Revista Justiça & Cidadania

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ISSN 1807-779X

Edição 108 - Julho de 2009

R$ 16,90


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Edição 108 - Julho de 2009

ISSN 1807-779X

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EDIÇÃO 108 • Julho de 2009 ORPHEU SANTOS SALLES EDITOR TIAGO SANTOS SALLES DIRETOR EXECUTIVO ERIkA BRANCO diretorA DE REDAÇÃO DAVID SANTOS SALLES EDITOR ASSISTENTE DIOGO TOMAZ DIAGRAMAdor Giselle Souza Jornalista colaboradora EDITORA JUSTIÇA & CIDADANIA AV. NILO PEÇANHA, 50/GR.501, ED. DE PAOLI RIO DE JANEIRO – RJ CEP: 20020-906 TEL./FAX (21) 2240-0429 SUCURSAIS SÃO PAULO RAPHAEL SANTOS SALLES AV. PAULISTA, 1765 / 13°ANDAR SÃO PAULO – SP CEP: 01311-200 TEL. (11) 3266-6611 PORTO ALEGRE DARCI NORTE REBELO RUA RIACHUELO, 1038 / SL.1102 ED. PLAZA FREITAS DE CASTRO CENTRO – Porto Alegre – RS CEP: 90010-272 TEL. (51) 3211-5344

Foto: Luiz Antônio Silva/Secom/PGR

Conselho editorial Alvaro Mairink da Costa ANDRÉ FONTES Antonio Carlos Martins Soares Antônio souza prudente Arnaldo Esteves Lima arnaldo Lopes süssekind aurélio wander bastos Bernardo Cabral carlos antônio navega carlos ayres britTo Carlos mário Velloso CESAR ASFOR ROCHA DALMO DE ABREU DALLARI darci norte rebelo Edson CARVALHO Vidigal eLLIS hermydio FIGUEIRA Enrique ricardo lewandowski Eros Roberto Grau Fábio de salles meirelles fernando neves Francisco Peçanha Martins

BRASÍLIA Arnaldo gomes SCN, Q.1 – Bl. E / Sl. 715 EDIFÍCIO CENTRAL PARK BRASÍLIA – DF CEP: 70711-903 TEl. (61) 3327-1228/29 CORRESPONDENTE ARMANDO CARDOSO TEL. (61) 9674-7569 revistajc@revistajc.com.br www.revistajc.com.br CTP, IMPRESSÃO E ACABAMENTO ZIT GRÁFICA E EDITORA LTDA ISSN 1807-779X 4 JUSTIÇA & CIDADANIA | JULHO 2009

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Frederico José Gueiros GILMAR FERREIRA mENDES Humberto Gomes de Barros Ives Gandra martins Jerson Kelman Joaquim Alves Brito josé augusto delgado JOSÉ CARLOS MURTA RIBEIRO José Eduardo carreira Alvim luis felipe Salomão Manoel CarpeNa Amorim Marco Aurélio Mello Massami Uyeda MAURICIO DINEPI maximino gonçalves fontes nEY PRADO Paulo Freitas Barata Sergio Cavalieri filho Siro Darlan Sylvio Capanema de Souza thiago ribas filho


S umário

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“A luta contra a corrupção continuará” editorial

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Dom Quixote: audiobooks para deficientes

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Destroços na correnteza 25 não reconhecimento ao 26 transporte gratuito: ausência de dano moral

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O perigoso artifício da ponderação entre princípios

A questão prisional

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A crise dos emergentes 32 A oposição e a cpi da 36 petrobras EM FOCO: Reformas no Judiciário, 42 agora, apenas quando diagnosticadas Tocando cidadania 44 A história de uma orquestra de crianças CARENTES do recife Justiça, sim 46 Revanchismo, não A prisão do direito penal 48

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O Brasil antes e depois da CPI dos Grampos

A contraprestação salarial do empregado na invenção

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E ditorial

A PETROBRAS

É NOSSA!

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m 1953, o Presidente Getúlio Vargas, contando com o apoio de sindicatos, da União Nacional de Estudantes (UNE), da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), do Centro Acadêmico XI de Agosto da Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP), das forças nacionalistas — aí incluídas todas as tendências de esquerda, comunistas, trotiskistas, anarquistas, e parcela atuante de oficiais do exército, com destaque para a posição de apoio do Clube Militar, sob a presidência dos generais Newton Estillac Leal e Alcides Etchegoyen, e liderança do General Horta Barbosa —, enfrentando a reação orquestrada pela grande imprensa, liderada por Carlos Lacerda e outros entreguistas como o General Juarez Távora, o Brigadeiro Eduardo Gomes, Roberto Campos, Eugênio Gudim e Assis Chateaubriand, finalmente, depois de renhida discussão e batalha parlamentar contra a bancada da UDN, comandada pelo Deputado Bilac Pinto e outros reacionários, conseguiu ver aprovada na Câmara dos Deputados, com o estabelecimento do monopólio estatal graças à emenda do Deputado Euzébio Rocha, do PTB, e, após, sancionada em 3 de outubro de 1953, a Lei 1.540, criando a Petrobras. O artigo do brilhante jornalista político, Mauro Santayana, que publicamos nas páginas 36/37, descreve magistralmente o que ocorre presentemente no Senado Federal, com a disputa política corrosiva entre oposição e governo, cujas consequências assumem, neste momento de crise econômica internacional, um sério risco que deve ser evitado a qualquer custo, face o que a Petrobras representa hoje, como afirma Santayana: “A Petrobras, com todos os seus êxitos, vale mais como símbolo da obstinação brasileira do que pelos seus resultados econômicos, por maiores que eles sejam”.

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As críticas que fazem contra a Petrobras e o interesse na criação da CPI nos parece, além de desviar a atenção dos escândalos que envolvem senadores, ter nítido interesse político e eleitoreiro, considerando que estamos na proximidade da eleição de 2010, com as candidaturas já postas e previsíveis à Presidência da República e aos governos dos Estados. Tanto os partidos governistas como os da oposição querem tirar proveito e vantagens para alavancar os seus candidatos. Os gastos e as despesas feitos pela empresa, que são apresentados com espalhafato, denúncias e escândalos, na verdade, se mostram irrelevantes ante a grandeza e potencialidade econômica e lucrativa da estatal. Pode até haver na empresa um número exagerado de cargos de direção; no entanto, se comparados com a quantidade absurda de sinecuras existentes — como por exemplo no Senado Federal, que nada produz em termos de riqueza, mas esbanja em mordomias, escândalos, altos salários pagos sem o correspondente trabalho —, a Petrobras é uma empresa altamente exemplar, além de ser considerada no mundo como a empresa petrolífera que possui um corpo de funcionários que detém a maior técnica na produção e exploração do petróleo. Acresce ainda que a Petrobras como suas irmãs, Eletrobrás, Furnas, Caixa Econômica, BNDES, Transpetro e outras estatais, por serem bem administradas, apresentam grandes resultados financeiros e consequentemente são as que mais investem em programas de incentivo e divulgação da cultura popular, música, teatro, promoção de eventos, restauração de prédios e monumentos históricos. Sem a sua ajuda e apoio, com certeza teríamos perdido parte desse patrimônio histórico nacional. Aqueles que hoje têm mais de 60 anos e acompanharam naquele tempo os movimentos políticos no Brasil, principal­


Foto: arquivo JC

mente no Rio de Janeiro, lembram por certo o que foram as lutas nas ruas com a campanha do “O petróleo é nosso”, da qual o Editor participou conjunto e ativamente contra os vendi­ lhões da Pátria, e cujo movimento está magnificamente descri­ to no livro homônimo do jornalista Pery Cota, hoje presidente do Conselho Deliberativo da ABI. O governo não intervinha nos embates das ruas; o Presidente Getúlio Vargas se manteve cauteloso, tendo em vista que a maioria do Congresso, principalmente a Câmara dos Deputados, era nitidamente conservadora e na questão do petróleo, com a liderança atuante da UDN, totalmente favorável à internacionalização da sua exploração e refino. O destemperado e verborrágico Carlos Lacerda e os vendilhões que se abrigavam na maioria na sigla da UDN, além de conspirarem abertamente contra o Presidente Vargas, estavam a serviço de multinacionais, que além de corromperem subvencionando congressistas, mantendo financeiramente organizações cria­ das especificamente para combater e impedir a criação da Petrobras, fomentavam, através dos grandes jornais, emissoras de rádio e a incipiente televisão, comandada pelo jornalista Assis Chateaubriand, espalhando o descrédito e assegurando que o Brasil não tinha petróleo, nem condições financeiras para produzir a extração, como assoalhou na campanha presidencial o candidato da UDN, Brigadeiro Eduardo Gomes, incentivando, corrompendo e comprando técnicos, como um americano conhecido como “Mister Link”, que apresentavam análises comprovando a inexistência do petróleo em terras brasileiras. O projeto de lei encaminhado por Vargas ao Congresso, elaborado por uma equipe do Catete, composta por Rômulo de Almeida, Jesus Soares Pereira, Plínio Cantanhede e General Arthur Levy, havia recebido instruções do Presidente para não

incluir a tese do monopólio, com a intenção de não incorrer com a oposição ferrenha da bancada da UDN, comandada na ocasião pelo Deputado Bilac Pinto, que instou de todas as formas em manter no projeto a internacionalização da exploração. A astúcia do Presidente e a campanha das ruas, acompanhada pelos jornais da esquerda e especialmente pelo saudoso jornal “Última Hora”, propiciaram a aprovação da emenda do Deputado Euzébio Rocha, que instituiu o monopólio do petróleo pela Petrobras. Não é sem razão que na Carta Testamento o Presidente Getúlio Vargas deixou fundamentado, ao se suicidar, que foi a criação da Petrobras, da Eletrobrás e o decreto da regulamentação da remessa de lucros que alimentou a reação contra o seu governo e foi o preço que pagou por essas iniciativas, que procuravam fixar metas para livrar o Brasil da dependência econômica e financeira internacional. Passados 56 anos da criação da Petrobras, novamente as mesmas forças que levaram o Presidente Getúlio Vargas ao suicídio se articulam, e sob denúncias e escândalos tentam a desmoralização da empresa, aviltando o conceito internacional do qual ela é detentora, para facilitar com manobras subreptícias a possibilidade de conseguirem a traição que perpetram contra a Nação. Não há dúvidas de que existem algumas irregularidades e abusos, como publicamente noticiados, cujos reparos e acertos poderão ser corrigidos pela própria administração, que merece, pelos trabalhos e ações que vem realizando e pelos resultados apresentados, a confiança da Nação para esclarecer, regularizar e punir os culpados que porventura praticaram ações lesivas contra o patrimônio da Petrobras, que é de toda a Nação e tem de ser preservada a qualquer custo. O que não pode e não deve é associar e misturar os escândalos e as absurdas irregularidades acontecidas na burocracia do Senado Federal com a administração da Petrobras, porque não se pode confundir a figura do senador com a instituição, que é maior e mais importante que todos e cada um dos senadores; isto copiando a lição e prédica do ministro Celso de Mello, ao glorificar o Supremo Tribunal Federal em revide às restrições com que tentaram denegrir aquela alta Corte. O que acontece hoje com algum senador que participa, está envolvido ou encoberto de falcatruas, como já apuradas pela Polícia Federal, é assunto e questão a serem resolvidos pelo Ministério Público Federal e decididos na Corte competente, portanto, sem envolvimento ou mácula com a instituição, que paira acima de qualquer dúvida como Poder imaculado. Portanto, deixemos bem claro: a Petrobras pertence ao povo brasileiro, e como instituição é intocável, não podendo ser vinculada, como pretendem, como partícipe ou conivente com qualquer bandalheira ou corrupção ativa ou passiva.

Orpheu Santos Salles Editor 2009 JULHO | JUSTIÇA & CIDADANIA 7


Foto: arquivo pessoal

audiobooks para deficientes Entrevista: Leonardo Pietro Antonelli, advogado e membro do Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro

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ontribuir para a melhor formação acadêmica dos operadores de Direito que sejam portadores de deficiência visual. Esse foi o principal motivo que levou o advogado Leonardo Pietro Antonelli — sócio da banca Antonelli & Associados — a idealizar e lançar o projeto do audiobook na área jurídica. A ideia nasceu quando da participação dele em banca examinadora do concurso para a Magistratura do Rio de Janeiro. Durante a seleção, o advogado conheceu um candidato que era deficiente visual e constatou a dificuldade que os profissionais com esse problema enfrentam para, primeiro, se formar e, depois, ingressar em qualquer uma das carreiras jurídicas. Versões em áudio dos livros que contêm jurisprudências e doutrina, quando não raras, são extremamente caras. “Começamos, então, a desenvolver uma pesquisa e chegamos ao número do Censo de que a deficiência visual atinge 47% das pessoas com deficiência no Estado do Rio de Janeiro”, disse Antonelli, que já planeja a segunda e 8 JUSTIÇA & CIDADANIA | JULHO 2009

Pretendemos, até o final deste ano, estar com todas as gravações finalizadas para que possamos lançar, se não em dezembro, no início de 2010.


a terceira etapa da iniciativa. Nessa entrevista exclusiva ele afirmou que todas as edições serão patrocinadas pelo próprio escritório: “Entendemos que essa é a nossa parcela de contribuição para com a sociedade”. Revista Justiça & Cidadania – O que o motivou a desenvolver o projeto do audiobook? Leonardo Antonelli – Isso teve início quando integrei a banca examinadora do último concurso de ingresso para a Magistratura. Um dos candidatos era deficiente visual. A partir daí, observamos a grande dificuldade e resistência que há para que candidatos com esse tipo de problema possam participar de concursos. Foi assim no concurso para Delegado da Polícia Federal e Civil, em que também tive a oportunidade de integrar a banca examinadora. Começamos, então, a desenvolver uma pesquisa e chegamos ao número do Censo de que a deficiência visual atinge 47% das pessoas com deficiência no Estado do Rio de Janeiro. Então, nos aprofundamos e encontramos casos de pessoas altruístas, que contribuem de alguma forma. Temos aí o exemplo do Alexandre Torres, vice-presidente da Intelig, que duas vezes por semana, no horário do almoço, lia para deficientes visuais do Instituto Benjamim Constant. Havia também o caso da Lielle Gouvêa Vieira, de uma família tradicional do Rio de Janeiro, que também utilizava sua hora de almoço para fazer esse tipo de trabalho. No lançamento do nosso audiobook, tivemos a presença de uma das pessoas que identificamos na pesquisa, deficiente visual e estudante de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, que sofre, em primeiro lugar, com uma ausência total de textos em áudio que lhe sirvam e, em segundo... se o livro, por si só, é extremamente caro para um estudante de Direito, imagina em audiobook? Se não tiver alguém patrocinando como nós, é praticamente inviável. Então, nessa pesquisa, entendemos que, neste ano, o projeto de inclusão social em que poderíamos atuar seria o audiobook. JC – O projeto contou com algum tipo de patrocínio? LA – Tanto nessa edição como na segunda, que será lançada em parceria com a Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro, o escritório Antonelli & Associados faz questão absoluta de patrocinar. Entendemos que essa é a nossa parcela de contribuição para com a sociedade; então, não estamos buscando patrocinadores para esse projeto. Ao contrário, procuramos voluntários que queiram participar de alguma forma. JC – Nessa primeira fase, quantos audiobooks foram produzidos e para onde serão distribuídos? LA – Ao todo, foram duas mil coleções, cada uma composta por dois CDs, distribuídas gratuitamente para todos os institutos de deficiência visual do País. Evidentemente que os maiores institutos, como o Benjamim Constant, levarão mais de uma coleção. Isso dá para suprir todo o País. Atendendo a pedidos, vamos disponibilizar o material também em nosso site, de modo que possa ser ouvido por todas as pessoas que queiram ter acesso a esse tipo de informação.

JC – Pelo que é composto o audiobook? LA – Adotamos o método socrático, pelo qual, a partir de um caso concreto, ensinamos o Direito. Discutimos lá, por exemplo, o absurdo que é a incidência do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços nas contas de energia elétrica, mostrando que o Rio de Janeiro tem a maior alíquota e, por conseguinte, a energia elétrica, que deveria ser um bem essencial, tem a tributação mais alta que a do chopp. Esse foi um tema que nosso escritório enfrentou no Órgão Especial do TJRJ e ganhou por unanimidade de votos. Partimos dele para mostrar ao estudante como o princípio da essencialidade está sendo ferido, qual é a importância desse preceito e por que a alíquota tem que ser reduzida. Acreditamos que essa forma facilita o aprendizado. Os audiobooks trazem exemplos das áreas cível e tributária. JC – O que está previsto para a segunda fase do projeto? LA – Temos um grupo de desembargadores que resolveu encampar o projeto. Na próxima etapa, selecionaremos também casos concretos de interesse do estudante, pois não adianta falarmos apenas dos casos clássicos, ninguém suporta mais estudar essas questões, principalmente no audiolivro. Hoje, qual é a discussão com maior número de ações no juizado especial cível? Pegaremos esse caso, então, e o discutiremos para que o estudante possa familiarizar-se. Nós, examinadores de bancas de concurso, temos a tendência de colocar questões nas provas que expressem resultado para o jurisdicionado e para o concursando. Não tem sentido levantarmos uma questão de prova que jamais será objeto de apreciação por parte de um candidato a juiz ou um candidato a promotor. Nessa segunda edição, queremos pegar os casos mais discutidos no Judiciário. JC – Qual é a previsão de lançamento? LA – Pretendemos, até o final deste ano, estar com todas as gravações finalizadas para que possamos lançar, se não em dezembro, no início de 2010. JC – O senhor vislumbra uma terceira edição do projeto? LA – Em uma entrevista recente, contei o caso de uma atriz muito famosa que fora convidada para ser madrinha de um casamento que ocorreria em Veneza. Ao chegar lá, no dia do casamento, a mala dela havia extraviado. Então, nossa ideia, no terceiro volume, é contar com a colaboração de atores que possam narrar seus casos concretos. A narrativa será muito mais interessante. Então, pegaremos esses casos e lhes daremos uma solução, com a visão de advogado, sobre qual o procedimento e a orientação do magistrado em relação à resolução do problema. Ou seja, reuniremos atores, advogados e magistrados. A narrativa será mais teatral. Em geral, quando o operador do Direito conta uma lesão a direito próprio, traz muita irritação na narração, pois sabe de seus direitos. O artista fala com muito mais leveza, por vezes de forma cômica. Queremos, então, tentar apresentar as questões de forma mais atraente para quem as ouve. 2009 JULHO | JUSTIÇA & CIDADANIA 9


“A luta contra a corrupção Continuará” Da Redação

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luta contra a corrupção continuará sem trégua, garantiu o novo chefe do Ministério Público da União e do Ministério Público Federal, Roberto Monteiro Gurgel, ao assumir o comando da ProcuradoriaGeral da República no último dia 22 de julho, em solenidade de posse realizada em Brasília. Gurgel sucede Antonio Fernando de Souza, que deixou o cargo no dia 28 de junho. Em seu discurso, o agora Procurador-Geral da República foi enfático e assegurou que irá ampliar a interlocução da instituição, que conduzirá pelos próximos dois anos, com os Três Poderes. “A luta contra a corrupção prosseguirá sem trégua, colaborando o Ministério Público com os poderes estatais para aperfeiçoar os mecanismos de prevenção e combater a improbidade em todas as suas formas e níveis. Multiplicaremos nossos esforços contra a criminalidade organizada de modo geral e contra a evasão de divisas, a lavagem de dinheiro, o ataque à integridade do sistema financeiro, o trabalho escravo, a tortura e o tráfico internacional de pessoas e drogas, delitos que reclamam ênfase especial, sem deixar de agir nas demais frentes que integram o elenco de nossas atribuições”, afirmou o novo Procurador-Geral da República. As declarações do Procurador foram acompanhadas por uma plateia de autoridades, entre elas o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Gilmar Mendes, e o Ministro da Justiça, Tarso Genro. Gurgel aproveitou a ocasião para cobrar a confirmação da competência do Ministério Público para conduzir investigações. Não é pouco o número de habeas corpus que são ajuizados 10 JUSTIÇA & CIDADANIA | JULHO 2009

em todo o País com vistas à nulidade de processos penais justamente pelo fato de a instituição ter conduzido a apuração dos crimes alegados. A questão está para ser decidida pelo Supremo Tribunal Federal no HC 84548 — considerado o leading case da matéria. Até o momento apenas dois ministros se pronunciaram: o relator, Ministro Marco Aurélio Mello, que considera que o MP não tem competência para realizar investigação, e o Ministro aposentado Sepúlveda Pertence, que votou no sentido contrário. O julgamento foi interrompido por pedido de vista do Ministro Cezar Peluso. O novo Procurador-Geral da República afirmou, durante a posse, que o Ministério Público não pretende substituir a Polícia. “O tema insere-se, aliás, no cenário mais da luta pela efetividade da tutela penal, que não é e nem deve ser apenas do Ministério público e da Polícia, mas, sobretudo, de uma sociedade notoriamente cansada da impunidade”, afirmou. Outro ponto destacado por Gurgel está relacionado a uma maior interlocução entre o Ministério Público e o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. De acordo com ele, o diálogo entre essas instituições é imprescindível no combate à criminalidade. “O Ministério Público não pode ter a pretensão do monopólio da verdade ou dos valores republicanos e não conseguirá cumprir suas tarefas constitucionais sem a mais ampla interlocução institucional”, disse. Nesse sentido, o Procurador-Geral da República garantiu: “O Legislativo, o Executivo e o Judiciário podem contar com a firme colaboração do Ministério Público para o desempenho de suas missões constitucionais e podem estar certos de que


Foto: Cleiton Andrade Da esquerda: Ministro Gilmar Mendes, presidente do Supremo Tribunal Federal; Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva; Governador do Distrito Federal, José Roberto Arruda; Vice-Procuradora-Geral da República, Deborah Duprat; e, o Procurador-Geral da República, Roberto Gurgel

o Ministério Público, a despeito de não se afastar do exato cumprimento do dever de apurar desmandos e desvios na conduta dos agentes públicos, não se prestará a servir de instrumento do enfraquecimento institucional de qualquer dos Poderes, por todos os motivos indesejáveis para a democracia e, por isso mesmo, contrários aos mais altos interesses da sociedade brasileira”. Gurgel disse que também pretende ampliar o diálogo com a advocacia brasileira, a qual considera “constitucional e concretamente essencial à função jurisdicional do Estado”, assim como com a sociedade. “Estado e sociedade devem estar unidos para minorar os graves déficits de igualdade e as injustiças profundas que patrocinam o desrespeito maciço aos direitos fundamentais. As minorias, os hipossuficientes e as diversas formas da chamada sociedade desorganizada e excluída terão especial atenção”, assegurou. Atuação visará interesses da sociedade O novo chefe do Ministério Público brasileiro deu uma prévia de como será a atuação da instituição nos próximos dois anos. No que diz respeito à função eleitoral, por exemplo, ele disse que esta será exercida com plenitude e consciência do relevante papel dos pleitos, que corporificam a defesa do regime democrático. “Com idêntico empenho, continuaremos a promover a defesa do meio ambiente e do nosso valioso patrimônio cultural, com o necessário rigor, mas nunca sob a ótica radical de impedir quaisquer empreendimentos, públicos ou privados, e sempre com

os olhos voltados para as possibilidades de um desenvolvimento efetivamente sustentável”, destacou. Gurgel garantiu que irá defender, intransigentemente, as funções institucionais, assim como os instrumentos necessários para a melhor atuação do Ministério Público. “Devemos prosse­ guir a implementação de mecanismos que assegurem a maior e mais adequada visibilidade da instituição, seja no plano interno, criando-se instrumentos de gestão e de avaliação de resultados consistentes e eficazes, seja no plano externo, fortalecendo-se igualmente o acompanhamento legítimo da atuação dos mem­ bros, em ordem a coibir eventuais abusos ou desvios”, disse. Dessa forma, Gurgel afirmou que irá promover constan­ temente o reexame da estrutura administrativa do Ministério Público, justamente com o objetivo de proporcionar maior apoio aos integrantes da instituição, assim também como redimensionará a atuação da instituição sempre que necessário, com vistas a inovar métodos de trabalho. Segundo afirmou, isso será feito sempre acompanhado de criterioso planejamento estratégico e tendo como pressuposto a valorização do serviço. Ainda no que tange à atuação institucional, Gurgel prometeu dar atenção especial ao Conselho Nacional de Ministério Público — órgão de fiscalização e administração dessa instituição. “O Conselho Nacional do Ministério Público deverá ter o apoio devido para o melhor cumprimento de suas relevantíssimas missões constitucionais, dificultado até aqui, a despeito do empenho e dedicação de seus membros, por severas deficiências orçamentárias e estruturais, que apenas começam a ser corrigidas”, afirmou. 2009 JULHO | JUSTIÇA & CIDADANIA 11


Antonio Fernando: escolha acertada O Subprocurador-Geral da República Antonio Fernando Souza — que exerceu o cargo de Procurador-Geral da República por dois mandatos, de 30 de junho de 2005 a 28 de junho de 2009 — elogiou a decisão do Presidente Lula de nomear Gurgel. Segundo afirmou, a indicação permitirá a manutenção da linha independente do MP. “O Doutor Roberto Gurgel, senhor Presidente, tem uma história brilhante no Ministério Público Federal pela sua inquestionável competência, sua reconhecida dedicação à instituição e seu notável espírito público. A escolha foi acertada”, afirmou Souza na cerimônia de posse. Souza também aproveitou o discurso para destacar a postura mantida pelo Presidente no que se refere à instituição. “Devo reafirmar publicamente que a conduta de Vossa Excelência em relação ao Ministério Público durante os dois mandatos que exerci sempre foi de absoluto respeito às garantias atribuídas à instituição. Portanto, republicana e digna de um verdadeiro chefe de Estado. Tenho certeza de que Vossa Excelência não chancelará eventuais iniciativas legislativas que importem em desrespeito às garantias constitucionais asseguradas ao Ministério Público”, disse. Ao novo Procurador-Geral da República, Souza desejou boa-sorte. “Desejo ao novo Procurador-Geral da República pleno êxito no exercício do cargo e manifesto agradecimentos pela compreensão e colaboração que recebi dos membros do Ministério Público e das autoridades públicas dos três Poderes durante os dois mandatos que exerci”, ressaltou. Novo Procurador-Geral tem perfil moderado O novo Procurador-Geral da República nasceu em Fortaleza. Ele tem 54 anos de idade, é casado e possui dois filhos. Antes de ser nomeado para o cargo, foi ViceProcurador-Geral da República, durante a gestão de Antonio

Fernando e de Deborah Duprat (como Vice-Presidente do Conselho Superior do Ministério Público Federal ela assumiu o cargo de Procuradora-Geral da República, até o provimento definitivo). Gurgel comandará a Procuradoria-Geral da República durante o biênio 2009-2011. Segundo a Constituição Federal o mandato é de dois anos, porém é permitida a recondução. Gurgel é considerado de perfil moderado em relação ao seu antecessor, que ficou conhecido pela atuação “combativa”. O novo Procurador-Geral da República foi nomeado para o cargo no último dia 16 de julho, após sua indicação ter sido aprovada por unanimidade pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal e pela maioria do plenário da Casa. Na sabatina na CCJ, Gurgel foi pressionado pelos senadores, que queriam saber como será o tratamento da Procuradoria-Geral da República no que diz respeito às denúncias contra parlamentares. O senador Antonio Carlos Valadares (PSB-CE), por exemplo, chegou a reclamar da “espetacularização” feita pela imprensa na divulgação de acusações, muitas vezes com o auxílio do Ministério Público. O então candidato ao cargo de Procurador-Geral da República foi enfático na resposta: “O Ministério Público só denuncia quando tem que denunciar. Só agimos quando somos provocados”, afirmou. Gurgel foi o mais votado na lista tríplice, elaborada pela ANPR, em eleição com a categoria. Também estavam na lista os subprocuradores Wagner Gonçalves e Ela Wiecko. O novo Procurador-Geral da República terá como Vice-ProcuradoraGeral Deborah Duprat. A Vice-Procuradora-Geral-Eleitoral será Sandra Cureal. Elas serão as auxiliares mais próximas de Gurgel, substituindo-o nas sessões do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral, respectivamente, e dividindo funções com o titular. Foto: Cleiton Andrade

Procurador-Geral da República, Roberto Monteiro Gurgel 12 JUSTIÇA & CIDADANIA | JULHO 2009


Foto: Cleiton Andrade Ex-Procurador-Geral da República, Antonio Fernando Souza; Ministro Gilmar Mendes, presidente do STF; Sr. José Roberto Arruda, governador do Distrito Federal; ViceProcuradora-Geral da República, Deborah Duprat; e, o Procurador-Geral da República, Roberto Gurgel, durante o discurso do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva

“O ministério público ainda mais atuante” Discurso do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na posse do Procurador-Geral da República, Roberto Monteiro Gurgel

É com muito orgulho que participo hoje da posse do Dr. Roberto Monteiro Gurgel como Procurador-Geral da República. Sua carreira de serviços ao Estado e seus profundos conhecimentos jurídicos fazem dele a pessoa ideal para dar seguimento à brilhante atuação que o Ministério Público da União vem tendo nos últimos anos. Estou certo de que a exemplo dos procuradores-gerais anteriores, Cláudio Fonteles e Antonio Fernando Souza, a atuação de Roberto Gurgel irá contribuir para que o Ministério Público seja ainda mais atuante na defesa dos direitos de todos os cidadãos brasileiros. Como os senhores e senhoras bem sabem, esta é a quarta vez que indico para este cargo o membro da carreira que foi o mais votado entre os seus pares. Com isso, busco principalmente reforçar a independência e a solidez do órgão. Vivemos afinal um momento auspicioso em nossa história, marcado pela solidez das instituições democráticas. Esse é um verdadeiro tesouro para uma nação como a nossa, que já

enfrentou longos regimes autoritários, mas que hoje só aceita viver sob uma democracia cada vez mais profunda. Nesse sentido, é fundamental que se afirme, cada vez mais, a independência da Procuradoria-Geral da República, instituição fundamental para a defesa do Estado Democrático de Direito. A relação entre o Poder Executivo e o Ministério Público foi sempre equilibrada e respeitosa e tenho certeza de que continuará sendo. É preciso que o órgão continue tendo, como tem hoje, a liberdade para combater todas as ameaças aos direitos dos brasileiros, e que mantenha e aprofunde a cooperação com os outros Poderes, inclusive com o Executivo. É o caso das operações em conjunto com a Polícia Federal que tanto têm contribuído para combater crimes que vão da corrupção à área ambiental, entre outros. Outro desafio do novo Procurador-Geral, que também assume hoje o Conselho Nacional do Ministério Público, é contribuir para o aprimoramento da Justiça brasileira. O Conselho faz parte do grande esforço coletivo e democrático 2009 JULHO | JUSTIÇA & CIDADANIA 13


É preciso que o órgão continue tendo, como tem hoje, a liberdade para combater todas as ameaças aos direitos dos brasileiros, e que mantenha e aprofunde a cooperação com os outros Poderes, inclusive com o Executivo.

que une os três Poderes da República na reforma do Judiciário. Trata-se de uma iniciativa com resultados comprovados, que renovou e fortaleceu a confiança da sociedade brasileira no sistema judiciário. A verdade é que ao longo desses quase 21 anos de promulgação da nossa Constituição, a sociedade brasileira passou a ter mais consciência dos seus direitos. E é por isso mesmo que a reforma do Judiciário busca garantir, acima de tudo, uma justiça cidadã, próxima à população e de acesso universal facilitado. Quero, portanto, desejar muito sucesso para o Dr. Roberto Gurgel nessa sua nova missão tão repleta de desafios. Tenho a mais absoluta convicção de que, durante o seu mandato, o Ministério Público servirá ainda melhor à única autoridade a quem deve responder: a população brasileira. Meu caro Roberto Gurgel, já cumpri minha formalidade aqui de ler o meu discurso, mas como este é o último que eu vou fazer como Presidente na posse de um Procurador, me permita, não em tom de despedida, porque quando você for substituído ou for mantido, será outra pessoa que irá indicá-lo, dizer algumas coisas aos procuradores e sobretudo a você, como ProcuradorGeral. Primeiro, o critério da escolha do primeiro nome da lista. Não pense, meu caro Antonio, meu caro Gurgel, Cláudio Fonteles não sei se está aqui. Primeiro, vocês foram indicados sem que eu conhecesse vocês. E o Gurgel eu fiz questão de só conhecê-lo depois de indicá-lo, depois de aprovado pelo Senado. Porque não faltam pessoas no Brasil que acham: “Presidente, o senhor não precisa indicar alguém da lista. O senhor não precisa indicar o primeiro. O senhor é dono da indicação. Faça o seu jogo, Presidente. O senhor tem que indicar alguém que seja da sua extrema confiança, Presidente. Portanto, o senhor pode indicar qualquer pessoa, não precisa ser um deles”. E por quê que eu indico o primeiro da lista, sem conhecer as pessoas? Primeiro por garantia minha. Se amanhã alguém disser que o Procurador-Geral não é bom, eu digo: a culpa é da categoria. Quem o conhece bem é a categoria, não sou eu. Então, no fundo, no fundo, Gurgel, não é apenas bondade e ação democrática, não. É a garantia institucional da pessoa que eu indiquei. Como é que eu posso indicar algum amigo meu? Não quero fazer um jogo de compadrinho. O Ministério Público não foi 14 JUSTIÇA & CIDADANIA | JULHO 2009

criado para atender aos interesses do Presidente. Então como é que eu vou indicar um amigo meu? Porque se eu indicasse um amigo meu, já começaria o seu mandato sob suspeita. E eu não quero que nenhuma instituição trabalhe sob suspeita. O mesmo comportamento que eu tenho no Ministério Público, eu tive na Suprema Corte. Talvez eu seja o Presidente que mais tenha indicado Ministro da Suprema Corte. Nenhum deles foi ou é amigo pessoal meu. Alguns eu indiquei sem conhecer. Agora, qual é o comportamento do Presidente da República? Primeiro, se cercar de informações de vários setores da sociedade pra avalizar as pessoas que estão indicando. Não pense que eu não consultei muita gente para que Vossa Excelência fosse indicada, não. Não pense. Consultei, ouvi muita gente falar do Wagner, muita gente falar da Doutora Ela, muita gente falar de você. Ou seja, um critério de aferição que, este sim, eu tenho autoridade de aferir. Quem é que, segundo a característica de um conjunto de pessoas, seus amigos e não amigos, me deram para que eu pudesse decidir sobre o Doutor Gurgel para ser Procurador-Geral da República. E eu deito com a consciência tranquila. Não conheço o Doutor Wagner, não conheço a Doutora Ela, que disputaram as três vezes. Não conheço, portanto não tenho nada contra. Mas eu sou obrigado a escolher pelo que eu tenho a favor. E o que eu tenho a favor, primeiro, é o número de votos que Vossa Excelência teve junto ao Ministério Público. E, segundo, as informações. As pessoas gostam mais de você do que você pensa. Tem muita gente no anonimato aí que lhe conhece bem e que conhece a sua história e que conhece o seu comportamento e que conhece a sua seriedade. E posso lhe dizer uma coisa: conversei com grandes personalidades do Poder Judiciário desse país a seu respeito e nenhum nunca disse: “Ele vai ser leal a você, Presidente.” O que as pessoas diziam é que você seria muito sério na condução do Ministério Público. Portanto, quero lhe dizer de coração que a sua escolha tem um leque maior de apoio do que os votos que você teve na disputa interna. A segunda coisa que é importante falar é que, vira e mexe, a gente tem que explicar para a imprensa brasileira porque tem aumentado o número de denúncias de corrupção nesse país. Porque corrupção, ela aparece exatamente quando você combate. Porque você tem algumas facilidades. Você pode engavetar processo, você pode aceitar a pressão do Poder Legislativo, você pode aceitar a pressão do Poder Executivo,


Foto: Cleiton Andrade Procurador-Geral da República, Roberto Monteiro Gurgel, sendo cumprimentado pelo Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva

você pode aceitar a pressão da imprensa, que, às vezes, quer condenar antes do processo ser feito corretamente. Então tem vários campos de pressão que você pode ceder. Mas a única coisa que dará tranquilidade a alguém que tem o poder do Procurador-Geral da República e dos membros da Procuradoria é eles terem como o único fator de pressão, como o único balizador da sua consciência, as garantias constitucionais para fazer as investigações que tem que fazer. Porque, caso contrário, nós estaremos absolvendo culpados e condenando inocentes. E não pode ter nada pior do que um procurador, um político, qualquer ser humano, procurar fazer da sua atividade profissional, que pesa muito sobre a liberdade das pessoas, um show de pirotecnia antes de ter um processo final apurado, indiciado e julgado. É isso que permite que a gente deite todo santo dia na cama, encoste a cabeça no travesseiro, e possa dizer: “Hoje eu cumpri por mais um dia a minha função com a lisura que o poder da instituição exige que eu tenha cumprido”. E eu não tenho dúvida, Dr. Gurgel, de que, nesse um ano e meio de convivência que vamos ter, você pode ter a certeza — vou repetir aqui o que eu disse ao Claudio Fonteles, o que eu disse ao Antonio Fernando, e vou dizer a você — jamais farei um pedido pessoal à Vossa Excelência. Jamais colocarei um alfinete para atrapalhar qualquer investigação nesse país. A única coisa que eu peço é que uma instituição que tem o poder do Ministério Público brasileiro, garantido pela

Constituição, tem o direito e a obrigação de agir com a máxima seriedade, não pensando apenas na biografia de quem está fazendo a investigação, mas pensando, da mesma forma, na biografia de quem está sendo investigado. Porque nós não temos o direito de cometer erros, condenar. Porque no Brasil as pessoas são condenadas antes. No Brasil, dependendo da carga de manchete na imprensa, a pessoa já está condenada. Depois não adianta ser absolvido que não valeu nada aquilo. A pessoa já está condenada. Então, é importante que a gente tenha essa responsabilidade, que faça as coisas com a maior lisura. Posso lhe dizer aqui, na frente dos procuradores, que da parte desse governo você só irá encontrar mais flexibilidade na abertura das portas para que o Ministério Público possa cumprir com a sua função magnânima que os constituintes de 88 deram ao Ministério Público. Por favor, não jogue fora, porque um dia vai aparecer alguém que acha que vocês são demais, que vai mandar mudança pro Congresso Nacional. Por favor, não jogue isso fora. Porque, daqui a pouco, aparecerá dentro do Congresso Nacional, alguém que se sinta perseguido por vocês e proponha mudança. E nós sabemos que a mudança nunca será pra mais liberdade. Será pra mais castramento. Por isso, meu caro, você toma posse hoje, é tudo festa. Mas, a partir de amanhã, é dia de luta e que Deus te ajude. Boa sorte ao Dr. Gurgel e boa sorte a vocês. 2009 JULHO | JUSTIÇA & CIDADANIA 15


O perigoso artifício da ponderação entre princípios Eros Roberto Grau

Ministro do STF Professor titular aposentado da USP Membro do Conselho Editorial

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retendi, no voto que proferi na ADPF 101, firmar posição a respeito do perigo que enfrentamos ao operar a chamada ponderação entre princípios. Não poderia ter deixado de fazê-lo. Acompanhei a conclusão da relatora, a Ministra Cármen Lúcia, entendendo, contudo, ser outra a fundamentação da afirmação de inconstitucionalidade das interpretações judiciais que autorizaram a importação de pneus. Isso de um lado porque recuso a utilização da ponderação entre princípios para a decisão da questão de que se cuidava naqueles autos. De outro porque, tal como me parece, aquela decisão havia de ser definida desde a interpretação da totalidade constitucional, do todo que a Constituição é. Desse último aspecto tenho tratado, reiteradamente, em textos acadêmicos1. Não se interpreta o direito em tiras; não se interpretam textos normativos isoladamente, mas sim o direito, no seu todo — marcado, na dicção de Ascarelli, pelas suas premissas implícitas. A reprodução do que então afirmei neste espaço, que a generosidade intelectual de Orpheu Salles me concede, permite ganhe horizonte mais amplo a minha angústia. A Ministra Relatora afirmou que, “[a]pesar da complexidade dos interesses e dos direitos envolvidos, a ponderação dos princípios constitucionais demonstra que a importação de pneus usados ou remoldados afronta os preceitos constitucionais da saúde e do meio ambiente ecologicamente equilibrado e, especificamente, os princípios que se expressam nos arts. 170, inc. I e VI e seu parágrafo único, 196 e 225, da Constituição do Brasil” (negrito meu). Tenho, porém, que a ponderação entre princípios é operada 16 JUSTIÇA & CIDADANIA | JULHO 2009

discricionariamente, à margem da interpretação/aplicação do direito, e conduz à incerteza jurídica 2. Interpretar o direito é formular juízos de legalidade, ao passo que a discricionariedade é exercitada mediante a formulação de juízos de oportunidade. Juízo de legalidade é atuação no campo da prudência, que o intérprete autêntico desenvolve contido pelo texto. Ao contrário, o juízo de oportunidade comporta uma opção en­tre indiferentes jurídicos, procedida subjetivamente pelo agen­­te. Uma e outra são praticadas em distintos planos lógicos3. Mas não é só. Ocorre também que a ponderação entre princípios se dá no momento da formulação da norma de decisão, não no quadro, anterior a este, de produção da[s] norma[s] jurídica[s] resultantes da interpretação4. Este é o aspecto que a doutrina não tem considerado, mas indispensável à compreensão da prática da ponderação. A interpretação do direito é inicialmente produção de normas jurídicas gerais. A ponderação entre princípios apenas se dá posteriormente, quando o intérprete autêntico decidir o caso, então definindo a solução que a ele aplica. A atribuição de peso menor ou maior a um ou a outro princípio é, então, opção entre indiferentes jurídicos, exercício de discricionariedade, escolha subjetiva estranha à formulação, anterior, de juízos de legalidade. A explicitação desses dois momentos — o das normas jurídicas gerais e o da norma de decisão — não obstante expletiva, deixa bem claro que a ponderação entre princípios é pura expressão de subjetivismo de quem a opera, optando por um ou outro, escapando ao âmbito dos juízos de legalidade.


Foto: Paula Simas SCO/STF

A ponderação consiste, segundo RICARDO GUASTINI5, em estabelecer-se uma hierarquia axiológica móvel entre os princípios em conflito. Isso implica em que se atribua a um deles uma importância ético-política maior, um peso maior do que o atribuído ao outro. Essa hierarquia — prossegue GUASTINI — é móvel porque instável, mutável: vale para um caso (ou para uma classe de casos), mas pode inverter-se, como em geral se inverte, em um caso diferente. O juiz, para estabelecer essa hierarquia, não determina o “valor” dos princípios em abstrato, de uma vez por todas, não determina uma relação fixa e permanente entre eles. Daí que o conflito não é resolvido definitivamente: cada solução vale para uma só controvérsia particular, já que não se pode prever a solução do mesmo conflito no quadro de diversas controvérsias futuras. Tem-se, destarte, que a ponderação entre princípios implica o exercício, pelo juiz, de uma dupla discricionariedade: [i] em um momento inicial, quando ele cria uma hierarquia axiológica entre os princípios de que se trate; [ii] em um momento seguinte, quando o mesmo juiz altera o valor comparativo desses mesmos princípios à luz de outra controvérsia a resolver. Note-se bem que a ponderação não consiste em atribuiremse significados aos textos dos dois princípios de que se cuide [= interpretação desses textos], mas em formular-se um juízo de valor comparativo entre eles, seguido da opção por um ou outro. Há aqui, digo eu, inicialmente um juízo não de legalidade; no instante seguinte, uma opção subjetiva entre indiferentes jurídicos.

É bem verdade que a certeza jurídica é sempre relativa, dado que a interpretação do direito é uma prudência, uma única interpretação correta sendo inviável, a norma sendo produzida pelo intérprete.

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Foto: SCO/STF

Editor da Revista, Orpheu Salles, e o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Eros Grau

Dizer juízo não de legalidade é dizer juízo de valor que exclui a legalidade. Excluindo-a, os juízos de ponderação entre princípios não decorrem da interpretação de textos integrados no âmbito da legalidade, a partir do que se vê inicialmente que a criação de uma hierarquia axiológica entre princípios escapa ao âmbito do jurídico, é subjetiva; após, que a opção por um deles é escolha entre indiferentes jurídicos, procedida uma vez mais subjetivamente, pelo juiz. Discricionária, pois, no sentido acima indicado. Que se trata aí de discricionariedade, isso é dito nas afirmações de que a co­lisão entre princípios transcorre fora da dimensão da validade, vale dizer, na dimensão do valor — observação de ALEXY — e de que o juiz, ao ponderá-los, toma os princípios não como norma jurídica, porém como valores, preferências intersubjetivamente compartilhadas, na dicção de HABERMAS. Daí que os juízos de ponderação entre princípios de direito extirpam seu caráter de norma jurídica. Pretendo afirmar, com isso, que princípios de direito não podem, enquanto princípios, ser ponderados entre si. Apenas valores podem ser submetidos a essa operação. Dizendo-o de outro modo, a ponderação entre eles esteriliza o caráter jurídico-normativo que os definia como norma jurídica. Curiosamente, os princípios são normas, mas, quando em conflito uns com os outros, deixam de sêlo, funcionando então como valores. A doutrina tropeça em si mesma ao admitir que os princípios, embora sejam normas jurídicas, não são normas jurídicas... Juízes, especialmente os chamados juízes constitucionais, lançam mão intensamente da técnica da ponderação entre princípios quando diante do que a doutrina qualifica como conflito entre direitos fundamentais. Como, contudo, inexiste, no sistema jurídico, qualquer regra ou princípio a orientá-los a propósito de qual dos princípios, no conflito entre eles, deve ser privilegiado, essa técnica é praticada à margem do sistema, 18 JUSTIÇA & CIDADANIA | JULHO 2009

subjetivamente, de modo discricionário, perigosamente. A opção por um ou outro é determinada subjetivamente, a partir das pré-compreensões de cada juiz, no quadro de determinadas ideologias. Ou adotam conscientemente certa posição jurídicoteórica, ou atuam à mercê dos que detém o poder e do espírito do seu tempo, inconscientes dos efeitos de suas decisões, em uma espécie de “voo cego”, na expressão de RÜTHERS. Em ambos os casos, essas escolhas são perigosas6. O que há em tudo de mais grave é, no entanto, a incerteza jurídica aportada ao sistema pela ponderação entre princípios. É bem verdade que a certeza jurídica é sempre relativa, dado que a interpretação do direito é uma prudência, uma única interpretação correta sendo inviável, a norma sendo produzida pelo intérprete. Mas a vinculação do intérprete ao texto — o que excluiria a discricionariedade judicial — instala no sistema um horizonte de relativa certeza jurídica que nitidamente se esvai quando as opções do juiz entre princípios são praticadas à margem do sistema jurídico. Então a previsibilidade e calculabilidade dos comportamentos sociais tornam-se inviáveis e a racionalidade jurídica desaparece. O direito moderno, posto pelo Estado, é racional, porque cada decisão jurídica é a aplicação de uma proposição abstrata munida de generalidade a uma situação de fato concreta, em coerência com determinadas regras legais. Eis o que define a racionalidade do direito: as decisões deixam de ser arbitrárias e aleatórias, tornam-se previsíveis. Racionalidade jurídica é isso: o direito moderno permite a instalação de um horizonte de previsibilidade e calculabilidade em relação aos comportamentos humanos, sobretudo àqueles que se dão nos mercados. Pois é precisamente essa racionalidade que perece sempre que juízes operam a ponderação entre princípios. Daí a aguda observação de HABERMAS: enquanto uma corte constitucional adotar a teoria da ordem de valores e nela fundamentar sua práxis decisória, o perigo de juízos


irracionais aumenta, porque os argumentos funcionalistas ganham prevalência sobre os normativos. Impossível não recorrer, a esta altura, a um texto de CARL SCHMITT7, “La tirania de los valores”, no qual recolho a seguinte indagação: quem estabelece os valores? Ora, os valores não são, existem apenas enquanto dotados de validez. Valem para algo ou para alguém. Em outros termos, existem somente enquanto valem para alguém; ou, por outra, não existem. Anota SCHMITT: “Quem diz valor quer fazer valer e impor. As virtudes se exercem, as normas se aplicam, as ordens se cumprem; mas os valores se estabelecem e se impõem. Quem afirma sua validez tem de fazê-los valer. Quem diz que valem, sem que ninguém os faça valer, quer enganar. Se algo tem valor, e quanto, se algo é valor, e em que grau, apenas se pode determinar isoladamente, desde um ponto de vista pressuposto ou de um critério particular”. E, adiante, SCHMITT cita NICOLARI HARTMANN para observar que os valores sempre valem para alguém, aparecendo, desgraçadamente, o “reverso fatal”: também valem sempre contra alguém. Mais grave é que, além de não se ter logrado superar a teoria subjetiva dos valores, segundo a lógica do valor prevalece a seguinte norma: o preço supremo não é demasiado para o valor supremo e cumpre que seja pago, justificando a submissão do valor maior ou do “semvalor”. Aí se manifesta a “tirania dos valores”, a respeito da qual diz HARTMANN: “Cada valor, se se apoderou de uma pessoa, tende a erigir-se em tirano único de todo o ethos humano, ao custo de outros valores, inclusive dos que não lhe sejam diametralmente opostos”. A apreensão do significado da expressão tirania dos valores dá-nos — a observação é de CARL SCHMITT — “a chave para compreendermos que toda teoria dos valores nada mais faz senão atiçar e intensificar a luta antiga e eterna entre convicções e interesses”. A submissão de todos nós a essa tirania é tanto mais grave quanto se perceba que os juristas — em especial os juízes —, quando operam a ponderação entre princípios, fazemno, repito, para impor os seus valores, no exercício de pura discricionariedade. Dir-se-á que não obstante a ponderação entre princípios aporte irracionalidade ao sistema, é à custa dessa e de outras transgressões — disso estou bem consciente — que o sistema se mantém em equilíbrio. A flexibilização do sistema é indispensável ao seu equilíbrio e harmonia, o que permite o desempenho de sua função de preservação, em dinamismo, do modo de produção social. Por isso mesmo conviria revisitarmos o que foi dito a respeito da oposição entre princípios, há mais de quarenta anos, por NICOS POULANTZAS8: o que aparece como uma “antinomia” essencial, absoluta e irredutível ao nível do direito constitui em geral, ao nível da infraestrutura, uma contradição dialética no interior de uma totalidade significativa que engloba certos interesses e necessidades da práxis; o juiz deve resolver a contradição entre dois princípios jurídicos em relação a um caso concreto referindo-se à infraestrutura, apurando qual deles assume, no caso concreto, importância mais significativa em relação aos dados da infraestrutura. Infelizmente a doutrina

A submissão de todos nós a essa tirania é tanto mais grave quanto se perceba que os juristas — em especial os juízes —, quando operam a ponderação entre princípios, fazem-no, repito, para impor os seus valores, no exercício de pura discricionariedade. esqueceu as lições de POULANTZAS, para quem a ordem jurídica não compõe um sistema, é uma estrutura no interior de outra estrutura mais ampla; um todo significativo, pleno de contradições, que a lógica formal não consegue explicar, mas constitui uma totalidade de sentido, uma coerência interna de significação; a infraestrutura é o fundamento da estruturação interna do direito. O plano do dever ser é um espelho, um reflexo do plano do ser. Tudo a confirmar que, em verdade, não interpretamos apenas textos normativos — e sempre na sua totalidade — mas, além deles, a realidade. A “moldura da norma” (KELSEN) não é da norma, porém dos textos e da realidade. A interpretação da Constituição é, sempre, interpretação do texto da Constituição formal, todo ele, e da Constituição real, hegelianamente considerada9. Acompanhei a Relatora, ressalvando, no entanto, meu entendimento no que concerne à fundamentação do seu voto. Para que no futuro não me arrependa por não tê-lo dito no momento adequado. NOTAS Por tudo quanto escrevi a respeito disso, meu: “Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito”, 5. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2009. 2 Cf. Idem, Ibidem, págs. 283/290. 3 Vide meu: “O direito posto e o direito pressuposto”, 7. Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2008, págs. 191 e ss. 4 Cf. meu: “Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito”, cit., págs. 102-103. 5 Idem, ibidem, págs. 284 e ss. 6 Vide meu: “Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito”, cit., págs. 285 e ss. 7 Idem, ibidem, págs. 288 e ss. 8 Idem, ibidem, págs. 198-199. 9 Idem, ibidem, especialmente pág. 281. 1

2009 JULHO | JUSTIÇA & CIDADANIA 19


A QUESTÃO

PRISIONAL Carlos Olavo Pacheco de Medeiros

Desembargador federal do TRF da 1ª Região

Foto: arquivo pessoal

U

m dos mais graves problemas afetos ao poder público, nun­ ca enfrentado com a atenção necessária pelas autorida­ des competentes, é o que decorre das condições críticas e perversas do nosso sistema prisional. A maioria dos homens comuns ignora o que se passa no inte­ rior dos presídios em pleno século XXI, em termos de promiscuidade, de falta de assistência material, moral, médica, de condições mínimas de sobrevivência digna para o ser humano.

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Segundo noticiado por empresa de comunicação on-line, o Conselho Nacional de Justiça deu início em meados do ano passado a inspeções e mutirões carcerários em vários Estados da Federação, constatando uma triste realidade de miséria humana, com presos recolhidos e mantidos dentro de contêineres, sem ventilação e sem o mínimo de cuidados de qualidade e higiene que se exigem na alimentação de um ser humano. E mais: superpopulação; falta de água potável; marmitas de plástico, descartáveis, reutilizadas para uma alimentação de péssima qualidade. E o que releva assinalar é que as vistorias não se completam, pela absoluta falta de segurança para quem ali ingresse e possa constatar irregularidades embuçadas, camufladas por detentos e pelos próprios carcereiros. Ali há um verdadeiro quartel de criminosos prontos para fazer eclodir as rebeliões sanguinárias de que tomamos conhe­ cimento de quando em quando pela imprensa escrita e televisada. Há prisões que não comportam mais de quatrocentos ocupantes com uma população carcerária superior a mil e duzentos.

Se a segregação já é em si um vácuo e dele tem horror qualquer ser da natureza, o que não dizer de um isolamento marcado pelo abandono, pelo desprezo a todas as regras de respeito à pessoa humana.


Foto: Wilson Dias/Abr

Nesse ambiente de opróbrio e de devassidão moral, não há perspectiva de salvação para ninguém. Se a segregação já é em si um vácuo e dele tem horror qualquer ser da natureza, o que não dizer de um isolamento marcado pelo abandono, pelo desprezo a todas as regras de respeito à pessoa humana. Por isso, surge com alvíssaras a notícia de que o estado de Minas Gerais construirá o primeiro complexo prisional do País, formado por três unidades destinadas ao regime fechado e duas ao semiaberto, com a previsão de que a obra poderá ser concluída em trinta meses e a capacidade para receber três mil e quarenta sentenciados. Prevê-se uma assistência na área prisional das mais modernas do mundo, desde os cuidados para com a inibição de fugas até o caminho da ressocialização dos presos, com oportunidade de trabalho e educação. Os internos terão atividades educativas e culturais, além de receberem aulas em cursos profissionalizantes. É preciso que se tenha consciência do grave problema e que ele tem que ser enfrentado pelo Poder Executivo, a cujos integrantes tem faltado vontade política para fazê-lo. Julgado e condenado criminoso, o juiz perde-o de vista todo o tempo da execução da pena, porque a partir de então toda a responsabilidade sobre ele passa a ser da administração penitenciária, com a inafastável competência fiscalizadora do Ministério Público. Os mais graves problemas que ocorrem dentro do sistema penitenciário, em grande número de países do mundo inteiro, advêm da má qualidade dos seus administradores, da falta de qualificação moral e intelectual da carceragem, quando se sabe que o arbítrio e os seus abusos nesse ambiente é uma fatalidade humana, se não observados velhos princípios de pedagogia, disciplina e educação moral. Os prêmios e os castigos; as preterições e as preferências; os favores e as perseguições, que se concedem ou denegam, infligem ou prodigalizam na execução das sentenças, são as mais temíveis formas do arbítrio para se exercitar na solidão e no isolamento de um presídio. Sem o preparo de uma administração informada sobre os elementos essenciais do penitenciarismo, sem a investidura de um pessoal idôneo e vantajosamente instruído para o serviço administrativo das prisões, sem a acomodação dos reclusos num ambiente sadio e de comodidade minimamente adequada para o seu acolhimento, o problema explosivo das prisões perdurará indefinidamente, comprometendo o prestígio moral da própria sociedade. Como se vê, trata-se de um problema imensamente complexo, para cujas soluções exige-se muito estudo, espírito público, idealismo e vontade política, qualidades que infelizmente têm faltado àqueles responsáveis pelas questões mais prementes na área dos direitos humanos.

Foto: Marcello Casal Jr./ABr Foto: Marcello Casal Jr./ABr 2009 JULHO | JUSTIÇA & CIDADANIA 21


O Brasil antes e depois da CPI dos Grampos Marcelo Itagiba Deputado federal

Foto: José Cruz/Abr

NOTA do editor Magnífica a matéria que publicamos com louvor, do operoso Deputado Marcelo Itagiba, sobre o eficiente trabalho como presidente da CPI dos Grampos, que propiciará, por certo, a moralização judicial das escutas telefônicas. Essa é mais uma das ações significativas do parlamentar na busca de iniciativas legislativas — em consonância com as medidas moralizadoras intentadas pelo Deputado Michel Temer, na presidência da Câmara dos Deputados —, no estabelecimento positivo do conceito e do prestígio que deve ostentar o Poder Legislativo da República.

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uma demonstração incontestável e extremamente oportuna da importância do Congresso Nacional para o pleno funcionamento da democracia em nosso país, a Comissão Parlamentar de Inquérito das Escutas Telefônicas Clandestinas, por mim presidida na Câmara dos Deputados de dezembro de 2007 a maio de 2009, deu uma contribuição histórica ao Brasil. Ao revelar à sociedade as obscuras irregularidades, ilegalidades e crimes que estavam sendo cometidos dentro da chamada caixa-preta dos grampos, a CPI, em primeiro lugar, chamou a atenção da nação para os riscos que estavam sendo oferecidos aos direitos individuais garantidos a todos os cidadãos brasileiros pela nossa Constituição Federal. Em segundo lugar, as autoridades competentes, diante da gravidade dos fatos trazidos à luz pela CPI, começaram a tomar as devidas providências para combater o que passou a ficar conhecido como Grampolândia. Não hesito em classificar como contribuição histórica ao

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O árduo trabalho da Comissão, conforme o tempo se encarregará de confirmar, se tornou um marco na história da interceptação telefônica no país, ao dividi-la em duas grandes épocas: a que antecedeu e a que sucedeu a CPI dos Grampos.

país os trabalhos desenvolvidos pela Comissão Parlamentar de Inquérito, que, na imprensa, passou a ser chamada de a CPI dos Grampos. A Câmara dos Deputados, na atual legislatura, fez história ao instalar, corajosamente, a CPI que empreendeu minuciosas investigações para apurar as gravíssimas denúncias sobre grampos ilegais que vinham ocorrendo em todo o território nacional. Grampos ilegais que, no perigoso contexto em que os fins, ainda que ilegais, justificam os meios, são uma ameaça real ao Estado Democrático de Direito, por atentarem contra o direito à privacidade, que, segundo a Constituição, só pode ser violado em último caso e com a devida autorização da Justiça. A CPI pôs um freio no avanço do direito penal do inimigo, cuja abominável doutrina visa suprimir as garantias individuais dos que são tratados como alvos, para que eles sejam submetidos, paradoxalmente, aos rigores previstos na lei. A CPI dos Grampos foi um freio à embrionária formação de um estado policialesco, no qual o sistema de pesos e contrapesos seria simplesmente ignorado, e o direito penal do inimigo prevaleceria. A CPI realizou 98 sessões e audiências. Registrou 128 depoimentos prestados por ministros, magistrados, procuradores, autoridades policiais, agentes, advogados, empresários, funcionários de operadoras de telefonia e cidadãos comuns. Juntou toneladas de documentos e um incalculável volume de bits em mídias eletrônicas. O árduo trabalho da Comissão, conforme o tempo se encarregará de confirmar, se tornou um marco na história da interceptação telefônica no país, ao dividi-la em duas grandes épocas: a que antecedeu e a que sucedeu a CPI dos Grampos.

Ao fincar o marco divisório num momento em que dentro do ovo da serpente crescia o embrionário estado policialesco, a CPI contribuiu para a manutenção do Estado Democrático de Direito, e isso será comprovado pelas futuras análises dos fatos atuais que virão a ser feitas por cientistas políticos, sociólogos e historiadores. O Brasil antes e depois da CPI dos Grampos. A história da transposição para uma nova época, que ainda está em seu transcorrer, já se encontra registrada integralmente nas notas taquigráficas de todos os depoimentos prestados à CPI dos Grampos, disponíveis para sempre nos anais e no site da Câmara Federal. A pesquisa dos fatos registrados na CPI, e que geraram a mudança de hábitos que está sendo promovida nos operadores do sistema repressivo-penal, será feita também nas bibliotecas do país e no infinito universo da internet. Lá estão concentradas reportagens valiosas que reúnem volumosas informações de jornais e sites, áudios e imagens de emissoras de rádio e televisão que cobriram os dezessete meses de investigação parlamentar. O Brasil, antes da CPI dos Grampos, começou a terminar com a revelação estarrecedora, feita pela própria CPI, de que, no ano de 2007, 375 mil interceptações autorizadas pela Justiça haviam sido feitas em todo o país. Pior: muitas delas realizadas por agentes públicos que não possuem a prerrogativa constitucional para fazê-lo. O que tornou o quadro ainda mais tenebroso foi a constatação de que o Poder Público — leia-se, nesse caso, o Poder Judiciário, o Ministério Público e as secretarias estaduais de Segurança Pública — não detinha o controle do emprego deste instrumento de fundamental importância para o combate às organizações criminosas. Principalmente, contra as quadrilhas especializadas nos crimes de colarinho branco, lavagem de dinheiro, corrupção, contrabando, tráfico de armas e drogas. O Brasil, depois da CPI dos Grampos, começou a surgir com constatação de que, em 2008, em decorrência do trabalho realizado pela CPI, ocorrera uma redução de mais de 40% das interceptações telefônicas autorizadas pela Justiça em todo o país. As 375 mil interceptações do ano de 2007 foram reduzidas a 220 mil escutas, numa demonstração cabal de que as autoridades concedentes, alertadas para a farra dos grampos, passaram a ser menos obsequiosas na concessão da medida cautelar. Essa mudança de hábito ocorreu porque a ação efetiva da CPI instou o Conselho Nacional de Justiça e o Conselho Nacional do Ministério Público a tomarem importantes decisões que estabeleceram rigorosos critérios a serem considerados por magistrados, promotores e procuradores. A interceptação telefônica é indispensável para a identificação e reunião de provas contra autores de crimes graves. Mas o emprego deste mecanismo deve seguir os estritos limites da lei, pois a inviolabilidade das comunicações está protegida pela Constituição Federal. De acordo com a lei que regulamentou a escuta no país, ela só pode ser autorizada quando a autoridade policial fundamentar, de forma consistente, que a sua execução é 2009 JULHO | JUSTIÇA & CIDADANIA 23


Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/Abr

Deputado federal Marcelo Itagiba

indispensável à elucidação de um crime. Além disso, é preciso ficar devidamente demonstrado não ser possível colher as informações por outros meios. Ou seja, a regra é a preservação da privacidade. A sua invasão, que pode ocorrer, em último caso, quando autorizada pela Justiça, é uma exceção. Contudo, a CPI descobriu diversas aberrações nas concessões de escutas, cuja banalização enfraquece a manutenção e a eficácia desse imprescindível instrumento de combate à criminalidade. Interceptações foram autorizadas por juízes trabalhistas, quando a lei estabelece o seu emprego apenas para apurações criminais. Policiais rodoviários foram flagrados realizando grampos. Arapongas promoveram espionagens e grampos clandestinos. Agentes da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) foram investidos ilegalmente numa operação da Polícia Federal, inclusive com acesso a informações sigilosas, como as obtidas por meio de interceptações telefônicas autorizadas pela Justiça. Milhares de linhas telefônicas foram interceptadas por mais de dois anos, quando a lei prevê o prazo de 15 dias, renovável uma única vez pelo mesmo período. Banalizou-se a interceptação. Antes, investigava-se e, quando necessário, interceptava-se. Depois, passou-se a grampear para depois investigar. Para tornar mais rigorosa a permissão às interceptações nas investigações policiais, elaborei um voto em separado ao relatório final da CPI, para garantir maior controle pelo Poder Judiciário das interceptações telefônicas e telemáticas, que só poderão ser autorizadas mediante instauração de inquéritos policiais. O texto, que será submetido ao plenário da Câmara, prevê penas rigorosas para os autores de grampos ilegais e para os agentes públicos responsáveis por vazamentos de informações revestidas de sigilo judicial. Em meu voto, defendi também que caberá ao Poder Público a fiscalização da importação e venda de equipamentos de escutas. E propus punições graves para aqueles que os comercializarem ou os portarem desautorizadamente. 24 JUSTIÇA & CIDADANIA | JULHO 2009

O combate ao crime exige leis duras e forças policiais estruturadas. Mas não podemos aceitar o atropelamento da ordenação legal do país que decorre da busca desmedida pela incriminação de suspeitos, inclusive com o uso indevido das estruturas do Estado, como os sistemas oficiais de interceptação telefônica. O Estado Democrático de Direito pressupõe o cumprimento das normais legais. Sob hipótese alguma, devem-se permitir ações que extrapolem os limites estabelecidos pela legislação vigente. Pior ainda quando tais ações oferecem ameaça à dignidade da pessoa humana. Exatamente por isso, em meu voto separadamente propus o indiciamento de todos os que participaram de interceptações clandestinas, os que cometeram o crime de falso testemunho à CPI e os que promoveram a violação de sigilo funcional e o emprego irregular de verba pública. A mentira ao Congresso Nacional, que tem a missão de fiscalizar o Executivo, quando cometida por agente público, é muito mais grave. Instalada para apurar a suspeita manifestada por ministros do Supremo Tribunal Federal de que suas linhas telefônicas estariam sendo interceptadas clandestinamente, a CPI das Escutas Telefônicas Clandestinas conseguiu abrir a caixa-preta dos grampos no país; revelou uma série de irregularidades cometidas em interceptações revestidas de legalidade; mostrou a ocorrência de tentativas de grampos contra dois presidentes da República; chamou a atenção para a estreita e periclitante ligação entre grampos ilegais e o direito penal do inimigo; instou os órgãos competentes a tomarem providências contra a banalização da escuta; e reuniu propostas destinadas ao aprimoramento da lei que regula as interceptações no país. A missão foi cumprida. A Câmara dos Deputados mostrou a importância do Parlamento para a democracia. As instituições são infinitamente maiores do que os seus membros. O homem passa, a obra fica. Criou-se um marco: o Brasil antes e depois da CPI dos Grampos.


Destroços na

correnteza Rodolfo Konder

Jornalista Representante da ABI em São Paulo

Foto: arquivo pessoal

Somos nossa memória”, escreveu o genial Jorge Luis Borges, “este quimérico museu de formas inconstantes, este amontoado de espelhos partidos”. Somos efetivamente nossa memória — individual, coletiva, nacional, histórica. E ela nos relembra, ensina, emociona, educa, protege, adverte. Pode até nos libertar. Basta não ignorá-la. Ela nos mostra que mesmo os bosques apodrecem e se extinguem — como lembrava Alfred Tennyson —, carregados pelas águas de um rio incontrolável. Desfizeram-se também naquele rio o Império Egípcio, junto ao Nilo, e o Império Britânico, às margens do Tamisa. Foi-se o Império Inca, como se foram igualmente com ele os conquistadores espanhóis liderados por Francisco Pizarro. Mais ao norte, os maias e os astecas — povos altamente sofisticados, que dominavam

a Matemática e a Astronomia, além de desenvolver técnicas incríveis de construção e irrigação — também naufragaram nos rios implacáveis da História. Falavam com os deuses, mas naufragaram. E nada protegeu o Império Soviético das corredeiras do tempo, nem seus foguetes espaciais, nem suas armas nucleares. Sumiram assírios e caldeus, desapareceu a Babilônia. A memória nos permite conhecer os enredos da aventura humana. Ela nos fala de todos os Impérios, de todos os regimes, de todos os poderes que os homens acumularam — e perderam. Desvenda os mistérios do nosso passado, é um encontro dramático com a fragilidade dos povos, das culturas e das instituições. No campo minado da violência, nossa memória registra centenas de guerras, milhões de mortos. Somente na Segunda Guerra Mundial, de 1939 a 1945, morreram 50 milhões de seres humanos. Com o fim do conflito, entramos na Guerra Fria — a presença do Armageddon, durante mais de 40 anos, em nosso horizonte próximo. Uma espada nuclear descomunal que pendia sobre nossas cabeças. Esta disputa ideológica e econômica entre Estados Unidos e União Soviética envolveu conflitos frequentes, empobreceu a humanidade com seu simplismo e emburreceu os seres humanos com seu maniqueísmo. Com a chegada ao poder, em moscou, de Mikhail Gorbachev, as tensões diminuíram, até o almejado fim da Guerra Fria, em 1989. No dia 9 de novembro daquele ano, os alemães derrubaram a marretadas uma muralha de 160 quilômetros, erguida em 1961 para evitar as fugas dos que ainda sonhavam com a liberdade, na Alemanha Oriental. A muralha, conhecida como muro de Berlim, simbolizava a divisão do mundo. Parecia eterna e intransponível, mas caiu da noite para o dia, como um castelo de cartas. Então veio finalmente a paz? Doce ilusão. A partir dos anos 90, a memória registra o que a revista “Newsweek” chamou de “a volta do Tribalismo”. Conflitos tribais entre vizinhos multiplicaram-se na Sérvia, na Moldavia, no Kosovo, na Ossétia do Sul, em Ruanda. A violência se abateu sobre o Afeganistão e a Argélia, a Armênia e o Azerbaijão, o Burundi e o Líbano, a Serra Leoa e o Curdistão, o Tibet e a Córsega. A luta armada localizada varreu os cinco continentes. Chegamos ao século 21 sem sonhos e com algumas esperanças efêmeras. Talvez conseguíssemos finalmente aliar o pessimismo da razão ao otimismo da vontade. Mais uma ilusão. Logo ressurgiram os velhos lagartos, maiores e mais vorazes, a assombrar novamente o mundo com seu fanatismo. Surgiu até um personagem lambrosiano, de olhos juntos, apertados, para negar o holocausto. Hoje as certezas dão lugar às dúvidas. O nazi-fascismo está aí mesmo. As pessoas que ainda se lembram olham-se num espelho partido. Vivem imprensadas entre frágeis esperanças e profundas desilusões. André Malraux previu que o século 21 seria “o século da cultura”. Neste momento sem ética, porém, a correnteza da História certamente nos carrega como destroços, na direção de um abismo insondável. 2009 JULHO | JUSTIÇA & CIDADANIA 25


não reconhecimento ao transporte gratuito: ausência de dano moral

10ª Câmara Cível APELAÇÃO CÍVEL Nº 2008.001.44337 APTE: APDO: RELATOR:

TRANSPORTADORA MACABU LTDA HELENA MARIA DOS SANTOS REIS P/SI E REP/S/FILHO THIAGO DOS SANTOS REIS DES. JOSÉ CARLOS VARANDA

Ementa Responsabilidade Civil. Dano moral. Transporte coletivo de passageiros. Incidente ocorrido entre autores e preposto da ré, acerca do transporte gratuito deles, em ônibus desta. Autores que teriam direito ao transporte gratuito, negado pelo motorista. Fatos narrados na inicial e em depoimentos, que não violaram qualquer dos direitos da personalidade. O simples impedimento ao embarque ou o não reconhecimento ao transporte gratuito, por si só, não são aptos à causar dano moral, se a conduta não ofende a integridade física ou a honra da pessoa. Sentença que se reforma. Recurso provido. 26 JUSTIÇA & CIDADANIA | JULHO 2009

Vistos, relatados e discutidos estes autos da Apelação Cível entre as partes acima mencionadas. ACORDAM os Desembargadores componentes da E. 10ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro em dar provimento ao recurso. Decisão Unânime. 1. Adota-se o relatório já lançado aos autos. 2. Cogitam os presentes autos, de ação indenizatória, decorrente de incidente ocorrido em ônibus da apelante, no qual em certa ocasião, os apelados teriam sido impedidos de viajar gratuitamente naquele veículo. 3. Os fatos ensejadores da pretensão se acham suscitamente narrados na inicial, e deles não se pode extrair violação a qualquer dos direitos da personalidade dos apelados. 4. Há danos morais que se presumem de modo que ao autor, basta a mera alegação, ficando a cargo da outra parte a produção da prova em contrário. 5. Assim é que, sofre um efetivo dano moral o cônjuge que perde o outro em decorrência de acidente, ou os pais que experimentam intensa dor pela morte do filho querido e amado. Há também aqueles danos sofridos pelo próprio ofendido em certas circunstâncias especiais (uma grande ofensa à honra, uma grande dor decorrente de grave acidente com lesões físicas, etc), reveladora da existência da dor para o comum dos homens.


Foto: Luiz Henrique

Desembargador José Carlos Varanda, membro da 10ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro

6. Há outros porém que devem ser comprovados, não bastando a mera alegação, como o que consta da petição inicial, redigida data venia a moda de roteiro de telenovela mexicana, e lembrando as narrativas das sagas da literatura nórdica medieval, usando e abusando da linguagem exagerada, tentando transformar gotas d’água em verdadeira tempestade. 7. Sua intenção, sem dúvida, é tentar induzir o Julgador a pensar em termos igualmente exagerados, numa inútil tentativa de afastar o comedimento e a contemporização necessários a qualquer integrante do Poder Judiciário. 8. Desde há muito se sabe que: “in cognoscendo neque excandescere adversus eos, quosmalos putat, neque precibus calamitosorum inlacrymari oportet: id enim nos est constantis et recti iudicis, cuiusanimi motum vultus detegit” (CALISTRATO, L. 19, § 1°. Dig. de Officio Preasidis). 9. A chamada “jurisprudência sentimental” já foi devidamente repudiada pela doutrina e pelo próprio Poder Judiciário, pois trouxe mais males que benefícios. Na lição de CARLOS MAXIMILIANO: “Uma forma original do Direito Livre, anterior, aliás, ao primeiro surto desta doutrina, encontra-se nos julgamentos do Tribunal de primeira instância, de Châteu-Thierry, presidido e dominado pelo bom juiz

O simples impedimento ao embarque ou o não reconhecimento ao transporte gratuito, por si só, não são aptos à causar dano moral, se a conduta não ofende a integridade física ou a honra da pessoa.

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Não se pode enfim permitir que a louvável idéia da compensação indireta aos efetivamente afetados no âmbito psicológico, por fatos graves, possa levar ao efeito inverso da formação de uma sociedade histérica e preocupada com a monetarização dos transtornos, na qual o dano moral seja visto como fonte de receita e na qual cada incidente seja tanto mais bem-vindo quanto maior o poderio econômico do agente causador.

Magnaud (1889-1904). Imbuído de idéias humanitárias avançadas, o magistrado francês redigiu sentenças em estilo escorreito, lapidar, porém afastadas dos moldes comuns, mostrava-se clemente e atencioso para com os fracos e humildes, enérgico e severo com os opulentos e poderosos. Nas suas mãos a lei variava segundo a classe, mentalidade religiosa ou inclinações políticas das pessoas submetidas à sua jurisdição. Na esfera criminal e correicional, e em parte na civil, sobressaiu o Bom Juiz, como exculpar os pequenos furtos, amparar a mulher e os menores, profligar erros administrativos, atacar privilégios, proteger o plebeu contra o potentado. Não jogava com a hermenêutica, em que nem falava sequer. Tomava atitudes de tribuno; usava de linguagem de orador ou panfletário; empregava apenas argumentos humanos, sociais, e concluía do alto, dando razão a este ou àquele sem se preocupar com os textos. Era um vidente, apóstolo, evangelizador temerário, deslocado no pretório. Achou depois o seu lugar — a Câmara dos Deputados; teve a natural coorte de admiradores incondicionais — os teóricos da anarquia. Os socialistas não iam tão longe; seguiam-no a distância, com as necessárias reservas expressas. O fenômeno Magnaud foi apenas “retumbante manifestação de ideologia pessoal” atravessou o firmamento jurídico da Europa como um meteoro; da sua trajetória curta e brilhante não ficaram vestígios. Quando o magistrado se deixa guiar pelo sentimento, a lide degenera em loteria, ninguém sabe como cumprir a lei a coberto de condenações forenses. Ao invés do movimento subjetivo, deve prevalecer o instinto social: o primeiro levaria a absolver o pequeno, roubador de milionário; o segundo, a puni-lo como indivíduo perigoso para a comunidade. O papel da judicatura não é guiar-se pelo sentimentalismo; e, sim, manter o equilíbrio dos interesses, e dentre estes distinguir os legítimos dos ilegítimos. Longe de atender só ao lado material, ou só ao 28 JUSTIÇA & CIDADANIA | JULHO 2009

moral, funde os dados econômicos e os eminentemente sociais, a fim de assegurar o progresso dentro da ordem, a marcha evolutiva da coletividade, mantidas as condições jurídicas da coexistência humana. Jamais poderá o juiz transpor os limites estabelecidos pelo Código — ultra quos citraque nequit consistere rectum (“além e aquém dos quais não pode o justo exigir”). Não considera a lei como rígida, completa o texto; porém não lhe corrige a essência, nem a substitui jamais.” 10. E do alto de sua cátedra na Universidade de Roma, assim ensinava GIORGIO DEL VECCHIO: “Se qualquer opinião ou sentimento individuais fossem motivo bastante para legitimar o desrespeito ao direito estabelecido, a consequência não seria o advento de uma mais alta justiça, mas sim de subversão de toda a justiça pelo aluimento das suas bases de certeza e segurança. Com efeito, sabe-se que os mais diversos motivos podem concorrer para atacar uma ordem jurídica positiva: não apenas uma aspiração puríssima por uma justiça melhor, mas também o instinto egoísta e o interesse em se furtar ao cumprimento do próprio dever. Sem dúvida, um certo espírito crítico, e principalmente auto-crítico, é sempre necessário nesta matéria; mas não deve esquecer-se que o espírito revolucionário não poucas vezes também tem abusado do nome sagrado da justiça para encobrir as mais impuras paixões e os mais inconfessáveis interesses.” 11. Diariamente todos os cidadãos são expostos a uma miríade de acontecimentos que geram aborrecimentos, indignação e constrangimento: engarrafamentos de trânsito, menores abandonados e lixo espalhado pelas ruas, são apenas alguns exemplos. 12. Mas isso não é fundamento de pedido de indenização por danos morais! E por qual razão? Simples: porque não é qualquer fato ou acontecimento diário que causa dano moral indenizável. 13. A ausência de efetiva repercussão negativa nos senti­


mentos subjetivos de honra, imagem e autoestima não autoriza o pleito indenizatório. Isso porque não se pode, e nem se deve banalizar o conceito de dano moral, como veremos a seguir. 14. O pleito Autoral não tem qualquer fundamento que enseje uma pretensão indenizatória a título de dano moral. Nada de dano efetivo real se identifica, pois os fatos narrados não têm potencialidade ofensiva à integridade moral do autor, até porque, nada se comprovou! 15. A inicial não cogita de perda que gerasse angústia profunda, como, por exemplo, na morte de um parente. Não houve qualquer repercussão física na pessoa do autor, que continuou como sempre foi. Não houve qualquer repercussão nos meios sociais em que o mesmo circula. Não houve divulgação ou ciência de seus familiares, seus amigos e/ou no meio profissional em que atua. Não houve, em suma, qualquer situação traumática, no plano moral, assim como qualquer demonstração de prejuízo de negócio, diminuição ou perda de relações afetivas, afastamento de parentes ou qualquer outra afetação perante quem quer que seja. 16. Ocorre que a reparação do dano moral, em boa hora consagrada pela Constituição de 1988 mas infelizmente deturpada, não se presta a contemplar situações desse jaez. O dano moral indenizável é aquele expressivo, que causa dor ou abalo de tal forma significativos ou duradouros que não possa ficar impune, não se confundindo com os pequenos incidentes e aborrecimentos registrados no cotidiano dos relacionamentos comerciais e pessoais. 17. O dano moral está intimamente ligado aos direitos da personalidade, como enfatiza Paulo Luiz Netto Lobo, in Danos Morais e Direitos da Personalidade, in RTDC, vol. 6, abr/ jun-2001, págs.79/97, e pelo que consta, nenhum deles teria sido violado. 18. No comum dos casos, esses pequenos dissabores ou microtraumas acabam por naturalmente ser superados e acomodados sem que gerem sequelas psicológicas relevantes no normal das pessoas. Podem, outrossim, gerar providências diversas, como a própria quebra do relacionamento comercial ou a denúncia do fato perante órgãos de proteção do consumidor, sem que se chegue a cogitar da hipótese de reparação pecuniária. Não se pode enfim permitir que a louvável idéia da compensação indireta aos efetivamente afetados no âmbito psicológico, por fatos graves, possa levar ao efeito inverso da formação de uma sociedade histérica e preocupada com a monetarização dos transtornos, na qual o dano moral seja visto como fonte de receita e na qual cada incidente seja tanto mais bem-vindo quanto maior o poderio econômico do agente causador (grifamos). 19. Assim, se considera os autores suas vidas extremamente abaladas por fato de proporções como o ora verificado, não é perante o Judiciário que devem buscar auxílio. 20. Como salientam a doutrina e a jurisprudência, o mero transtorno, aborrecimento, desentendimento, desavença, contrariedade e frustração de expectativa não configuram, jamais, fundo e ponderável gravame à dignidade, honra, idoneidade ou outro aspecto moral com direito subjetivo e

personalíssimo. Assim é a lição de WLADIMIR VALLER: “Quando se alardeia danos morais, a incomprovação de seus efeitos no patrimônio da vítima, vale dizer, a inexistência de prova concludente quanto ao nexo causal que deve vincular o sentimento que se disse inquietado e o dano material consectário e direto, faz com que perca relevo jurídico pretensão indenizatória que se apóie em arguição daquele jaez. Não há indicações seguras de que o suplicante teve seu crédito abalado ou que, de algum modo, passou para um estágio de descrédito perante a sociedade ou, então, junto à comunidade comercial e ao mundo econômico financeiro. O dano, mesmo que possa advir de um comprometimento moral, deve traduzir-se em consequência necessária do ato de inexecução. Na verdade, sem a prova de um efetivo prejuízo, não se há de falar em dano indenizável, pois este só se dimensiona possível quando repercuta, de algum modo, no patrimônio do vitimado.”1 21. Nem todo mal-estar configura dano moral. Assim, dilo o ilustre magistrado paulista Antonio Jeová Santos, em sua recente e útil obra jurídica Dano Moral Indenizável, Lejus, já em 3ª ed. 2001. 22. Desenvolvendo o tema, assim discorre ele nas págs.119/122 de seu livro: “Visto dessa forma, pode parecer que qualquer abespinhamento propicia o exsurgimento do dano moral. Qualquer modificação no espírito, ainda que fugaz, aquele momento passageiro de ira, pode causar indenização. Sem contar que existem pessoas de suscetibilidade extremada. Sob qualquer pretexto, ficam vermelhas, raivosas, enfurecidas. Não se pode dizer que não houve lesão a algum sentimento. Porém, seria reduzir o dano moral a mera sugestibilidade, ou proteger alguém que não suporta nenhum aborrecimento trivial, o entendimento que o dano moral atinge qualquer gesto que cause mal-estar. Existe, para todos, uma obrigação genérica de não prejudicar, exposto no princípio alterum non laedere. De forma correlata e como se fosse o outro lado da moeda, existe um direito, também genérico, de ser ressarcido, que assiste toda pessoa que invoque e prove que foi afetada em seus sentimentos. Esse princípio sofre mitigação quando se trata de ressarcimento de dano moral. Simples desconforto não justifica indenização. Nota-se nos pretórios uma avalanche de demandas que pugnam pela indenização de dano moral, sem que exista aquele substrato necessário para ensejar o ressarcimento. Está-se vivendo uma experiência em que todo e qualquer abespinhamento dá ensanchas a pedidos de indenização. Não é assim, porém. Conquanto existam pessoas cuja suscetibilidade aflore na epiderme, não se pode considerar que qualquer mal-estar seja apto para afetar o âmago, causando dor espiritual. Quando alguém diz ter 2009 JULHO | JUSTIÇA & CIDADANIA 29


Como salientam a doutrina e a jurisprudência, o mero transtorno, aborrecimento, desentendimento, desavença, contrariedade e frustração de expectativa não configuram, jamais, fundo e ponderável gravame à dignidade, honra, idoneidade ou outro aspecto moral com direito subjetivo e personalíssimo.

sofrido prejuízo espiritual, mas este é conseqüência de uma sensibilidade exagerada ou de uma suscetibilidade extrema, não existe reparação. Para que exista dano moral é necessário que a ofensa tenha alguma grandeza e esteja revestida de certa importância e gravidade. Nos grandes magazines, já se vulgarizou o uso de artefatos que detectam a saída de mercadorias que, à sorrelfa, possam ser subtraídas por algum cliente. Se alguém comprar e pagar o artigo mas, por mero esquecimento do funcionário, o artefato não for retirado do produto, fazendo com que o sensor com sinais de bip emita sons, obrigando funcionários a, de forma cavalheiresca e sutil, pedir ao comprador para verificar o pacote ou sacola contendo o bem comprado e, verificado sem estardalhaço que tudo não passou de esquecimento do funcionário, é óbvio que essa circunstância se coloca como mero aborrecimento, não suscetível de configurar o dano moral. Diferentemente, se na hipótese acima ventilada, seguranças do magazine conduzirem o cliente a local reservado, sob os olhares de virtuais compradores que naquele momento estão na loja, e obrigarem o suposto ladrão a tirar as roupas, fizerem requintada busca pessoal sob impropérios, claro está que aquilo que poderia ser um mero aborrecimento indiferente ao direito de danos, transformou-se em impacto nos sentimentos do honesto comprador. Aí, o dano moral emerge em toda a sua plenitude. O perfeito entendimento sobre a configuração do dano moral está, exatamente, no verificar a magnitude, a grandeza do ato ilícito. Se um motorista xinga outro depois de uma manobra arriscada ao volante, não se vá inferir que adveio dano moral. A mulher que é assediada na rua, rapidamente, en passant, e até se o homem proferir algum adjetivo ofensivo, pensando que está sendo galante, também não haverá dano moral pela pequenez que a consequência desses atos pode resultar na esfera espiritual da ofendida. 30 JUSTIÇA & CIDADANIA | JULHO 2009

A figura do homem médio, para ser joeirado daquele que tem uma suscetibilidade exacerbada da pessoa normal, que não se agasta facilmente, há de ser buscada nesse tema. Aquele mal, que infligido em decorrência da própria atividade que a pessoa exerce, não pode ser considerado dano moral apto a ingressar no mundo jurídico como a prática de um ilícito suscetível de dar azo à indenização. Um funcionário que exerce as funções de caixa em supermercado, por exemplo, está sujeito a deparar-se com pessoas insatisfeitas com o preço ou com a qualidade do produto encontrado. E natural, embora reprovável, que essa pessoa procure desabafar o seu descontentamento com o funcionário mais próximo e que passe mais tempo ouvindo-a. Também não haverá dano moral. O motorista de ônibus coletivo que a todo instante é obrigado a suportar palavras ferinas, ora porque o passageiro está atrasado e quando chegar ao destino ouvirá uma descompostura do seu chefe, ou o árbitro de futebol que, no estádio ouve de torcedores enraivecidos adjetivos pouco recomendáveis, não poderão invocar, depois, o órgão jurisdicional para buscar reparação por dano moral. As atividades que ditas pessoas desenvolvem implicam no risco de ouvirem palavras menos airosas, o baldão. É um risco previamente assumido e decorre do cotidiano. Desde que os impropérios se circunscrevam ao mero e simples desabafo, sem nenhuma outra valoração do que poderia se converter em ilicitude, não há dano moral indenizável. Agora, se o caixa, o motorista de ônibus ou o árbitro de futebol forem injuriados depois da jornada de trabalho, a situação se inverte. Não mais estarão no exercício da atividade na qual, portanto, estavam a correr o risco de alguma ofensa. Se, por exemplo, algum tempo depois de uma partida de futebol, o árbitro em seu local de trabalho escuta que é um ladrão e que sua mãe não é nenhum modelo de mulher virtuosa, evidente que o dano moral adveio e grande é a possibilidade de o ofensor ser condenado ao pagamento de indenização.


Como asseveram Gabriel Stiglitz e Carlos Echevesti (Responsabilidad Civil, p. 243), “diferente do que ocorre com o dano material, a alteração desvaliosa do bemestar psicofísico do indivíduo deve apresentar certa magnitude para ser reconhecida como prejuízo moral. Um malestar trivial, de escassa importância, próprio do risco cotidiano da convivência ou da atividade que o indivíduo desenvolva, nunca o configurarão”. O que se quer afirmar é que existe um mínimo de incômodos, inconvenientes ou desgostos que, pelo dever de convivência social, sobretudo nas grandes cidades, em que os problemas fazem com que todos estejam malhumorados, há um dever geral de suportá-los. O mero incômodo, o desconforto, o enfado decorrentes de alguma circunstância, como exemplificados aqui, e que o homem médio tem de suportar em razão mesmo do viver em sociedade, não servem para que sejam concedidas indenizações. O dano moral somente ingressará no mundo jurídico, com a subsequente obrigação de indenizar, em havendo alguma grandeza no ato considerado ofensivo a direito personalíssimo. Se o ato tido como gerador do dano extrapatrimonial não possui virtualidade para lesionar sentimentos ou causar dor e padecimento íntimo, não existiu o dano moral passível de ressarcimento. Para evitar a abundância de ações que tratam de danos morais presentes no foro, havendo uma autêntica confusão do que seja lesão que atinge a pessoa e do que é mero desconforto, convém repetir que não é qualquer sensação de desagrado, de molestamento ou de contrariedade que merecerá indenização. O reconhecimento do dano moral exige determinada envergadura. Necessário, também, que o dano se prolongue durante algum tempo e que seja a justa medida do ultraje às afeições sentimentais. As sensações desagradáveis, por si sós, que não trazem em seu bojo lesividade a algum direito personalíssimo, não merecerão ser indenizadas. Existe um piso de inconvenientes que o ser humano tem de tolerar, sem que exista o autêntico dano moral”. 23. Em excelente trabalho publicado na Revista do Advogado, edição de dezembro de 1996, págs.7/14, sobre o Dano Moral e a sua Avaliação, o Magistrado e Professor José Ozório de Azevedo Junior, assim se manifesta: “Convém lembrar que não é qualquer dano moral que é indenizável. Os aborrecimentos, percalços, pequenas ofensas não geram o dever de indenizar. O nobre instituto não tem por objetivo amparar as suscetibilidades exageradas e prestigiar os chatos. Já tive conhecimento de caso em que um juiz moveu ação contra o seu colega que reformou um seu despacho de forma que ele considerou ofensiva.. Também um perito moveu ação contra o advogado que criticou o laudo com energia... O Código Civil Português tem dispositivo de grande sabedoria e utilidade. É o artigo 496º “Danos não Patrimoniais.

Na fixação da indenização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam tutela do direito” Por outras palavras, somente o dano moral razoavelmente grave deve ser indenizado.” 24. Em acórdão publicado na RT 782/252, oriundo do TJSP, sobre o que se caracterize efetivamente como dano moral, assim se expressou o seu relator, o Des. Elliot Akel: “Vivemos período marcado por aquilo que se poderia denominar banalização do dano moral. Notícias divulgadas pela mídia, muitas vezes com estardalhaço, a respeito de ressarcimentos milionários por alegado dano moral, concedidos por Juízes no país e no exterior, acabam por influenciar as pessoas, que acabam por crer na possibilidade de virem a receber polpudas indenizações por aquilo que, a rigor, menos que dano moral, não constitui mais que simples aborrecimento” ................................................................................... “Os aborrecimentos e contrariedades fazem parte do quotidiano. A vida é composta por prazeres e desprazeres. Quem quer que viva em uma cidade como São Paulo está sujeito a dissabores, no trânsito caótico, nas filas para utilização dos equipamentos urbanos, no tempo de abertura dos semáforos frequentemente insuficiente para a travessia de pedestres, no tratamento nem sempre cortês dos atendentes e vendedores. E nem por isso se pensará em, a cada um desses pequenos aborrecimentos, movimentar a máquina judiciária para obtenção de ressarcimento”. 25. Em recente decisão de 21/6/01, o STJ por sua 4ª T., em decisão unânime conduzida pelo Min. Cesar Asfor Rocha, no RE n°215.666-RJ, assim sintetizou: “Dano moral – não ocorrência. O mero dissabor não pode ser alçado ao patamar do dano moral, mas somente aquela agressão que exacerba a naturalidade dos fatos da vida, causando fundadas aflições ou angústias no espírito de quem a ela se dirige. Recurso parcialmente conhecido e nessa parte provido.” (in RSTJ n°150/382)”. 26. Em sendo assim, a conta de tais fundamentos, é que se dá provimento ao recurso, para julgar improcedente a pretensão autoral, condenando-se os autores nas custas processuais e honorários advocatícios que se arbitram em R$500,00, ficando isento porém, nos termos do art.12 da Lei 1060/50. R.J. 10 de junho de 2009. DES. JOSÉ CARLOS VARANDA RELATOR NOTAS VALLER, Wladimir – A Reparação do Dano Moral no Direito Brasileiro, 1ª ed., E.V. Editora SP, 1994, p.147/148. 1

2009 JULHO | JUSTIÇA & CIDADANIA 31


A crise dos

emergentes Ives Gandra da Silva Martins

Professor emérito das universidades Mackenzie, UNIFMU, UNIFIEO, UNIP e CIEE Membro do Conselho Editorial

A

Foto: arquivo pessoal

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crise atual decorreu de um imperativo psicossocial clássico nas economias de mercado, ou seja, o envolvimento de toda a sociedade, sem intervenção adequada dos governos, na busca de resultados financeiros e no mercado de capitais, em face do crescimento da economia em padrões acima das necessidades de consumo dos que têm capacidade de absorver a produção. Dessa forma, os investimentos foram valorizados também em patamar mais elevado do que seu intrínseco valor estrutural, com o que, em um determinado momento, tal evolução, sem sustentabilidade real, necessariamente, terminaria por explodir, gerando mais uma crise cíclica de capitalismo, em dimensões maiores do que aquelas que ocorrerem após 1929. O efeito psicológico de uma percepção superficial dos elementos causadores da crise, indiscutivelmente, acabou por gerar um prolongamento ilusório de um “boom econômico”, já diagnosticado por especialistas como sem condições de permanência, a partir de 2006/2007. Os mercados não são autorreguláveis, mas as regulações oficiais quase sempre são insuficientes para corrigir suas distorções, mormente quando as próprias autoridades iludemse quanto à sua capacidade de conduzi-lo. Por outro lado, os investidores que o alimentam e que, não poucas vezes, também se iludem com a fortaleza estrutural do progresso e do desenvolvimento, terminam sendo, simultaneamente, causa e efeito gerador daquele momento em que a constatação da impossibilidade de sua permanência em níveis elevados indefinidamente torna-se evidente. Em outras palavras, há um ponto de equilíbrio, que seria o limite crítico entre uma realidade controlável, propiciadora da estabilidade dos mercados, e a atuação dos agentes econômicos e autoridades tanto para perceber, quanto para promover uma intervenção corretiva, sempre que esse limite crítico, precário


O efeito psicológico de uma percepção superficial dos elementos causadores da crise, indiscutivelmente, acabou por gerar um prolongamento ilusório de um ‘boom econômico’, já diagnosticado por especialistas como sem condições de permanência, a partir de 2006/2007.

por natureza, é ultrapassado. É que, de outra forma, a atuação dos agentes econômicos passa a ser aleatória e desordenada, na busca desesperada de salvar o que lhes parece em risco de se perder, terminando, a ação das autoridades com poder regulatório, por ser superada pela atuação de investidores e consumidores. São estes, de rigor, aqueles que determinam os humores da realidade econômica, nas crises e nos tempos de bonança. Assim, há um ponto de equilíbrio permanente, na economia de mercado, sempre que os investidores, os agentes produtivos (agricultura, indústria, comércio e serviços) e os agentes públicos atuam na perspectiva de um desenvolvimento projetado, detendo pleno conhecimento dos fatores sociais, políticos, econômicos, de consumo e emprego, e sendo capazes de mantê-los constantes mediante controle induzido, por meio de políticas creditícias e fiscais capazes de estimular ou desestimular setores que possam provocar os desequilíbrios definidos como indesejáveis pelos agentes econômicos e públicos em conjunto. Nesse contexto de adequada política de mercado, a própria conjunção de agentes públicos e privados conformará o nível de gastos públicos e despesas burocráticas, sempre que estes possam interferir no mercado, promovendo o seu redimensionamento quando se mostrarem superiores à capacidade de absorção, de forma a impedir distorções de difícil correção, a médio e longo prazos. Vale dizer, numa economia de mercado equilibrada, todos os fatores devem convergir para uma nova realidade, o que exige sensibilidade adequada dos parceiros com capacidade de intervenção, para que esta se dê de comum acordo e na exata medida, tanto para evitar desequilíbrios, como para propiciar convergência de objetivos. Tal convergência, aliás, mostra-se cada dia mais necessária e alargada, em nível internacional,

nos espaços regionais criados com a mesma política, tornando indispensável um limite crítico convivencial amplificado. Embora o modelo pareça utópico, a verdade é que, nas crises verificadas depois da Segunda Guerra Mundial, e, principalmente, na atual, os problemas não avaliados a tempo e distendidos pela pressão própria dos agentes econômicos permitiram, todavia, a busca de convergência supranacional das relações, com razoável concordância quanto aos princípios básicos de combate à crise. A decisão pela manutenção operacional do falido sistema financeiro dos países desenvolvidos eliminou um contágio mais grave, na economia real, deteriorada pelos mesmos males que atingiram aquele sistema (créditos fáceis para empresas ou consumidores insolventes, com renovações permanentes). O erro de avaliação das autoridades, principalmente financeiras, no espoucar da crise, foi acreditarem que a força do mercado, em “boom” constante há vários anos, absorveria bancos e empresas, institucionalmente quebrados, e que as forças do próprio mercado corrigiriam as detectadas dificuldades momentâneas, permitindo sua recuperação futura. Tal erro de avaliação, que levou ao mascaramento dos balanços e às renovações de títulos sem qualquer lastro real, retardou em mais de dois anos a tomada de medidas adequadas, sendo, de rigor, o grande deflagrador de uma crise, que poderia ter sido menor se os remédios eficazes, agora tomados, tivessem-no sido mais cedo. Vale dizer, tal qual um câncer não combatido no início, a luta para extirpá-lo, quando já se desenvolveu, é, indiscutivelmente, muito mais difícil. É o preço que o mundo está pagando pelo erro de avaliação das autoridades governamentais dos países mais desenvolvidos. Os países de economias emergentes sofreram menos, mas sofreram. 2009 JULHO | JUSTIÇA & CIDADANIA 33


É o preço que o mundo está pagando pelo erro de avaliação das autoridades governamentais dos países mais desenvolvidos.

Pode-se dividi-los em 3 categorias: os emergentes desen­ volvidos, os que possuem monoeconomias e os insuficientes. Os primeiros, de rigor, são os Brics, acompanhados da Argentina e do México — a Coreia do Sul encontra-se entre os países desenvolvidos —, que sofreram na medida de seu maior ou menor envolvimento com os países desenvolvidos. O Brasil, por exemplo, dependia do mercado exterior em 25%, enquanto o México, em mais de 50%. À evidência, o impacto negativo no México foi superior ao do Brasil, onde os estímulos ao mercado interno compensaram em parte a perda do mercado externo devido a três fatores: falta de crédito, redução do preço das commodities, só agora em recuperação, contração do mercado exportador. Desta forma, no ano de 2009, entre as 36 maiores economias do mundo, o Brasil colocou-se, no primeiro trimestre, entre as 8 que menos sofreram, com uma queda de 1,8% em relação ao mesmo trimestre de 2008, sendo superado apenas por Indonésia, Austrália, Coreia do Sul, Polônia, Chile, Canadá e Noruega. A recuperação, todavia, já no 2º trimestre, é evidente, em face de uma adequada política de estímulos fiscais para setores sensíveis da economia (automóveis, eletrodomésticos e outros de grande impacto no consumo) capaz de manter um nível de produção elevado. Por exemplo, venderam-se mais automóveis no ano de 2009 que em 2008, no mercado interno. Acresce-se que o Brasil tem uma banca sólida, decorrente de dois fatores. O primeiro é ter atrasado sua entrada na euforia global da multiplicação de títulos privados e papéis financiando uma economia em evolução e sem lastro, com o que, quando estava para entrar na ciranda internacional, esta se desfez. Em segundo lugar, por ter mais da metade desses ativos financeiros aportados em títulos públicos. É comum afirmar-se, no Brasil, que a banca brasileira vale o que vale o governo. A manutenção de juros elevados, por outro lado, não provocou a fuga de recursos que outros países emergentes conheceram, demonstrando que a economia brasileira é mais 34 JUSTIÇA & CIDADANIA | JULHO 2009

sólida que a da maior parte dos países emergentes. A Rússia, pela proximidade dos países desenvolvidos, sofreu ao ponto de seu PIB ter caído, no último trimestre de 2008, 23,2%, se comparado com idêntico período de 2007, e 9,5% no 1º trimestre de 2009, se comparado com o mesmo período de 2008. A Índia recupera-se com bastante rapidez (queda de 2,8% no último trimestre e elevação de 5,8% no 1º trimestre), o mesmo ocorrendo com a China (0% no último trimestre e + 6,1% no 1º trimestre). Talvez, o mais relevante fator, nesta recuperação dos três componentes não europeus dos Brics, decorra de seus respec­ tivos mercados consumidores internos, ainda insuficientes, pe­ quenos, se comparados com os dos países desenvolvidos. Quem, num país desenvolvido, pretendia comprar um carro, ante o medo da crise, da recessão e do desemprego, poderá atrasar a compra de 2 a 3 anos. Em países cujo mercado interno é composto de cidadãos que já possuem os principais bens representativos do conforto, o campo do consumo não comporta alargamento ou substituição, e decisões dessa natureza terminam por criar um círculo vicioso: menos vendas, mais desemprego, que geram menos vendas e mais desemprego. Já nos países emergentes, em que os mercados são insuficientes e o grau de evolução industrial, tecnológico e de serviços é grande, a perda de determinados mercados não implica redução sensível da produção de bens materiais e imateriais, pela capacidade de expansão do consumo para áreas antes fora de sua influência. Compatibilizar políticas de estímulos fiscais e creditícios auxilia a conquista de novas áreas, substitutivas, em parte, das áreas já atingidas pelo consumo. Desta forma, Brasil, Índia e China, com mercados ainda a ser desbravados, têm compensado o mercado externo pelo alargamento do mercado interno. China e Índia levam vantagem sobre o Brasil, em face da inexistência de direitos sociais no nível em que temos em nosso País. O dumping social que promovem torna seus produtos muito mais competitivos (serviços e bens) do que os dos países civilizados e emergentes em geral, acrescentando-se uma carga tributária pequena, se comparada à do Brasil e à dos países desenvolvidos, além de juros inferiores aos aqui praticados. Teme-se que, em 2009, venha a ocorrer uma invasão crescente dos produtos chineses, já com melhor qualidade, no mercado dos países desenvolvidos e emergentes, o que está levando alguns a tomarem medidas de proteção aduaneira, com elevação dos direitos alfandegários incidentes sobre as importações chinesas. Percebe-se, pois, que a perda de mercados desenvolvidos está levando a China a invadir os mercados emergentes, criando problemas de descompetitividade só compensáveis com tarifas aduaneiras ou barreiras ligadas ao controle do poder econômico (leis antidumping). Os países de monoeconomia — como, por exemplo, a Venezuela, que importa 70% de seus alimentos e que prospera quando suas commodities têm cotação elevada, entrando em


colapso financeiro quando o preço cai — começam a viver problemas sérios por não terem criado uma infraestrutura agrícola, industrial ou de serviços, nem aproveitado convenientemente os bons anos de alta cotação de seu monoproduto. Quanto mais tempo levarem as commodities para recuperar seus preços internacionais, tanto mais grave será a deterioração de seus mercados e economia. Nos países emergentes insuficientes, de mono ou polieconomia, a economia sofreu mais do que a dos países emergentes e desenvolvidos, embora sua população, acostumada a um padrão de vida inferior ao dos países civilizados, reclame menos. Estão acostumados à privação de inúmeros bens da modernidade e a crise os afeta na exata medida de sua capacidade de suportar. Padecem, todavia, tais países da perda dos mercados externos, falta de crédito e redução dos preços das commodities, quase sempre seus únicos bens de exportação. De certa forma, os países emergentes dependem da recuperação dos países desenvolvidos para crescer, como ocorreu, nas 3 citadas categorias de países, entre 2003 a 2008. A população sofre menos que os governos, afetados em sua capacidade de manipulação das massas e às voltas com descontentamentos pontuais por salários e estímulos. Aguarda, todavia, como “boi de tranco”, que haja uma recuperação econômica mundial. A expressão “boi de tranco” vem do interior paulista, aludindo à situação daqueles animais integrantes da segunda fila, nas juntas de quatro bois que conduzem os carros das fazendas: levam o tranco do carro, por estarem atrás, mas não o conduzem, pois isso é feito pelos bois da frente. No sentido figurado, comporta-se como “boi de tranco” a empresa, o cidadão, a sociedade que nada conduzem, mas recebem a carga dos que conduzem a política do país. Pessoalmente, acredito que Brasil, China e Índia deverão liderar a recuperação das economias emergentes, o que pode ocorrer antes da recuperação das economias desenvolvidas, prevista apenas para 2010. É que seu mercado consumidor continua alimentando, independentemente do mercado externo, a recuperação interna. Tal recuperação dependerá, todavia, da sensibilidade dos governos em reduzir a pressão fiscal, em determinar políticas adequadas de estímulo, acompanhadas de programas sociais geradores de mercado, para que pessoas fora do consumo passem a consumir produtos não colocáveis no mercado externo. Não se trata da situação descrita pelo Barão de Munchausen — de ter evitado seu afogamento, puxando-se das águas pelos cabelos —, mas de países com grande diversidade agrícola, de bens extrativos e de indústria evoluída aproveitarem as próprias potencialidades para se autoalimentarem com as riquezas próprias, que voltarão a ser destinadas ao mercado externo, tão logo comece, de forma mais acentuada, a recuperação internacional. O tempo dirá se tais prognósticos corresponderão à realidade dos fatos.

Santos Salles advogados associados

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oposição e a cpi da petrobras

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Mauro Santayana Jornalista

O

governo decidiu aceitar a instalação da CPI da Petrobras. Poderia tê-lo feito antes, uma vez que dispõe de maioria no Senado. Agira com prudência, ao tentar impedi-la, porque a Petrobras — a maior empresa brasileira, e uma das maiores do mundo — tem as suas ações negociadas nas bolsas internacionais, e qualquer suspeita sobre suas atividades lhe acarretará danos. Duas devem ter sido as razões principais que orientaram o Planalto a solicitar a instalação do colégio investigador. Diante da crise na Câmara Alta, é melhor que a instituição saia do círculo de giz, e passe a atuar, ainda que por iniciativa da oposição e contra o próprio governo, e o presidente confia na lisura das atividades da empresa. Além disso, as principais figuras da oposição se encontram enodoadas com os escândalos. Se o Senado se encontra desmoralizado diante da opinião pública — e é inegável que assim está — situação e oposição se acham sob a mesma tacha. Escapam, como tantos já constataram, algumas poucas ovelhas, em rebanho enegrecido pelas cinzas da corrupção. As circunstâncias fecham com escolhos o trajeto da CPI. Dificilmente as suas sessões serão acompanhadas pelo interesse da cidadania, cansada dos mesmos comediantes de sempre. A Petrobras, com todos os seus êxitos, vale mais como símbolo da obstinação brasileira do que pelos seus resultados econômicos, por maiores eles sejam. Suas imensas receitas, que nos ajudaram a vencer as duras dificuldades do subdesenvolvimento, revelam a inteligência de nossos geólogos, engenheiros de minas, engenheiros mecânicos e trabalhadores comuns. Essa massa de pesquisadores e inventores não

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se reuniria, sem que a precedessem os atos políticos de brasileiros comuns, entre eles intelectuais e jornalistas, como Monteiro Lobato, Gondim da Fonseca, Domingos Velasco e Mattos Pimenta, Joel Silveira, Barbosa Lima, Oscar Niemeyer e muitos outros. Os mais jovens não sabem o que é um povo sem petróleo. Durante muito tempo comprávamos, dos Estados Unidos, a gasolina a conta-gotas, e mantínhamos estoques de curta duração. A energia sempre foi arma estratégica. A partir do momento em que a gasolina servia de suporte a uma forma de vida — também ela importada do Norte — dela não poderíamos prescindir. Se houvesse, por acaso, uma guerra em que o Brasil se envolvesse com qualquer vizinho, bastaria aos norteamericanos fechar o nosso suprimento e favorecer o inimigo. Pouco a pouco, fomos construindo pequenas refinarias, mas sempre dependíamos do petróleo bruto, e esse estava sob o controle das sete irmãs. Temos a acrescentar que a iluminação elétrica era luxo de algumas cidades. A iluminação das casas, no vasto interior, quando não se fazia com o óleo de mamona, dependia do querosene Jacaré, produzido, importado e distribuído em latas de 20 litros pela Standard Oil. Nos morros do Rio de Janeiro e nos subúrbios das cidades maiores do resto do país, as lamparinas se alimentavam desse combustível. Impingiram-nos a ideia de que no Brasil não havia petróleo. Os gases emanavam de fendas no solo, aqui e ali, e, de alguns poços pioneiros — como o de Lobato, na Bahia — ele chegou a jorrar com timidez, mas, segundo alguns, não tínhamos o óleo. Havia petróleo na Argentina, na Bolívia, no Paraguai, na Venezuela, na Colômbia, no Peru — não em nosso solo.


A Petrobras, com todos os seus êxitos, vale mais como símbolo da obstinação brasileira do que pelos seus resultados econômicos, por maiores eles sejam. Suas imensas receitas, que nos ajudaram a vencer as duras dificuldades do subdesenvolvimento, revelam a inteligência de nossos geólogos, engenheiros de minas, engenheiros mecânicos e trabalhadores comuns.

A criação da Petrobras custou o suor e o sangue de muitos brasileiros. Podemos encontrar dezenas de explicações para a morte de Getúlio, em agosto de 1954, todas marcadas pelo petróleo. A sanção da lei que criara a empresa, em outubro do ano anterior, enfrentou a reação orquestrada da grande imprensa, a serviço dos interesses externos. Vargas só contava com os trabalhadores e com os estudantes, que não dispunham do poder de mobilizar os militares, como fizeram Lacerda e outros. A Petrobras, que afrontou todas as dificuldades para consolidar-se, foi recentemente mutilada pelo governo tucano, que rompeu o monopólio estatal e abriu seu capital aos estrangeiros. A iniciativa da CPI, à parte o interesse em desestabilizar o governo, visa a favorecer a entrega do petróleo do présal a empresas multinacionais. Se existem irregularidades na Petrobras, há como identificálas e saná-las, mediante os organismos oficiais de controle, como o TCU, a CGU e o Ministério Público — com rigor, e sem espetáculo. A CPI da Petrobras provavelmente terá o percurso de um bumerangue: golpeará os que a promovem. Originalmente publicado na seção “Coisas da Política” do “Jornal do Brasil”

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A CONTRAPRESTAÇÃO SALARIAL DO EMPREGADO NA INVENÇÃO

Luciano Viveiros

Advogado Professor da UERJ, FGV Fundador da Escola Superior de Advocacia da OAB/RJ

A Foto: arquivo pessoal

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primeira disposição sobre invenções de empregados no Brasil foi atendida pela própria legislação do trabalho em 1943, especificamente, no artigo 454 da CLT. Em 1945, esse comando legal foi encampado pelo Decreto-Lei n° 7.903, que restou instituindo o primeiro Código da Propriedade Industrial no país. Mais tarde, a matéria foi regulada no Código de Propriedade Industrial, Lei n° 9.279/96. O Código de 1945 reproduziu a disposição de natureza celetista que, na verdade, impingiu a um só artigo a capacidade de solucionar tão complexa questão que envolve a regulação da capacidade criativa nos inventos realizados por empregados na ocorrência de um contrato de emprego. Observe-se que o Código de 1971 apresentou outras disposições estabelecendo como norma geral, em contrário senso do que havia exposto no Código de 1945, a condição de que “pertencerão exclusivamente ao empregador os inventos, bem como os aperfeiçoamentos, realizados durante a vigência de contrato (...), em que a atividade inventiva do assalariado ou do prestador de serviços seja prevista, ou ainda que decorra da própria natureza da atividade contratada”, assim entendido como uma exceção pelo Código de 1945. Ademais, esse mesmo código avançou em relação aos anteriores visto que, além dessa disposição de inventos de serviço, restou proporcionando o conhecimento de disposições referentes aos “inventos mistos” ou de “estabelecimento” e aos “inventos livres”. Na realidade, a Lei n° 9.279/96 manteve, no que concerne aos inventos de empregados, a existência de um


Reconhecida essa sensível capacidade de produção de natureza intelectual, resta agora promover o incentivo e a realização de inventos pelo aumento de conhecimento dentro dos mais diferentes campos da técnica, de maneira que se proporcione o desenvolvimento tecnológico e econômico para qualquer país que deseja crescer e se desenvolver.

sistema tripartite com invenções de serviço, invenções mistas e invenções livres. Ainda, promoveu as inovações em relação à remuneração e, também, à extensão desse regime aos estagiários regidos por legislação específica. Reconhecida essa sensível capacidade de produção de na­ tureza intelectual, resta agora promover o incentivo e a reali­ zação de inventos pelo aumento de conhecimento dentro dos mais diferentes campos da técnica, de maneira que se propor­ cione o desenvolvimento tecnológico e econômico para qual­ quer país que deseja crescer e se desenvolver. Isto se constitui em paradigmas que, por experiência, se exemplificam na maior parte das patentes concedidas e relacionadas às invenções que surgem em âmbito empresarial. Nos EUA, os inventores empregados são responsáveis por 75% a 90% dos inventos re­ alizados no país. No Reino Unido, as patentes que resultaram de transferência de direitos entre o inventor-empregado ou prestador de serviços e o patrão constituem desde 80% a 85% e, na França, esse percentual tem variação de 75% a 85% dos envolvidos. Aqui no Brasil, até a presente data, não existe um estudo estatístico sobre o número de inventos originados no âmbito empresarial ou nas universidades, entretanto existem relatos que acusam que a maior parte das invenções, defini­ tivamente, são dos empregados e realizadas durante o pacto laboral. O que se tem hoje é uma legislação que regra a capacidade intelectual diante do interesse econômico envolvido e que

assegura ser do empregador a patente dos produtos criados ou inventados durante o contrato de emprego e que desse invento será consequência uma paga remuneratória mensal reconhecida pelo termo “salário”, que designará a contraprestação decorrente de qualquer que seja a descoberta ou invento, modelo de utilidade, enfim, frutos da criação do homem que, enquanto empregado, restará sujeito ao seu contrato e dos consectários agregados como, por exemplo: férias, 13º salário, FGTS e outras verbas de natureza trabalhista. Se a CLT não se constitui capaz de reconhecer a capacidade inventiva do empregado por meio de paga extra ou especial, nem mesmo há legislação adjacente que trate sobre essa temática, então, caberá ao pactuado entre empregado e empregador valer como objeto de tratativas em que os acordos firmados entre as partes, sempre, condicionados à lei e aos princípios gerais do Direito do Trabalho e possíveis para condicionar as normas sobre pagar ou não pela criação nessas condições. Ademais, a legislação que normatiza a propriedade industrial será válida para todos os casos que envolvam tais pendengas e, em face de omissão do Texto Consolidado, tratará na íntegra dos casos comuns e especiais em que houver querelas sobre inventos na ocorrência de um contrato de emprego. Porém, quando tais questiúnculas forem levadas a juízo — sempre — será a Justiça do Trabalho competente para solucionar tais litígios (art. 114 da CRFB). Não se pode olvidar que a Propriedade Industrial é garantida 2009 JULHO | JUSTIÇA & CIDADANIA 39


Foto: arquivo pessoal

Na realidade, a Lei n° 9.279/96 manteve, no que concerne aos inventos de empregados, a existência de um sistema tripartite com invenções de serviço, invenções mistas e invenções livres.

Professor Luciano Viveiros

pela Carta Política, em especial, pelo artigo 5º, XXIX, que dispõe: “a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos de acordo com o interesse social envolvido e o desenvolvimento de ordem tecnológica que vincula o sistema econômico do país” e, nesse prisma, a patente mesma constituída como garantia constitucional ao indivíduo, torna-se instrumento de promoção na direção do desenvolvimento que pode significar direitos aos inventores que são empregados e, jamais, diminutos diante dos interesses econômicos de uma empresa ou investidor. É mister notar que a tese de que se existir cessão por parte do empregado-inventor este não poderá ficar sem uma justa remuneração, consequentemente, constituir-se-á num real desestímulo à invenção, e esse tipo de contratação supra se traduzirá em deplorável conveniência ao empregadoinventor, que jamais deveria ser punido pela sua capacidade criadora em não perceber contraprestação pela pesquisa e invento realizado. Também, se o foco concentrar na questão econômica de que tanto necessita o Brasil prosperar em favor dos avanços tecnológicos e desenvolvimentistas de um país emergente que vivencia um momento singular pelas consequentes descobertas do pré-sal, bicombustíveis e demais produções naturais que podem levar ao colapso produtivo pela ausência de uma inteligência humana que permita o up ground tecnológico e necessário para recepcionar essas condições favoráveis ao futuro da nação. Essas discussões sobre a questão da obrigatória compensação ao empregado inventor já estão sendo acolhidas pelo TST em alguns julgados específicos. Não adiantaria relacionar um elenco de posições jurisprudenciais para encharcar este artigo porque, ao final, de nada serviriam para promoção do debate, mas tornam-se necessárias as indicações 40 JUSTIÇA & CIDADANIA | JULHO 2009

de que o Tribunal Superior do Trabalho – TST interpreta a remuneração percebida em razão do lucro na exploração do invento sob características de natureza trabalhista, possibilitando a incorporação ao salário e refletindo nas demais verbas contratuais. Não poderia ser diferente, pois o TST defende que pagas que advenham da remuneração, dependendo da origem, podem ser incorporadas ao salário. Em outra oportunidade, reconhecemos que o artigo 457 da CLT é capaz de integrar verbas de gratificação, adicionais e percentuais ao salário, e dele serão extraídos por ocasião de recolhimentos referentes ao FGTS, bem como integrados ao 13º salário, horas extraordinárias e nas resilições de contrato de emprego. Quanto à vinculação a uma justa contribuição por parte do empregado-inventor, de forma tímida, a Lei n° 9.279/96 sugere ao empregador premiar aquele que criou um invento de serviço no setor privado e, mesmo essa premiação sendo de caráter facultativo, resta o reconhecimento do empregador no sentido de estimular a inventividade, consequentemente, a produtividade. Assim, provocará uma conscientização no sentido de bonificar um empregado que inventa durante o pacto laboral. E, para que a mudança seja capaz de delinear um novo modelo de estímulo à inventividade, caberá à produção legislativa prospectar um projeto de lei no sentido de oferecer a contraprestação obrigatória decorrente do invento durante o contrato de emprego ou fomentar a flexibilização das relações trabalhistas pelo incentivo à autonomia e liberdade contratual como viés capaz de manter os trabalhadores que desejam contribuir com o patrimônio intelectual em favor da produção econômica — enfim — que se deve propugnar por esse binômio (capital intelectual + capital produtivo) no sentido de consignar que a invenção no ambiente de trabalho será premiada da forma mais justa e moral de reconhecimento, ou seja, pela compensação de natureza salarial agregada.


2009 JULHO | JUSTIÇA & CIDADANIA 41


E m foco

agora, apenas quando diagnosticadas

T

ornar o Judiciário mais célere deixou de ser o único objetivo das discussões envolvendo a reforma deste Poder. Também ganharam destaque nesses debates as formas e os meios a serem empregados para se alcançar a tão almejada eficiência na prestação jurisdicional. Foi com esse objetivo que a Secretaria da Reforma do Judiciário, ligada ao Ministério da Justiça, criou o Observatório da Justiça Brasileira. Trata-se de uma instituição não estatal que visa, sobretudo, a estimular a produção de pesquisas e diagnósticos sobre o sistema judicial. O objetivo é subsidiar o trabalho do Congresso, evitando assim a aprovação de leis elaboradas sem nenhuma base científica, que, ao invés de promoverem o aperfeiçoamento da atividade judicante, podem causar mesmo maior morosidade processual ou mesmo dificultar o acesso do cidadão aos tribunais. Nesse sentido, a expectativa é de que o Observatório da Justiça Brasileira esteja em pleno funcionamento até o início de outubro. A ideia acerca da criação desse observatório está sendo gerida pela Secretaria da Reforma do Judiciário há pelo menos dois anos. Neste ano, o projeto finalmente começou a sair do papel. Nos dias 2 e 3 de junho, a Secretaria realizou um seminário em Brasília para discutir a proposta. Participaram pessoas das mais diversas áreas, como magistrados, membros do Ministério Público, advogados, jornalistas e integrantes das universidades públicas e movimentos sociais. O objetivo era reunir as visões dos mais diferentes setores, que permitissem a construção de um órgão democrático, com foco na justiça e nos direitos humanos. Assim, foram debatidas questões 42 JUSTIÇA & CIDADANIA | JULHO 2009

Foto: stockxpert

Reformas no Judiciário,

relacionadas à sociedade democrática contemporânea, ao papel da imprensa e à cidadania. O evento resultou na edição de uma portaria. Entre os muitos aspectos dos quais o documento trata, há o prazo de 120 dias para a criação do órgão. O Secretário da Reforma do Judiciário, Rogério Favreto, afirmou que o momento atual é o da estruturação do Observatório Brasileiro: “A fase agora é interna, de ajustes no desenho institucional do órgão”, afirmou. De acordo com ele, entre as importantes funções que o Observatório desempenhará, justamente no sentido de estimular a produção de diagnósticos sobre o funcionamento do Judiciário no País está a de articular a rede de estudos das universidades e dos institutos de pesquisa, para que orientem as reformas futuras, de modo que estas não sejam meramente empíricas. “Vamos aproveitar o rico debate que há na academia sobre temas da Justiça, em questões envolvendo o aperfeiçoamento da legislação e a gestão da Justiça. Esperamos fortalecer uma nova cultura: a de que as reformas sejam precedidas de um diagnóstico, para que não trabalhemos mais apenas pela pauta política. Os estudos nos permitirão uma melhor avaliação, assim como apontarão qual seriam os caminhos para essa reforma, seja normativa ou de gestão da Justiça”, explicou. Segundo Favreto, o Observatório irá reunir a produção acadêmica já existente nas universidades do País ou poderá solicitar às entidades a realização de estudos sobre assuntos específicos. Nesse caso, a instituição de ensino ou pesquisa terá total autonomia científica. Segundo o Secretário, o Ministério da


Justiça já definiu alguns temas nos quais pretende se aprofundar. “A questão da efetivação dos direitos humanos e fundamentais também é um tema que precisamos avaliar. Outro diagnóstico está relacionado à questão da agilidade processual. Acho que também merece uma avaliação a qualificação dos operadores do Direito”, disse. A preocupação com a necessidade de fundamentar as reformas tem uma razão simples: não são poucos os casos de projetos de lei recentemente aprovados pelo Congresso e depois sancionados que foram elaborados sem base científica ou estatística que os justificassem. Exemplo disso foi a extinção das férias coletivas para os magistrados do País, por meio da Emenda Constitucional 45, de dezembro de 2004, responsável pela primeira parte da reforma do Judiciário. Na época, a proposta de que as férias fossem gozadas em diferentes meses foi encampada, principalmente, pela Ordem dos Advogados do Brasil. O argumento era de que isso iria conferir maior celeridade ao julgamento dos feitos, uma vez que o Judiciário funcionaria de forma ininterrupta. A medida, no entanto, se mostrou, com o tempo, um tiro no pé. Com a saída dos magistrados em períodos distintos, as turmas de julgamento passaram constantemente a ficar desfalcadas para a conclusão dos pleitos. Um remédio encontrado pelos tribunais para sanar o problema foi a convocação de juízes, mas a solução acabou por deixar descoberta a primeira instância e não raro a levar as partes insatisfeitas com o resultado da ação a questionarem as determinações proferidas pelos convocados. Os advogados também foram prejudicados. Com o funcionamento ininterrupto das cortes, muitos profissionais, principalmente os que atuam sozinhos ou em bancas de menor porte, se viram sem a oportunidade de eles próprios tirarem férias. Diante disso, a categoria recuou e todos os operadores do Direito reconheceram que o fim das férias coletivas não foi benéfico ao Judiciário. Atualmente, o restabelecimento do descanso coletivo é tratado na Proposta de Emenda Constitucional 3/07, em tramitação na Câmara dos Deputados. “Estamos sendo pautados pela conjuntura. O grande debate, no Primeiro Pacto Republicano, por exemplo, girou em torno da morosidade, que é algo que ainda está na pauta. Na ocasião, tratamos de ver nas leis o que poderia ser feito para reduzir prazos, que tipo de medida era dispensável, que tipo de recurso era protelatório. Isso foi feito por meio de comissões de especialistas. Temos, na Secretaria, tentado ouvir os segmentos, contemplando-os o máximo possível. Acho que isso é adequado, no entanto precisamos incorporar a produção acadêmica, valorizar o que está sendo produzido nas universidades e nos centros de pesquisa. Essa é a proposta do Observatório”, afirmou Favreto. Além de mobilizar as instituições de ensino e pesquisa do País para que realizem estudos sobre o sistema judicial e reunir toda a produção acadêmica já existente na área, o Observatório da Justiça Brasileira poderá também atuar a favor da elaboração de diagnósticos posteriores às reformas efetuadas. “Esse foi um aspecto muito destacado: que também as reformas sejam submetidas a avaliações após a implantação, para constatação da efetividade delas, seja para corrigir rumos, seja para efetivamente confirmar resultados”, disse o Secretário da Reforma do Judiciário.

“Outro ponto importante é que esse espaço do Observatório não irá contemplar somente os operadores do Direito e entidades. É importante também que haja a participação da sociedade. Estamos discutindo a criação de um órgão que possa ter participação multidisciplinar. É importante que haja ali o olhar crítico da sociedade, que é a destinatária da prestação jurisdicional”, acrescentou Favreto. A proposta para a criação do Observatório Brasileiro nasceu de experiência semelhante desenvolvida em Portugal, a partir de 1996. Naquele país, uma parceria entre o Ministério da Justiça e o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra permitiu a criação do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa. O órgão tem atribuições vastas: acompanhar e analisar o desempenho dos tribunais e de outras instituições, assim como das atividades a eles ligadas, entre as quais a policial, a de prisões e dos serviços de reinserção social, a dos sistemas de perícias e do sistema médico-forense, as profissões jurídicas e os sistemas alternativos de resolução de litígios. O Observatório Português também tem a função de avaliar as reformas introduzidas, sugerir alterações para o aperfeiçoamento dos tribunais e proceder a estudos comparados, fora e dentro da União Europeia. Nesse sentido, o órgão já realizou mais de 30 estudos para subsidiar a elaboração de projetos de lei a fim de agilizar a Justiça, assim como novos instrumentos para gerir os tribunais. Destacamse as pesquisas sobre a política para menores e adoção, o Judiciário Trabalhista, as áreas penais e cíveis, a reinserção de reclusos, as reformas processuais realizadas na década de 1990, os custos dos serviços notariais e de registros, o tráfico de mulheres, a administração dos tribunais, entre outros. Atualmente, entre os levantamentos em curso, chamam atenção a avaliação do regime legal e da aplicação do Direito de Família e Menores nos tribunais portugueses e propostas de reforma; e práticas dos oficiais de Justiça e dos magistrados nos tribunais: o que alterar para um trabalho de valor acrescentado, mais qualificado, menos repetitivo e com melhor aproveitamento dos recursos. “A experiência portuguesa é um balizamento muito importante. Conheci a iniciativa pessoalmente e recebemos a consultoria dos responsáveis. Considerando as particularidades, verificamos que em Portugal conseguiu-se levantar a política de que as reformas devem ser precedidas de algum estudo ou diagnóstico prévio”, explicou o Secretário da Reforma do Judiciário. De acordo com Favreto, as pesquisas realizadas levaram à conclusão de que, naquele país, as mudanças em relação à gestão da Justiça, por exemplo, deveriam ser realizadas de forma gradual. “É escolhida uma região do País ou um setor da Justiça para a implantação da mudança. A partir dessa experiência, é feita uma ponderação maior dos defeitos e dificuldades iniciais. Ou seja, ao invés de se promover a reforma em nível nacional, faz-se geograficamente ou dentro da estrutura da Justiça para um maior controle e melhor avaliação”, explicou. “Lá eles conseguiram mudar a cultura para terem diagnósticos prévios. Em algumas situações, optaram pela mudança gradual. Além disso, incorporaram no debate dessas reformas outros setores que não só dos operadores da Justiça, entre os quais os meios de comunicação, a academia e a sociedade civil. Isso confere mais legitimidade e universalidade a reformas do sistema de Justiça”, avaliou o Secretário. 2009 JULHO | JUSTIÇA & CIDADANIA 43


Tocando cidadania A história de uma orquestra de crianças CARENTES do recife

João José Rocha Targino

Juiz de Direito do TJPE Coordenador dos Juizados Especiais de Pernambuco

Foto: Antonio Cruz/ABr

44 JUSTIÇA & CIDADANIA | JULHO 2009

D

iz o provérbio que querer é poder. Mas não é todo querer que se torna poder. É preciso sonhar, sabendo o que se quer realizar. É caminhar na direção de sua concretização. É vivê-lo intensamente em cada etapa. Removê-lo do coração e passá-lo para a mente que planejará cada um dos seus mínimos detalhes. E depois partilhá-lo com pessoas que tenham o mesmo sonhar e que aceitem tirá-lo do papel. Com a Orquestra Criança Cidadã dos Meninos do Coque a história não foi diferente. Nasceu de um sonho pessoal meu, que, mesmo não tocando qualquer instrumento, sempre vislumbrei na música uma via de crescimento interior para quem a pratica. E, acima de tudo, de oportunidade, notadamente para os desafortunados do destino. Desde o ano 2000, tenho a honra de integrar o Projeto Criança Cidadã, idealizado e posto em prática pelo Desembargador Nildo Nery, atualmente Presidente da ABCC – Associação Beneficente Criança Cidadã, artífice da solidariedade, magistrado de notável saber jurídico e imensa bondade no coração. Ele de imediato se ofereceu para albergar o projeto na Associação que preside, sendo a sua colaboração pessoal decisiva para a alavancagem e sucesso da iniciativa. Dia-a-dia a ideia se mostrava mais vigorosa. No princípio de 2005, li acerca de um concerto de jovens carentes da Comunidade do Alto do Céu, subúrbio do Recife, sob a regência do Maestro Cussy de Almeida. Visto o referido concerto, o sonho deu um passo no caminho da concreção. Já no dia seguinte contatei o conceituado Maestro que, após ouvir os meus propósitos, mostrou-se entusiasmado com a ideia. Procurei o Exército Brasileiro, na pessoa do Gen. Santa Rosa, que de imediato acolheu a ideia e mandou construir, com recursos próprios, a escola de música de padrão internacional


Orquestra Criança Cidadã dos Meninos do Coque

Foto: Foto: Antonio Cruz/ABr

Presidente Lula e o Juiz de Direito João José Rocha Targino posam junto com os componentes da Orquestra dos Meninos do Coque, ao lado do regente da orquestra, Maestro Cussy de Almeida

onde o projeto se desenvolve, além de fornecer seu refeitório no qual os 130 alunos recebem as 3 refeições diárias. Logo após essa providência, eu, o Maestro Cussy e o Desembargador Nildo Nery saímos em busca de novos parceiros. Dr. Armando Monteiro Neto, à frente da FIEPE – Federação das Indústrias do Estado de Pernambuco, se ofereceu para a compra dos instrumentos musicais. Logo a CHESF – Companhia Hidro Elétrica do São Francisco, aderiu ao sonho e a Orquestra iniciou suas atividades. As parcerias formadas com as empresas acima mencionadas — acrescidas da Celpe, Banco BGN, Pamesa, Instituto de Co-Responsabilidade pela Educação e, por último com a Caixa Econômica Federal —, mostraram-me que só com bons parceiros se erguem grandes obras. Foi um longo e árduo aprendizado, mas repleto de gratificações, desde a primeira apresentação com apenas 13 dias de atividades, no Porto de Suape, até as apresentações para o Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, a última na Costa do Sauípe, em dezembro, na qual, além do nosso Chefe de Estado, encontravam-se outros 32 da América Latina e do Caribe. Tenho plena convicção de que a criação de oportunidades para os jovens carentes — não as consignadas na esmola, que tanto humilham, massacram e amesquinham o ser-humano —, mas aquelas que propiciam sua formação profissional, seja pelas artes ou pelos esportes, se constitui em via de acesso à cidadania. Destarte, ao assim agir, sinto-me responsável socialmente e ao mesmo tempo cumpridor no plano legisferante dos sacrossantos princípios da dignidade da pessoa humana e da proteção integral da criança e do adolescente, ambos preconizados na Carta Magna de 1988.

O projeto “Orquestra Criança Cidadã dos Meninos do Coque” foi implantado pela Associação Beneficente Criança Cidadã, presidida pelo Desembargador Nildo Nery dos Santos, tendo como idealizador e coordenador geral o Juiz de Direito João José Rocha Targino, com o objetivo de reinserir socialmente crianças e adolescentes por meio da música, com vistas à profissionalização. O regente da orquestra é o renomado Maestro Cussy de Almeida. A escola de música tem um corpo docente formado por 13 músicos de reconhecida competência, 2 luthiers, tendo um deles estudado na Itália, e um corpo funcional adequado às necessida­ des dos alunos. No total são 26 servidores remunerados. O Exército Nacional foi um dos primeiros a reconhecer o elevado alcance desse projeto, proporcionando-lhe local e condições para instalação da escola de música. A pretensão do Maestro Cussy de Almeida é de, no prazo de 05 anos, fazer com que o aluno alcance um alto grau de conhecimento técnico na execução do instrumento que lhe for confiado, obtendo, destarte, a profissionalização, num mercado ávido por profissionais. Os alunos recebem gratuitamente aulas de instrumentos de corda (violino, viola, violoncelo e contrabaixo), teoria musical, flauta doce, canto coral, percussão, inglês e informática básica, atendimento médico, odontológico, psicológico e pedagógico, além de 3 refeições diárias, contando ainda com todo o fardamento e material didático. A Orquestra Criança Cidadã completará 3 anos de existência nesse mês de agosto, proporcionando significativa mudança de vida aos seus 130 alunos e suas famílias, que residem na favela mais violenta e de menor IDH do Recife. A Orquestra já se apresentou para autoridades civis e militares, dentre as quais destacam-se: • Na posse dos presidentes do Tribunal de Justiça de Pernambuco, Og Fernandes e Jones Figueiredo, Recife-PE; • Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, acompanhado do Ministro José Múcio e comitiva presidencial, no Palácio do Planalto, Brasília - DF; • Centro de Comunicação Social do Exército (CCOMSEX), Brasília - DF; • No gabinete do Ministro Sidnei A. Beneti, com a participação do Ministro Massami Uyeda, no STJ, Brasília - DF; • Apresentação no Teatro da UFPE, a pedido do Presidente da República e na sua presença, no evento destinado a comemorar o centenário de nascimento de Josué de Castro, Recife - PE; • Novamente a convite do Presidente Lula, na abertura do Encontro de Cúpula de Presidentes do Mercosul, América Latina e do Caribe, com o comparecimento de 33 Chefes de Governo e de Estado, na Costa do Sauípe - BA, com 85 músicos no palco.

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Foto: Antonio Cruz/ABr

Ministro Tarso Genro e o Presidente Nacional da OAB, Cezar Britto

Justiça, sim Revanchismo, não Cezar Britto Presidente Nacional da OAB

A

Ação por Descumprimento de Preceito Fundamental, que a OAB patrocina junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), apoiada por diversas organizações da sociedade civil brasileira e integrantes do primeiro escalão do governo, baseia-se num pressuposto: o de que os que cometeram crimes de lesa-humanidade, os torturadores, foram equivocadamente interpretados como incluídos nos benefícios da Lei de Anistia. Ela não os abrange. O que se pede hoje, portanto, não é a revisão ou a reforma da Lei de Anistia, mas o entendimento de que dela se beneficiaram personagens aos quais ela não se referia. No caso, os agentes do Estado que praticaram aqueles crimes hediondos, alheios ao campo de combate estritamente político. 46 JUSTIÇA & CIDADANIA | JULHO 2009

Cabia-lhes zelar pela guarda e integridade física dos prisioneiros. Profanando-a, incidiram em delito penal grave. E a Lei de Anistia não faz menção a esses casos, que se excluem da luta política que se travou. Abrange apenas os lados que combateram. A Lei 6.683, de 1979, por isso mesmo, anistiou apenas os crimes políticos e conexos. A tortura, porém, não é crime político em lugar nenhum do mundo, nem na legislação brasileira nem nos tratados internacionais que o país tem subscrito. Não há dúvida de que, ao propiciar a transição pacífica do regime ditatorial para o democrático, a Lei de Anistia cumpriu seu papel. Isso, porém, não impede que a história seja passada a limpo. Não se trata de revanchismo, nem muito menos de revogá-la.


Diversos personagens que serviram à ditadura figuram hoje em posições de destaque, no governo e na oposição. Cumpriram, porém, papel político, nos limites da lei, cabendo apenas ao eleitor e à história o direito de julgá-los.

Diversos personagens que serviram à ditadura figuram hoje em posições de destaque, no governo e na oposição. Cumpriram, porém, papel político, nos limites da lei, cabendo apenas ao eleitor e à história o direito de julgá-los. Não é nem de longe o caso dos torturadores, que agiram quando os adversários já não ofereciam resistência e estavam sob a guarda do Estado, violando a legislação, que, antes como agora, garante a integridade física do prisioneiro. O que se busca, com o seu enquadramento, é demonstrar que a ação abjeta que exerceram não configura ato político, mas crime comum, hediondo, de lesa-humanidade e, portanto, imprescritível nos termos da lei. Dessa forma, puni-los não fere a anistia, cuja essência só pode ser política. Por essa razão, a OAB ajuizou a Arguição ao STF: para tirar o tema da mera discussão conceitual e dar-lhe conteúdo jurídico, fazendo com que a nação o discuta objetivamente e lhe dê consequência prática. O Brasil precisa livrar-se do hábito de varrer para debaixo do tapete da história as suas abjeções. Precisa entender que anistia não é amnésia, e que um povo que não conhece o seu passado está condenado a repeti-lo. Não é uma frase de efeito, mas uma realidade objetiva, que faz com que a OAB há muito lute para que o país saiba, em detalhes, o que lhe aconteceu durante a ditadura militar. Antes dessa ação, já havíamos ajuizado outra para que os arquivos da ditadura não permanecessem secretos, o que nos levou a ajuizar ainda uma outra, para apurar denúncias de que arquivos daquela época estavam sendo queimados e destruídos. A Lei de Anistia, como pensada inicialmente e depois reconhecida na Constituição, não beneficia o torturador. Diz especificamente que os crimes políticos e conexos estão anistiados, o que exclui a tortura, cuja tipicidade, como já disse, é bem outra. O próprio regime militar jamais admitiu formalmente a prática de tortura. Considerou-a ação marginal, de cuja responsabilidade até hoje seus remanescentes buscam

se eximir. Sendo assim, por que a defesa insensata dos torturadores? Por que vinculá-los à Lei de Anistia, que é um pacto político e não criminal? Se os que torturaram o fizeram por conta própria, à revelia dos comandos institucionais, por que o temor de que sejam responsabilizados moral e penalmente? Tal resistência faz supor o contrário do que sustentam essas lideranças remanescentes: o de que havia algum tipo de vínculo formal. As instituições militares pertencem ao país e não a um grupo político. Não podem, portanto, assumir como seus argumentos facciosos. Desde a redemocratização, têm sido exemplares no cumprimento de seus deveres, alheias aos embates e ao varejo do jogo político-partidário. Daí a improcedência de apontálas, em seu conjunto, como obstáculo ao restabelecimento da verdade histórica. Elas não podem ser confundidas (nem se confundir) com sentimentos e interesses de alguns de seus setores, claramente minoritários e reacionários. E só têm a ganhar com o esclarecimento cabal de todo aquele sórdido período, virando de vez uma das páginas mais negras da história do Brasil. Não podemos continuar a ser a única nação sul-americana vitimada por ditadura militar na segunda metade do século passado a não punir os torturadores. A Argentina chegou a encarcerar ex-presidentes da república, sem que isso abalasse sua democracia. O Chile, ao não fazê-lo, viu-se exposto ao vexame de uma providência externa, com a prisão, por crime contra a humanidade, em Londres, do ex-ditador Augusto Pinochet, a pedido do juiz espanhol Baltazar Garzón, aceito pelo juiz inglês Nicholas Evans. Tem agora o Supremo Tribunal Federal oportunidade única de fazer com que a história brasileira seja também passada a limpo, para que o país possa, enfim, conhecer o pesadelo que viveu, de modo a não mais repeti-lo. 2009 JULHO | JUSTIÇA & CIDADANIA 47


A PRISÃO DO

DIREITO PENAL

O

Aurélio Wander Bastos

Advogado Cientista político Membro do Conselho Editorial

Foto: arquivo pessoal

48 JUSTIÇA & CIDADANIA | JULHO 2009

moderno Direito Penal Brasileiro tem evoluído em três grandes linhas teóricas: a do Direito Penal Comum, que trata principalmente da criminalidade comum; a do Direito Penal Militar, que marca historicamente o Direito brasileiro, principalmente com a criação do Supremo Tribunal Militar, ainda com D. João VI, e a do Direito Penal Econômico, nas suas vertentes especiais: crimes contra a ordem econômica, em que se enquadram os crimes financeiros, ou também conhecidos como crimes de colarinho branco, os crimes de lavagem de dinheiro e os crimes contra a ordem tributária econômica. Superado o regime militar, que transferira para as auditorias militares os crimes políticos definidos em Lei de Segurança Nacional, inclusive reconhecendo no Superior Tribunal Militar – STM, a instância final para julgamento, tramitam nas auditorias e no STM os crimes militares que têm legislação substantiva e processual próprias. Os crimes de Direito Penal Comum, por tratarem de crimes de direito comum, tramitam, na sua forma histórica, nas varas e câmaras da Justiça Estadual, sendo que não podemos desprezar a ampla gama de crimes contra as relações de trabalho, que são apreciadas na própria Justiça do Trabalho. Todavia, nestas mesmas instâncias, se processam os crimes estaduais e municipais contra a ordem tributária. Os crimes de Direito Penal Econômico, reflexo da evolução das práticas contenciosas das instituições administrativas brasileiras, tramitam, em rito processual ordinário, em circunstâncias especialíssimas na Justiça Federal, tribunais especializados em avaliar crimes contra a União, o que alcança inclusive atos que possam envolver danos à União e às suas autarquias e fundações. Todavia, estas vertentes evoluem para o Superior Tribunal Militar, quando não são retidas nas instâncias inferiores, para serem apreciadas de uma perspectiva jurisprudencial uniformizadora. No entanto, diversamente do que deveria ocorrer, mas seguindo a nossa tradição de produzir leis


Neste sentido, aprofundaram-se, modernamente, os crimes de natureza bancária, de blanqueamiento de dinheiro, evasão de divisas, gestão fraudulenta, gestão temerária, e outros, que, por força da legislação brasileira, ou em alguns casos por omissão legislativa, ficaram na área federal, exceto o blanqueamiento.

substantivas (materiais) sem acompanhá-las de nova lei processual, como acontece na própria Justiça do Trabalho, a Justiça do Trabalho como especial órbita da Justiça brasileira, funciona na apreciação de delitos criminais, muito embora com base no mesmo Código de Direito Processual Penal que regula o rito dos crimes comuns, deixando a legislação de considerar que, dos tipos penais próprios do direito econômico, tem uma natureza substantiva profundamente diferente dos crimes comuns, o que, em princípio, exigiria uma percepção processual diferenciada, mesmo porque não são partes individuais, litígio, mas pelo menos uma delas é a União, que, se presume, exige proteção especial sendo a titular do bem público. Os tipos penais de direito comum têm como característica essencial a prática criminosa contra a vida e a propriedade civil, de natureza material, sendo que os crimes de Direito Penal Econômico têm a natureza de bens fungíveis, ou seja, aqueles que podem ser substituídos por outro da mesma espécie ou semelhantes, que, modernamente, podem inclusive tomar uma dimensão virtual, facilitando não só o fluxo econômicocriminoso, mas o seu alcance repressivo. Neste sentido, aprofundaram-se, modernamente, os crimes de natureza bancária, de blanqueamiento de dinheiro, evasão de divisas, gestão fraudulenta, gestão temerária, e outros, que, por força da legislação brasileira, ou em alguns casos por omissão legislativa, ficaram na área federal, exceto o blanqueamiento. Neste sentido, quando a Constituição brasileira dispõe (inc. LVII, art. 5º) que ninguém será considerado culpado até o transito em julgado de sentença penal condenatória, em primeiro lugar abre um significativo espaço na tradição judicial penal brasileira que sempre encarcerou o presumível criminoso independentemente do trânsito penal final, o que seria uma verdadeira revolução nas práticas judiciárias (e penitenciárias), mas, em segundo lugar, há que se considerar, por força de todos os dispositivos constitucionais de eficácia penal, que

este dispositivo está vinculado à tradição punitiva do Direito Processual Penal Comum, não podendo se classificar como um princípio do Direito Penal Processual Especial, ou seja, semelhantemente ao que ocorre no Direito Processual Penal Militar, aplicável aos crimes de Direito Penal Econômico, por uma razão muito simples, pois, sendo a União uma das partes no contraditório, não prevalece o princípio da liberalidade jurídica no qual “o que não está juridicamente proibido, está facultado”, mas o princípio da responsabilidade jurídica em que “o que não está juridicamente permitido, está proibido”. Esta situação demonstra que o alcance repressivo nestas especiais situações exige procedimentos processuais próprios, demonstrando que o Direito Penal Processual Tradicional, se funciona como sistema fechado para os crimes comuns, pode, em determinadas circunstâncias, funcionar como sistema aberto para os crimes especiais, onde prevalece o princípio da responsabilidade de Direito Penal Econômico, suscetível de aplicação nos crimes econômicos, cuja única regra penal constitucional aplicável é o dispositivo (inc. LIII, art. 5º.) que estabelece que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente.” Esta situação exige, por conseguinte, especial controle das autoridades judiciárias ao se pronunciarem sobre as políticas de tratamento destes delitos, para se evitar que a leitura aberta e compreensiva do dispositivo penal sobre trânsito em julgado nos casos de litígio de Direito Comum, venha a ser estendida à compreensão de delitos contra a União, em que prevalece a regra da responsabilidade. Neste sentido, a autoridade judiciária federal, mesmo condoída com a imprescindível proteção humana de agentes delituosos especiais, deve evitar que sua hermenêutica espontânea exponha os crimes que estão sujeitos à ação protetiva e repressiva da União, pois somente à autoridade judiciária caberá decidir entre o Direito Processual Penal e a regra da discricionariedade, pouco utilizada no Direito 2009 JULHO | JUSTIÇA & CIDADANIA 49


Por outro lado, o rico não fica preso apenas devido a seus recursos financeiros, mas porque as figuras processuais penais, da mesma forma que não constrangem o crime de quadrilha, não são suficientes na sua tipologia para alcançar os crimes de Direito Penal Econômico. brasileiro (embora princípio geral no Direito anglo-americano), combinada com a lei substantiva aplicável. Nesse sentido, a recente manifestação do Presidente do STF sobre cumprimento definitivo da prisão somente depois de sentença transitada em julgado está, na forma da sua posição, explicitamente determinada pela hermenêutica compreensiva dos crimes de Direito Penal Comum e não se lhe faltou a imprescindível cautela de apoiar-se, não apenas nos dispositivos constitucionais da ampla defesa e das garantias do contraditório para exprimir-se, mas também de sua decisão subtende-se que o problema que está em questão, independentemente do volumoso contingente populacional de criminosos comuns em nossas penitenciárias, é a ausência de legislação processual própria, especificamente destinada à questão tópica dos crimes de natureza complexa que fogem do cotidiano do Direito Comum e se integram não apenas nas práticas econômicas globalizadas como também viabilizáveis pela rede mundial de computadores. Desta forma, se o raciocínio desenvolvido no relatório do Presidente do STF pode ter um efeito colateral aplicável aos crimes genericamente denominados crimes financeiros, que cresceram vertiginosamente com as emendas constitucionais recentes, esta pode não ser a finalidade da orientação, pois fica implícito, muito especialmente, que o Código de Processo Penal, ficando comum à Justiça Estadual e à Justiça Federal, faz com que os fins processuais da legislação comum que inspiraram a Constituição sobreponham-se aos fins da legislação dos crimes econômicos, multiplicados na sua criatividade com o processo de globalização e privatização. Estes crimes, por estas razões, muitas vezes são reconhecidos discricionariamente, diante da fragilidade do Código Processual Penal, fugindo de nossas tradições, mas também podem discricionariamente não sê-lo, o que torna a matéria de grande efeito político e jornalístico. 50 JUSTIÇA & CIDADANIA | JULHO 2009

Na verdade, os fins processuais de uma legislação não podem se confundir com o outro, sendo que as regras constitucionais para o tratamento penal do cidadão comum não pode transferir-se para o cidadão que não apenas representa a sociedade e o estado como seu concessionário, mas principalmente à sociedade e ao Estado, que cuida da segurança e funcionalidade da sociedade. O criminoso de colarinho branco está entre aqueles tipos penais que, pela natureza fungível, desagregam mecanismos artificiosos provocados pelas novas tecnologias, enquanto o criminoso comum está entre aqueles que praticam atos contra a vida e a propriedade, cujos mecanismos processuais de apreciação têm uma natureza recorrente e repetitiva. Assim, qualquer pronunciamento sobre esta matéria, seja de natureza judiciária ou doutrinária, que não considere a diversidade da tipologia dos crimes penais e as suas instâncias e órbitas de decisão, mesmo em elevado grau onde prepondere a leitura dogmática comum, não alcança seus objetivos, principalmente quando o conhecimento da matéria fica restrito às presumíveis vantagens que poderiam advir para os criminosos que têm receitas financeiras abundantes, para manter em aberto os processos criminais. Na verdade, apesar da calculável veracidade desses efeitos de natureza colateral, ela esconde o verdadeiro sentido do Direito: o pobre fica prejudicado na tramitação de seus recursos, permanecendo preso até o trânsito em julgado, não exclusivamente porque é pobre, mas porque está submetido a um regime prisional congestionado que domina todo o sistema penitenciário estadual, e o Código de Processo Penal não tem aberturas para viabilizar sua movimentação, exceto se evoluir, mas para uma constitucionalização do Direito Penal, da mesma forma que vem se constitucionalizando o Direito Civil. Por outro lado, o rico não fica preso apenas devido a seus recursos financeiros, mas porque as figuras processuais penais, da mesma forma que não constrangem o crime de quadrilha, não são suficientes na sua tipologia para alcançar os crimes de Direito Penal Econômico. Finalmente, apesar dos tantos argumentos constitucionais que justificam a compreensão desse lamentável fenômeno da vida jurídica brasileira moderna, a declaração recente do Juiz Presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil tem uma força absolutamente protetiva da sociedade e do Estado porque deles subtende-se que os juízes que atuam nestas instâncias, mais compreenderiam o fenômeno, e melhor entenderiam o seu alcance, se se resguardassem no seu silêncio ou se manifestassem nos autos do processo como documentos especialíssimos de seus extensivos poderes. Mesmo reconhecendo o direito de opinião, questionável no exercício funcional, a opinião aberta não pode prevalecer sobre o placet da Magistratura, pois ela pode fazer com que a leitura aberta se transmude em decisão formal, contrariando, mesmo dentro de suas limitações, a tradição dos tribunais sobre a dilação de prazos de detenção ou trânsito em julgado de delitos fungíveis em que a União é parte pela natureza do exercício de sua função judicial, presidido pelo princípio da responsabilidade jurídica.


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