2009 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 25
“O SERVIÇO DO TRANSPORTE COLETIVO É FUNDAMENTAL PARA A VIDA DOS CIDADÃOS”
Da Redação
A
s empresas de ônibus do Rio de Janeiro lutam para manter seu serviço, o transporte de passageiros, atrativo e rentável apesar de todos os obstáculos. A concessão de cerca de 2 milhões de cartões de gratuidade, entre estudantes da rede pública, idosos, portadores de doenças crônicas e de deficiências físicas, sem a indicação da devida fonte de custeio, por exemplo, representa um impacto considerável no seu faturamento. “São 9 milhões de viagens por dia, em média, enquanto o volume de passageiros não pagantes é de 25% do total”, afirma o presidente executivo da Federação das Empresas de Transportes de Passageiros do Estado do Rio de Janeiro (Fetranspor), Lélis Teixeira. Tendo como meta o aumento da mobilidade e a melhoria na qualidade de vida das pessoas, a Federação pensa em implantar um dos sistemas mais modernos existentes no mundo, o BRT (Bus Rapid Transit), que, segundo o seu presidente, “envolve vias segregadas para ônibus de maior capacidade, com infraestrutura de estações modernas, compra antecipada de passagens e integração entre os modais. É um novo conceito de transporte, que gera uma cidade mais amigável”. Existem ainda vários projetos pioneiros no segmento como o “EconomizAr”, responsável pelo controle de 26 • JUSTIÇA & CIDADANIA • ABRIL 2009
emissão de fumaça preta pelos veículos e o programa de aprimoramento profissional “Motorista Cidadão”, que, já certificou, em parceria com a Fundação Getúlio Vargas, 11 mil motoristas; além do plantio de 120 mil mudas de vegetação natural de mangue, em área próxima à praia de Mauá, no Município de Magé. “Todas essas ações refletem a consciência de que o serviço do transporte coletivo é fundamental para a vida de cada cidadão deste Estado e do País”, conclui Lélis Teixeira em entrevista à Revista Justiça & Cidadania. Revista Justiça & Cidadania – Qual o impacto das gratuidades, que nos últimos anos têm beneficiado idosos, estudantes, portadores de deficiência, etc., sobre as empresas de transporte coletivo por ônibus? Lélis Teixeira – A concessão de gratuidade, segundo a Constituição brasileira, implica necessidade de indicação da correspondente fonte de custeio. Tal exigência constitucional, no caso das gratuidades no transporte coletivo, não é cumprida na maioria dos municípios do Estado do Rio de Janeiro. Existem hoje cerca de 2 milhões de cartões de gratuidade, entre estudantes da rede pública, idosos, portadores de
Foto: Arquivo Pessoal
Presidente da Fetranspor e Rio Ônibus, Lélis Teixeira
doenças crônicas e de deficiências físicas. São 9 milhões de viagens por dia, em média, enquanto o volume de passageiros não pagantes é de 25% do total. Existe também outro tipo de impacto, além do financeiro, que é aquele gerado pela própria insegurança do concessionário quanto às garantias contratuais. O Direito é um instrumento da estabilização da convivência. Quando é firmado um contrato com o Estado, é de se esperar que haja, por parte do contratado, uma confiança de que os termos serão mantidos. Quando há uma mudança de regras no meio do caminho, de forma unilateral, é gerado um abalo no concessionário, que passa a sentir-se inseguro para fazer investimentos e novos projetos. JC – As empresas de ônibus costumam questionar isso legalmente? Caso positivo, já existe alguma decisão judicial que tenha arbitrado indenização reparadora aos concessionários? LT – As empresas costumam questionar legalmente, mas sob a ótica de que para a concessão da gratuidade há que se indicar a fonte que vai custear essa benesse, como reza a Constituição Federal. Tanto é que as leis estaduais nº 3350 e nº 3339 e a lei municipal nº 3167 acabaram por ser declaradas inconstitucionais, exatamente por não fazerem essa indicação.
Quanto à reparação, pelo menos aqui no âmbito do Estado do Rio de Janeiro, não foram pleiteadas quaisquer indenizações até esta data. O empresário tem se preocupado em assegurar a fonte de custeio. Ele não é contrário à gratuidade em si, apenas não pode concordar que sua concessão abale o equilíbrio econômico-financeiro de seu negócio. JC – Como o senhor justifica o aumento da pirataria nos transportes e o que esse desvio na demanda representa para as empresas legalizadas? LT – Vários foram os fatores que levaram ao aparecimento do transporte pirata e ao seu crescimento desordenado. A começar pela ausência de uma política pública de transportes, que “passasse a limpo” as cidades da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. A falta de prioridade para o transporte coletivo nas vias, o crescimento irregular e desordenado da Região Metropolitana, criando novas demandas, a falta de revisão na própria oferta, a fim de adequar o serviço às novas realidades do espaço urbano e às necessidades de viagens atuais, os grandes congestionamentos que retêm as frotas, impedindo o coletivo de cumprir horário ou chegar ao seu destino em tempo razoável, todos esses fatores deixaram um espaço no atendimento ao cliente, que acabou por ser 2009 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 27
“Quando é firmado um contrato com o Estado, é de se esperar que haja, por parte do contratado, uma confiança de que os termos serão mantidos. Quando há uma mudança de regras no meio do caminho, de forma unilateral, é gerado um abalo no concessionário, que passa a sentir-se inseguro para fazer investimentos e novos projetos.”
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preenchido pelos ilegais. Sem estar sujeitos a qualquer regulamentação, esses transportadores piratas ficaram livres do cumprimento de exigências legais como itinerários fixos, locais de parada pré-determinados, tarifas fixadas pelo Poder Público, pagamento de tributos, etc.. A demora na iniciativa de promover uma fiscalização mais eficiente permitiu o avanço dos transportadores ilegais. Para o usuário desavisado, a maior preocupação é a de encontrar um transporte na hora em que ele quer para chegar ao destino pretendido no menor tempo de viagem possível. As vans e kombis ilegais pegam o passageiro em qualquer lugar e, uma vez com os assentos ocupados, não precisam mais parar. O itinerário é aquele decidido na hora, podendo, portanto, fugir de congestionamentos. É preciso, no entanto, que as pessoas, ao escolherem um meio de transporte, tenham em mente que só o respaldo de uma empresa legalmente constituída e civilmente responsável pode oferecer a segurança de motoristas treinados, veículos onde é feita manutenção preventiva, além de ter condições de arcar com possíveis ônus, em casos de acidentes. JC – De que maneira o serviço de transporte influencia na qualidade de vida das pessoas e dos centros urbanos onde habitam? LT – O transporte e o trânsito têm enorme influência na qualidade de vida das pessoas e dos espaços urbanos. Quem mora em qualquer das nossas metrópoles sente isso em seu dia-a-dia. A mobilidade é uma necessidade do homem desde os primórdios da civilização. Os tempos modernos fazem com que a velocidade nos deslocamentos seja imprescindível. Na contramão dessas necessidades, a conurbação de núcleos populacionais leva ao crescimento desordenado das regiões metropolitanas, com grande aumento do número de veículos nas ruas, principalmente automóveis e motocicletas — vendidos de forma cada vez mais acessível à população —, e a incapacidade de se aumentar a malha viária com a rapidez que seria necessária para acompanhar o crescimento da frota provoca congestionamentos cada vez maiores. Isso tem um custo para a cidade: as perdas de produtividade são da ordem de 5%, a qualidade do ar piora, o nível de ruídos aumenta, assim como os índices de acidentes. As horas perdidas no trânsito chegam a totalizar 3,5 anos na vida profissional normal de uma pessoa. Para que possamos contar com cidades funcionais e agradáveis, é necessário que se invista no transporte coletivo. Soluções basedas em BRTs (Bus Rapid Transit) são o que existe de mais moderno no mundo e são adotadas em cidades como Bogotá (Colômbia), Jacarta (Indonésia), Quito (Equador), Otawa (Canadá), Rouen (França) e outras. O BRT é um sistema que envolve vias segregadas para ônibus de maior capacidade, com infraestrutura de estações modernas, compra antecipada de passagens, integração
entre os modais. É um novo conceito de transporte, que gera uma cidade mais amigável. No Rio de Janeiro, o empresariado de transporte está consciente dessa influência da atividade. O slogan adotado pela Fetranspor é “melhor transporte, melhor qualidade de vida”. O segmento é pioneiro no Brasil em termos de controle de emissão de fumaça preta pelos veículos, através do Projeto EconomizAr, já com 12 anos de existência. Com amplo programa ambiental, é responsável por ações como a antecipação da meta do Governo Federal de utilização do biodiesel B-5, recuperação de área de mangue, em parceria com a Fundação OndAzul e outras medidas. A fim de colaborar com as autoridades, estudos foram encomendados a três dos maiores escritórios de urbanismo do País e apresentados aos governos do Estado e da capital, com soluções que envolvem desde terminais rodoviários a pistas segregadas para ônibus. Programas de aprimoramento profissional visam a oferecer serviços cada vez melhores, operados por rodoviários melhor preparados. O Programa Motorista Cidadão já certificou, em parceria com a Fundação Getúlio Vargas, 11 mil motoristas. Estendendo a preocupação a todos os níveis hierárquicos, a Universidade Corporativa do Transporte (UCT), criada no ano passado, oferece cursos customizados para as várias atividades do setor. Todas essas ações refletem a consciência de que o serviço do transporte coletivo é fundamental para a vida de cada cidadão deste Estado e do País. JC – Segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) existem atualmente mais de 35 milhões de brasileiros sem acesso ao transporte por incapacidade econômica. O que a Fetranspor está fazendo para permitir a inclusão dessas pessoas dentre os usuários de transporte coletivo? LT – Essa questão depende fundamentalmente de políticas econômicas e sociais dos governos, em seus três níveis. O que o segmento de transporte vem fazendo, sem grande sucesso, é lutar pela desoneração das tarifas, de forma a permitir o barateamento das passagens. Hoje, de acordo com a Associação Nacional de Transportes Urbanos (NTU) cerca de 31,4% do valor pago pelo passageiro corresponde a tributos incidentes sobre a tarifa. JC – Diante da necessidade, cada vez mais premente, de manter a saúde da população e preservar o meio ambiente, quais atitudes a Fetranspor vem adotando para minimizar os danos causados pelas frotas de ônibus em circulação atualmente e como está se preparando para cumprir a meta prevista na Lei Federal nº 11.097, de 13 de janeiro de 2005, de inserção do biodiesel na matriz energética brasileira? LT – Com relação à minimização de impactos, a Fetranspor, só com a atuação do Projeto Economizar, conseguiu economia anual de 50 milhões de litros de diesel, equivalendo a 135 mil toneladas de CO2 e 3 mil toneladas de material particulado não emitidos. Nas ações
de compensação ambiental, foram plantadas 120 mil mudas de vegetação natural de mangue, em área próxima à praia de Mauá, no Município de Magé. Este ano, a Fetranspor está criando o Centro de Serviços, para atendimento a empresas e sindicatos do setor, voltado para minimização dos impactos ambientais. Entre os serviços previstos estão o início do monitoramento da poluição sonora dos veículos, consultoria para licenciamento ambiental, auditorias e perícias ambientais, destinação final de pneus e óleos lubrificantes e realização de inventário de emissão de gases de efeito estufa de cada empresa filiada. Em parceria com o governo estadual, através do Inea, da Secretaria do Ambiente e da Secretaria de Transportes, os ônibus dentro dos padrões do Procon Fumaça Preta — mais rígidas que a legislação nacional vigente —, estão sendo identificados com o Selo Verde. O programa tem metas de redução de consumo de combustível, de emissões de gases de efeito estufa, além de prever compensação ambiental. Isto é parte do Programa Ambiental Fetranspor, que inclui também outras medidas. Quanto à Lei nº 11.097, tem o foco no biodiesel B-5, ou seja, mistura de 5% de biodiesel ao diesel comum. As empresas de ônibus do Estado do Rio de Janeiro fizeram, em 2007, o maior experimento com o combustível, envolvendo frota de 3, 5 mil ônibus. Atualmente, toda a frota roda com biodiesel B-3 e a ideia é antecipar em 3 anos a previsão governamental, começando a utilizar o biodiesel B-5 já em 2010. JC – A Fetranspor tem alguma grande parceria em andamento com a Secretaria de Estado dos Transportes? LT – A postura da Fetranspor é de agir sempre em parceria, contribuindo seja com apresentação de projetos, seja com o trabalho em prol do aprimoramento dos trabalhadores do setor. O próprio projeto Procon Fumaça Preta, que acabei de citar, é realizado em parceria com o Governo do Estado. O segmento empresarial entende que entre o poder concedente e o concessionário há de haver forçosamente clima de colaboração mútua e constante. JC – Como foi recebida pelo setor a decisão proferida recentemente obrigando o Estado do Rio de Janeiro a pagar indenização por ônibus queimado no ano de 2002? Existe estimativa dos prejuízos causados por incêndios e depredações dos coletivos? LT – Trata-se de decisão sábia e justa, pois cabe ao Estado promover a segurança pública. O concessionário de serviços públicos precisa de ambiente propício para operar, assim como, fazendo-o em nome do Estado, este deve assegurar a integridade dos usuários desses serviços. Quanto aos prejuízos, só em 2009, já somam R$ 4.730.000,00 (equivalente a 18 ônibus urbanos novos). Nos últimos 10 anos, chegam a atingir R$ 75.000.000,00. 2009 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 29
O Descumprimento de Sentença Judicial e suas Consequências
Roberto Mello Alves Procurador do Estado do Rio de Janeiro
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em sido motivo de perplexidade o modo passivo pelo qual o Poder Judiciário tem reagido à desobediência de suas decisões, sejam interlocutórias sejam definitivas, estas em mais realce. Evidentemente, há grande número de magistrados, senão a maioria, que exerce, em plenitude, sua função judicante, adotando as medidas legais coercitivas contra os que, de algum modo, deixam de dar cumprimento ou execução às ordens judiciais. O Poder Judiciário, entretanto, como um todo, tem se demitido de sua função constitucional de assegurar e garantir a autoridade de suas decisões, especialmente quando resistidas por autoridades do Poder Executivo Federal e Estadual. Frequentemente se tem notícia de delongas ou recusas no cumprimento de suas decisões judiciais, sem reação à altura do magistrado desobedecido. Quando tal ocorre, a ofensa não atinge apenas o magistrado, o Poder Judiciário, mas também, e inexoravelmente, o cidadão, a Ordem Democrática, a confiança nas Instituições. Daí, decorrem consequências gravíssimas, examinadas a seguir, a suscitarem a formulação de ideias, visando à solução da questão. As consequências sócio-jurídicas da desobediência. Não se pretende — e não por falsa modéstia — listar e exaurir todas as consequências resultantes do descumprimento de ordem judicial ou de sentença, ou de seu retardamento. Busca-se assinalar aquelas que qualquer cidadão e o profissional do Direito vislumbram no dia-a-dia. 30 • JUSTIÇA & CIDADANIA • ABRIL 2009
Desde logo, ressalta-se a primeira delas: o desacreditar no Poder Judiciário, com graves desdobramentos. Com efeito, o cidadão que buscou guarida no Poder Judiciário em defesa de seu eventual direito e vê atendida sua pretensão revela total desapontamento ante a não concretização da sentença que lhe foi favorável, pela recusa de cumpri-la por quem o deve fazer. Conquanto o descumprimento de decisão judicial prejudique, de imediato, a parte vencedora do pleito, é a sociedade, como um todo, que se ressente realmente da gravidade de que se reveste tal fato. O Poder Judiciário débil, enfraquecido, não cumpre suas funções constitucionais e leva o cidadão a descrer da justiça, propiciando o retrocesso da prática da justiça pelas próprias mãos, estágio anterior e indesejável do ideal democrático. Basta que um único magistrado se demita do poderdever que lhe incumbe de fazer cumprir suas decisões para que o próprio Poder Judiciário seja diminuído em sua missão indeclinável de distribuir justiça e de zelar pela paz social. Por outro lado, a omissão do magistrado em aplicar as sanções legais à autoridade que ousa desobedecer à ordem legal estimula a reiteração de tal comportamento, com suas danosas consequências tanto para os cidadãos como para a ordem jurídica. A prática da “justiça pelas próprias mãos’’ se generaliza na medida da negativa de concreta e eficaz aplicação do direito proclamado e leva, induvidosamente, à violência, à desobediência civil, ao descrédito das leis, enfim, ao caos social.
Foto: Arquivo JC
Concomitantemente, se na esfera civil e administrativa as consequências do descumprimento das sentenças, via-deregra, se traduzem em danos materiais, mas não só — haja vista as que têm caráter alimentar —, com toda repercussão sobre a vida familiar e a sociedade, no âmbito penal, o mesmo sucede com a não concretização da “sentença condenatória”, seja pela prescrição ante a morosidade da máquina judiciária como pela extrema facilitação do cumprimento da pena, ainda para réus de crimes odiosos, a suscitar a quase certeza da impunidade; fermento ideal da desapregação da sociedade como corpo organizado. De tudo resulta a imperiosa necessidade de o Poder Judiciário revestir-se, de fato, da autoridade que lhe confere a Constituição Federal para a efetiva aplicação do direito quando chamado a solucionar os conflitos. Se, nos dizeres da Constituição Federal, a independência dos Poderes, consagrada desde a clássica tripartição de Montesquieu, é de ser absolutamente observada, é inadmissível qualquer resistência dos demais Poderes ao cumprimento das decisões judiciais. Tal assertiva decorre do fato de que a eventual resistência acima referida não se volta, em verdade, contra o Poder Judiciário, mas contra a própria Constituição Federal, à qual se subordinam todos os Poderes. Constitui, pois, gravíssima ofensa à Lei Maior a desobediência ao mandamento judicial. Ocorre, todavia, que, por motivos diversos, entre os quais exatamente a inércia, a contemporização, a política, a
acomodação e, mesmo, a desídia, nem sempre há reação do magistrado desobedecido proporcional à gravidade do fato. A passividade do magistrado em tais casos contribui para fortalecer a ousadia do desobediente, levando à hipertrofia do Poder Executivo, e é, sem dúvida, nele que se encontram os recalcitrantes, no cumprir sentenças judiciais. Fenômeno intrigante se apresenta na problemática enfocada. Consiste ele no fato de que, via de regra, são nos estados federados que ocorrem com mais frequência os casos de desobediência à ordem judicial. Embora inexplicável, a circunstância referida parece advir de suposta prevalência da sentença federal, como se as estaduais não detivessem a mesma força e natureza. Por outro lado, são inúmeros os obstáculos legais que se antepõem à responsabilização das autoridades que não cumprem as decisões judiciais, em prejuízo da ordem jurídicodemocrática. São de extrema pobreza franciscana os exemplos de autoridades punidas pela citada desobediência, que, muitas das vezes, é reiterada em sucessivas administrações, a ponto de prolongar-se por 10, 15 anos ou mais, o cumprimento de sentença transitada em julgado. Há, além, no Direito Positivo Brasileiro, mecanismos que predispõem e fortalecem a resistência no cumprimento das sentenças definitivas. É que, a pretexto de defesa do Estado e para evitar alegados — e nem sempre verdadeiros — motivos de interesse público, como o de evitar-se grave lesão à ordem, 2009 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 31
“É intolerável o desrespeito, de qualquer autoridade, à decisão transitada em julgado, constituindo gravíssima ofensa à ordem constitucional a dificultação ou negativa de seu cumprimento eficaz.”
à saúde, à segurança, à economia pública e ao Erário, tem-se permitido a suspensão da execução de sentença, até daquelas já submetidas ao plenário do Supremo Tribunal Federal, em violação ao próprio Regimento Interno. Segundo este, ao tratar de mandado se segurança, em seu parágrafo 3º, do art. 297, em havendo decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal, mantendo a concessão da ordem, ou trânsito desta em julgado, a suspensão da execução caduca e não mais surtirá efeitos. A realidade, entretanto, é outra. São inúmeros os casos que suspendem execução de decisões definitivas de ações não mandamentais, mesmo do Supremo Tribunal Federal, a fomentar a prática rotineira de descumprimento de sentença, especialmente naquelas que dizem respeito à remuneração de servidores, inativos e pensionistas. Tal estado de coisas, todavia, ao invés de mostrar-se instrumento útil de defesa do Erário, contrapõe-se a bem maior — a credibilidade do Poder Judiciário — bem como ofende o princípio constitucional da segurança jurídica, em face da incerteza da aplicação e eficácia do direito já declarado definitivamente. Releva acentuar, nesta oportunidade, o conceito de que mais bem faz à sociedade organizada o cumprimento de sentença injusta do que a inexecução daquela justa e transitada em julgado. Isso, porque todo cidadão tem o direito, constitucionalmente garantido, de ver apreciada e, portanto, julgada e eficazmente executada qualquer lesão ou ameaça a direito, consoante expressa disposição do art. 5º, XXXV, da Constituição Federal de 1988, na mesma linha das anteriores constituições liberais do País e conforme a tradição do direito ocidental. Proposta de solução Em vista do exposto acima, é chegado o momento de concluir-se esta breve reflexão com o oferecimento de algumas 32 • JUSTIÇA & CIDADANIA • ABRIL 2009
poucas sugestões destinadas a coibir os procedimentos verberados, ofensivos à Constituição e aos direitos dos cidadãos. Ao se analisar a questão enfocada e buscando-se soluções para resolvê-la, desde logo verifica-se um veio político que a informa e que dificulta, por sua própria natureza, o correto procedimento. É que, via de regra, as autoridades, para descumprirem decisões judiciais — especialmente aquelas pertinentes à remuneração de servidores, proventos ou pensões —, invocam a insuficiência de verbas orçamentárias e a priorização no atendimento a outras demandas, dando-se o direito, inclusive, de eleger qual e tal sentença, entre outras, a ser integralmente cumprida. Há, ainda, por outro lado, a postura do magistrado que abdica da exigência de respeito absoluto às decisões judiciais, seja por receio de enfrentamento com outro Poder, como por entender demoradas, dificultosas ou até mesmo inócuas quaisquer providências de responsabilização da autoridade infratora. Se tortuosos e demorados são os caminhos da responsabilização, a ordem constitucional exige, em nome dos princípios que a informam, reação ao fenômeno em exame. Não se diga que há carência de instrumentos legais para tanto. De fato, quer em disposições da Lei Maior quanto em normas infraconstitucionais, encontram-se os necessários comandos para coibir a desobediência à ordem ou decisão judicial e punir os que a praticam. Assim, a Constituição Federal, em seu art. 15, III e IV, prevê a suspensão ou perda de direitos políticos pela condenação criminal transitada em julgado, enquanto perdurarem seus efeitos ou pela prática de atos de improbidade apurados na forma da lei. Por sua vez, o art. 37, caput, da Lei Maior, estabelece os princípios gerais que regem a Administração Pública, nela
compreendidos os três Poderes, e determina sua observância, a começar pela legalidade em seu sentido mais amplo. Na esfera infraconstitucional, prevalece a Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950, que, recepcionada pela Constituição Federal de 1988, vige plenamente com as alterações que lhe foram introduzidas pela Lei nº 10.028/2000. Dita lei, que define os crimes de responsabilidade do Presidente da República, dos Ministros de Estado, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, e, assemelhados pelo parágrafo único de seu art. 39-A, do Procurador Geral da República e assemelhados, também alcança os governadores e secretários de Estado, consoante o disposto no seu art. 74. A lei em foco, entre os crimes capitulados, define o cometido contra as decisões judiciais em seu art. 12, especificando quatro tipos de condutas criminais. Para o escopo deste estudo, destaca-se entre eles aquele previsto sob o número 4 (quatro) na norma legal mencionada, que assim dispõe: “Art 12 – São crimes de Responsabilidade contra decisões judiciais: 1) omissis; 2) omissis; 3) omissis; 4) impedir ou frustrar pagamento determinado por sentença judiciária.” Nada mais claro, a prescindir de quaisquer interpretações. O ilícito ali previsto se desdobra em duas condutas: impedir ou frustrar o pagamento consequente à ordem judicial. As condutas criminais operam de forma direta ou indireta. A primeira delas ocorre quando a autoridade, convicta de sua impunidade, ordena a suspensão do pagamento devido, ou o frustra, desviando-o para atender a compromisso financeiro distinto. É a forma mais rara, porque é, mais facilmente, comprovável. A segunda — a indireta — tem natureza mais sutil e, geralmente, ocorre por ato omissivo tal como a não alocação de verbas no orçamento destinadas ao pagamento dos precatórios, cujas origens são sempre condenações da Fazenda Pública em pecúnia ou, a mais corrente, a insuficiência dos fundos orçamentários a tanto destinados. Releva acentuar, en passant, que, via-de-regra, as ações ajuizadas contra as Fazendas Públicas nascem de reiterados atos de descumprimento da lei, que vêm caracterizando a Administração Pública nos últimos tempos. Cabe assinalar que as autoridades executivas se permitem, muitas vezes, eleger quais, como e quando cumprir decisão judicial, como se lhes fosse lícito, em prejuízo do cidadão, postergar-lhes a prestação jurisdicional. A impunidade Paralelamente ao vezo ilegal do comportamento antes descrito — o fenômeno do descumprimento de sentença judicial —, encontra-se a impunidade ante tal atentado à Constituição Federal.
É que, pelas razões anteriormente apontadas — de comodismo, de descrença e até de desídia —, predomina a sensação de impunidade das autoridades criminosas, a qual se alastra como uma epidemia pela sociedade, ante a verificação de que os crimes dos poderosos, ricos e influentes são menos graves — e não merecem punição — do que os cometidos por integrantes das camadas menos favorecidas da população. Para tal sensação, alia-se a certeza de que a morosidade crônica em que sobrenada a justiça, com os graves reflexos que daí decorrem na conduta social. Não que a mencionada morosidade seja atribuível tãosó ao comportamento do complexo judiciário como um todo. Com efeito, a pletora de expedientes processuais, o excesso de recursos, a não-aplicação de penas pecuniárias severas aos litigantes de má-fé e de penas disciplinares aos advogados que os patrocinam são fatores decisivos que compõem, com a morosidade, o deplorável quadro de impunidade. Conclusão É chegado o momento, todavia, para não alongar este trabalho, de se tentar contribuir com propostas de soluções para grave questão que se analisa. A primeira medida que salta aos olhos é a tomada de consciência da Magistratura como Poder e, não, individualmente, por iniciativa particular de seus juízes. É intolerável o desrespeito, de qualquer autoridade, à decisão transitada em julgado, constituindo gravíssima ofensa à ordem constitucional a dificultação ou negativa de seu cumprimento eficaz. Como consequência, cada magistrado a cuja decisão tenha sido negada eficácia plena deverá adotar todas as medidas previstas em lei para responsabilizar, criminal e politicamente, a autoridade autora do delito. Outra sugestão é a de os magistrados não se esquivarem de aplicar as penalidades processuais à litigância de má-fé, com o que obter-se-á sensível redução na quantidade de processos judiciais, diminuindo-se a morosidade da Justiça e reduzindo-se a impunidade. Ademais, há necessidade de depuração do número e do alcance dos recursos judiciais, de sorte a que a sensação de impunidade decorrente da demora da prestação jurisdicional seja substancialmente reduzida. Sobreleva o escopo deste trabalho, sobretudo, a restauração do império da Constituição Federal na asseguração do exercício pleno das atribuições dos três Poderes da República, guardando um em relação aos outros independência e harmonia. Finalmente, providência que igualmente se impõe é a atuação do Poder Judiciário na formulação e encaminhamento aos legisladores de anteprojetos de leis que simplifiquem os processos civil e criminal, dando-lhes celeridade e restringindo a pletora de recursos hoje existentes que eternizam a efetiva prestação jurisdicional. 2009 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 33
embargos de declaração o abuso no seu exercício Paulo Furtado Ministro convocado do STJ
É
absolutamente natural que o exercício reiterado da judicatura, por vários anos, provoque o questionamento sobre matérias que, muitas vezes, passam ao largo da meditação do jurista preocupado com objetivos outros, também louváveis quando se tem em conta o aperfeiçoamento do sistema processual. Se bem que não seja apenas este o responsável pelo que se convencionou chamar de “crise” permanente da Justiça, é incontestavelmente uma das razões dessa “crise” e até já se tornou cansativo ouvir as mesmas queixas, sobre a morosidade do Judiciário, sobre as ultrapassadas regras de procedimento com que ainda convivemos, sobre as dificuldades para a obtenção célere da prestação jurisdicional, etc., etc.. Isso talvez explique a constante busca de mecanismos mais ágeis para amenizar essa “crise” que nos atormenta e perturba, quase sempre, nossa própria consciência, (e aqui, é evidente, refiro-me ao profissional do Direito responsável). Não me atrevia, até hoje, a discutir sobre a real necessidade de inclusão dos embargos declaratórios no rol dos recursos com que se pode, em nosso sistema, hostilizar as decisões judiciais. Aliás, não foram poucos os autores que lhe negaram o caráter de “recurso”, no sentido estrito da palavra. E, como lembra Barbosa Moreira, “...os remédios análogos, nas mais importantes legislações estrangeiras, ficam fora do elenco dos recursos, tendo sido essa a orientação abraçada entre nós, por alguns Códigos estaduais, como o gaúcho e o paulista.” (in “Comentários ao CPC”, Forense, vol. V, 5ª ed., 1985, p. 535). Se, conceitualmente, recurso é o direito de provocar o reexame da decisão, com vistas à sua modificação, ou reforma, os embargos de declaração jamais poderiam definir-se como tal, além de que, se é verdade que há um “recorrente”, definitivamente “recorrido” não há, tanto que ao adversário do embargante sequer se viabiliza o oferecimento de contra-razões. Esta última circunstância, aliás, já está a reclamar um novo tratamento procedimental, em virtude da hoje reconhecida admissibilidade dos embargos com efeito modificativo e em face do princípio do
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contraditório, como adiante se verá. Não pretendo, absolutamente, sustentar a inutilidade dos declaratórios. O fato de que o Direito comparado revela seu emprego em quase todo o mundo (até o “Codice di procedura civile” do Estado do Vaticano o contempla), atesta sua necessidade. O que questiono é, concretamente, seu uso sob a forma de “recurso”. A prática forense infelizmente revelou a condenável utilização dos embargos declaratórios como expediente de procrastinação, pelo vencido, sobretudo depois que o art. 538 do CPC (com a redação que lhe emprestou a Lei nº 8.950/94) optou pela interrupção do prazo de outros recursos, substituindo a suspensão do prazo, como ocorria anteriormente. Como se sabe, o prazo interrompido recomeça a fluir após afastado o óbice, enquanto o prazo suspenso continua a correr. E, assim, enquanto pendente o desate dos declaratórios, nenhum prazo flui para o recurso principal. O cotidiano do foro demonstrou, por exemplo, de forma veemente, que 99% (noventa e nove por cento) dos embargos de declaração agitados objetivam interromper o prazo do recurso próprio para alvejar a decisão, com o que dispõem as partes de mais esse expediente protelatório para retardar a entrega da prestação jurisdicional. É prática comum a utilização sistemática dos embargos declaratórios para, sob a alegação de “prequestionamento”, dilatar o prazo do recurso principal. E o prolator da sentença ou do aresto embargado, quase sempre às voltas com a sobrecarga de serviço, por vezes relega a um segundo plano o julgamento dos embargos, impedindo assim que a decisão objurgada adquira eficácia. O Supremo Tribunal Federal, inclusive, já se viu a braços com situação singular, para a qual teve de adotar tratamento processual diferenciado do previsto em lei. Acórdão do ministro Celso de Mello, ao julgamento de terceiros embargos ao aresto proferido no RE 202.097-SP, de 27.8.2004, proclamou: “A reiteração de embargos de declaração, sem que se registre qualquer dos pressupostos legais de embargabilidade (CPC, art. 535), reveste-se de caráter abusivo e
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evidencia o intuito protelatório que anima a conduta processual da parte recorrente. O propósito revelado pela embargante, de impedir a consumação do trânsito em julgado de decisão que lhe foi inteiramente desfavorável — valendo-se, para esse efeito, da utilização sucessiva e procrastinatória de embargos declaratórios incabíveis — constitui fim ilícito que desqualifica o comportamento processual da parte recorrente e que autoriza, em conseqüência, o imediato cumprimento da decisão emanada desta Suprema Corte, independentemente da publicação do acórdão consubstanciador do respectivo julgamento e de eventual interposição de novos embargos de declaração ou de qualquer outra espécie recursal. Precedentes.” (Tribunal Pleno, julgado em 29.4. 2004, DJ 27.8.2004, RTJ Vol. 00194-01, pp00325). Assim, se o próprio Supremo Tribunal Federal tem de enfrentar, vez por outra, situações como essa, é fácil imaginar o que não têm de suportar os juízes e tribunais inferiores, diante da abusiva reiteração de embargos declaratórios. Na forma do art. 535, I e II, do CPC, cabem declaratórios quando houver, na sentença ou no acórdão, obscuridade ou contradição, ou for omitido ponto sobre o qual devia pronunciarse o juiz ou tribunal. Consoante lição de Barbosa Moreira, obscura é a sentença, ou o acórdão, em que falta clareza. Contraditória é a decisão onde se incluam proposições inconciliáveis entre si. E omisso é o pronunciamento quando o juiz ou tribunal deixa de apreciar questões relevantes para o julgamento (suscitadas pelas partes ou examináveis de ofício). Qualquer desses vícios pode, perfeitamente, ser evidenciado como “preliminar” do recurso principal adequado. E, se efetivamente reconhecido pelo ad quem, impor o retorno da sentença ou do acórdão ao prolator para a indispensável correção. Se rejeitada a “preliminar” de imprestabilidade do pronunciamento objurgado, por tais vícios, de logo se vê o órgão revisor autorizado a proceder ao julgamento do recurso principal. Todo o questionamento sobre os embargos de declaração
se revela ainda mais indispensável quando se tem em conta os declaratórios com o chamado “efeito modificativo”. É certo que as Ordenações Afonsinas já revelavam a primeira manifestação dos embargos modificativos, ao lado dos embargos ofensivos. Deles também se ocuparam as Ordenações Manuelinas e as Filipinas (Livro 3º, tít. 66, parágrafo 6º, tít. 84, parágrafo 8º, tít. 86, parágrafo 17). Contudo, a jurisprudência pátria demonstrava a cautela com que se apreciavam os embargos, sempre rechaçando as tentativas de encobrir-se, com eles, a verdadeira intenção de emprestar-lhes o caráter infringente. Foi mesmo, entretanto, a partir da admissão pela nossa mais alta Corte de Justiça dos embargos com tal efeito, que se começou a ver no País uma autêntica corrida aos embargos com caráter infringente. E não foram poucos os tribunais que trilharam, sem qualquer cerimônia, por esse caminho, na mais intolerável e absurda violação do princípio constitucional do contraditório. A parte deixava a sala de sessões, após um julgamento para o qual fora regularmente intimada, com a certeza do agasalho de sua tese, vitoriosa. E, dias após, deparava-se em cartório com uma decisão diametralmente oposta, passando de vencedor a vencido, após o julgamento de embargos declaratórios modificativos para o qual não fora intimado e destes últimos sequer tinha conhecimento. Já defendi que são nulas, por escancarada violação do contraditório, todas essas decisões, no âmbito de embargos declaratórios, modificativas da decisão anterior, adotadas em julgamento para o qual não fora intimada a parte antes exitosa, agora vencida. Esse entendimento sedimentou-se, mais tarde, na jurisprudência do STJ: “EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. EFEITOS INFRINGENTES. A atribuição de efeitos infringentes aos embargos de declaração supõe a prévia intimação da contraparte; sem o contraditório, o respectivo julgamento é nulo. Embargos de declaração opostos por Bancocidade Corretora de valores Mobiliários e de Câmbio Ltda. conhecidos e acolhidos. Prejudicados os embargos declaratórios opostos por Bolsa de Valores do Rio de Janeiro”. (EDcl nos EDcl na AR 1228. RJ, Min. Ari Pargendler, Corte Especial, julgado em 1/8/2008, DJE 2/10/2008). Tirante esse aspecto, outro a considerar são os embargos de embargos. Na maioria das vezes, uma evidente chicana processual que nem a multa do parágrafo único do art. 538 do CPC, nem a declaração da litigância de má-fé foram, ou são, suficientes o bastante para coibir seu uso, desestimulando a prática. São conhecidos casos em que nada menos que seis embargos foram agitados, não para atacar a decisão embargada, mas perseguindo a modificação do julgado original. A proposição aqui enunciada que pretende ser a solução para o problema do exercício abusivo dos declaratórios merece certamente maiores considerações (inclusive sobre outros aspectos do tema), assim como reclama mais amadurecimento. Posso até imaginar o que dirão, a respeito, as críticas que sobre ela se abaterão. Mas, de qualquer sorte, é dever do jurista nunca omitir-se, por mais que seu pensamento o exponha. Até porque, como escreveu Eduardo Girão, “o louvor quase sempre é insincero; a crítica nunca o é, ainda quando injusta.” 2009 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 35
integridade institucional em defesa da constituição
Discurso proferido pelo Desembargador Federal Márcio Moraes em homenagem aos vinte anos do Tribunal Regional Federal da 3ª Região em 30/3/09
Nota O expressivo discurso do desembargador Márcio Moraes, cujo brilhante conteúdo transcrevemos para nossos leitores, além dos exemplares conceitos deixados pelo primoroso jurista, traz seu testemunho sobre as realizações do egrégio Tribunal Regional Federal da 3ª Região nesses 20 anos de existência. O respeito do desembargador pela judicatura, aliado à sua coragem e independência, vem desde os primórdios de sua ascensão à Magistratura, tendo sido efetivamente demonstrado em outubro de 1978, quando, em pleno regime do arbítrio e da brutalidade militar e sob a ameaça latente do AI-5, recebeu, como juiz da 7ª Vara Federal de São Paulo, o processo de nº 136/76, movido por Clarice Herzog, viúva de Vladimir Herzog, através dos advogados Heleno Fragoso, Sergio Bermudes, Marco Antônio Rodrigues Barbosa e Samuel MacDowell contra a União Federal. Sua sentença não constituiu apenas um ato de coragem mas de afronta aos donos do Poder, especialmente aos torturadores do DOI-CODI, comandados na época pelos coronéis Carlos Alberto Brilhante Ustra e Audir Santos Maciel, tendo em vista toda a engenharia e arbitrariedade cometidas enquanto o processo estava sob a responsabilidade do juiz João Gomes Martins Filho, aposentado compulsoriamente e substituído por Márcio Moraes. Naquela época, os que acompanhavam a questão temiam pela sorte do jovem juiz que, sem medo, desafiava a Ditadura, na busca de atender a súplica de quem necessitava de justiça. Reproduzo abaixo trecho da carta enviada pelo juiz João Gomes Martins Filho ao que corajosamente sentenciou procedente a ação, numa demonstração da independência dos membros do Poder Judiciário que, não de hoje, é o 36 • JUSTIÇA & CIDADANIA • ABRIL 2009
maior alicerce para a construção e manutenção de um Estado Democrático e de Direito. “Chegamos, por palavras diferentes, à mesma conclusão... Senti uma tristeza imensa ao verificar até que ponto podia chegar a tentativa de sufocar uma manifestação do Poder Judiciário... Não poderia desconfiar de um golpe dessa natureza e tanto é assim que havia marcado com antecedência o dia e hora para a prolação da sentença. Veio o telex, anunciando a proibição da leitura e requerendo também informações sobre o processo no mandado de segurança impetrado pelo procurador, que se considera o detentor único da verdade e o cavaleiro andante da honra e do renome nacional. Alegava que a sentença poria em risco a segurança do Estado, e que, por isso, deveria ser impedida, como se a declaração de responsabilidade pela tortura e morte de um homem pudesse constituir-se em perigo para a honra e a segurança das instituições. Ninguém sabia o teor da sentença, a não ser eu. O Brasil inteiro ficou sabendo por esse telex qual seria o seu teor, pois ele já confessava a culpa publicamente. Ninguém mais duvidava daí em diante das conclusões do juiz... Lançouse sobre o Poder Judiciário a dúvida a respeito da dignidade, da coragem e da honradez do juiz que me substituísse. Supôsse que com o afastamento de um, a lição permaneceria com o outro e que talvez a verdade não aflorasse com a veemência que se deduzia da ação. Enganaram-se os que assim pensaram porque, talvez mais forte, mais elegante e mais alta se elevou a voz de um jovem magistrado para deixar bem claro que ainda há juízes no Brasil...” E sempre haverá!!!
Foto: Rodrigo Whitaker Salles
“
A Excelentíssima Presidente deste Tribunal delegoume a incumbência de falar em nome da Corte nesta reunião plenária realizada em comemoração aos vinte anos de sua instalação. Recebo a honrosa tarefa como uma consideração de S. Excelência à nossa participação na história deste Tribunal, desde sua instalação até hoje, tanto quanto dela também participaram, como membros fundadores, na atual composição, as Excelentíssimas Desembargadoras Federais Anna Maria Pimentel e Diva Malerbi. Ou seja, nós três remanescemos por enquanto. Mas, como diz a sabedoria simples de Guimarães Rosa: “tudo, enfim, é por enquanto”. Quando me pergunto por que permanecemos os três, na falta de outra explicação que não atinjo, penso que, para nós, como para outros tantos componentes deste Tribunal, nossa relação possa ser um caso de amor com a Corte ou mesmo que essa seja a nossa sorte. E, então, me vem outra dúvida, perante a qual me consolo em saber que era a mesma de Shakespeare sobre o destino: “é o amor que governa a sorte, ou a sorte que governa o amor”?1 Seja como for, a honrosa designação feita pela Presidência, por certo, aposta na nossa memória e é dela que usarei, não tanto quanto para a lembrança de fatos, mas para a lembrança de alguns sentimentos que me ficaram nesses vinte anos de Tribunal. Recriada a Justiça Federal em 1965, pelo Ato Institucional
nº 2, no início da Ditadura Militar, ela começou tímida, tal qual filha de pai totalitário. Não eram tão comuns, nos primórdios da recriação da Justiça Federal, decisões contrárias à União Federal ou à Fazenda Nacional, não por ingerência direta do Poder Público, mas por um certo clima da época, certamente, de difícil entendimento hoje em dia, de um constrangimento mudo diante daquilo que o Governo Federal pudesse considerar como confrontamento. Mas, com o passar dos anos, especialmente depois de 1972, quando vieram as primeiras nomeações de juízes federais por concurso público — eu tomei posse em 1976 —, começou-se a perceber que, no campo do ordenamento jurídico de então, havia um paradoxo, um hiato, o qual a jurisdição poderia preencher e que lhe daria dimensão maior para o exercício mais integral da sua função jurisdicional. É que, sob a égide de uma Constituição Liberal, a de 1946, exercia o Poder Executivo Federal um governo totalitário. Mesmo a Constituição Federal de 1967 e, depois, a Emenda Constitucional nº 1, de 1969, ambas mantiveram, em boa parte, os direitos e garantias individuais e as liberdades públicas da Constituição de 1946, certamente, para que o Brasil, apesar do governo militar, tivesse alguma aparência democrática no contexto internacional. Daí, a necessidade do governo militar expedir Atos Institucionais, que visavam excetuar, da Constituição e do conhecimento jurisdicional, os atos de força. Ora, essa circunstância institucional não passou desapercebida a uma plêiade de jovens juristas nacionais, que passou a desenvolver uma doutrina de maximização da interpretação e aplicação dos princípios constitucionais como forma de contrastar os atos totalitários do governo. Ou seja, o arbítrio de qualquer instituição do Estado então autoritário, mesmo naquela época, podia ser controlado pela força normativa da Constituição então vigente. Cito, mesmo com a certeza de alguma omissão, fruto do meu desconhecimento e não do mérito deles, alguns mestres a quem o Direito nacional e a jurisdição federal devem muito em inspiração e alento quanto a essa doutrina iniciante: Seabra Fagundes, Paulo Bonavides, Celso Antônio Bandeira de Mello, Goffredo da Silva Telles e com saudade menciono o nome de uma pessoa incomparável, que nos deixou ainda moço e que faz enorme falta ainda hoje: Geraldo Ataliba. O que começou a mudar, então, na interpretação e aplicação jurisdicional do Direito sob o influxo dessa doutrina foi a ótica em relação ao ordenamento jurídico. Em vez de um olhar civilista, de Direito privado, por assim dizer, no qual geralmente tínhamos sido formados nos bancos da academia, atentos apenas à norma legal positivada e desconectada do contexto hierarquizado do ordenamento, agora uma visão publicista do Direito, ou seja, a visão de todo o ordenamento jurídico sistematizado, aplicado e principalmente interpretado pelo influxo dos princípios constitucionais. Há um texto clássico e muito conhecido do Professor Geraldo Ataliba nessa matéria, denominado “República e Constituição”2, que nos abriu fronteiras. 2009 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 37
“essa circunstância institucional não passou desapercebida a uma plêiade de jovens juristas nacionais, que passou a desenvolver uma doutrina de maximização da interpretação e aplicação dos princípios constitucionais como forma de contrastar os atos totalitários do governo.”
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É claro que esse confronto entre os atos de um governo totalitário, advindos principalmente do Governo Federal, e os princípios constitucionais, desaguou na juris dição federal e daí a Justiça Federal começou a crescer e amadurecer. Os juízes federais controlaram então, pelo princípio da legalidade, por exemplo, o abuso do poder regulamentar do Poder Executivo, principalmente no campo tributário. Depois, no final da década de 1970, o Judiciário federal foi além e impôs a responsabilidade civil do Estado pela tortura e morte de presos políticos, tendo em conta o princípio da responsabilidade civil do Estado existente na Constituição da época, antecipando, assim, pelo exercício da jurisdição, a redemocratização do País. Seguiu-se a época dos aumentos do Sistema Financeiro da Habitação e da enxurrada de ações que foram propostas na Justiça Federal. As filas para protocolo na distribuição davam volta no quarteirão do Fórum Pedro Lessa. Esses são apenas alguns tópicos sumários usados para realçar que a Justiça Federal já tinha personalidade marcada no seio da cidadania e a seu serviço, quando da promulgação da Constituição de 1988, que veio pelo artigo 27, § 6º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, criar os Tribunais Regionais Federais, sediados em quatro estados e no Distrito Federal, como áreas regionalizadas de jurisdição federal de 2º grau, em substituição ao extinto Tribunal Federal de Recursos. Dessa forma, em 30 de março de 1989, foram instalados oficialmente os cinco Tribunais Regionais Federais, entre os quais o da Terceira Região com jurisdição sobre os estados de São Paulo e Mato Grosso do Sul. Na solenidade de inauguração, que hoje relembramos nesta cerimônia, tomaram posse como juízes de 2ª instância, quatorze juízes federais, dois membros do Ministério Público Federal e dois advogados. São eles, Milton Luiz Pereira — nosso primeiro presidente —, Homar Cais, Américo Lacombe, Oliveira Lima, Jorge Scartezzini, Ana Scartezzini, José Kallás, eu mesmo, Anna Maria Pimentel, Fleury Pires, Lúcia Figueiredo, Grandino Rodas, Souza Pires, Diva Malerbi, Célio Benevides, Aricê Amaral, Pedro Rotta e Silveira Bueno. A todos os juízes instaladores do nosso Tribunal, muitos dos quais aposentados e aqui presentes, eu saúdo na pessoa de uma grande jurista e magistrada, uma pessoa sobretudo de alma grande e sonhadora, sempre “inconformada”, conforme expressão que ela mesma usava, contra qualquer injustiça, que hoje convalesce de um problema de saúde: a desembargadora federal aposentada e professora Lúcia Figueiredo, exemplo de dedicação, honradez e caráter. Essa é a origem do nosso Tribunal. Composto por juízes jovens, formados durante e na passagem da Ditadura Militar para a reabertura democrática, arqueólogos das liberdades públicas e dos princípios constitucionais para a defesa jurisdicional da cidadania contra o arbítrio, numa visão pluralista e publicista do Direito.
Muitos temas relevantes consolidaram a história da Justiça Federal a partir da instalação do nosso Tribunal. Cito apenas alguns que me lembro no momento e que geraram milhares de processos: o empréstimo compulsório sobre veículos, combustíveis e bilhetes aéreos; a contribuição ao Finsocial; o IOF; a correção monetária do FGTS; a correção monetária das cadernetas de poupança em razão dos diversos planos econômicos, dentre muitos outros. Em todas essas lides que vieram à Justiça Federal da nossa região, o Tribunal cumpriu seu dever constitucional de disponibilizar aos jurisdicionados o seu maior atributo, que é a sua integridade institucional em defesa da Constituição e das leis que lhe sejam harmônicas. Faço especial destaque a um caso paradigmático na história deste Tribunal, que muitos de nós vivemos. Foi por ocasião de uma memorável sessão plenária, realizada em abril de 1991, ainda no prédio do Tribunal no Largo de São Francisco, no julgamento de uma arguição de inconstitucionalidade de dispositivos da Lei nº 8.024, de 1990, que instituiu o bloqueio dos ativos financeiros do Plano Collor, tirado em apelação em mandado de segurança impetrado pelo Professor Fábio Konder Comparato em causa própria e relatado pelo desembargador federal, hoje aposentado, Américo Lacombe. Era o primeiro julgamento no País, em segunda instância, do chamado Plano Collor. Pois nosso Tribunal declarou a inconstitucionalidade da lei que instituía o plano à unanimidade, o que, em matéria de tamanha relevância naquela época, não seria a princípio de se esperar. Todos nós presentes naquele momento, juízes, advogados, Ministério Público, saímos daquela sessão de julgamento em estados de graça, certos de que aquilo era um Tribunal. Esse julgamento histórico teve incontestável impor tância para o exercício efetivo do controle difuso da constitucionalidade das leis no nosso país, significando a maturidade de um Tribunal, ainda que muito jovem, e um gesto de aproximação da Justiça Federal com a cidadania. Tanto é assim que foi depois desse episódio que o Executivo federal começou a formatar o aumento do controle concentrado da constitucionalidade e a ação direta de constitucionalidade. Importa remarcar, ainda nesse episódio, um registro muito importante e que deve servir de inspiração para graves problemas da jurisdição nos dias atuais. Na verdade, quem operou a derrocada daquele plano econômico foi a Justiça de primeira instância, os juízes federais de primeiro grau, pois quando os processos tiveram acesso aos tribunais superiores as decisões concessivas dos juízes federais já estavam disseminadas por todo o País e na época não havia súmula vinculante, nem ação declaratória de constitucionalidade, nem estava hipertrofiado o controle concentrado da constitucionalidade. Aqui, bem se vê o quanto é fundamental para a Magistratura e principalmente para a cidadania de um Estado Democrático de Direito, de um lado, o prestígio à
jurisdição de primeiro grau no exercício do controle difuso da constitucionalidade e, de outro, as plenas garantias da Magistratura como apanágios maiores da independência do julgador e da integridade constitucional do jurisdicionado. Já em 1857, José Antônio Pimenta Bueno, Marquês de São Vicente, o mais ilustre comentarista da Constituição do Império, anotava sobre o tema da independência da autoridade judicial do magistrado que ele assim definia3: “a faculdade que ele tem, e que necessariamente deve ter de administrar a justiça, de aplicar a lei como ele exata e conscienciosamente entender, sem outras vistas que não sejam a própria imparcial justiça, a inspiração do seu sagrado dever. Sem o desejo de agradar ou desagradar, sem esperanças, sem temor algum”. acrescentando: “A independência do magistrado deve ser uma verdade, não só de direito como de fato; é a mais firme garantia dos direitos e liberdades, tanto civis como políticas dos cidadãos; é o princípio tutelar que estabelece e anima a confiança dos povos na reta administração da justiça; é preciso que o povo veja e creia que ela realmente existe.” Mas não basta a previsão das prerrogativas da Magistratura na Constituição. É fundamental que o juiz singular ou colegiado não se sinta constrangido no estrito exercício jurisdicional por coerções de qualquer ordem. Enquanto no exercício estrito da jurisdição, o juiz não pode ser cobrado pelo mérito de suas decisões fora dos autos, inclusive por críticas públicas de membros do mesmo ou de outros poderes, que não concordem com os seus fundamentos. para isso, há o exercício do devido processo legal através do julgamento dos recursos. O assédio de notícias ou pedidos de informações sucessivos que possam levar o juiz a se explicar constantemente fora dos autos em que as prolatou, pelo mérito das suas decisões, nos parece claro atentado às suas prerrogativas e, como tal, deve ser combatido, porque agressivo ao Estado Democrático de Direito. Senhoras e Senhores, a Justiça Federal da 3ª Região contava, em 1989, ano da instalação da nossa Corte, com 37 Varas Federais, sendo apenas cinco delas interiorizadas: uma, na cidade de Ribeirão Preto; uma, em São José dos Campos, desde 1987; e três, em Santos, desde 1988. Contava, então, com 34 juízes federais. Hoje, graças ao trabalho incansável de todos os corpos diretivos que passaram pela Presidência da Corte, possuímos o total de 174 Varas Federais, sendo: 64 na Capital, incluindo 12 Varas-Gabinete, integrantes do Juizado Especial Federal Cível, e 96 Varas no interior paulista. No Mato Grosso do Sul, são 14 Varas Federais e uma Vara-Gabinete no Juizado Especial. Temos, agora, 173 juízes federais titulares e 114 substitutos atuando na primeira instância. Merece destaque particularmente especial na Terceira Região, a criação dos Juizados Especiais Federais, implantados de forma pioneira no Judiciário brasileiro no ano de 2002. 2009 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 39
“a história da Justiça Federal e do nosso Tribunal é a história do crescimento e florescimento do Direito público em nosso País!”
Refiro-me aos autos virtuais, sem nenhuma utilização de papel e com procedimentos totalmente eletrônicos, desde a apresentação da petição inicial até a sentença, modelo que significou, na época, uma mudança revolucionária, tanto na rapidez do andamento dos processos quanto na efetividade da jurisdição. Atingimos, então, marcos memoráveis nos processos previdenciários, como, por exemplo, o prazo de 90 dias na tramitação processual da inicial até a sentença e pagamento pelo INSS em quinze dias. Esse formato de Juizados Especiais que nosso Tribunal instalou, de início apenas em relação aos processos previdenciários — incluindo, também, o modelo da VaraGabinete, ou seja, uma secretaria para vários juízes —, sendo os autos virtuais, seu trâmite processual restou simplificado, espalhou-se por todo o País, adotado e remodelado às peculiaridades locais pelos outros Tribunais Regionais Federais. A instalação dos Juizados Especiais por este Tribunal foi um marco memorável para toda a Justiça Federal da 3ª Região, que proporcionou a aproximação entre o cidadão comum, principalmente, o mais desfavorecido, e o Judiciário federal, abrangidos num projeto original voltado para uma justiça social distributiva e célere. Não faltou a este Tribunal iniciativa. Demos, nessa ocasião, passo próprio sem esperar sustentação de outros Poderes. Criamos programa de computador para os autos virtuais, com recursos próprios, elaborado pelos nossos funcionários, com baixíssimo custo. Instalamos as Varas-Gabinete, inspirados em modelo americano conhecido por nossos juízes. Ousamos, enfim, dar passo próprio. 40 • JUSTIÇA & CIDADANIA • ABRIL 2009
Há, na Abadia de Westminster, na Inglaterra, nas suas catacumbas, uma inscrição quase simplória, mas que muito me impressionou. Transmito-a, aproximadamente, de memória e em tradução descomprometida: “Quando eu era jovem, pensei que pudesse mudar o mundo; mais maduro, pensei que pudesse mudar o meu país; na velhice, tentei mudar minha família; agora, nessa lápide em que meus restos repousam, compreendo que durante minha vida só podia tentar mudar a mim mesmo; aí, talvez, pudesse influenciar mudanças na minha família, no meu país e, quem sabe, no mundo.” A Justiça Federal da 3ª Região, nessa quadra, mudou a si mesma. No final da década de 1990, ficamos com esta sede na Avenida Paulista, inaugurada em 22 de fevereiro de 1999, o que nos proporcionou estrutura para crescimento, à mercê da personalidade empreendedora do nosso presidente de então e, hoje, ministro aposentado do Superior Tribunal de Justiça, Jorge Scartezzini. A olhos vistos, a nossa Justiça Federal da 3ª Região cresceu assim como o nosso Tribunal, o maior dentre os cinco regionais. Passamos de dezoito desembargadores federais para vinte e sete e, depois, em 2003, para quarenta e três. Possivelmente, poderemos ser em maior número dentro em breve. Mais do que tudo, nosso Tribunal amadureceu ainda muito jovem e realizou, na sua história, grandes feitos em prol da jurisdição. Só mostramos alguns, para registrar o que, de fato, importa: a história da Justiça Federal e do nosso Tribunal é a história do crescimento e florescimento do Direito público em nosso País! Não se olha mais o ordenamento jurídico como antigamente, de baixo para cima, das normas administrativa à norma legal até a Constituição. Mas, de cima para baixo, do cimo da Constituição para a planície da norma legal. E, não só quanto propriamente ao controle da constitucionalidade, mas, fundamentalmente, no campo da hermenêutica: são os princípios constitucionais que inspiram a interpretação do ordenamento jurídico infraconstitucional, cuja aplicação deve estar conforme a ela. Essa visão publicística do Direito, hoje absolutamente sedimentada tanto na doutrina quanto na jurisprudência, mas nem por isso sempre lembrada, é fruto histórico da atuação da Justiça Federal e dos Tribunais Regionais Federais. E, no que nos concerne, esse é o legado maior do Tribunal Regional Federal da 3ª Região à cidadania! Disse, há alguns anos, um renomado professor de Direito em palestra que confia no Judiciário, na razão inversa das suas instâncias. Mas, no tempo atual, esse entendimento merece um reparo. Não se pode deixar de reconhecer ao Supremo Tribunal Federal, atualmente, uma posição baluarte na reafirmação dessa visão
publicista do Direito, que tantos benefícios proporcionou à cidadania no controle jurisdicional do governo e que remanesce esquecida, às vezes, pela própria jurisdição. É que o totalitarismo tem um grande e muito variado guarda-roupa. Volta com vestimentas tão diversas e, por vezes, tão encantadoras, que só lhe vemos as atraentes vestes e não seus atos e, muito menos, as suas intenções. É preciso perceber as lições da história. Ontem, atos totalitários do governo, combatidos pela Justiça Federal e pela Corte em seus feitos históricos; hoje, atos igualmente totalitários de algumas instituições estatais, os quais parte da mídia envaidece e o público aplaude como modelo de todas as virtudes: panem et circenses. Mas nosso Tribunal, na esteira do exemplo do Supremo Tribunal Federal, ao contrário, tem remarcado o nosso compromisso com seu legado, a visão publicista do Direito, com a prevalência dos princípios constitucionais em prol da vida e da liberdade, antes do que qualquer engajamento pessoal de qualquer magistrado em causas outras, por mais nobres que sejam. Nesse contexto, ao acaso e sem nenhuma referência pessoal, lembro, por exemplo, da causa do combate à criminalidade, que, sem dúvida, é válida e muito relevante, até mesmo primordial, mas desde que perseguida pelo juiz e por toda a sociedade com o devido respeito aos princípios constitucionais e às liberdades públicas. O Judiciário, é bom que se diga, não precisa de heróis mediáticos, combatentes do mal. O Judiciário precisa só — e isso já é muito — de bons juízes, em cuja independência e integridade a sociedade possa confiar quando da aplicação da lei aos casos concretos. Sim, porque a lei, em si, é fria e sem vida. Já escrevia Cassiano Ricardo em “O erro de cada dia”: “O homem da lei decreta que não haja mais fome, que não haja mais frio, que sejamos irmãos, uns dos outros, datilograficamente.” O Poder Judiciário Federal da 3a Região precisa de juízes com visão publicista do ordenamento jurídico, inspirados pelo exemplo da história deste Tribunal que remarca esse legado, imbuídos da missão de dar vida à lei na sua aplicação aos casos concretos pelo sol da luz dos princípios constitucionais. Bem proclamou Benjamin Franklin: ‘Aqueles que se dispõem a renunciar à liberdade essencial em troca de uma pequena segurança temporária não merecem liberdade nem segurança’. Muito obrigado.”
Remissões SHAKESPEARE, William. “Hamlet” ATALIBA, Geraldo. “República e Constituição”. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1985 3 Apud “Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império.” Senado Federal, n° 457, ed. 1978, p. 324. 1 2
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ORDEM PÚBLICA E AS MEDIDAS PROVISÓRIAS
Júlio Aurélio Vianna Lopes Pesquisador da Casa de Rui Barbosa
A
Editoria da Revista, considerando este um dos assuntos mais importantes apresentados perante a Câmara dos Deputados, ouviu o pesquisador em Direito da Casa Rui Barbosa e cientista político, professor Júlio Aurélio Vianna Lopes, que está lançando no dia 29 de abril corrente no Centro Cultural da Justiça Federal, com a presença do relator da Assembleia Nacional Constituinte, Dr. Bernardo Cabral, obra resultante das pesquisas que percorrem os temas debatidos e positivados durante a elaboração da atual Constituição Federal. O livro tem o título: “A Carta da Democracia”. A matéria tratada pelo renomado pesquisador vem ao encontro da feliz e oportuna iniciativa do presidente Michel Temer de delimitar as medidas provisórias e pôr cobro ao absurdo da paralisação das votações legislativas, dada a enxurrada de medidas enviadas constantemente pelo Poder Executivo, que impedem e tumultuam o pleno funcionamento do Congresso Nacional. Segundo o pesquisador Júlio Aurélio a iniciativa do Presidente da Câmara dos Deputados Federais está em sintonia com a principal conclusão das pesquisas contidas na obra “A Carta da Democracia”, que tem relevante prefácio do exsenador Bernardo Cabral, partícipe principal da elaboração da Carta Magna de 1988. Revista Justiça & Cidadania – Como foi a pesquisa sobre a formação da Carta de 1988? Júlio Aurélio Vianna Lopes – À Casa de Rui Barbosa foram doados, pelo Senado Federal, os Anais Constituintes. Com todo o material à disposição, pude pesquisar os debates ideológicos e as decisões políticas dos vários temas constitucionalizados. O resultado é o livro “A Carta da Democracia – O processo constituinte da ordem de 1988”, publicado pela editora Topbooks.
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JC – Como foi a elaboração constitucional? JA – Foi um processo constituinte, em geral, por acordos entre suas duas maiores correntes: uma centro-esquerda, mais publicista e nacionalista, concentrada na Comissão de Sistematização da Assembleia (liderada por Mário Covas e Bernardo Cabral) e uma centro-direita, mais privatista e globalizante, concentrada no movimento intitulado “Centrão” (liderada por José Lourenço e Daso Coimbra, entre outros). Exceto algumas questões, como reforma agrária, juros bancários e sistema de governo, o entendimento político entre ambas as correntes definiu a dinâmica da Assembleia, impondo-a às esquerdas e, especialmente, à direita liderada por Amaral Netto. A administração da tensão ideológica entre os dois maiores grupos constituintes explica a proeminência assumida por Ulysses Guimarães (Presidente da Assembléia) e Bernardo Cabral (que, de relator da Comissão de Sistematização, passou a relator-geral da Assembleia). JC – Quais temas poderiam ter sido melhor elaborados? JA – Quando havia divisões internas nos blocos constituintes da Sistematização e do “Centrão”, como se deu em alguns temas — dentre os quais se pode destacar o conceito de produtividade de imóveis rurais, o regime dos juros bancários e, especialmente, o regime de governo (presidencial ou parlamentar) —, votações atabalhoadas por excessivos pedidos de esclarecimento dificultaram ou mesmo impediram a promoção mais abrangente dos debates pelas lideranças. O caso mais intenso de dissociação entre as correntes constituintes, abortando tentativas de concessões mútuas entre elas, foi o encaminhamento do regime de governo. No “Centrão” era tamanha a divisão que sequer houve proposta coletiva do movimento sobre o assunto (embora ela também fosse significativa na Sistematização). As tendências parlamentaristas
Foto: Arquivo Pessoal
e presidencialistas, apesar das iniciativas de algumas lideranças neste sentido, não confluíram num sistema híbrido coerente que angariasse o consenso obtido em outros temas da ordem pública. Assim, o presidencialismo aprovado na sessão de 23 de março de 1988 continha ainda mais elementos do regime de gabinete que nosso atual formato institucional, de modo que conseguiu desagradar ambas as correntes nas críticas posteriores à decisão tomada, mas sem unificá-las no empenho de compatibilizálos ao regime presidencial. Os alertas de lideranças, como do deputado Michel Temer e do próprio relator Bernardo Cabral, foram verdadeiros vaticínios sobre o desdobramento que adviria do modo como as medidas provisórias foram inseridas no sistema político.
instrumentalização — dada sua indelimitação formal — de modo a obstaculizar o exercício legislativo e instabilizar o exercício jurisprudencial, pela sua edição, virtualmente, sem peias. JC – Neste sentido, a proposta do atual Presidente da Câmara dos Deputados, Dr. Michel Temer, de restringir o escopo das medidas provisórias, contribui para aperfeiçoar nossa ordem constitucional? JA – Mais do que aperfeiçoá-la, ela a completa. É a reforma constitucional de maior importância histórica para o nosso sistema político, pois assentar o regime de governo é condição fundamental para a coesão dos demais segmentos da institucionalidade, como o funcionamento do sistema eleitoral e partidário. Estou absolutamente empolgado com a iniciativa do Presidente Michel Temer, pois a principal conclusão das pesquisas foi revelar a dificuldade constituinte de confluir nesta parcela da ordem constitucional. Merece o apoio de todas as forças políticas e da comunidade jurídica em geral, de onde sempre provieram críticas da banalização das medidas provisórias. Fixar as matérias que possam ser objeto de medida provisória conferiria previsibilidade mínima ao instituto, a qual, ao contrário do que se poderia imaginar, prestigia o Presidente da República, já que os temas a serem explicitados seriam, obviamente, de acentuada relevância para o País. Propiciaria maior estabilidade à produção jurisprudencial do Judiciário, que exerceria, de modo mais concentrado, o cotejo entre matérias correlatas e legisladas. Restauraria o Legislativo no sistema de Poderes, ao favorecer maior equilíbrio na sua relação com o Executivo, para compartilhar o destino da ordem jurídica. Enfim, solidificaria as instituições básicas do presidencialismo semi-parlamentar brasileiro como experiência histórica. Todos precisamos apoiar a iniciativa do Presidente Michel Temer, pois seu sucesso fortalecerá a democracia brasileira.
JC – Isto explicaria as dificuldades políticas e jurídicas trazidas pela magnitude das medidas provisórias, desde a Carta de 1988? JA – A pesquisa nos registros constituintes localizou a fonte dos problemas embutidos na medida provisória: ela galvanizou apoios parlamentaristas e presidencialistas por razões diversas (respectivamente, prestigiando a figura de eventual PrimeiroMinistro ou atualizando a tradição dos decretos-leis), mas não foi objeto, após a vitória do sistema presidencial, de uma ampla negociação para assentar sua operacionalidade; o que se fazia imprescindível, pois estávamos forjando um presidencialismo no qual se incrustavam institutos parlamentaristas. Esta adaptação continua tão imprescindível hoje quanto na época e sua necessidade não foi suprida pelo plebiscito de 1993, já que ele apenas ratificou o padrão presidencial do sistema, sem dispor de seus acessórios parlamentaristas. Em matéria de regime de governo, acessórios são igualmente essenciais. A falta de uma discussão política ampla para coadunar a medida provisória no regime presidencial propiciou sua 2009 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 43
A FÚRIA ARRECADATÓRIA BRASILEIRA
Raphael Santos Salles Advogado
“(...) a legislação existente, confusa, complexa, mal elaborada, que gera as mais variadas interpretações, leva os especialistas e os contribuintes ao desnorteio. Mesmo quando pensam estar cumprindo rigorosamente a lei, são surpreendidos por exegeses ‘convenientes e coniventes’, cujo objetivo único é aumentar a arrecadação tributária através de restrições de direito.” Ives Gandra da Silva Martins
T
odos nós brasileiros estamos cansados de pagar tantos impostos. A discussão já se tornou cansativa para todos, visto que muito se fala, mas pouquíssimo se faz. Aliás, parece que, infelizmente, no Brasil, a teoria dificilmente é aplicada na prática e as soluções costumam ser paliativos de uma doença que tem cura, mas falta interesse em tratá-la. Típico de nossa pátria. Pátria esta, que, como um filho mimado e pródigo, gasta o que não tem com supérfluos, atendendo aos interesses diretos do Executivo, obrigando o contribuinte a abarrotar o Judiciário com questões, muitas vezes, óbvias, mas que não são obedecidas pelos entes públicos. A propósito, situação difícil a do Poder Judiciário, pois, de um lado, tem a Lei para ser aplicada e, de outro, um Governo que não pode cumpri-la, sob pena de esvaziar seus recursos financeiros, que seriam aplicados, também, em prol da Nação brasileira. As excrescências governamentais parecem não ter fim. O inchaço da máquina pública vem atingindo recordes, obrigando a majoração da carga tributária nacional à uma queda-de-braço entre o lógico e a gastança, em que os prejudicados somos nós brasileiros. 44 • JUSTIÇA & CIDADANIA • ABRIL 2009
Recentes dados divulgados pelo IBGE e Receita Federal informam que a carga tributária nacional representou mais de 35% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2007. Quer dizer: mais de 1/3 de toda riqueza gerada em um ano no Brasil foi destinado ao pagamento de tributos e, com o histórico de elevação que se observa todo ano, é certo que teremos um aumento deste percentual para 2008. O efeito mais devastador da elevada manutenção fiscal/ tributária brasileira é o emperramento do progresso. O Governo não pode suprir a falta de emprego e de giro econômico, com aumento de cargos e despesas públicas. É, no mínimo, irresponsável manter tal política, pois o déficit atingirá patamares que obrigarão um natural encolhimento dessa gastança, além de aniquilar o setor privado. Setor privado este, que é o grande responsável pelo fomento nacional e está estagnado pela falta de estímulo econômico governamental. A impressão que se tem é que, se não puder contar com uma matriz estrangeira que suporte e sufoque a concorrência com capital externo, dificilmente, uma empresa sobreviverá no Brasil. E as que conseguem são mal tratadas pelo Governo, suportando todo tipo de tributo que um Legislativo pode criar, obrigando-as, em
Foto: Arquivo Pessoal
muitos casos, a inadimplir com as obrigações tributárias para sobreviver. A triste equação é evidente nestes casos, senão vejamos: falta dinheiro no custeio público, aumenta-se os impostos. Estrangulado, o setor privado não consegue arcar com tais custos fiscais e começa a inadimplir com as obrigações tributárias. Tal aumento da inadimplência gera arrocho fiscalizatório, com altíssimas autuações fiscais. A empresa fecha as portas, aumentando o desemprego, desaquecendo a economia e enfraquecendo a indústria nacional. Obviamente que não se quer estimular a inadimplência. Porém, se a política fiscal nacional fosse mais inteligente, com a diminuição da carga tributária, tornar-se-ia mais fácil e possível pagar impostos, aumentando a arrecadação, com a consequente diminuição da inadimplência, fomentando a economia nacional. Pena que o óbvio, quase nunca, é aplicado em nosso país. Certa vez, um empresário estrangeiro disse: “o dia em que o Brasil parar de tomar decisões baseadas em consequências, haverá, finalmente, progresso”. De fato, nossa política tributária é um exemplo fiel de nossa tendência em reagir e não agir.
“A triste equação é evidente nestes casos, senão vejamos: falta dinheiro no custeio público, aumenta-se os impostos. Estrangulado, o setor privado não consegue arcar com tais custos fiscais e começa a inadimplir com as obrigações tributárias.”
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mandado de segurança para exame de atos judiciais
Júlio César Ballerini Silva Juiz de Direito do TJ/SP
O
escopo do presente trabalho não deixa de levar em consideração que se cuida de apreciar a questão referente ao confronto entre a técnica processual e a efetividade do ordenamento jurídico como um sistema harmônico e complexo. Isso porque, como sabido, a questão trazida a exame não deixa de envolver elementos básicos da teoria geral do processo, posto que, em primeiro lugar, o que se deve ponderar é a ocorrência, ou não, de possibilidade de reexame de uma decisão judicial. Assim, em sede inicial, a primeira preocupação que se deve ter é a de identificação do objeto que se analisa no presente trabalho, posto que, como se sabe, e tal resta ensinado por balizada doutrina, os atos judiciais se distinguem dos atos das partes e podem ser divididos em atos processuais materiais e atos decisórios, ou provimentos.1 Com relação aos primeiros, a parte prejudicada deverá suscitar que o juiz se manifeste em sede decisória a respeito dos mesmos, para que, então, se tenha que o ato material acabe por se converter em ato decisório (provimento), a fim de que, então, se possa impugná-lo mediante o recurso adequado (como igualmente é sabido, embora exista divergência acerca do caráter de direito fundamental do instituto, o duplo grau de jurisdição, ainda que implicitamente, está previsto na Constituição Federal2). Diante disso, tem-se que, por uma doutrina mais tradicional, a forma de impugnação de um ato judicial, mormente se cuidar de um provimento, será a interposição de uma peça recursal que seja adequada àquela situação. Reforça tal entendimento, sob um prisma eminentemente 46 • JUSTIÇA & CIDADANIA • ABRIL 2009
técnico-processual, a constatação segundo a qual, em sendo o mandado de segurança uma ação autônoma de conhecimento, com rito especial previsto pela Lei nº 1.533/51, o mesmo se sujeita ao preenchimento de todas as condições da ação e pressupostos processuais para que seja viável o exame de seu mérito. Assim, para que se torne possível a impetração de um mandado de segurança, devem se fazer presentes as condições da ação, dentre as quais se inclui o interesse de agir, sendo certo que tal interesse, como destacado por copiosa doutrina, tem sido entendido como decorrente da conjunção de dois requisitos, a saber: a necessidade (enquanto utilidade) e a adequação.3 Daí, se houver recurso adequado para a impugnação de um determinado ato judicial em respeito a esses dogmas técnicos, parece inescusável que não haveria necessidade de impetração de uma ação de mandado de segurança, a qual, inclusive, não seria adequada para tanto, de modo que haveria falta de interesse de agir a viabilizar o exame do meritum causae (a ação mandamental estaria fadada, nessas condições, a ser julgada extinta, sem o julgamento de seu mérito, por força da norma contida no artigo 267, inciso VI, do Código de Processo Civil). Outro dado a se considerar é o de que a própria lei de regência do procedimento, em sede de mandado de segurança, a Lei nº 1.533/51, foi expressa em consignar, na sua norma contida no artigo 5º, inciso II, a vedação da possibilidade de concessão de segurança quando se cuidar de situação em que o ato judicial (na forma de provimento jurisdicional ante o destacado nas linhas acima) puder ser reexaminado por recurso previsto nas leis processuais ou por correição.
“Diante disso, tem-se que, por uma doutrina mais tradicional, a forma de impugnação de um ato judicial, mormente se cuidar de um provimento, será a interposição de uma peça recursal que seja adequada àquela situação.”
Atenta a essa gama de fatores, a jurisprudência pátria não tardou a cristalizar o entendimento de que, em regra, não seria possível a impetração de mandado de segurança contra ato ilegal perpetrado por Magistrado, o que somente seria possível acaso se cuidasse de ato não passível de reexame por recurso (remédio processual típico ao reexame de provimentos) ou correição (atividade aferidora de desvios funcionais do magistrado, se os seus atos se derem em contrariedade aos termos da Lei Orgânica da Magistratura Nacional — Loman ou Lei Complementar nº 35/79 4). Tanto assim que o Supremo Tribunal Federal cuidou a respeito do tema, acabando por editar a sua Súmula 267, que tem como enunciado, em linhas gerais, o óbice ao cabimento de mandado de segurança acaso se cuide de ato judicial passível de reexame por recurso ou correição. Mas, por outro lado, o que não se pode perder de vista é o fato de que o mandado de segurança, não obstante assegurado por norma legal ordinária (a norma contida no artigo 1º da referida Lei nº 1.533/51), encontra fundamentação em norma de índole superior, qual seja aquela contida no artigo 5º, inciso LXIX, da Carta Política de 5/10/88. E, sob o pálio da norma constitucional, tem-se que será cabível o mandado de segurança toda vez que uma pessoa residente e domiciliada no País (artigo 5º, caput, do texto constitucional em comento), tiver direito líquido e certo (aquele que pode ser documentalmente comprovado, tornando desnecessária a produção de prova oral5) violado por ato ilegal (coator), de autoridade pública ou seu agente. Desta feita, percebe-se que o texto constitucional não limita a extensão da proteção, prevendo o conhecido writ of
mandamus apenas e tão somente em face do administrador público, o que, deste modo, não impede que se utilize a expressão autoridade pública, numa acepção mais ampla, inclusive, abrangendo outros agentes políticos do Estado, como, verbi gratia, os juízes de direito e demais membros do Poder Judiciário. E, dentro desta ordem de ideias, tendo em vista que a Constituição Federal da República Federativa do Brasil acolheu o sistema da pirâmide normativa — pelo qual o que confere validade a uma norma jurídica é justamente, outra norma jurídica que lhe é superior, estando ambas em conformidade6 —, se o texto constitucional (o qual somente não seria superior ao conceito de norma hipotética fundamental) não limita a extensão da liberdade pública, não poderia a lei inferior (no caso, a Lei nº 1.533/51, lei federal infraconstitucional) restringir-lhe a eficácia e o alcance, sob pena de se tê-la como lei não recepcionada pela ordem constitucional. Mas a questão não é tão simples como delineado acima, em mera lógica formal, posto que, igualmente, se tem como outra garantia constitucional o respeito ao devido processo legal (artigo 5º, inciso LIV, da Constituição Federal), ou seja, garantia constitucional pela qual as pessoas residentes e domiciliadas no território nacional têm direito a ser processadas nos limites das normas processuais que disciplinam os ritos. Ora, tem-se, desta feita, outra norma constitucional, portanto de mesma hierarquia, promulgada na mesma data e que não pode ser tida como especial ou geral em relação àquela que garante a impetração do mandado de segurança contra atos ilegais de autoridade pública e seus agentes, violando direitos líquidos e certos, trazendo disciplina aparentemente antagônica a esta, eis que pregaria o respeito às formas processuais estabelecidas. Tudo isso sem prejuízo do próprio princípio do acesso ao Poder Judiciário, previsto pela norma contida no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, que garante a todos o acesso ao Poder Judiciário, em casos de lesão ou ameaça de lesão a direito. Ora, tal acesso não deve ser tido como meramente formal, mas, ao contrário, deve ser tido como o mais amplo possível, e não apenas no que tange ao ingresso da demanda, como também no que se refere à efetividade da máquina judiciária em conseguir deferir tempestivamente as tutelas pretendidas, garantia constitucional que poderia ser afrontada, do ponto de vista prático, com a vulgarização de mandados de segurança, irregularmente empregados como sucedâneos de recursos, de modo a que se pretenda, em toda e qualquer situação, obter-se liminares para efeitos suspensivos recursais sequer imaginados pelo legislador pátrio, o que não se pode conceber, por razões óbvias. Assim, verifica-se, sem grande dificuldade, que os principais parâmetros para a solução de conflito aparente entre normas não podem resolver a questão suscitada, ou seja, não há uma norma que seja inferior ou superior à outra (ambas são incisos do artigo 5º da mesma Constituição Federal), e, diante disso, 2009 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 47
tem-se que ambas foram promulgadas na mesma data, qual seja, 5/10/88 (logo, igualmente, não se resolve tal conflito aparente, ou antinomia7, pelo princípio segundo o qual lei posterior revoga lei anterior). Por fim, ambas acabam, neste contexto, se referindo ao processamento de uma ação de conhecimento (no caso, o mandado de segurança), de modo que, igualmente não se pode aduzir que uma seja geral, ou mesmo especial, em relação à outra, o que impede a resolução da polêmica pela regra segundo a qual lei especial revoga, no particular, a lei geral. Em situações como esta o que se tem é que o conflito somente será resolvido pela aplicação do princípio da razoabilidade ou proporcionalidade, eis que necessário será o sacrifício de um dos dois princípios pela aplicação da lógica do razoável, enquanto critério de consecução da justiça.8 E isso ganha maior relevância, se for constatado que a própria norma contida no artigo 5º, inciso XXXV, da mesma Constituição Federal traz, como outra liberdade pública, a garantia do direito de ação, como aduzido acima, na medida em que se estabelece que não se excluirá de apreciação pelo Poder Judiciário, lesão ou ameaça de lesão a direito. Desta feita, estando o juiz (em sentido lato) adstrito ao papel constitucional de prestar a jurisdição, ou seja, de analisar lesões ou ameaças de lesões a direitos, parece mais consentâneo com a garantia de tal liberdade pública, o entendimento pelo qual se deva privilegiar a impetração de mandados de segurança contra atos judiciais, ainda que em detrimento a cânones de direito processual, para preservar a intenção do legislador constituinte, de facilitar a defesa dos particulares contra atos ilegais de autoridades públicas, o que atenderia ao princípio da proporcionalidade a que se fez referência acima. Mas isso não pode ser tido e vulgarizado como uma regra geral, de modo que possa ser entendida como uma verdadeira válvula de emperramento do aparato judicial estatal, permitindo-se, de forma quase que automática, concessões de medidas liminares, sustando-se a eficácia de decisões judiciais, sistematicamente, sobretudo contra legem (o que ocorreria acaso se pretendesse a concessão de uma medida liminar, desta natureza, em mandado de segurança contra ato judicial impugnável por recurso em relação ao qual não seria previsto efeito suspensivo). Parece óbvio, no entanto, que como o que se tem é uma análise de razoabilidade, não se pode pretender o estabelecimento de uma regra exata, com precisão matemática, devendo-se analisar caso a caso as situações em que se admitiria a aplicação de tal proporcionalidade. Isso ganha denotada importância, sobretudo em momentos próximos aos pleitos eleitorais, em matéria de direito processual eleitoral, no qual, pelas peculiaridades que revestem a matéria, os processos devem ser resolvidos de forma célere, sob pena de se ter acarretado danos irreparáveis. Ora, sabe-se que as questões e os incidentes surgidos no bojo de uma campanha eleitoral devem ser julgados ainda 48 • JUSTIÇA & CIDADANIA • ABRIL 2009
dentro do certame, posto que, caso contrário, se não houver celeridade, o efeito do tempo será altamente deletério à garantia de direitos líquidos e certos em pauta. Nessas condições, atento aos parâmetros destacados acima, se a interposição de um recurso não se fizer acompanhar de efeito suspensivo, ou se tal efeito suspensivo for provocar graves danos ao interesse da parte (o que, torna-se a insistir, deve ser analisado casuisticamente, da forma mais parcimoniosa possível), e, se a Instância Superior puder constatar ab initio a ilegalidade do ato do Juiz Eleitoral, ter-se-iam como presentes o fumus boni juris e o periculum in mora, o que implicaria na própria necessidade de acolhimento e análise de um mandado de segurança impetrado pelo interessado, ainda que contra ato judicial e não obstante o teor da orientação destacada na supramencionada Súmula 267 STF. Tal solução encontraria respaldo inclusive no poder geral de cautela do Juiz, para a análise das chamadas tutelas de urgência e de segurança9, pela douta Superior Instância, evitando que, por questões técnicas e burocráticas, às vezes destituídas de maior relevância, um direito líquido e certo, constitucionalmente assegurado, acabe se tornando inefetivo, o que não se pode conceber, por razões óbvias. Diante disso, o que se conclui, sem maiores dificuldades, é que, muito embora, em regra, não se possa utilizar o writ of mandamus, como sucedâneo do recurso ou ato correicional, de forma indiscriminada (se for constatado abuso doloso e intencional, a parte não estará livre de ser responsabilizada com a reprimenda destinada aos litigantes de má-fé, nos termos dos artigos 17, 18 e seus consectários do Código de Processo Civil), o que deve ser feito com parcimônia e responsabilidade, em certas situações de risco autorizadoras da proporcionalidade, notadamente quando patente o fumus boni juris (ou seja, quando a ilegalidade for patente, constatada ictu oculi) e, sobretudo, quando não se puder aguardar longos e complexos trâmites recursais, não resta vedada, ou ao menos impossível, a busca da tutela pela via do mandado de segurança, liberdade pública assegurada pela ordem constitucional vigente. Talvez, em observância a todos esses fatores, não têm sido incomuns decisões do próprio Tribunal Superior Eleitoral, em variadas situações, admitindo a impetração de mandados de segurança contra atos judiciais, em sede de Direito eleitoral. Neste sentido, à guisa de mera exemplificação, de se pedir vênia para destacar, dentre inúmeros outros, os seguintes julgados: MANDADO DE SEGURANÇA – ATO DO TRIBUNAL REGIONAL ELEITORAL DE PERNAMBUCO QUE AFASTOU O IMPETRANTE DAS FUNÇÕES DE JUIZ DA 41ª ZONA ELEITORAL DE CARUARU – ALEGAÇÃO DE OFENSA AO PRINCÍPIO DA INAMOVIBILIDADE DE QUE CUIDA O ART. 121, § 1º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL – Segundo o disposto no parágrafo único do art. 32 do Código Eleitoral, onde houver mais de uma Vara, o
Tribunal Regional Eleitoral designará aquela ou aquelas a quem incumbe o serviço eleitoral, não se vislumbrando no ato impugnado, outrossim, ofensa à Constituição.10 Como também: MANDADO DE SEGURANÇA – EMANCIPAÇÃO DE DISTRITO – SENTIDO DA EXPRESSÃO: “... CONSULTA PRÉVIA, MEDIANTE PLEBISCITO, ÀS POPULAÇÕES DIRETAMENTE INTERESSADAS”, DO ART. 18, § 4º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL – ELEITORES APTOS A VOTAR – É pacífico o entendimento do Tribunal Superior Eleitoral, no sentido de que estão aptos a votar, no plebiscito para criação de Município, todos os eleitores inscritos no distrito emancipando, que se expressam como legítimos representantes da população diretamente interessada. Assim, estando o eleitor vinculado à Seção Eleitoral indicada em seu título eleitoral (art. 46, § 3º, do CE), salvo caso de transferência, ainda que resida fora do Distrito, pode votar na consulta plebiscitária para a sua emancipação, como em qualquer outra eleição. Concedida segurança para cassar a decisão do TRE, e restabelecer julgado do Juiz Eleitoral, que considerou não atingido o quorum legal para a emancipação do Distrito. Confirmada a liminar. Precedentes da Corte11. E, ainda, no mesmo sentido: RECURSO ELEITORAL – PLEBISCITO DE EMANCIPAÇÃO MUNICIPAL – A admissibilidade de mandado de segurança não exclui o cabimento de recurso especial contra decisões de Tribunal Regional Eleitoral em matéria plebiscitária, que se afigura, ao contrário, corolário imperativo da Constituição e do Código Eleitoral. A alusão, no art. 22, inciso II, do Código, a recurso especial, “inclusive os que versarem matéria administrativa”, faz induvidosa que a esfera de admissibilidade do apelo não tem por critério de demarcação a natureza da decisão a quo, mas independentemente dela, a existência de questão federal, nos termos do art. 276 do mesmo diploma. A Constituição, por sua vez, contém cláusula restritiva da recorribilidade das decisões jurisdicionais do Tribunal Regional Eleitoral, como, também, ao contrário, contempla expressa previsão de recurso contra decisões regionais que, frequentemente, serão despidas de caráter jurisdicional (CF, art. 121, § 4º, inciso III). Insurgência contra jurisprudência da Corte para, no caso, em tese, admitir o recurso especial. Recurso não conhecido, todavia, no caso concreto12. O próprio Supremo Tribunal Federal, admite, em vários arestos, que a regra originária da Súmula 267, vem sendo abrandada em casos excepcionais. Neste sentido, verbi gratia de se consignar o trecho da decisão que se segue: DIREITO CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL – PETIÇÃO – OBJETO – DECLARAÇÃO
DE INCONSTITUCIONALIDADE DE LEI — INADMISSIBILIDADE: LEGITIMIDADE ATIVA (ART. 103, INCISOS I A IX, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL) – MANDADO DE SEGURANÇA CONTRA DECISÃO JUDICIAL – SÚMULA 267 – 1. Diz o enunciado 267 da Súmula da Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que não cabe mandado de segurança contra ato judicial passível de recurso ou correição. 2. No caso, cabia, em tese, Agravo Regimental contra a decisão judicial de Ministro do STF, que negou seguimento à Petição na qual o peticionário pleiteava a declaração, em tese, de inconstitucionalidade de Lei. E não foi interposto. 3. É certo que esta Corte, abrandando a rigidez da Súmula 267, tem admitido Mandado de Segurança quando, do ato impugnado, puder resultar dano irreparável, desde logo cabalmente demonstrado. 4. Não é, porém, o caso dos autos, já que manifesta a inexistência de direito do peticionário de submeter ao controle de constitucionalidade do STF, mediante simples petição, com esse único objeto, a impugnação do artigo de Lei, nela focalizado. 5. Falta possibilidade jurídica àquele pedido, sendo, ademais, o impetrante, parte ilegítima para propositura de ação direta de inconstitucionalidade de Lei (art. 103, incisos I a IX, da Constituição Federal). 6. Seguimento negado, pelo Relator, a Mandado de Segurança impetrado pelo peticionário contra aquela decisão, prejudicado o requerimento de medida liminar. (STF — AGRMS 22.623 — SP — TP — Rel. Min. Sydney Sanches — DJU 7.3.1997)13. Com igual orientação: MANDADO DE SEGURANÇA — ATO JUDICIAL — Decisão de juiz que, após receber a apelação de sentença por ele proferida, inova no processo, determinando, em ação de execução, baixa na hipoteca do imóvel. Alegação de dano irreparável acolhida, no caso concreto. CPC, arts. 521, 463 e 515. Súmulas 279, 282 e 356. (RJ 177/96)14. A questão que se analisa, no entanto, não é uníssona, mansa e pacífica, em sede doutrinária, e, muito menos jurisprudencial, como se pode observar acima, devendo o intérprete se revestir da máxima cautela em tais ponderações, buscando-se, no caso concreto, a interpretação que melhor propicie o acesso às garantias constitucionalmente asseguradas, que não podem se tornar letras mortas, sob pena de criação de perigosos precedentes judiciais. E, muito embora, a grande relevância esteja concentrada, como examinado acima, em pleitos de natureza eleitoral, campo em que são mais propícias e relevantes as discussões ora encetadas, isso não exaure a possibilidade de aplicação e incidência do mandado de segurança em face de atos judiciais amparáveis por recursos, posto que outros campos de atuação 2009 ABRIL • JUSTIÇA & CIDADANIA • 49
processual seriam aptos a tornarem relevantes essa discussão. Não é preciso, por exemplo, muito esforço para se conceber que nem todos os atos do Juiz no processo penal, embora a grande maioria se incline nesta orientação, possam redundar em atos de privação do direito de ir e vir (jus ambulandi) do indivíduo. Ora, isso resta patente em sede de questões cíveis que sejam pertinentes e correlatas ao processo crime, como, por exemplo, numa situação de perdimento de bens, ou mesmo num indeferimento de guarda ou depósito de um bem apreendido. Numa situação como essa, pareceria exótica a impetração de um habeas corpus para reexame da decisão, e, não obstante, a mesma até pudesse ser tida como recorrível acaso não fosse concedido o efeito suspensivo (no caso da perda do bem), ou até mesmo um efeito ativo (no que tange ao exemplo do depósito) a tais recursos, a potencialidade de ocorrência de danos seria patente (pense num carro do ano apreendido que poderia ficar aguardando a solução da pendência por anos, em um pátio, sem cobertura, sujeito a uma série de intempéries, dilapidações e danificações, sem contar a própria possibilidade do mesmo modelo de veículo ser superado pela moda ou pela tecnologia vigentes). A questão, inclusive, não é nova, e são vários os precedentes judiciais que podem ser destacados em relação ao tema. Neste sentido, de se pedir vênia, para transcrever, dentre outros, os seguintes arestos que poderiam ser colacionados: MANDADO DE SEGURANÇA – APREENSÃO DE VEÍCULO – PEDIDO DE LIBERAÇÃO – AUTORIDADE JUDICIAL QUE DEIXA DE EXAMINAR A LEGITIMIDADE DO ATO CONSTRITIVO – INEXISTÊNCIA DE ILÍCITO PENAL – SEGURANÇA CONCEDIDA – A recusa em analisar pedido de liberação de veículo que se encontra apreendido, fere direito líquido e certo do impetrante, de acesso ao Judiciário e de não ser privado de seu bem sem o devido processo legal15. Com igual teor: FRAUDE PENAL. MANDADO DE SEGURANÇA. ATO JUDICIAL. DANO IRREPARÁVEL – Mandado de Segurança. Impetração contra ato judicial. Apreensão de veículo determinada por juiz criminal, no exercício de plantão. Inocorrência de fato típico. Hipótese de lide civil. Inocorrência, outrossim, dos pressupostos do processo cautelar: ponderabilidade jurídica e risco de lesão irreparável. A alegação de inexecução de contrato de compra e venda de veículo consistente na falta de pagamento de parte do preço convencionado, não tipifica fraude penal nem atinge direito de terceiro adquirente de boa fé. Segurança concedida16. Diante de toda essa gama de fatores a serem considerados é que se tem por viável que, torne-se a insistir, com muita parcimônia, se passe a reinterpretar a vetusta orientação pretoriana em relação ao tema, não obstante se cuide de matéria sumulada.
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Referências bibliográficas FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. “Introdução ao Estudo do Direito”. São Paulo: Atlas, 1988. FREITAS, Vladimir Passos de. “Corregedorias do Poder Judiciário”. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. FUX, Luiz. “Tutela de Evidência, Tutela de Segurança”. São Paulo: Saraiva, 2001. GRECO FILHO, Vicente. “Curso de Direito Processual Civil Brasileiro”, São Paulo: Saraiva, 2002. vol.I GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; CINTRA, Antônio Carlos Araújo. “Teoria Geral do Processo”. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989. KELSEN, Hans. “Teoria Pura do Direito”. Lisboa: Calouste Gubenkian, 1988. LAFER, Celso. “A Reconstrução dos Direitos Humanos”. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. NERY JUNIOR. Nelson. “Princípios do Processo Civil na Constituição Federal”. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. TUCCI, Rogério Lauria; TUCCI, José Rogério Cruz e. “Constituição de 1988 e o Processo”. São Paulo: Saraiva, 1989.
Notas 1 GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; CINTRA, Antônio Carlos Araújo. “Teoria Geral do Processo”. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989. p. 102. 2 NERY JUNIOR, Nelson. “Princípios do Processo Civil na Constituição Federal”. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p.278. 3 GRECO FILHO, Vicente. “Curso de Direito Processual Civil Brasileiro”, vol.I, São Paulo: Saraiva, 2002. p.167. 4 FREITAS, Vladimir. Passos de. Corregedorias do Poder Judiciário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p.18. 5 TUCCI, Rogério Lauria; TUCCI, José Rogério Cruz e. “Constituição de 1.988 e o Processo”. São Paulo: Saraiva, 1989. p.59. 6 KELSEN, Hans. “Teoria Pura do Direito”. Lisboa: Calouste Gubenkian, 1988. p. 136. 7 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. “Introdução ao Estudo do Direito”. São Paulo: Atlas, 1988. p.123. 8 LAFER, Celso. “A Reconstrução dos Direitos Humanos”. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p.39. 9 FUX, Luiz. “Tutela de Evidência, Tutela de Segurança”. São Paulo: Saraiva, 2001. p.15. 10 TSE – MS 2.364 – PE – Rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro – DJU 6/12/96. 11 TSE – MS 1.511 – DF – Classe 2ª – Rel. Min. José Cândido – DJU 5/6/92. 12 TSE – Rec. 9.522- GO – Classe 4ª – Rel. Min. Sepúlveda Pertence – DJU 10/8/92. 13 STF – AGRMS 22.623 – SP – TP – Rel. Min. Sydney Sanches – DJU 7/3/97. 14 STF – RE 100.691-9 – AL – 1ª T. – Rel. Min. Néri da Silveira – DJU 6/3/92. 15 TJMS – MS – Classe B – I – N. 56.139-5 – Ponta Porã – 2ª S.C – Rel. Des. Claudionor Miguel Abss Duarte – J. 24/11/97. 16 TARS – MSE 189.016.454 – 3ª CCiv. – Rel. Juiz Ivo Gabriel Da Cunha – J. 19/4/89.
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