ISSN 1807-779X
Edição 112 - Novembro de 2009
R$ 16,90
Cabral, o Cidadão do Mundo Cláudio Chaves
N
o momento em que o mundo comemora vinte anos do fim da cortina de ferro e da derrubada do muro de Berlim, a Associação Internacional dos Juristas (WJA), comemora os primeiros dez anos do monumento alusivo à paz mundial. Edificado em 1999, na fronteira da Áustria com a Hungria, teve por objetivo homenagear personalidades das Ciências Jurídicas que tenham contribuído na luta pela defesa dos direitos humanos para todos os povos e nações. Composto de pedra römerstelnbruch (uma das riquezas minerais do local) e erigido na cidade St. Margarethen na divisa com a cidade de Sopron — local do primeiro ponto do separatismo europeu resultante do conflito da Guerra Fria (capitalismo versus socialismo) — esse monumento tem gravado, dentre os luminares do Direito internacional, o nome do nosso conterrâneo José Bernardo Cabral, que é indiscutivelmente uma das inteligências mais lúcidas nascidas na Manaus do Amazonas brasileiro. Esse galardão, com certeza, lhe foi concedido em reconhecimento pela contribuição dada à redemocratização e à consolidação da democracia no Brasil, respectivamente, nas funções de Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Relator da Comissão de Sistematização da Assembleia Nacional Constituinte, Ministro da Justiça e Senador da República Cabral a partir daquele momento, escolhido por aclamação, passou a presidir a Casa Maior do Direito Internacional no solo brasileiro, função que permanece exercendo até o presente momento. O marco da paz no bordo Austro-Húngaro foi construído no último ano do século XX, no momento em que o mundo comemorava dez anos do fim daquela página infeliz da história universal. Ao comemorar o seu primeiro decênio e duas décadas do fim daquele modelo esdrúxulo de separatismo, a WJA facultou aos homenageados vivos que propusessem nomes para somarem-se aos seus como prova de colaboração indelével à luta em favor dos direitos humanos. Aí, o nosso herói numa demonstração de reconhecimento a quem o acompanha não só nessa luta mas em todas as missões que abraçou no correr da vida, e fazendo justiça passou a dividir o laurel com a sua amada, consorte e companheira de todas as horas: a respeitabilíssima senhora Zuleide da Rocha Bernardo Cabral, que passou a ter também o seu nome gravado naquele monumento.
Foto: CNC
Membro da Academia Amazonense de Letras
Bernardo Cabral, membro do Conselho Editorial
No ano de 1999, brasileiros ilustres como o jornalista Phelippe Daou e o Ministro Ilmar Galvão (representando o Supremo Tribunal Federal) estiveram presentes àquela sessão memorável. Recentemente em 24 de outubro de 2009 minha esposa e eu tivemos a honra e a alegria de sermos testemunhas oculares do segundo capítulo dessa meritória e merecida homenagem. E, para fechar com chave de ouro a efeméride, o Embaixador do Brasil na Índia — o diplomata Marco Brandão — ao oferecer ao homenageado ágape de reconhecimento ao mérito, de forma sincera, assim se expressou: “Se o Brasil hoje alcançou o grau de credibilidade que possui, inclusive no Continente Asiático, é porque tem uma Constituição cidadã que lhe dá estabilidade política, econômica e social, assim como segurança aos investidores, e isso faz com que todos os brasileiros sejam devedores do RelatorGeral da nossa mais recente Carta Magna”. Fatos como esse, realmente fazem com que todos os nascidos na terra de Ajuricaba tenham muito orgulho de serem amazonenses. Cabral, a história, efetivamente, já te consagrou como IMORTAL! 2009 NOVEMBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 3
EDIÇÃO 112 • NOVEMBRO de 2009 ORPHEU SANTOS SALLES EDITOR TIAGO SANTOS SALLES DIRETOR EXECUTIVO ERIkA BRANCO diretorA DE REDAÇÃO DAVID SANTOS SALLES EDITOR ASSISTENTE DIOGO TOMAZ DIAGRAMAdor Giselle Souza Jornalista colaboradora Luciana Peres Revisora EDITORA JUSTIÇA & CIDADANIA AV. NILO PEÇANHA, 50/GR.501, ED. DE PAOLI RIO DE JANEIRO – RJ CEP: 20020-906 TEL./FAX (21) 2240-0429 SUCURSAIS SÃO PAULO RAPHAEL SANTOS SALLES AV. PAULISTA, 1765 / 13°ANDAR SÃO PAULO – SP CEP: 01311-200 TEL. (11) 3266-6611 PORTO ALEGRE DARCI NORTE REBELO RUA RIACHUELO, 1038 / SL.1102 ED. PLAZA FREITAS DE CASTRO CENTRO – Porto Alegre – RS CEP: 90010-272 TEL. (51) 3211-5344 BRASÍLIA Arnaldo gomes SCN, Q.1 – Bl. E / Sl. 715 EDIFÍCIO CENTRAL PARK BRASÍLIA – DF CEP: 70711-903 TEl. (61) 3327-1228/29 CORRESPONDENTE ARMANDO CARDOSO TEL. (61) 9674-7569 revistajc@revistajc.com.br www.revistajc.com.br CTP, IMPRESSÃO E ACABAMENTO ZIT GRÁFICA E EDITORA LTDA ISSN 1807-779X 4 JUSTIÇA & CIDADANIA | NOVEMBRO 2009
Foto: Assis Lima/TJPE
Conselho editorial Alvaro Mairink da Costa ANDRÉ FONTES Antonio Carlos Martins Soares Antônio souza prudente Arnaldo Esteves Lima arnaldo Lopes süssekind aurélio wander bastos Bernardo Cabral carlos antônio navega carlos ayres britTo Carlos mário Velloso CESAR ASFOR ROCHA DALMO DE ABREU DALLARI darci norte rebelo Edson CARVALHO Vidigal eLLIS hermydio FIGUEIRA Enrique ricardo lewandowski Eros Roberto Grau Fábio de salles meirelles fernando neves Francisco Peçanha Martins
Acesse o novo portal Justiça & Cidadania www.revistajc.com.br
Frederico José Gueiros GILMAR FERREIRA mENDES Humberto Gomes de Barros Ives Gandra martins Jerson Kelman Joaquim Alves Brito josé augusto delgado JOSÉ CARLOS MURTA RIBEIRO José Eduardo carreira Alvim luis felipe Salomão Manoel CarpeNa Amorim Marco Aurélio Mello Massami Uyeda MAURICIO DINEPI maximino gonçalves fontes nEY PRADO Paulo Freitas Barata Sergio Cavalieri filho Siro Darlan Sylvio Capanema de Souza thiago ribas filho
Foto: Assis Lima/TJPE
S umário
Foto: Arquivo Pessoal
Foto: Sandra Fado/STJ
10
A família no contexto da globalização
Cabral, o Cidadão do Mundo
3
editorial
6
Dom Quixote: Combate à violência doméstica
8
PROPAGANDA ELEITORAL 22 VEICULADA NA INTERNET
Interferências e alteração do regramento em juízo
26
Inovações penais 36 Lei 12.015/2009 Em foco: 40 Falta gestão aos tribunais
Foto: Arquivo Pessoal
Foto: Arquivo JC
16
Violência doméstica e familiar contra a mulher
A (IN) CONSTITUCIONALIDADE 30 DO ARTIGO 366 DO CÓDIGO ELEITORAL BRASILEIRO
PROCURADORES DO ESTADO 45 E INTIMAÇÃO PESSOAL “EU TENTEI ME LIVRAR 48 PELO SUICíDIO, A VLADO NINGUÉM PÔDE SALVAR”
32
A escolha é a alma gêmea do destino
A tributação do furto
42
TORTURA NÃO 50 TEM ANISTIA
2009 NOVEMBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 5
E ditorial
A Anistia e os Torturadores
E
ste artigo reflete o pensamento republicano do Editor, motivado pelas circunstâncias e condições de quem passou pelas agruras de humilhações, prisões infindas, sofrendo estúpidas agressões, mas, que apesar dos pesares, esquecendo ódios e malquerenças, encara hoje a questão da Anistia e dos torturadores com independência e isenção, visando um justo posicionamento no julgamento, para que na forma da lei, os delinquentes venham a responder pelos crimes hediondos e infamantes que perversamente perpetraram. A rememoração da morte do Presidente Getulio Vargas, no fatídico dia 24 de agosto de 1954, quando o Editor da Revista no exercício do cargo de delegado no Ministério do Trabalho, na cidade de Santos, por força da função pública teve participação efetiva na conciliação da greve da Marinha Mercante, conseguindo com a sua mediação evitar a paralisação programada pelo comando dos marítimos em todos os portos do País, contrariando as ações esquizofrênicas, senão fascistas, do Almirante Pena Boto e do Capitão de Mar e Guerra Bertino Dutra, recebendo em consequência, além da arbitrária e ilegal demissão, a fúria, os desmandos, as torpes humilhações e o revanchismo dos áulicos do assumido governo do Presidente Café Filho. Também, por coincidência, relembrando o histórico e trágico dia 31 de março de 1964, quando às 21hs a emissora em que trabalhava, Rádio Marconi, em São Paulo, foi invadida por forças policiais do Governador Ademar de Barros e retirada brutal e abusivamente do ar, durante empolgante locução que fazia defendendo a legalidade do governo constitucional do Presidente João Goulart, criticando duramente os governadores golpistas, Carlos Lacerda, Ademar de Barros, Magalhães Pinto e Ildo Menegheti e os generais traidores, Castelo Branco e Joaquim Alves, que haviam sido nomeados pelo Presidente Goulart para Chefia do Estado Maior do Exército e Comando do IV Exército em Recife, respectivamente. Preso arbitrariamente e levado aos porões do DOPS, e após diversificantes prisões e mais prisões, culminando com a do infecto navio Raul Soares, onde perpassou os horrores de seis meses de confinamento, sofrendo agressões e assistindo a tratamentos bárbaros e desumanos, infligidos aos sindicalistas e políticos encarcerados nos imundos e fétidos xadrezes no porão do fatídico navio, faz rememorar outros tristes, dolorosos e inesquecíveis sofrimentos impingidos por infames e 6 JUSTIÇA & CIDADANIA | NOVEMBRO 2009
patifes, que covardemente torturaram, barbarizaram e mataram suas desassistidas vítimas, desaparecendo com os corpos respectivos, além das infamantes violações praticadas contra mães, esposas e filhas de prisioneiros. Aqueles fatos, ocorridos há mais de quatro décadas, ainda são hoje tristemente relembrados, no entanto, devido a novas circunstâncias — entre as quais, a sua designação para presidir a Comissão de Liberdade de Imprensa e Direitos Humanos da Associação Brasileira de Imprensa —, impele o Editor a alterar o seu posicionamento sobre os crimes e responsabilidades penais dos autores e mandantes das torturas penosamente aplicadas aos presos políticos. Já tratada essa matéria na edição de novembro de 2008, na qual assinalava em editorial estar o assunto pendente de julgamento no Supremo Tribunal Federal — ao qual competia decidir, em derradeira instância, se os crimes de tortura praticados pelos grupos civis e militares que operaram com selvageria nos DOI-CODI seriam considerados imprescritíveis, ou não —, decorrido os anos, o tema volta à baila com acentuada repercussão, conforme os diversos pronunciamentos divulgados na imprensa por eminentes e conceituados juristas, o que reclama e impõe novo e aprofundado questionamento. O fator principal que nos conduz a entrar e participar, efetivamente, no movimento que exige o julgamento criminal de todos os participantes das torturas infligidas aos presos políticos no domínio da Ditadura Militar, foi o avivamento da memória com as leituras dos cruciantes depoimentos, entre outros, dos jornalistas Paulo Markun, Audálio Dantas, Roberto Kotscho, o Mino Carta, Zuenir Ventura e personalidades como o Cardeal Paulo Evaristo Arns e o acadêmico José Mindli contidos no contundente e dramático livro “Pela democracia contra o arbítrio”, editado pela Fundação Perseu Abramo. Dentre os depoimentos constantes no citado livro, destacase, pela barbaridade e crueldade praticada no DOI-CODI de São Paulo, o trágico depoimento do jornalista Sérgio Gomes, transcrito nesta edição, páginas 48 e 49, para o qual acenamos aos nossos leitores constatarem como procediam os torturadores com os indefesos presos, o que, fatalmente, foi repetido na inquirição e assassinato do jornalista Vladimir Herzog. Os horripilantes gritos de angústia e dor emitidos durante a
Foto: Arquivo JC
cruel, trágica e desumana seção de tortura sofrida por Vladimir Herzog, em 25 de outubro de 1975, no DOI-CODI de São Paulo, ouvidos pelos então encarcerados em cela vizinha, Rodolfo Konder e Jorge Duque Estrada, não podem ser olvidados por constituírem o marco do último e mais contundente drama da desgraça infundida pela Ditadura Militar, que produziu um clamor popular de tanta repercussão e praticamente ensejou o fim das torturas e o começo da abertura política e democrática no País. A afronta com que os responsáveis pelas desgraças que ocorreram nas dependências do DOI-CODI, os seus diretores Carlos Alberto Brilhante Ustra e Audir Santos Maciel ao enviar para publicação a foto de Vladimir Herzog, na tétrica posição, ajoelhado e com a corda no pescoço, assim pretendendo confundir e subtrair a verdade, induzindo o assassinato praticado com a tortura como se fosse suicídio — na vã tentativa de enganar a opinião pública, como se esta fosse constituída de imbecis — representou uma inominável farsa preparada por perversos detentores do mando, que exerciam na ocasião, por delegação da Ditadura, o poder absoluto de dispor da vida de quem lhes caísse nas garras, desimportando se tratavam-se de inocentes ou acusados de oposição ao governo. As violentas torturas seguidas de mortes ocorridas no DOI-CODI de São Paulo, de responsabilidade criminosa dos citados Ustra e Maciel, causaram tamanha, e tão péssima repercussão que após as mortes do jornalista Herzog e do metalúrgico Manoel Fiel Filho, o Presidente Ernesto Geisel, preconizando uma satisfação à opinião pública e ao clamor popular que ecoou em todo o País, demitiu o comandante do II Exército, General Edenardo D´Avilla Mello, responsável administrativo daquele órgão militar. A morte brutal do Deputado Rubens Paiva, no DOI-CODI do Rio de Janeiro, sob estúpido e bárbaro espancamento que resultou no seu assassinato por uma malta de sargentos e oficiais, ocorrida numa sessão de inquirição, cuja morte e desaparecimento do corpo foi comunicada pelo Ministro do Exército, General Orlando Geisel, ao então presidente Emílio Médici, o qual friamente, sem dar importância ao fato se limitou a dizer: “Então foi um acidente de guerra”, como relatado pelo jornalista Tarcísio Holanda em entrevista a um programa de televisão. Acresce ainda, agora, como divulgado no “O Globo” e no “Correio Braziliense” de 18 e 19 de novembro, respectivamente, o tétrico depoimento do ex agente do DOICODI do Rio de Janeiro, Marival Chaves ao cineasta Jorge Oliveira, para o filme “Perdão, Mister Fiel”, com a declaração de que o Deputado Federal Rubens Paiva havia sido torturado, morto, e seu corpo esquartejado. Esta revelação, face o mistério com que a morte e a ocultação do corpo do Deputado foram mantidas pelas autoridades envolvidas no caso, está a demandar providências do Ministério Público Federal para investigar, e esclarecer, com os membros do gabinete do então Ministro do Exército o que sabem a respeito, pois, se o general Orlando Geisel sabia do acontecido, obviamente, os oficiais que serviam com ele e no seu Estado-Maior também deveriam saber do ocorrido. A vasta literatura produzida sobre as torturas praticadas por agentes do governo durante o período infamante da
Ditadura, as quais, extravasaram de forma premeditada e maldosamente, com nítido intento de perversidade, ultrapassando irresponsavelmente os cânones que norteiam o Estado Democrático de Direito que vivenciamos, afronta a dignidade humana e não deve nem pode ser esquecida, para que os crimes escabrosos e definidos como hediondos que ocorreram, jamais venham a se repetir neste país. Considerando ainda o disposto na Constituição Federal, artigo 5o, inciso XLIII, configurando a prática da tortura como insuscetível de graça ou anistia, e o inciso XLIV que constitui e configura como crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados civis e militares, torna-se impossível aceitar a anistia para os torturadores, assim como, não considerar imprescritível os crimes praticados pelos grupos militares que operaram com selvageria nos DOI-CODI instalados nos vários estabelecimentos militares do país. Está implícito que a decisão do Supremo Tribunal Federal na demanda que está posta em julgamento, respeitados os parâmetros constitucionais, é absoluta, porém como divulgado por ilustres juristas, a questão pode ainda ser levada, como definem, à apreciação perante a Corte Interamericana dos Direitos Humanos, além da obrigação internacional do Brasil de investigá-los e julgá-los independentemente de qualquer que seja seu direito interno vigente. Finalmente, existem fundadas esperanças, que, no final e proximamente, os bárbaros torturadores irão prestar contas perante a Justiça, pela prática de crimes de lesa-humanidade, como já definido nas sentenças prolatadas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Com este intento, passamos a participar ativamente na catequese objetivando levar os torturadores e seus mandantes ao devido e necessário julgamento. É o que se aguarda e o quanto se espera!
Orpheu Santos Salles Editor 2009 NOVEMBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 7
Combate à violência doméstica
Foto: Rosane Naylor
Entrevista: Cristina Tereza Gaulia, Desembargadora do TJRJ
8 JUSTIÇA & CIDADANIA | NOVEMBRO 2009
A
Desembargadora do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Cristina Tereza Gaulia, não para. Sempre engajada em iniciativas de cunho social, a Desembargadora, que é coordenadora do Departamento de Projetos Especiais da corte fluminense, assumiu agora a Comissão Estadual para as Questões de Violência Doméstica Contra a Mulher. O grupo foi instituído em maio, pelo Presidente do TJ, Desembargador Luiz Zveiter, a quem a Magistrada faz questão de reconhecer a boa gestão que vem desenvolvendo. Cristina Tereza explicou que o principal objetivo da Comissão é o de multiplicar o número de juizados especializados em violência doméstica. Segundo afirmou, as particularidades envolvendo esses casos demandam atenção especial dos magistrados. Mas não é só. A meta também é chamar para a Justiça a responsabilidade de tratar o agressor. “Compete ao Judiciário tratar dele após a eventual penalização. Não basta somente a pena. Ele voltará a vitimizar outras mulheres se for recolocado na sociedade sem tratamento. E assim não conseguiremos interromper o ciclo de violência”, afirmou. Justiça & Cidadania – Qual é o objetivo desta comissão que a senhora preside? Cristina Tereza Gaulia – O Tribunal de Justiça constituiu uma comissão estadual para tratar da questão envolvendo a violência doméstica, no plano da prestação jurisdicional. A meta é, em primeiro lugar, multiplicar o número de juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher. Seremos o Estado do Brasil com o maior número deles. Temos um no Centro da Cidade, em Jacarepaguá, Campo Grande e em Nova Iguaçu. Inauguramos outro agora em Duque de Caxias
Foto: ASCOM/TJSP
e no, próximo dia 18 de novembro, inauguraremos o de São Gonçalo. Serão seis os juizados contra a violência doméstica no Rio, todos autônomos, com equipe técnica, cartório e juiz titular. Todas as outras comarcas também possuem esses juizados, porém eles não são autônomos e sim adjuntos aos juizados especiais criminais. Portanto, qual será nossa meta para o ano que vem? Conseguir aprovação de leis estaduais que criem, com a necessária previsão orçamentária, esses juizados autônomos. Vamos tentar inaugurar o maior número possível. Os índices de violência doméstica no Estado são muito altos. As distribuições desses juizados surpreenderam a administração do TJRJ. Então, o juiz que se divide entre o juizado criminal e o da violência doméstica fica sobrecarregado. E o juizado da violência doméstica demanda um juiz muito atento, porque há dois vieses. O primeiro é o da mulher vitimizada, que tem que ser olhada com cuidado, ser encaminhada para o abrigo e ao tratamento, assim como tem que receber as medidas preventivas e acautelatórias garantidas pela Lei Maria da Penha. Ao mesmo tempo temos o homem agressor. Compete ao Judiciário tratar dele após a eventual penalização. Não basta somente a pena. Ele voltará a vitimizar outras mulheres se for recolocado na sociedade sem tratamento. E assim não conseguiremos interromper o ciclo de violência. Ambos os vieses necessitam da atenção constante e próxima do magistrado. JC – A violência doméstica no Estado do Rio é considerada um problema grave? CTG – A violência doméstica é um problema mundial. No Brasil, temos estatísticas de vários órgãos, inclusive da Organização das Nações Unidas, de que há mulheres espancadas diariamente e, por vezes, até mais de uma vez por dia. Então, a questão é do Rio de Janeiro, assim como do Brasil como um todo. Por isso, a Secretaria Especial de Políticas Para as Mulheres, através da Ministra Nilcéia Freire, estabeleceu um plano nacional de cuidado com a violência doméstica. Ao Judiciário compete exatamente isso: ter juizados especializados autônomos, com juízes especificamente dedicados a essa questão, tendo foco nesses dois vieses que apontei. Esse tema é importante porque se liga à segurança da própria sociedade civil, por se tratar da célula inicial. Se a pessoa não tem paz e tranquilidade dentro de casa, mas apenas agressão e violência, é certo que irá levar essa proposta comportamental de violência para fora dos limites da família. A obrigação do Judiciário é olhar para essa questão. JC – Além de fomentar a criação de mais juizados, que outras ações a Comissão desenvolverá? CTG – A ideia é a de que o Judiciário passe a olhar o tratamento do nosso cliente, o homem agressor. A mulher
vítima de violência é amparada pelas políticas públicas nessa área, estabelecidas pelo Poder Executivo. Então, temos centros de referência da mulher, que são mantidos pelos três entes federados e que têm como objetivo aumentar a autoestima da mulher, tratando-a do ponto de vista físico, psíquico e emocional. Parece-me, portanto, ser uma função do Judiciário cuidar do homem agressor. Temos como proposta, nesse sentido, multiplicar os núcleos de tratamento ao homem agressor em todos os juizados. O modelo está sendo implementado no Juizado da Violência Doméstica de Nova Iguaçu. É nessa linha que estamos trabalhando. JC – Que outra iniciativa a senhora destacaria? CTG – A presidência do TJRJ sediará, de 23 a 25 de novembro, o primeiro Fórum Nacional de Violência Doméstica, uma iniciativa do Ministério da Justiça, da Secretaria da Reforma do Judiciário e da Secretaria Especial de Políticas Para as Mulheres. Haverá a presença de cerca de 400 magistrados de todo o País. A presidente desse fórum, eleita por seus pares, é a Juíza Adriana Mello, do 1º Juizado da Violência Doméstica do Rio. Trata-se de um fórum específico para debater as questões envolvendo a Lei Maria da Penha pelos magistrados, justamente em prol da melhor interpretação da norma. JC – Fale um pouco sobre os projetos em andamento no Departamento de Projetos Especiais do TJRJ. CTG – Faço parte da equipe e integro a direção, juntamente com o Desembargador Maurício Caldas, que preside o Departamento, e a Desembargadora Marilene Melo. Dentre os projetos especiais, estão aqueles que já desenvolvemos há vários anos: o “Justiça Itinerante”, o “Justiça Cidadã” e os “Casamentos Comunitários”. Aliás, em 27 de novembro, realizaremos o primeiro casamento em comunidades, no alto do Morro Dona Marta, onde já estivemos também com o projeto “Justiça em Ação”. Temos também o projeto “Pais Trabalhando” e vários outros ligados aos jovens, como o “Justiça pelos Jovens” e o “Jovens Mensageiros”. Todas essas iniciativas de responsabilidade social do TJ são administradas por esse departamento. Não posso deixar de apontar também uma comissão do Tribunal, presidida pelo Desembargador Maurício Caldas, que trabalhou com bastante afinco na regulamentação da mediação dentro do Poder Judiciário do Rio. Estamos treinando servidores e mediadores há quase um ano para que estejam aptos a fazer mediação nos processos judiciais. Isso já está sendo feito por diversos núcleos coordenados por juízes de primeiro grau. 2009 NOVEMBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 9
A FAMÍLIA NO CONTEXTO DA GLOBALIZAÇÃO E SUAS REPERCUSSÕES NO DIREITO Jones Figueirêdo Alves Presidente do TJPE
Resumo da palestra proferida na Faculdade de Direito de Lisboa durante encontro jurídico luso-brasileiro, realizado em 9 de outubro de 2009
1. Quando, pela vez primeira, o termo “globalização” foi empregado, pelo alemão Theodore Levitt (1983), em referência ao surgimento de um mercado global, como fenômeno de aproximação econômica, no processo dinâmico de integração de trabalho, bens e serviços, tecnologia e capitais, a superar fronteiras, a antiga aldeia medieval, feita de um relacionamento primário, vê-se, enfim, transformada em comunidade internacionalizada, nutrida de um determinismo universal. Antes, as torres das igrejas fizeram inventar os sinos, na chamada dos fiéis ao culto ou na advertência de avisos, implicando significados de núcleo de informação e de união da cidade, em torno delas. Hoje, a aldeia expandida tem a sua totalidade concebida pela tecnologia de comunicação dos satélites, em sucedâneo dos sinos, a demonstrar uma busca de unidade do gênero humano, onde o homem é situado em uma sociedade global, na sua marcha de história. Como diria Carlos Drummond de Andrade, um de nossos poetas maiores, o homem cansou de ser eterno e resolveu ser moderno. Tempo e espaço, técnica e ciência, conduzem-no a uma nova realidade fenomênica, onde a globalização o coloca como cidadão do mundo, no ato instante de saber-se protagonista de uma modernidade constituída sem fronteiras. Bem é dizer, então, que ele integra, a todo rigor, a família 10 JUSTIÇA & CIDADANIA | NOVEMBRO 2009
humana, uma única família humana, na casa comum da humanidade, eixo vertical para a compreensão do tema agora proposto a um breviário de observações pontuais. Como o direito está a perceber a família no contexto da globalização, fruto de interpretação das mudanças experimentadas e a justificá-la a partir de modelos novos, é o que importa, de logo, assinalar. De proêmio, cuide-se que a globalização intenta compreendê-la como uma só família. Não obstante esteja essa família global densificada juridicamente em famílias — diante da sociedade contemporânea — numa visão pluralista de famílias institucionalizadas nas suas variadas espécies. Não obstante, ainda, transcendam a tipologia de entidades familiares clássicas. Isto porque unas se mostram pela necessidade de igualdade de direitos dos que a integram e, sobremodo, porque em simetria de parâmetros de dignidade. Essa primeira postura reflexiva desafia, portanto, a globalização a servir como instrumento eficaz ao direito, para gizar um universal normativo de base que sublinhe, oriente e inspire alicerce jurídico, a nível global, comprometidos os ordenamentos com os novos conceitos de família em alargamento manifesto. Essa, parece-nos, a visão otimista (e tomista) que nos é dada perceber, sob os rigores de um
Foto: Assis Lima/TJPE
tempo mecanicista onde o homem habita perplexidades, em regência de crises, sem perder, porém, o potencial ético de sua humanidade intrínseca. É ainda na bula de uma globalização que cumpre pensar um direito de família potencializado por esta, em pontes culturais que, atravessadas, sensibilizam caminhos convergentes a dizer sobre novos paradigmas, que integrem uma perspectiva uniforme de implicações jurídicas da família, contextualizadas em dimensão própria de uma sociedade globalizada. Mais é dizer: nas variâncias desse tempo, os cânones da época moderna obrigam-nos a pensar o direito em relação simétrica com os fatos sociais, sempre a apontar vias de superação, concebido de forma compatível a intervir no real e a encontrar a família como base de toda estrutura de uma sociedade. Afinal, “nela se assentam não só as colunas econômicas, como se esteiam as raízes morais da organização social”. Em ser assim, impende tratarmos de uma resenha pontual e temática, agenda onde despontem, sobremodo, as relações familiares cuidadas sob vertentes de universais concretos. Quando se cogita de enunciar, principalmente, acerca dos novos modelos de família, da igualdade substancial de gênero, da violência doméstica, da filiação socioafetiva e de questões
outras, as fontes de reflexão são informadoras de uma visão homogênica, porque há de assumir expectativas jurígenas de uma sociedade comunitária global, pouco ou nada influindo costumes ou culturas. Em menos palavras, dentro de uma nova sociedade globalizante, os sistemas jurídicos tendem a definir linhas de orientação para a disciplina de interesses fundamentais no trato da família moderna, convergindo para uma evolução jurídica teleologicamente compartilhada. Não há negar isso: independente de quaisquer aspectos geográficos, culturais e econômicos, a necessidade de o homem conviver, em família, é substancialmente igual, pelo que o direito o encontra, juridicamente, em similitude de mesmas perspectivas de dignidade, em todas as partes do mundo. Pois bem. Os arranjos conceituais de família, nos seus atributos — surgidos, aliás, a partir do século XV — têm na atualidade, sob os influxos do mundo globalizado, apresentado efeitos expressivos à configuração de novas estruturas familiares. De tal sorte, a partir de mudanças do modelo clássico patriarcal e/ou de inovações significantes que substituem, por exemplo, o pátrio poder pelo poder familiar, agora inerente ao casal e que, em valioso trespasse, redefinem as relações 2009 NOVEMBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 11
Foto: Assis Lima/TJPE Jones Figueirêdo Alves, Presidente do TJPE
parentais, estabelecem novas formas de constituição familiar e instituem dinâmica de ordem jurídica destinada ao primado da dignidade da família e de seus membros, individualmente considerados. Doutra banda, é com apropriada razão que, em sede de origem, estamos a pensar que, no plano jurídico, a globalização tem a sua gênese de influência a partir de uma consciência crítica, de vocação universal, na defesa dos direitos humanos, edificada pela Declaração dos Direitos Humanos, de 1948, e consolidada, adiante, por diversos pactos internacionais de direitos civis e políticos. Figura naquela, em seu artigo 12, o dispositivo matriz de salvaguarda ao respeito pela vida familiar. Mas não é só. A tutela máxima da família tem sido compreendida dentro dessa perspectiva de causalidade, como resultado congênito da consagração dos direitos humanos à própria evolução do direito de família. Precisamente, os catálogos dos direitos fundamentais, traduzidos em convenções internacionais, estão a provocar, com urgência, um sistema globalizante de proteção integral da família, de efetividade ótima, em articulados que não se restrinjam às famílias nacionais ou comunitárias, mas havidos urbi et orbi. 12 JUSTIÇA & CIDADANIA | NOVEMBRO 2009
Há um consenso universalista, portanto, quando a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (1950, arts. 8º e 12º ), a Carta Social Europeia (1961, arts. 16º e 19º) e a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (2000, arts. 7º, 9º e 33º) cuidam de proteger a família, ao tempo em que outros modelos, americano ou africano, reiteram a mesma vocação de ordenamento, como, a saber, a Convenção Americana de Direitos Humanos (1969, arts. 11º e 17º) e a Carta Africana (1981, art. 18º), figurando o valor da família como fonte comum e geradora de ordem jurídica. Com efeito, apreciáveis repercussões jurídicas devem ser alinhadas e refletidas dentro do multifacetado projeto de modernidade que o fenômeno da globalização está produzindo, com padrões universalmente racionais, em resposta objetiva aos desafios da instituição da família. Estes desafios continuam perenes e até ampliados, convenhamos, pela correspondência de tal fenômeno. 2. De tal modo é assim que nos deparamos, de imediato, com o pluralismo das entidades familiares. Esse é um dos mais importantes novos paradigmas que o direito de família tem produzido, na atualidade, sob a égide de uma globalização convergente, onde um dos seus vieses marcantes e
A afetividade tem conduzido o direito de família à sua maior dimensão existencial, axiologicamente hierarquizada como valor jurídico, e cuja concretude tem se prestado a demonstrá-la como função essencial da nova família, a família contemporânea.
fundamentais se perfaz, induvidosamente, na socioafetividade como indutora de família reflexa, em novos enquadramentos da estrutura familiar. A afetividade tem conduzido o direito de família à sua maior dimensão existencial, axiologicamente hierarquizada como valor jurídico, e cuja concretude tem se prestado a demonstrá-la como função essencial da nova família, a família contemporânea. Em pensamento pós-moderno, o âmbito da família tem, por isso mesmo, novas composições, pelo seu atual modelo plural, não monolítico ou nuclear, de forte conteúdo solidarista e igualitário, em leitura da repersonalização de seus integrantes. Segue-se, daí, que o rol familiar não poderá mais ser taxativo, em lei, a partir da família expressamente constituída pelo casamento, com acepção em apenas e somente duas realidades: como família nuclear estrita, formada pelo casal sem filhos; e como família nuclear consolidada, esta acrescida pela prole. A própria lei começa a consignar outras entidades familiares socialmente constituídas como famílias monoparentais ou as formadas por uniões de fato. Diferentes outras estruturas
interpessoais têm sido admitidas juridicamente como famílias, em visão pluralista conforme, delineando um novo álbum de família, a exemplo das advenientes de (i) posse de estado de filho; (ii) das uniões concubinárias; (iii) das unidades parentais sem chefia, como no grupo de irmãos; ou (iv) das pessoas sozinhas, solteiras ou viúvas, famílias singles, a cuja configuração a jurisprudência brasileira vem recepcionar nos fins da proteção do bem de família. E mais outras famílias são possíveis, como as reconstituídas, com prole de uniões anteriores do casal, ou as fissionais, entendidas na Itália como entidade familiar experimental, formada por pessoas denominadas celibertárias, cuja unidade de convivência se resume aos fins de semana ou a períodos de lazer e viagem. Exemplos mais interessantes ao direito de família são oferecidos, ademais, pelas entidades familiares ectogenéticas, diante das técnicas de reprogênese medicamente assistida, remetendo-se à legislação emergente e a uma doutrina aprofundada a conveniente regulação eficiente das hipóteses. Aqui, o fenômeno da globalização, atraído em convenções e pactos, está a reclamar tratamento uniforme a coincidir e harmonizar interesses elevados da dignidade da família, independente do país onde esteja ela constituída, em tessitura de um emergente biodireito familiar. Questões polêmicas surgem, às expressas, a cada experimento de fertilização assistida. Discute-se aos dadores do elemento genético ou à mãe de substituição o seu direito de visita ao filho ou sobre o destino de custódia dos embriões excedentários, em disponibilidade ou não, para implantação, por parte do casal separado. Nesse último caso, controvérsia mais acendrada ganha lugar em se tratando de inseminação artificial heteróloga, a saber do Código Civil brasileiro dispor no seu art. 1.597, inciso IV, a presunção ficta da paternidade, em face da prévia autorização do marido. 3. De fato, efetivamente, um imenso mosaico de novas entidades familiares, com implicações jurídicas específicas, coloca-se presente. A esse propósito, recente Lei brasileira, a de nº 12.010, de 3 de agosto passado, alterando o Estatuto da Criança e do Adolescente e outras leis, carrega consigo a proclamação da família extensa, conceituando-a como aquela que se reconhece existente e identificada, pelas suas relações, com os característicos de vínculos da afinidade e da efetividade. A modificação introduzida no Estatuto, então editado pela Lei 8.069/90, traz o parágrafo único ao seu art. 25, com a redação seguinte: “Entende-se por família extensa ou ampliada aquela que se estende para além da unidade pais e filhos ou da unidade do casal, formada por parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade.” E, dentre outras alterações, a reportada Lei nº 12.010, de 2009, trouxe, ainda, profundas reformas ao instituto da adoção, como instrumento de maior eficiência à proteção e interesses dos menores, e ao instituto do acolhimento familiar. 2009 NOVEMBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 13
Bem a propósito, vale lembrar que, pioneiramente, o Código Civil brasileiro, de 2002, introduziu, em seu artigo 1.593, um novo conceito de relação parental, ao dispor que o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou “outra origem”, em ordem de admitir, por essa última, origem diversa, situações juridicamente indeterminadas, que não se subsumam, exclusivamente, no instituto da adoção. Ao informar — a ordem jurídica — tal ideia de parentalidade acrescida, resultado de impactante realidade fática — eis que o direito há de representar um sentimento palpitante de realidade —, sobreveio, por igual, também recentemente, no Brasil, a Lei nº 11.924, de 17 de abril passado. Traz ela relevante contribuição a essa parentalidade civil ao permitir que o enteado averbe, no seu registro de nascimento, o patronímico do padrasto, adicionando-o ao seu. De tudo, a referir, consoante se observa, o interesse de tutelar, de modo preciso, uma das novas formas de família. Em outro exemplo, esse interesse primacial de tutela às demais entidades familiares também se extrai do contido no art. 5º, inciso III, da Lei brasileira nº 11.340, de 2006. Na denominada “Lei Maria da Penha”, relativa à violência doméstica, o referido dispositivo ali inserto contempla e identifica a família oriunda de qualquer relação de afeto, pelo que se sustenta, com interpretação extensiva, tratar-se de pioneira norma inclusiva das relações homoafetivas, no âmbito da ordem jurídica nacional. 4. A seu turno, a modernização do instituto do divórcio temse apresentado como fórmula de incremento da evolução do direito de família, colocando-o mais harmônico aos influxos da globalização. Bem de ver as recentes legislações de Portugal e do Brasil, que têm, umas e outras, revelado, a um só tempo, dinâmica de disciplina legal ao instituto. Nesse objetivo, a Lei portuguesa nº 61/2008, em vigor desde 1.12.2008, inovou bastante o Capítulo XII do Código Civil, dando-lhe moldura mais contemporânea. No Brasil, a Lei nº 11.441, de 4 de janeiro de 2007, veio permitir a separação jurídica e o divórcio consensuais de casais sem filhos menores ou incapazes, por via administrativa, mediante escrituras públicas. E, em extensão desburocratizante do procedimento, tramita projeto de lei no Senado a permitir que pedidos de divórcio consensual sejam formalizados na internet, naquelas mesmas condições. Aliás, em Portugal, desde 13 de março de 2008, portal na Web, apoiado na Lei do Cartão do Cidadão, disponibiliza idêntico serviço. Demais disso, sublinhe-se que a mais importante evolução ao instituto do divórcio avizinha-se, presentemente no Brasil, com o projeto de Emenda à Constituição de 1988, em curso no Senado, extinguindo o instituto da separação judicial, cujo lapso temporal de um ano é pressuposto necessário aos casais para a obtenção do divórcio. Cuida bem o legislador do término daquele instituto, quando já admitido o divórcio fundado em separação de fato ocorrente por dois anos, não mais se justificando, assim, a concomitância dos dois institutos, como ora sucede nos atuais Códigos Civil do Brasil e de Portugal. 14 JUSTIÇA & CIDADANIA | NOVEMBRO 2009
5. Também no trato das responsabilidades parentais, a Lei portuguesa nº 61/2008, em vigor desde 1.12.2008, inovou bastante ao discipliná-las perante casos de ruptura da relação conjugal, por separação judicial ou de fato e por divórcio, ou em situações não análogas, no atinente ao exercício comum ou parcial do poder paternal ou familiar. Tais disposições consolidam a ideia-força de o efetivo e regular exercício do poder paternal interessar, antes de mais, à melhor proteção dos filhos. Mas se assim o é, o processo interativo dessa relação tem reclamado, no atual cenário social globalizado, um severo enfrentamento de duas questões relevantes: (i) a do abuso de direito cometido pelo titular da guarda; e (ii) a da síndrome da alienação parental, como patologia jurídica pelo exercício abusivo da guarda jurídica unilateral. O tema tem merecido as maiores preocupações do direito de família no contexto da atual globalização, a perquirir, inclusive, intervenções de direito internacional, por subtração do filho ao poder familiar do outro genitor. A despeito de a regra geral conferir a guarda a quem revelar melhores condições para exercê-la (art. 1.584, CCB), cujo elemento característico corresponde ao melhor atendimento aos interesses do menor — sem que a atribuição implique, inexoravelmente, em prejuízo da relação paternal do outro, desprovido da guarda —, evidencia-se, na prática, ao pai ou à mãe, em cuja guarda não estejam os filhos, uma redução sensível do seu poder familiar, tornando-os, em determinadas circunstâncias, figuras parentais deficitárias. Não há desmentir tal fato, quando a lei defere o chamado “direito de visitação”, a espelhar, na previsão, uma convivência episódica, ao invés de disciplinar a coparticipação do genitor não guardião, em parcela objetiva do poder familiar. Isso significa uma atuação que supere a ideia da simples fiscalização da educação dos filhos. Logo, o exercício do poder familiar por esse último deve representar uma participação mais ativa e presencial, aproximado ao filho na eficiência de preservar intacta e dinâmica a atuação paternal, em sua concepção personalista. Cometerá abuso de direito, portanto, o detentor da guarda que, à luz do caso concreto, invalide tais premissas, recusando ou inibindo uma maior presença paterna ou, em evidência de maior abusividade, dificultando o exercício da visitação, sob o pálio egoístico de afastar afetivamente o filho do seu outro genitor. Exatamente pela predisposição pessoal do guardião de não favorecer ou desestimular o interesse do menor em manter uma relação de maior proximidade com o genitor a quem não esteja confiado, visualiza-se o abuso do direito da guarda. O abuso de direito é espécie de ilicitude civil, agora previsto no art. 187 do Código Civil brasileiro. A figura jurídica do abuso, na espécie, foi avaliada pelo psiquiatra norte-americano Richard Gardner como síndrome de alienação parental, considerada pela interferência promovida por um dos genitores na formação psicológica da criança para que repudie o outro, bem como por atos
A proposta assinala, por outro lado, que a atribuição ou alteração da guarda dará preferência ao genitor que viabilize o efetivo convívio da criança com o outro genitor, quando inviável a guarda compartilhada.
que causem prejuízo ou embaraço ao estabelecimento ou à manutenção de vínculo com este. Nessa linha de definição, o Projeto de Lei nº 4.053/2008, em trâmite na Câmara Federal, introduz e conceitua a figura da alienação parental na ordem jurídica brasileira. O projeto é apoiado em raros julgados de tribunais do país que, assumindo postura de vanguarda, aprofundaram o tema, em proteção do exercício pleno da paternidade e coloca, mais uma vez, o direito de família nacional entre os mais avançados. A proposta assinala, por outro lado, que a atribuição ou alteração da guarda dará preferência ao genitor que viabilize o efetivo convívio da criança com o outro genitor, quando inviável a guarda compartilhada. A propósito, esse novel instituto, advindo da Lei nº 11.698/2008, de 13 de junho, definindo a custódia compartida dos filhos (art. 1.583 do CCB, nova redação), ganha relevo, com igual emprego em outros países. Na Espanha (Lei nº 15/2005, 8 de julho), é admitida inclusive por pedido unilateral, em havendo parecer favorável do Ministério Público; e na França, Alemanha, Dinamarca e Suécia, a guarda compartilhada assume caráter preferencial. Tudo está a indicar, de conseguinte, que novos institutos, à guisa desse exemplo, sedimentam a modernidade do direito de família, construtivo e internacionalizado por standards reconhecidos pela maioria dos ordenamentos jurídicos. 7. Com igual status comunitário, sublinha-se, afinal, o tema da violência doméstica, como política criminal de concreção dos direitos humanos inscritos em convenções e tratados. A família, mais uma vez, insere-se no contexto da globalização no instante em que a sociedade ocidental, com primazia, criminaliza condutas desviantes à dignidade familiar, dando maior enfoque à violência contra a mulher. O fenômeno da violência em família tem seu foro na comunidade internacional, que, ao fim e ao cabo, tem assinalado estatutos legais definidores de novos tipos penais. No Brasil, a Lei nº 11.340/2006, denominada Lei Maria da Penha, versando sobre violência de gênero, assegura a autodeterminação pessoal da mulher, colocando-a sob tutela absoluta de seus interesses e direitos, na esfera familiar, prevenindo e reprimindo a violência doméstica.
Em Portugal, a política criminal de controle e prevenção desse tipo de violência superou a tradição minimalista do direito penal, reformando o Código Penal com a Lei nº 59/2007, de 4 de setembro. O crime de violência doméstica recebeu categoria delituosa própria, em relação ao crime de maus-tratos, tratado autonomamente no art. 152, adotando-se políticas públicas e sociais de proteção às vítimas, todas as que integrem o grupo familiar. Torna-se imperativo, por extrema relevância, destacar que, mais recentemente, o direito português estabeleceu, com a Lei nº 112/2009, de 16 de setembro, em vigor há poucos meses, regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica e à prevenção e à assistência das suas vítimas. O estatuto de vítima, com atribuição, direitos e cessação disciplinados no Capítulo IV da mencionada Lei, incorpora-se ao ordenamento pátrio, com inegável técnica de vanguarda. 8. Assentadas essas colocações, resta-nos entender, positivamente, os reflexos da globalização à família do mundo, isto porque ela mesma traduz, nas suas formas de organização manifestamente diversas, as mutações mais veementes da sociedade contemporânea. Essa família mutante faz-se destinada à realização pessoal de todos os seus membros pela identidade que os coloca, em seus papéis familiares, atores significantes. Unidos e não apenas reunidos, em templo de convivência, constitutivo de harmonia social e afetiva. Se a esse tempo globalizado não se permite, nele, a delimitação do conceito de família, arrimado a padrões socioculturais, em permanentes e céleres transformações, ao aplicador do direito cumprirá, com olhos de ver, ouvidos de ouvir e pele de sentir, compreendê-la no culto dos seus valores imperecíveis, ao extremo de vencer as diferenças e, mais que isso, as indiferenças. Em derradeiro, haverá de prevalecer a advertência do consagrado jurista João Baptista Villela: “O amor está para o Direito das Famílias, assim como a vontade está para o Direito das Obrigações”. Nele, a família está inteira. Inteiro em afeição, também coloco-me, perante todos, na honraria da palavra que vos dirijo. Muito obrigado! 2009 NOVEMBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 15
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER
Massami Uyeda
A
incidência da violência doméstica contra a mulher é fato que ocorre em todo o mundo e de há muito tempo. Este comportamento resulta da estratificação de uma cultura preconceituosa em relação à mulher. Os efeitos deletérios da violência doméstica contra a mulher são impressionantes. A Organização Mundial de Saúde estima que grande parte de homicídios é cometido no âmbito doméstico tendo a mulher como vítima. Não se trata de questão que deva ser considerada como menor ou como apenas um movimento de grupos feministas. Trata-se de questão que fundamentalmente diz respeito à dignidade da condição humana, a qual deve ser preservada, sob pena de, caso ignorada ou não respeitada, inviabilizar a própria existência humana. A relevância do tema concernente à violência doméstica contra a mulher extravasa os limites nacionais e é objeto de preocupação mundial, tanto que a “Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher”, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 18/12/1979, e ratificada pelo Brasil em 1/2/1984, além da “Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher”, pela Organização dos Estados Americanos, de 6/6/1994, ratificada pelo Brasil em 27/11/2005, demonstram os cuidados e providências a serem adotados por todos os países que ratificaram estas normativas internacionais. A Constituição Federal Brasileira estatui que o Brasil é um Estado Democrático de Direito e tem no respeito à dignidade humana um de seus fundamentos (art. 1o, inciso III). E, ao tratar
16 JUSTIÇA & CIDADANIA | NOVEMBRO 2009
Foto: Sandra Fado/STJ
Ministro do STJ Membro do Conselho Editorial
dos direitos e garantias fundamentais, dispõe que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações (art. 5o, inciso I). Não obstante esta dicção constitucional e as recomendações contidas nas referidas Convenções Internacionais, pouco se tinha efetivado no Brasil. As questões envolvendo marido e mulher, caracterizadas por violência física, psicológica e de natureza sexual contra a mulher, frequentemente foram e ainda são rotuladas como assuntos que devem ser tratados e resolvidos na intimidade entre os personagens envolvidos, não se admitindo interferência de terceiros, sendo mesmo prudente e sábia a recomendação vigente em praticamente todos os estratos sociais de que “em briga de marido e mulher, não se mete a colher”. A dinâmica dos fatos sociais é que dá origem às leis. Já os romanos estatuíam ex facto oritur jus. A promulgação da Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006, tem a sua gênese em drama vivenciado pela farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes, que, em 1983, foi vítima de duas tentativas de homicídio perpetradas por seu marido, Marco Antonio Heredia Viveiros, economista. Na primeira, Maria da Penha foi atingida por um tiro de espingarda, disparado por Marco Antonio quando ela dormia. O tiro atingiu-a em suas costas e, em razão das lesões, tornou-se paraplégica. Sobrevivendo ao atentado desfechado pelo próprio marido, que alegava tratar-se o autor do disparo de um assaltante que se introduzira no quarto, afinal desmentido pela prova produzida, Marco Antonio tentou matar Maria da Penha por eletrocussão, quando ela ia tomar banho. Marco Antonio foi submetido a julgamento pelo Tribunal do Júri, em 1986, e, após inúmeros percalços processuais, em 1996 foi condenado à pena de 10 anos e 6 meses de reclusão, permanecendo, no entanto, livre até 2002, quando foi finalmente preso, passados 19 anos da primeira tentativa de homicídio, e, sendo beneficiado com o regime de progressão da pena, cumpre-a em liberdade. A demora na punição e a falta de rigor no tratamento de delitos dessa natureza, ou seja, os decorrentes de violência doméstica, levaram Maria da Penha, com o apoio de organizações feministas, a promover reclamação perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos quanto à leniência e ineficiência do Estado Brasileiro em cumprir as normativas internacionais. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos deliberou no Relatório nº 54, de 2001, que o Brasil, embora tenha tomado algumas medidas destinadas a reduzir o alcance da violência doméstica e a tolerância estatal da mesma, essas medidas, entretanto, ainda não possibilitaram reduzir consideravelmente o padrão de tolerância estatal, particularmente em virtude da falta de efetividade da ação policial e judicial, com respeito à violência contra a mulher. Dentre as recomendações, o Relatório nº 54 preconizou a continuidade e o aprofundamento do processo reformatório do sistema legislativo nacional, a fim de mitigar a tolerância estatal à violência doméstica contra a mulher no Brasil e, em especial, recomendou “simplificar os procedimentos judiciais penais a fim de que possa ser reduzido o tempo processual, sem afetar os
A promulgação da Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006, é a resultante não só de regular processo legislativo, expressando a vontade popular, mas, sem dúvida, é o resultado da força e eficácia de convenções internacionais, ratificadas pelo Brasil.
direitos e as garantias do devido processo e o estabelecimento de formas alternativas às judiciais, rápidas e efetivas de solução de conflitos intrafamiliares, bem como de sensibilização com respeito à sua gravidade e às consequências penais que gera”. A promulgação da Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006, é a resultante não só de regular processo legislativo, expressando a vontade popular, mas, sem dúvida, é o resultado da força e eficácia de convenções internacionais, ratificadas pelo Brasil. Esta lei foi gerada pelo inconformismo e pela dor, física e moral, de uma vítima de violência doméstica que buscava a aplicação da lei e sua efetiva execução. A Lei 11.340/2006 representa a presença brasileira no concerto das nações, na efetividade do primado da liberdade, da igualdade e da solidariedade, pilares em que se assenta a dignidade humana. E, por isso, foi batizada como “Lei Maria da Penha”. A Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006, tem o escopo de criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Vê-se, assim, que a Lei 11.340/2006 não só tem o propósito de dar concreção ao comando constitucional de proteção à mulher como, também, o de atender às recomendações da Resolução nº 54, de 2001, da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. 2009 NOVEMBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 17
Foto: Stockxpert
Os propósitos da Lei 11.340/2006 são abrangentes e multidisciplinares, dispondo sobre matérias cíveis e penais, as quais são analisadas e julgadas por um mesmo juiz, numa visão integrativa do Direito, não se circunscrevendo apenas ao âmbito de proteção da mulher como vítima, mas também resguardando a pessoa do agressor por necessitar de tratamentos especiais. E, também, as pessoas dos filhos, especialmente os menores que sofrem os efeitos e consequências da desagregação de seus pais. Pontos relevantes da Lei Maria da Penha Configura-se violência doméstica e familiar contra a mulher, para os efeitos da Lei 11.340/2006, qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral e patrimonial, ocorridas no âmbito da unidade doméstica, no âmbito da família ou em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação (art. 5°), independentemente de orientação sexual (par. único). Por âmbito da unidade doméstica, entenda-se como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas. E, por âmbito da família, entenda-se como a comunidade formada de indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa. A abrangência de situações configuradoras de violência doméstica e familiar contra a mulher também é repetida ao dispor, em seu artigo 7°, exemplificativamente, configurar-se: I – violência física, qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal; 18 JUSTIÇA & CIDADANIA | NOVEMBRO 2009
II – violência psicológica, qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima, ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento, ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; III – violência sexual, qualquer conduta que a constranja a presenciar ou manter, ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos; IV – violência patrimonial, como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades; V – violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria. Os elevados objetivos da Lei 11.340/2006, por seu aspecto multifacetário e multidisciplinar, não poderiam ser alcançados se não por meio de políticas públicas que articulem ações integradas de todos os entes estatais — União, Estados-Membros, Distrito
Federal e Municípios —, em conjunto com a sociedade civil, em geral, e com organizações não-governamentais. Estas ações abrangem a integração do Poder Judiciário, do Ministério Público, da Defensoria Pública, com as áreas de segurança pública, assistência social, saúde, educação, trabalho e habitação. Na pauta de ações integradas, inserem-se campanhas educativas de prevenção à violência doméstica e familiar contra a mulher; a inserção nos currículos escolares, de todos os níveis de ensino, para os conteúdos relativos aos direitos humanos, não só com relação à violência doméstica e familiar contra a mulher, mas também à equidade de gênero e de raça ou etnia. Para a adequada aplicação e execução desta novel lei, é necessária a formação de quadros preparados profissionalmente para o atendimento de ocorrências e situações de violência doméstica e familiar contra a mulher, como a criação e instalação de Delegacias Especializadas e de Juizados Especiais. Por seu caráter multidisciplinar, uma vez que a caracterização de violência doméstica e familiar contra a mulher envolve aspectos penais e aspectos cíveis, ao processo, julgamento e execução de causas cíveis e criminais aplicam-se as normas dos Códigos de Processo Penal e Processo Civil e da legislação específica relativa à criança e ao adolescente e ao idoso que não conflitarem com a Lei 11.340/2006. No referente às ações penais públicas condicionadas à representação de que trata a Lei 11.340/2006, dispõe o artigo 16 que só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei 9.099, de 1995; ou seja, os delitos desta natureza não são considerados como delitos de menor potencial ofensivo. Na aplicação de penas, é vedada a condenação em obrigação de fornecer cestas básicas ou de outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa. Ao tomar conhecimento da ocorrência de violência doméstica e familiar contra a mulher, medidas protetivas de urgência que obrigam o agressor e medidas protetivas de urgência que protegem a ofendida poderão ser determinadas pelo juiz, de imediato, como tutelas de urgência. Dentre as medidas que obrigam o agressor, ressaltam-se as que determinam o afastamento do lar, domicílio ou local de convivência do agressor com a ofendida; a de proibição de aproximação do agressor em relação à ofendida ou de seus familiares e de testemunhas, fixando-se o limite mínimo de distância entre estes e o agressor; a proibição de frequentar deteminados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida; a de prestar alimentos provisionais ou provisórios. Também, no resguardo da ofendida, poderá o juiz determinar a separação de corpos, ou determinar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos.
Santos Salles A
crise atual decorreu de um imperativo psicossocial clássico nas economias de mercado, ou seja, o envolvimento de toda a sociedade, sem intervenção adequada dos governos, na busca de resultados financeiros e no mercado de capitais, em face do crescimento da economia em padrões acima das necessidades de consumo dos que têm capacidade de absorver a produção. Dessa forma, os investimentos foram valorizados também em patamar mais elevado do que seu intrínseco valor estrutural, com o que, em lDireito Tributário um determinado momento, tal evolução, sem sustentabilidade real, necessariamente, terminaria por explodir, gerando mais lDireito Previdenciário uma crise cíclica de capitalismo, em dimensões maiores do que aquelas lDireito que ocorreremdas após 1929. Relações de Consumo O efeito psicológico de uma percepção superficial dos lDireito elementos causadores Civil da crise, indiscutivelmente, acabou por gerar um prolongamento ilusório de um “boom econômico”, lDireito do Trabalho já diagnosticado por especialistas como sem condições de permanência, a partir de 2006/2007. lDireito Penal Empresarial Os mercados não são autorreguláveis, mas as regulações oficiais lDireito quase sempreAdministrativo são insuficientes para corrigir suas distorções, mormente quando as próprias autoridades iludemse quanto à sua capacidade de conduzi-lo. lDireito Internacional Por outro lado, os investidores que o alimentam e que, não lMediação e Arbitragem poucas vezes, também se iludem com a fortaleza estrutural do progresso e do desenvolvimento, terminam sendo, lPetróleo, Gás momento em simultaneamente, causa e Energia efeito geradoredaquele que a constatação da impossibilidade de sua permanência em lDireito das Telecomunicações níveis elevados indefinidamente torna-se evidente. Em outras palavras, há um ponto de equilíbrio, que seria o limite crítico entre uma realidade controlável, propiciadora da estabilidade dos mercados, e a atuação dos agentes econômicos e autoridades tanto para perceber, quanto para promover uma intervenção corretiva, sempre que esse limite crítico, precário por natureza, é ultrapassado. É que, de outra forma, a atuação dos agentes econômicos passa a ser aleatória e desordenada, na busca desesperada de salvar o que lhes parece em risco de se perder, terminando, a ação das autoridades com poder regulatório, por ser superada pela atuação de investidores e consumidores. São estes, de rigor, aqueles que determinam os humores da realidade econômica, nas crises e nos tempos de bonança. Assim, há um ponto de equilíbrio permanente, na economia de mercado, sempre que os investidores, os agentes produtivos (agricultura, indústria, comércio e serviços) e os agentes públicos atuam na perspectiva de um desenvolvimento projetado, detendo pleno conhecimento dos fatores sociais, políticos, econômicos, de consumo e emprego, e sendo capazes de mantê-los constantes mediante controle induzido, por meio de políticas creditícias e fiscais capazes de estimular desestimular setores queandar possam Av. ou Paulista, 1765 -13° provocar os desequilíbrios definidos como indesejáveis pelos TEL: +55 (11) 3266-6611 - São Paulo agentes econômicos e públicos em conjunto. Nesse contexto de adequadaRio política mercado,- Brasília a própria conjunção de de de Janeiro - Campinas agentes públicos e privados conformará o nível de gastos Belo Horizonte públicos e despesas burocráticas, sempre que estes possam
advogados associados
www.santossalles.com.br 2009 NOVEMBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 19
Para a proteção patrimonial dos bens da sociedade conjugal ou daqueles de propriedade particular da mulher, poderá o juiz determinar, liminarmente, a restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida; de proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e locação de propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial; suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao agressor; prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida. Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher são competentes para conhecer e julgar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher e, enquanto não estruturadas, as varas criminais acumularão as competências cível e criminal de causas decorrentes de infração à Lei 11.340/2006. Quebra de padrão cultural Ao instituir proteção à mulher contra a violência doméstica e familiar, em qualquer das modalidades que afrontem sua dignidade humana, não só decorrentes de agressões físicas, psicológicas ou patrimoniais, e, ao atribuir aos Juizados Especiais de Violência Doméstica e Familiar competência jurisdicional, em matéria cível e penal, para aplicar a Lei Maria da Penha, não só o corpo social, integrado por todos os membros da sociedade brasileira, como também e, principalmente, os operadores do Direito hão de adaptarse a esta nova realidade cultural para compreender que o respeito à mulher, aos seus direitos e às suas necessidades, frequentemente obnubilados por comportamentos preconceituosos, hão de ser restituídos. E que a concentração jurisdicional em um único órgão julgador, com competência cumulativa em matéria cível e penal, em nada diminui a jurisdição, como emanação da soberania do Estado. Sensibilização e conscientização O êxito e o sucesso para a aceitação da Lei Maria da Penha, não obstante seu caráter cogente, há de ser objeto de política pública que visa coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Nesse sentido, as medidas e práticas integrativas contempladas no artigo 8° e seus inciso I a IX devem servir de norte permanente de orientação. Realidade presente Passados 3 anos de sua promulgação, indaga-se: a Lei 11.340/2006 está sendo aplicada e cumprida? Ou, como se diz em colóquio informal, a Lei Maria da Penha “pegou”? Segundo dados da Secretaria de Políticas Especiais para as Mulheres (SPM), obtidos em pesquisa realizada no primeiro semestre de 2009, cerca de 78% da população brasileira conhece a Lei Maria da Penha. Levantamento efetuado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) indica que, até maio de 2009, haviam sido ajuizados mais de 150 mil processos com fundamento na Lei Maria da Penha. 20 JUSTIÇA & CIDADANIA | NOVEMBRO 2009
O site “Justilex”, em seu nº 73, informa que no Mato Grosso, desde a criação da Vara Especializada de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, a reincidência caiu de 60,8% para 1,48% e que o Governo Federal vai liberar R$ 37 milhões para auxiliar os Tribunais de Justiça a implantar e estruturar os juizados especiais. O Ministério da Justiça, por meio do Pronasci (Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania), instituiu a ação de efetivação da Lei Maria da Penha, que prevê, entre outras medidas, o apoio financeiro e institucional aos Tribunais de Justiça dos Estados para a criação de Juizados Especiais de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Com o aporte financeiro federal, já se encontravam instalados no Brasil, até o final do 1º semestre de 2008, 35 juizados e, com a previsão de instalação, em 2008, de mais 15 juizados, 11 Defensorias Públicas Estaduais, a reestruturação de 16 núcleos especializados de atendimento às mulheres vítimas de violência doméstica ou familiar e o incentivo aos Ministérios Públicos Estaduais para a vigilância e cumprimento da Lei Maria da Penha. Estes expressivos números resultam das políticas públicas e de iniciativas da sociedade em geral, no sentido de promover a conscientização de que a questão da violência doméstica e familiar contra a mulher é do interesse de toda a sociedade. O futuro da Lei Maria da Penha Os resultados já obtidos pela aplicação da Lei Maria da Penha sinalizam tratar-se de eficaz instrumento para a pacificação social e a elevação do ser humano. Veja-se o cancioneiro popular, como caixa de ressonância do cotidiano social, já consagrar: “O bicho pegou, não tem mais a banda De dar cesta básica, amor Vacilou, tá na tranca (...) Se você me der um tapa Da dona Maria da Penha Você não escapa”. (Trechos da letra da canção Maria da Penha, de Paulinho Resende e Evandro Lima, gravada pela cantora Alcione) A despeito de resistências naturais às inovações, notadamente em trato de mudança cultural, não só o Poder Público como, também, a sociedade em geral, estão receptivos à Lei Maria da Penha; pois, ao se promover a igualdade, não só formal, mas também a material e substancial da mulher, o que se está prestigiando e consagrando é a equalização de homens e mulheres, no mesmo nível de direitos e obrigações, com o que se está respeitando a dignidade humana. A edição da Lei Maria da Penha é uma resposta aos anseios de concretização dos princípios de “liberdade, igualdade e fraternidade”, decantados em todas as Constituições Modernas, cuja observância conduz à almejada paz e felicidade do ser humano e, por isso, há de ser saudada e festejada, como uma das grandes conquistas do Direito Brasileiro.
2009 NOVEMBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 21
PROPAGANDA ELEITORAL VEICULADA NA INTERNET Aspectos polêmicos entre a utilização de Rádio, TV e Internet/Ciberespaço
Antonio Carlos Martins Soares
Procurador Regional da República na 2ª Região Membro do Conselho Editorial
Jorge Roberto Jeronymo da Silva Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais
Reflexão preliminar sobre a natureza físico-eletromagnética da Internet e virtual binária do Ciberespaço omo disse Durkheim,1 “não se pode viver entre as coisas sem formular ideias a respeito delas,” por conseguinte, o homem “regula sua conduta de acordo com tais ideias”. Alinhado com esse pensamento, impõe-se admitir que não se pode legislar no âmbito abstrato do ciberespaço sem antes compreender sua natureza, sua origem fenomênica virtual, sua abrangência, suas possibilidades, ameaças e desafios. Faz-se necessário, pois, que se tenha a correta noção do que seja Internet e ciberespaço. Enquanto este virtualiza-se como estrutura binária, aquele é físico, estando dessa forma possibilitado a reger-se por normas reguladoras das entidades de comunicações dos respectivos governos. Todavia, no que concerne ao ciberespaço, trata-se de uma estrutura lógico-matemática; a contrario-sensu, a Internet abrange tanto construções físicas quanto eletromagnéticas e lógico-matemáticas.2 Discorrendo mais amiúde sobre a abordagem acima descrita e, antes de adentrarmos na análise crítica do Projeto de Lei Eleitoral para as Eleições/2010 — no que concerne à propaganda eleitoral via Internet —, tal desafio normativo obriga-nos à seguinte reflexão e, consequentemente, a algumas considerações preliminares: não há porque equiparar a Web
C
22 JUSTIÇA & CIDADANIA | NOVEMBRO 2009
com as emissoras de Rádio e Televisão. Estas são concessões do Poder Público, estando, portanto, adstritas ao ordenamento jurídico de cada Estado-nação, enquanto o ciberespaço não pertence a nenhuma soberania, forma de Estado ou regime de governo. A Internet, formada de backbones, roteadores e fibras óticas, pode, de certa forma, estar sob a regulamentação interfronteiras, mas não o Ciberespaço, ambiente etéreo e abstrato. Este é construído com base na lógica booleana, matematizada em algoritmos, tendo natureza de hipertexto estruturado em bytes, fluindo através da Internet, mas também de outras tecnologias, tais como o celular, os pagers, os radioamadores, os satélites, ‘com’ ou ‘sem’ qualquer modalidade de controle na transmissão dos pacotes informativos, dependendo da mídia utilizada e do ponto de disseminação da informação. Outrossim, não se pode confundir o poder de monitoramento da parte física da Internet com a virtual. Um agente de ‘má-fé’ pode estar posicionado em território fora do país onde se realiza o pleito eleitoral e enviar todo e qualquer modelo de propaganda lícita ou ilícita sem mesmo ser visto ou alcançado pela soberania do país interessado no resultado ou punição, salvo se houver algum tipo de Acordo ou Convenção Internacional3 entre ambos. Podem-se citar como exemplo os tipos de informações emanadas dos países sob regimes fechados a qualquer pensamento democrático em que, malgrado as proibições de cunho ditatorial,
seus respectivos governos continuam sendo invadidos pela mídia virtual/ciberespacial, portanto de alcance planetário. Ora, não tendo o Ciberespaço qualquer tipo de proprietário, é de bom alvitre que funcione como instrumento de aplicabilidade da mais lídima solidariedade universal, onde venha a prevalecer a lei ‘moral natural’ que conceda à criatura humana, independente da sua realidade socioeconômico-cultural, discernir o que é o bem e o mal à luz da reta razão, bem como da justiça e da verdade, acima de qualquer tipo de força. Em face de ser um ambiente transnacional, sem fronteiras, ad infinitum, cenário de atuação inter-nações, a humanidade encontra-se diante de uma criação originária da mente humana, e, por conseguinte, de propriedade global. Deste modo, embora não estejamos tratando do espaço interplanetário ou cósmico, mas genuinamente do Ciberespaço, dever-se-á ter em “mira o bem e o interesse de todos os países, qualquer que seja o estágio de seu desenvolvimento econômico e científico”.4 Assim sendo, ao sancionar a nova Lei Eleitoral, finalmente o Presidente da República vetou as restrições do Congresso Nacional no que concerne à propaganda eleitoral veiculada pela Internet/Ciberespaço. Por derradeiro, ao pautar a presente reflexão no contexto em foco, pensamos que andou bem o Chefe do Executivo, terminando de uma vez por todas com a grande polêmica que se aflorou no cenário político nacional, bem como em outros matizes
A propaganda eleitoral através da Internet Diz a lei no seu art. 57: Art. 57-B. A propaganda eleitoral na Internet poderá ser realizada nas seguintes formas: I – em sítio do candidato, com endereço eletrônico comunicado à Justiça Eleitoral e hospedado, direta ou indiretamente, em provedor de serviço de Internet estabelecido no País; II – em sítio do partido ou da coligação, com endereço eletrônico comunicado à Justiça Eleitoral e hospedado, direta ou indiretamente, em provedor de serviço de Internet estabelecido no País; III – por meio de mensagem eletrônica para endereços cadastrados gratuitamente pelo candidato, partido ou coligação; IV – por meio de blogs, redes sociais, sítios de mensagens instantâneas e assemelhados de candidatos, partidos ou coligações ou de iniciativa de qualquer pessoa natural. O art. 57-B regulamenta as possibilidades de divulgação de propaganda eleitoral na Internet. Como ponto de partida, é acertada a postura do legislador em determinar que os provedores dos sites do candidato e do partido ou coligação estejam estabelecidos no Brasil. Com vimos é a única possibilidade de se estabelecer controle sobre como origem e a autoria das Foto: Carlos Moises
Foto: Carlos Moises Procurador Regional da República na 2ª Região, Antonio Carlos Martins Soares
da sociedade, no que diz respeito à distinção entre Internet/ Ciberespaço e emissoras de Rádio e TV, cuja normatividade desta é ilogicamente aplicável, em sua plenitude, àquela em virtude de não ocorrer nexo entre o ‘espaço’ abarcado por ambas.
Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais, Jorge Roberto Jeronymo da Silva
2009 NOVEMBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 23
mensagens via Internet. A segunda regra fundamental é a vinculação dos sítios, blogs e redes sociais aos candidatos, partidos e coligações de modo a evitar a burla e permitir a identificação e posterior responsabilização dos infratores. Art. 57-C. Na Internet, é vedada a veiculação de qualquer tipo de propaganda eleitoral paga. § 1.º É vedada, ainda que gratuitamente, a veiculação de propaganda eleitoral na Internet, em sítios: I – de pessoas jurídicas, com ou sem fins lucrativos; II – oficiais ou hospedados por órgãos ou entidades da administração pública direta ou indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. § 2.º A violação do disposto neste artigo sujeita o responsável pela divulgação da propaganda e, quando comprovado seu prévio conhecimento, o beneficiário, à multa no valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) a R$ 30.000,00 (trinta mil reais). Esse dispositivo tem como destinatários as pessoas jurídicas, aí incluídas as empresas comerciais, associações civis de todos os tipos, Ongs e fundações, e sobretudo as entidades da administração pública nos três níveis de governo. O escopo da norma, também aqui, foi preservar o equilíbrio econômico e de oportunidades, de modo a evitar a promiscuidade gerada pela utilização de sites de órgãos e entidades ligados à Administração governamental. Além disso, proíbe a veiculação de qualquer propaganda eleitoral paga na Internet e, ainda que gratuita, em sítios de pessoa jurídica como também naqueles hospedados por órgãos ou entidades da administração pública direta ou indireta nas três esferas de governo. Art. 57-D. Os conteúdos próprios das empresas de comunicação social e dos provedores de Internet devem observar o disposto no artigo 45. § 1.º É facultada às empresas de comunicação social e aos provedores a veiculação na Internet de debates sobre eleições, observado o disposto no art. 46. § 2.º A violação do disposto neste artigo sujeitará o responsável pela divulgação da propaganda e, quando comprovado seu prévio conhecimento, o beneficiário, a multa no valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) a R$ 30.000,00 (trinta mil reais). A remissão ao art. 45 da Lei 9.504/97 volta a dar tratamento idêntico, confundindo Rádio, TV, Internet, e o que é pior, com o Ciberespaço, conceito este já abordado na fase preliminar da presente reflexão. Entretanto, no afã de melhor elucidar o presente texto normativo, retornaremos ao bojo de algumas considerações feitas anteriormente. Ora, não se pode pretender legislar no âmbito do Ciberespaço sem que haja uma precisa compreensão estratégica de sua natureza ad infinitum, em relação a outras formas de comunicações, à origem do seu fenômeno virtual, bem como seus pontos fortes e pontos fracos, oportunidades e ameaças. Torna-se preciso, então, que se tenha a correta noção do que seja a diferenciação entre Internet (físico) e Ciberespaço (virtual), pois não se pode olvidar que o Ciberespaço tem estrutura lógicomatemática e que, a contrario-sensu, a Internet abrange tanto 24 JUSTIÇA & CIDADANIA | NOVEMBRO 2009
estruturas físicas quanto as de ondas eletromagnéticas, embora envolva em seus canais comunicativos fluxos de informações encapsulados em pacotes binários (algoritmos), constatação esta que não ocorre no Ciberespaço, pois este é totalmente virtual; ou seja, seu ambiente é constantemente binário. Agora veja: admitamos, apenas para ilustrar, que algum site seja ofensivo a determinado candidato, sendo este tirado do Ciberespaço em face de uma decisão judicial nacional. Ora, alguém possuído de ‘má-fé’ e rebeldia contra a punição poderá manter a mesma mensagem, através de sites alhures e esconder-se no anonimato. Se, porventura, for detectado pelo IP (Internet Protocol), haverá uma série de desdobramentos, quais sejam: a localização do computador; quem realmente estava mantendo seu uso no momento do ato ilícito; estando o agente em outro país, isto dependerá de Convenções ou Acordos Internacionais; enfim, uma gama enorme de aspectos outros que foge a nossa reflexão, mas que serve para vislumbrar a tamanha complexidade que se instala no mundo jurídico quando o tema é o Ciberespaço. Voltando, pois, na ordem de raciocínio da lei em comento, já se pode concluir que estará fadado ao erro, quanto à natureza do fenômeno em tela, se ainda houver equiparação da Internet com outros meios comunicativos, os quais são tratados na legislação brasileira como de concessões públicas, tais como o Rádio e a Televisão, cujo âmbito e funcionamento diferem daquela e principalmente do Ciberespaço. Sem embargo, a reforma, portanto, andou bem ao liberar os portais na Web de seguirem as normas específicas de rádio e televisão para o certame entre candidatos aos cargos eletivos em 2010. Consequentemente, os sites poderão promover debates em áudio e vídeo sem a obrigatoriedade de convidar a totalidade de candidatos, bem como disponibilizar-lhes o mesmo espaço, a não ser que dois terços concordem com a composição de outras regras. Art. 57-E. São vedadas às pessoas relacionadas no art. 24 a utilização, doação ou cessão de cadastro eletrônico de seus clientes, em favor de candidatos, partidos ou coligações. § 1.º É proibida a venda de cadastro de endereços eletrônicos. § 2.º A violação do disposto neste artigo sujeita o responsável pela divulgação da propaganda e, quando comprovado seu prévio conhecimento, o beneficiário, à multa no valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) a R$ 30.000,00 (trinta mil reais). As pessoas indicadas no art. 24 são aquelas que por sua própria natureza e funções estão impedidas de fazer doações em dinheiro ou estimável em dinheiro, inclusive publicidade. A proibição da venda de cadastros de endereços eletrônicos tem cunho ético, pois visa proteger a intimidade dos eleitores. Art. 57-F. Aplicam-se ao provedor de conteúdo e de serviços multimídia que hospeda a divulgação da propaganda eleitoral de candidato, partido ou coligação, as penalidades previstas nesta Lei, se, em vinte e quatro horas após a notificação de decisão da Justiça Eleitoral
sobre a existência de propaganda irregular, não tomar providências para a cessação dessa divulgação. Esse é o ponto vulnerável da reforma, pois um agente de má-fé pode estar fora do país onde se realiza o pleito eleitoral e enviar todo tipo de propaganda, sem mesmo ser visto ou alcançado pela soberania do país interessado, salvo se houver algum tipo de Acordo ou Convenção Internacional (2) entre ambos. Vale lembrar que centenas de milhares de provedores não estão hospedados no país. Art. 57-G. As mensagens eletrônicas enviadas por candidato, partido ou coligação, por qualquer meio, deverão dispor de mecanismo que permita seu descadastramento pelo destinatário, obrigado o remetente a providenciá-lo no prazo de quarenta e oito horas. Parágrafo único – Mensagens eletrônicas enviadas após o término do prazo previsto no caput sujeitam os responsáveis ao pagamento de multa no valor de R$ 100,00 (cem reais), por mensagem. O artigo supra tem por escopo resguardar o eleitor do abuso propagandístico dos candidatos, fato quase impossível de se evitar. Entretanto, caberá aos eleitores insatisfeitos pela eventual massificação de mensagens eletrônicas indesejáveis advindas de candidatos, partidos ou coligações, acionar mecanismo capaz de bloqueá-las a fim de impedir a sua recepção. Art. 57-H. Sem prejuízo das demais sanções legais cabíveis, será punido, com multa de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) a R$ 30.000,00 (trinta mil reais), quem realizar propaganda eleitoral na Internet, atribuindo indevidamente sua autoria a terceiro, inclusive a candidato, partido ou coligação. Essa situação nos remete à critica ao art. 57-F, pois ali como aqui as dificuldades para identificar o verdadeiro autor da propaganda são imensas. Para não ser repetitivo, vale recordar que existem milhares de servidores não hospedados no país e, portanto, fora do alcance da jurisdição brasileira. Art. 57-I. A requerimento de candidato, partido ou coligação, observado o rito previsto no art. 96, a Justiça Eleitoral poderá determinar a suspensão, por vinte e quatro horas, do acesso a todo conteúdo informativo dos sítios da Internet que deixarem de cumprir as disposições desta Lei. § 1.º A cada reiteração de conduta, será duplicado o período de suspensão. § 2.º No período de suspensão a que se refere este artigo, a empresa informará, a todos os usuários que tentarem acessar seus serviços, que se encontra temporariamente inoperante por desobediência à legislação eleitoral. Sendo o texto acima muito genérico, entendo que caberá à Justiça Eleitoral julgar cada caso concreto, embora com muita cautela para não comprometer a livre manifestação do pensamento prevista na Constituição Federal. Art. 58. (…) § 3.º (…) IV – em propaganda eleitoral na Internet:
deferido o pedido, a divulgação da resposta dar-se-á no mesmo veículo, espaço, local, horário, página eletrônica, tamanho, caracteres e outros elementos de realce usados na ofensa, em até quarenta e oito horas após a entrega da mídia física com a resposta do ofendido; b) a resposta ficará disponível para acesso pelos usuários do serviço de Internet por tempo não inferior ao dobro em que esteve disponível a mensagem considerada ofensiva; c) os custos de veiculação da resposta correrão por conta do responsável pela propaganda original. Em decorrência da facilidade e da rapidez com que as mensagens são divulgadas pela Internet, ensejando, por isso mesmo, a sua utilização para fins vedados pela legislação eleitoral, cumpre observar que nem todas as demandas por ela geradas serão da competência da justiça eleitoral. Assim, a ofensa divulgada por pessoa ou entidade que não tenha participação nas eleições contra pessoas que também não o tenham, estará sujeita à justiça comum e o conflito daí gerado será dirimido com a aplicação da Lei de Imprensa ou do Código Penal. Diversamente, se a ofensa for divulgada por candidato, após o início da campanha eleitoral, contra pessoa que não seja candidata ou entidade que não participe das eleições. Nesta hipótese, a ofensa irrogada por candidato, partido ou coligação, mesmo contra quem não tenha participação direta nas eleições, se tiver conotação eleitoral, ensejará reclamação junto à justiça especializada. De igual modo, invertendo-se os polos da relação, se a ofensa ou informação inverídica for divulgada por pessoa que não ostente a condição de candidato, contra candidato, partido ou coligação, o conflito será da competência desta justiça se a mensagem tiver conteúdo eleitoral. Art. 58-A. Os pedidos de direito de resposta e as representações por propaganda eleitoral irregular em rádio, televisão e internet tramitarão preferencialmente em relação aos demais processos em curso na Justiça Eleitoral. A preocupação com a celeridade é própria da natureza e do dinamismo do acesso à Internet, exigindo do juiz eleitoral um esforço hercúleo de modo a permitir o tratamento preferencial para os pedidos de direito de resposta e as representações por propaganda eleitoral. Caso contrário, teremos um cenário fértil para a proliferação de ilegalidades. NOTAS 1 DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. 13. ed.. São Paulo: Nacional, 1987. 2 SILVA, Jorge Roberto Jeronymo. Direito digital e infoguerra: regulamentação do ciberespaço – realidade ou utopia? Revista da Escola Superior de Guerra/ ESG, nº 47 pp. 135-154, 2007. 3 Idem. Filosofia do direito e internet: óbices políticos, ideológicos e jurídicos a regulamentação do ciberespaço. Adcoas -Boletim Doutrina – nº 3, pp. 77-80, de março de 2001. 4 Tratado sobre Princípios Reguladores das Atividades dos Estados na Exploração e Uso do Espaço Cósmico, Inclusive a Lua e demais Corpos Celestes, (art. 1º) aprovado pela Assembleia Geral da ONU, em 19 de dezembro de 1966, aberto à assinatura em 27 de janeiro de 1967, em vigor desde 10 de outubro de 1967. Possui 93 ratificações e 27 assinaturas. Este Tratado foi ratificado pelo Brasil.
2009 NOVEMBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 25
ATOS DO PODER CONCEDENTE: INTERFERÊNCIAS E ALTERAÇÃO DO REGRAMENTO EM JUÍZO Flávio de Araújo Willeman
Procurador do Estado do Rio de Janeiro
O
controle judicial dos atos da administração pública é um tema atual, apaixonante e está na ordem do dia dos Tribunais brasileiros, sobretudo os superiores: os limites, o nível, a eficiência desse controle e a interferência com o princípio da separação de poderes são temas ainda a serem desvendados e pacificados. É por isso que abordarei o tema objeto desta palestra em três partes. No primeiro momento, buscarei analisar as teorias que possibilitam o controle judicial das condutas administrativas; no segundo, buscarei analisar o regime atual de concessões públicas no direito brasileiro, máxime após a revisão da forma de gestão administrativa, ocorrida na década de 90; e, por fim, procurarei concatenar essas duas ideias à luz de alguns casos concretos. Conforme conhecimento convencional, as revoluções do século XVIII mudaram essencialmente a forma de Estado, sua figura no mundo. Com as revoluções e com os estudos daquela época, tivemos a ascensão de teorias que retiraram das mãos de uma só pessoa o exercício de todos os poderes ou funções inerentes ao Estado. A partir daquelas revoluções, sobretudo da Revolução Francesa, ocorreu a separação das funções inerentes ao Estado em centros de competências distintos, que exercem exclusivamente uma função e, atipicamente, outras funções. Tivemos as funções de administrar, de julgar e de legislar separadas, exercidas em centros de poderes ou de competências distintos. Por conseguinte, idealizou-se um sistema de autocontrole ou de autocontenção do exercício desses poderes, uns pelos outros. Como consequência natural da separação 26 JUSTIÇA & CIDADANIA | NOVEMBRO 2009
Foto: Arquivo Pessoal
Palestra proferida no V Seminário – Questões Jurídicas Relevantes no Transporte Coletivo, realizado pela Emerj
“O problema, a meu sentir, não está em retirar do Poder Judiciário a possibilidade de revisão de algumas condutas administrativas. O grande desafio é estabelecer limites e parâmetros para que o Poder Judiciário analise toda e qualquer conduta administrativa. Por isso é que temos sustentado que essa ideia de juridicidade constitucional vai exigir do administrador público e, também dos magistrados, certa prudência quando estiverem a analisar conceitos jurídicos indeterminados, conceitos políticos ou técnicos.”
de funções, surgiu a teoria dos freios e contrapesos, por meio da qual um ente ou um poder controla o outro no exato limite estabelecido pelas normas constitucionais. Também com a teoria da separação de poderes foi aperfeiçoada a noção de Estado de Direito, que nos permite falar, em linhas gerais, em dever do Estado de se submeter às regras que ele próprio edita. Dentro dessa ideia surgiram no mundo duas grandes teorias para explicar o controle judicial da atividade administrativa. Tínhamos, e temos em algumas nações, um sistema de controle (francês) no qual coexistiam, e coexistem, um controle administrativo dentro da própria administração pública, ou seja, um sistema de contencioso administrativo, cujas decisões são impossíveis, em regra, de serem revistas pelo Poder Judiciário; e um sistema de controle (inglês) que conhecemos como sistema de jurisdição una ou de inafastabilidade do controle jurisdicional, incorporado pelo direito brasileiro e pela atual Constituição federal, em especial no artigo 5º, inciso XXXV, por meio do qual nenhuma lesão ou ameaça de lesão pode ser impedida de apreciação pelo Poder Judiciário. Assim, não há como falar-se, ao menos em tese, de impedimento de o Poder Judiciário exercer qualquer controle sobre atividades administrativas. Nas relações jurídicas privadas esta verdade é ainda mais contundente, na medida em que o princípio da jurisdição una ou da inafastabilidade do controle jurisdicional encontra apenas um óbice na CF/88. Há apenas uma exceção à aplicação desse princípio, e está ela contida no artigo 217, parágrafo 1º, quando a Carta Magna cuidou de regular a justiça desportiva. Quer-se
dizer que, nas demandas decorrentes de assuntos desportivos, o Poder Judiciário só pode delas conhecer após o exaurimento da instância administrativa. Fora dessa hipótese, no plano privado, toda e qualquer lesão ou ameaça de lesão pode e deve ser levada ao conhecimento do Poder Judiciário. No que diz respeito às condutas administrativas, mesmo com a implantação do Estado de Direito e com a separação de poderes, sempre se fez, em doutrina, a distinção entre conduta administrativa vinculada e conduta administrativa discricionária, para chegar-se à conclusão de que a conduta administrativa vinculada, como expressão maior do princípio da legalidade, era plenamente passível de controle pelo Poder Judiciário, uma vez que todos os elementos do ato administrativo estão expressamente contidos na norma, e que, por isso, não há espaço de livre escolha pelo administrador público. A ideia de conduta discricionária, oriunda da noção de estado de polícia, de um modelo de estado unitário, impedia que o Poder Judiciário reapreciasse mérito de conduta administrativa. O conceito de discricionariedade é, hoje, conhecido por todos; mas, em um primeiro momento, tinha uma faceta negativa. Seria deixado à discricionariedade do administrador tudo aquilo que não estivesse expressamente previsto na lei. Com o surgimento do positivismo jurídico, a partir de Kelsen, a discricionariedade passou a também estar inserida na lei. Chama-se de discricionariedade positiva, ou seja, alguns elementos da conduta administrativa estão à liberdade de atuação do administrador público, mas outros (elementos vinculados) devem também estar expressamente previstos em lei. Portanto, sempre se sustentou, com as doutrinas 2009 NOVEMBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 27
tradicionais do direito administrativo brasileiro, que este mérito, esta valoração, esta escolha entre duas ou mais opções válidas e legítimas por parte do administrador estava impossibilitada de revisão pelo Poder Judiciário, porque, senão, violado estaria o princípio da separação de poderes. Tranquilo era o entendimento por meio do qual o Poder Judiciário não podia controlar o mérito administrativo, sob pena de vir a substituir o Poder Executivo em sua valoração política no atingimento do interesse público. Essa é uma verdade que ainda existe nos Tribunais brasileiros e, em especial, nos Tribunais Superiores. Há pouco, se falava em ascensão de princípios; hoje, fala-se em Estado pós-moderno. Todavia, já se entende ou já se busca superar essa dicotomia entre ato administrativo vinculado e ato administrativo discricionário. Hoje, a moderna doutrina do direito administrativo e constitucional busca idealizar uma teoria que estuda a conduta administrativa à luz do texto constitucional. Por isso é que se fala em vinculação à juridicidade constitucional, tão bem estudada por Gustavo Binenbojm. Permitam-me dizer que não se deve, segundo parte da doutrina, hoje em dia, analisar a conduta administrativa sob 28 JUSTIÇA & CIDADANIA | NOVEMBRO 2009
os enfoques discricionário e vinculado. Fala-se em vinculação do administrador à juridicidade constitucional, que é expressa em normas/regras, “dever ser”, ou em princípios, de modo que não há como se defender conduta administrativa totalmente discricionária e conduta administrativa imune de apreciação do Poder Judiciário. Toda e qualquer conduta administrativa deve e pode sofrer controle judicial. O problema, a meu sentir, não está em retirar do Poder Judiciário a possibilidade de revisão de algumas condutas administrativas. O grande desafio é estabelecer limites e parâmetros para que o Poder Judiciário analise toda e qualquer conduta administrativa. Por isso é que temos sustentado que essa ideia de juridicidade constitucional vai exigir do administrador público e, também dos magistrados, certa prudência quando estiverem a analisar conceitos jurídicos indeterminados, conceitos políticos ou técnicos. Por isso é que pensamos, para este seminário, estabelecer alguns parâmetros que podem, modestamente, auxiliar os julgadores quando de suas decisões, que, em última análise, conforme os casos adiante referidos, estão nos limites de uma possível violação da teoria da separação de poderes.
Em nosso sentir, quando o Poder Judiciário estiver a interpretar uma conduta administrativa que traga grau de restrição a direitos fundamentais, o controle será por demais amplo. Quando estiver analisando matéria técnica ou política, acredito que o Judiciário, fora as hipóteses de ilegalidade, desvio de poder e/ou finalidade, deve ter certa deferência às escolhas do administrador público. Transportando a teoria acima referida para a vida real, necessário ilustrar com um caso concreto. Há pouco tempo o Prefeito do Município do Rio de Janeiro anunciou, em jornal de grande circulação, que pretende regular o transporte alternativo de passageiros de modo a não mais permitir que seja realizado por vans; pretende o município que o transporte alternativo seja realizado por meio de micro-ônibus. Creio que esta é uma opção intimamente ligada a uma escolha política de gestão do transporte alternativo de passageiros por um ente federado, e que, por isso, deve o Poder judiciário, ao menos em tese, ter certa deferência a esta escolha, não permitindo que tal seja substituída pela intuição e/ou entendimento pessoal e/ ou político do Magistrado. Acredito que, se levada adiante a ideia pelo Prefeito, haverá embates jurídicos frente ao Poder Judiciário. Saliento, porém, que não é recomendável que o Judiciário (repito: salvo hipótese de ilegalidade e/ou desvio de poder) adentre na discussão se o interesse público vai ser melhor atendido com uma van ou com um micro-ônibus. A escolha de ter um transporte alternativo foi feita. Se esse serviço será prestado da melhor forma por intermédio de uma van ou por um micro-ônibus, acredito que é uma escolha política razoável que recomenda prudência e acatamento por parte do Poder Judiciário. Outro exemplo merece ser citado para aplicarmos a teoria antes exposta. Há poucos dias foi divulgada uma notícia em um jornal de grande circulação no país, dando conta de pretensão do Prefeito do Rio de Janeiro de trazer para a nossa cidade a corrida de Fórmula Indy, que seria realizada no Aterro do Flamengo. Lembro-me de ter lido, no mesmo jornal, uma entrevista de um ilustre membro do Ministério Público, no mesmo dia em que isso foi anunciado, manifestando-se de forma contrária à pretensão do Prefeito; teria sido divulgado que o Promotor de Justiça estava receoso de a prova de Fórmula Indy causar danos ao meio ambiente. Sem a pretensão de criticar o Ministério Público e/ou um de seus ilustres membros — que tanto têm — ambos
— feito pela democracia e pelos direitos fundamentais neste Estado. Há que se ter prudência com as escolhas trazidas pelo Poder Público, sendo recomendável discutir eventuais prejuízos ao interesse público apenas nos casos concretos, após os necessários estudos técnicos. Isto porque, declarações de órgãos e/ou entidades de controle mal postas na mídia escrita e falada podem enfraquecer ou mesmo comprometer projetos de governo legais e legítimos, e que podem trazer investimentos para a cidade. Não é possível acreditar que todas as condutas administrativas são legais e legítimas; todavia, também não é possível presumir que todas as condutas administrativas são ilegais, ilegítimas e violadoras dos direitos fundamentais e coletivos. No caso ora discutido, não pode o órgão de controle olvidar que há corrida de Fórmula I em Mônaco, corrida de Fórmula Indy em Long Beach, tudo em circuitos de rua, e ninguém fala e/ou argumenta que há dano ao meio ambiente. Recomenda-se, assim, esperar os estudos técnicos que devem ser realizados, para, aí sim, suscitar controle da atividade administrativa sob o prisma da juridicidade constitucional. Assim, a partir desta nova visão de controle da administração pública, não mais guiada em vinculação estrita ou em discricionariedade, me permito concluir parcialmente afirmando que toda e qualquer conduta administrativa será possível ou passível de controle pelo Poder Judiciário. Aproveitando esses conceitos, essa ideia maior de juridicidade constitucional, é necessário que qualquer conduta administrativa atenda não só ao que diz a norma/regra, mas também aos princípios constitucionais, sobretudo à legitimidade, sob pena de ilegalidade e/ou ilegitimidade. Passo, assim, a um segundo momento da minha exposição, que consistirá no estudo da visão atual do serviço público e das concessões. Sabemos, todos, que o Estado mudou — e que com ele mudou a forma de gestão administrativa — a partir da quebra de alguns monopólios, e, por que não dizer, da implantação de um Estado neoliberal e também da exigência constitucional de eficiência na prestação dos serviços públicos. A eficiência na prestação dos serviços públicos é um dever do Estado, quer seja a atividade prestada diretamente, quer seja executada por particulares em colaboração. Diante deste dever e da ausência de recursos públicos, não há que se esconder que o Estado optou por delegar a prestação direta dos serviços para particulares (privatizando empresas estatais e descentralizando a execução de serviços), guardando para si a obrigação de regulação. Sabemos, também, que nenhum parceiro privado investe em segmento público se não tiver um mínimo de segurança jurídica para garantir as “regras do jogo” e, assim, o retorno — com lucro — do capital investido. Não há hipótese de investimento em saúde, educação, transporte, saneamento, petróleo, energia e telecomunicações se não houver segurança jurídica. O Estado tem obrigação de prestar essas atividades de forma eficiente, mas sabemos que os recursos são poucos. A opção que o Estado brasileiro fez foi a de implantar um Estado 2009 NOVEMBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 29
A primeira preocupação estatal quando se decide descentralizar um serviço público, penso, deve ser garantia à igualdade de tratamento entre todos os possíveis parceiros privados, o que é, em tese, garantido com o procedimento licitatório. É preciso dizer que uma das primeiras vezes que o Poder Judiciário brasileiro cuidou do tema do controle judicial de atos discricionários ocorreu em uma concessão de serviço de transporte de pessoas.
regulatório, por meio do qual se busca a execução direta desses serviços na iniciativa privada, deixando para o Poder Público a função regulatória (normatização, execução e julgamento) que contenha autonomia, independência e estabilidade técnica e econômica para esses investidores. Neste cenário surgiram as agências reguladoras, com papel eminentemente técnico, e, dentro desse segmento, desse cenário de atuação técnica, vêm se desenvolvendo as concessões de serviços públicos. Pessoas e empresas privadas prestando serviços públicos com fins lucrativos, e o Estado reservando para si o poder regulatório; dentro dele está a competência normativa. Dentro da atribuição regulatória do Estado temos algumas atividades passíveis de controle jurisdicional. Vejamos duas hipóteses concretas: uma ligada à licitação e outra à regulação normativa frente ao Código do Consumidor (CDC). A primeira preocupação estatal quando se decide descentralizar um serviço público, penso, deve ser garantia à igualdade de tratamento entre todos os possíveis parceiros privados, o que é, em tese, garantido com o procedimento licitatório. É preciso dizer que uma das primeiras vezes que o Poder Judiciário brasileiro cuidou do tema do controle judicial de atos discricionários ocorreu em uma concessão de serviço de transporte de pessoas. O então Desembargador Seabra Fagundes, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte, quando do julgamento da Apelação Cível nº 1.422, declarou a nulidade de delegação de transporte de pessoas, 30 JUSTIÇA & CIDADANIA | NOVEMBRO 2009
sob o argumento de falha no processo de licitação, uma vez que havia manifestação administrativa — que invocava a discricionariedade para a gestão do serviço — que privilegiava uma empresa de transporte em decorrência de outras empresas que estavam participando de uma concorrência pública. Então, o primeiro exemplo de controle judicial do regramento do serviço de transporte surgiu dentro de uma conduta discricionária e da pena do Professor Seabra Fagundes, que, depois, na década de 40, veio a editar o seu livro magnífico sobre controle judicial da administração pública (atualizado pelo Procurador do Estado Gustavo Binenbojm). Hoje há uma dimensão muito maior do que vem a ser esse controle judicial de atos normativos do Poder Público nas áreas concedidas, pondo às concessionárias um ônus que não está previsto no contrato de concessão ou no regramento estabelecido pelo concedente. Passando ao segundo exemplo, penso que a pergunta a ser respondida, é a seguinte: pode o Poder Judiciário controlar atividades concedidas, mesmo que corretas à luz das normas regulatórias, mas em possível desacordo com regras protetivas do CDC? Aqueles que entendem que o direito do consumidor prevalece sobre essas regras regulatórias ou sobre a modelagem do serviço concedido vão sustentar que sim, porque, independentemente do que foi estabelecido entre concedente e concessionário no momento da descentralização do serviço, é direito do usuário ter esse serviço adequado,
à luz das regras do CDC. Por outro lado, sob o ponto de vista do concedente e do concessionário, não é razoável, de acordo com o princípio da universalidade da prestação dos serviços públicos (cuja máxima efetividade é ditada pelo ente regulador, nos termos e na medida dos investimentos necessários a serem aportados pelo parceiro privado), impor ônus que gera custo ao concessionário, porquanto isso influenciará no desequilíbrio econômico e financeiro do contrato de concessão ou de permissão (sobretudo se não estiver no projeto técnico de universalização da execução do serviço). Em última análise, poderá esse custo cair sobre os ombros do usuário ou do consumidor desse serviço, fato que pode vulnerar outro princípio que regula os serviços públicos, qual seja, o princípio da modicidade tarifária. Haverá, assim, de ser ponderada a necessidade de universalização do serviço e de pagamento de tarifas módicas, equação esta que não se resolve politicamente ou com vontades pessoais, mas sim com dados técnicos. Desta forma, deve haver, a meu sentir, certa deferência por parte do Poder Judiciário às escolhas e aos regramentos técnicos (desde que legítimos, legais e razoáveis) provenientes do poder concedente ou das entidades regulatórias, em detrimento de alguns regramentos genéricos do Código do Consumidor, vg. Há ainda que se discutir, porquanto penso ser importante para este seminário, tema que tem gerado profunda controvérsia jurídica, qual seja, a possibilidade de prorrogação de permissões e de concessões de serviços públicos sem prévio procedimento licitatório, ao argumento da necessidade de amortização de investimentos realizados pelos atuais prestadores do serviço. Pode o Poder Judiciário exercer o controle sobre estes atos? É um tema extremamente difícil, técnico, e que, apesar de poder bater às portas do Judiciário (se é que já não bateu), já está submetido à orientação do Supremo Tribunal Federal. Permito-me informar que há uma Ação Direta de Inconstitucionalidade ajuizada pelo Procurador Geral da República (ADIn nº 4.058), por meio da qual se discute a constitucionalidade do artigo 58 da Lei Federal nº 11.445/07, que ao regular o marco do saneamento básico no Brasil, fez incluir um dispositivo legal que, alterando o artigo 42 da Lei Federal nº 8.987/95 (Lei de Concessões), permitiu a prorrogação de todas as concessões de serviços públicos que tenham a necessidade de amortização de investimentos, sem prévio procedimento licitatório. sem querer desanimar as concessionárias de serviços público, acredito que, se o STF mantiver o entendimento que vem tendo a respeito de temas similares, esse artigo deverá ser considerado inconstitucional, exatamente por violar os princípios da impessoalidade e legalidade, exatamente por se tratar de delegação de serviço público sem prévio procedimento licitatório. O precedente a que me referi do STF é o Mandado de Segurança nº 27.516, em que se questionava um decreto do Governo Federal que determinou a realização de licitação de 98% das linhas de ônibus interestaduais e internacionais. O Supremo Tribunal Federal entendeu, quando julgou esse
Mandado de Segurança impetrado contra o Presidente da República, que a licitação, após a Constituição de 1988, é obrigatória e não pode ser afastada com o argumento de que investimentos precisam ser amortizados com a prorrogação das delegações anteriormente realizadas sem a seleção impessoal do parceiro privado. Digo eu: se investimentos foram feitos e se há necessidade de amortização, que se indenize o atual prestador do serviço; que se coloque o custo a ser ressarcido no edital da licitação futura, cujo valor da outorga servirá para indenizar os referidos investimentos. O que não é possível, em minha modesta opinião, é eternizar prestadores de serviços públicos, vez que sempre haverá necessidade de realização de investimentos para a prestação eficiente dos serviços. Analisados os exemplos antes referidos, penso que é chegado o momento de concluir esta palestra. E termino afirmando que não mais acredito na verdade outrora contada de que o Poder Judiciário não pode controlar ato administrativo discricionário, mas tão-só os vinculados, porque se assim não fosse violado estaria o princípio da separação de poderes. O Professor Paulo Bonavides (no livro “Do Estado Liberal ao Estado Social”), ao analisar o princípio da separação de poderes, afirma ser impossível a sua interpretação tal qual foi ela idealizada pela Revolução Francesa; afirma o ilustre professor que aquela interpretação deu a sua contribuição para a história, mas, diante da mutabilidade social hoje vivenciada, deve ser arquivada no Museu da História. Deve-se interpretar o princípio da separação de poderes, atualmente, sob as novas luzes de uma Constituição Democrática e dirigente, que, a meu sentir, não permite que um ato administrativo (vinculado ou discricionário) seja, aprioristicamente, imune ao controle jurisdicional. Em minha modesta opinião, o Judiciário deve controlar os atos administrativos, mas deve ter deferência às opções da administração pública quando esses atos administrativos estiverem baseados em escolhas técnicas e/ou políticas razoáveis, sobretudo na implementação de um conceito jurídico aberto e/ou indeterminado. Não é que o Judiciário não possa analisar uma conduta técnica do poder concedente ou de uma agência reguladora, mas creio que esse controle deva ser eminentemente negativo. Penso que não é possível ao Poder Judiciário substituir o técnico do Poder Executivo pelo perito judicial, sobretudo em matérias específicas: petróleo, gás, telecomunicações, transporte. Acredito, porém, conforme as conclusões da professora espanhola Eva Desdentado Daroca, que esse controle tem que ser negativo, devolvendo para o poder concedente ou para a entidade regulatória competente o dever de editar outro ato regulatório técnico, que não aquele que já foi rejeitado pelo Poder Judiciário por não atender ao interesse público. Todavia, quando se estiver a tratar de escolhas políticas para regulação do serviço, como o exemplo que dei do transporte alternativo sendo gerido por micro-ônibus, e não por van, penso que esse núcleo da conduta administrativa não deve ser reapreciado pelo Poder Judiciário, sob pena de se estar transferindo para o Poder Judiciário uma função eminentemente administrativa, o que, a meu sentir, viola o 2009 NOVEMBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 31
A escolha é a alma gêmea do destino Luiz Zveiter
Presidente do TJRJ
Discurso proferido por ocasião da aposentadoria do Desembargador Sergio Cavalieri Filho
A saída de Vossa Excelência de nosso convívio, por imposição legal, deixará um vazio quase impreenchível, não fosse suas realizações e decisões que marcarão pela eternidade sua passagem por este Tribunal.
32 JUSTIÇA & CIDADANIA | NOVEMBRO 2009
“
A escolha é a alma gêmea do destino. Há muito tempo, uma escolha difícil se descortinou a frente de um de nossos mais eminentes colegas: prosseguir em sua liturgia divina de pregar a palavra de Deus e iluminar o caminho de seus semelhantes ou ingressar na Magistratura com a finalidade de distribuir a Justiça e buscar a pacificação entre os homens. Certamente foi a decisão mais difícil. Sendo fruto de uma escolha, como sempre, uma parte acaba sofrendo. Mas, Deus, soberano, atuou em nosso benefício e o guiou para essa empreitada de pura dedicação e amor. Poucos sabem dos problemas enfrentados no início de sua trajetória. Talvez a circunstância de estudar em pé — para não ser derrotado pelo cansaço — tenha talhado todo o amor pelo viés acadêmico e a paixão pelos estudos e pela arte de ensinar. As dificuldades vividas e as aflições pela escolha inicial não lhe retiraram o amor que trazia em seu coração pelos homens e seus conflitos, tornando-o obcecado pela causa pública. Acreditando que através de seu próprio esforço e dedicação constante pudesse contribuir ativamente para a transformação que sonhava fez de sua toga o instrumento de seu ideal assumido de tornar a Magistratura mais forte e compromissada com a sua verdadeira missão de pacificação social. E em grande demonstração que o destino não é uma questão de sorte, mas uma questão de escolha, escreveu o seu
Foto: Rosane Naylor
Foto: Arquivo JC
Desembargador Luiz Zveiter, Presidente do TJRJ, na despedida do Desembargador Sergio Cavalieri Filho
ao promover uma revolução nos paradigmas que existiam, em um primeiro momento dando suporte aos que administravam e, em outro, exercendo a própria administração fazendo com que o Judiciário nacional passasse a repensar sua estrutura organizacional tendo como parâmetro as modificações implementadas em nosso Tribunal. Não foi fácil. Noites mal dormidas. Abandono por vezes da família, dos amigos e do lazer reconfortante. Mas sem esmorecer seguiu em frente. E porque não dizer dos covardes ataques perpetrados contra si? Vivi um pouco ao seu lado neste momento e consegui entender o motivo de tão despropositadas atitudes em uma frase de Jonathan Swift segundo o qual: “Quando um verdadeiro gênio aparece no mundo, é imediatamente reconhecido por este sinal: os medíocres se unem contra ele”. Mesmo podendo dar o troco na mesma moeda da ingratidão recebida, aplicava como bálsamo a aliviar sua dor o provérbio indiano de que: “Só o ignorante se zanga; o sábio compreende.” O Senador Jefferson Peres afirmou que nada incomoda mais um canalha do que um homem de bem e Vossa Excelência, meu amigo Desembargador Sérgio Cavalieri, é um homem de bem. A saída de Vossa Excelência de nosso convívio, por imposição legal, deixará um vazio quase impreenchível, não fosse suas realizações e decisões que marcarão pela eternidade sua passagem por este Tribunal.
Conheci Vossa Excelência quando entrei no Tribunal de Alçada e frente a uma indagação que me formulou fui consultar quem era Cavalieri a meu pai e ele resumiu dizendo: “Este é um homem digno e honrado”. O exemplo de Vossa Excelência continuará, não tenho dúvida, a servir de norte para as próximas gerações de juízes que devem acreditar que eles são responsáveis por suas vidas e que mesmo todos sendo igual aos olhos de Deus, a bondade, a sabedoria, o talento e as virtudes serão os únicos atributos que os distinguirá. Sob sua condução e orientação, sempre soubemos seguir as escolhas do coração, com coragem e determinação. O medo foi circunstância que jamais habitou suas decisões, enfrentado com altivez e dignidade todas as adversidades ínsitas aos insatisfeitos. Julgar, como sempre nos ensinou, é antes de tudo um ato de amor e de coragem. Não posso deixar de realçar o significado de sua amizade. Cecília Meireles afirmou que “há pessoas que nos falam e nem as escutamos; há pessoas que nos ferem e nem cicatrizes deixam. Mas há pessoas que, simplesmente, aparecem em nossa vida e que marcam para sempre”. Vossa Excelência se inclui entre estas últimas. Amigo leal e verdadeiro e que demonstrou ter caráter ao preservar intimidades confidenciadas e vividas até dos seus algozes, que fizeram com que crescesse espiritualmente. 2009 NOVEMBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 33
Foto: Arquivo JC 34 JUSTIÇA & CIDADANIA | NOVEMBRO 2009
Segundo Beauchêne: “Se querem saber o que os homens pensam, não ouçam o que dizem, observem o que fazem”, e foi isto exatamente o que fiz desde a época em que assumi como Corregedor, passando a direcionar minhas ações administrativas na valorização dos magistrados e servidores e na defesa intransigente de seus direitos, e no lado pessoal rezando para aqueles que queriam meu mal. Amigo não é aquele que diz: Vá em frente! Mas aquele que diz: Vou contigo. Saiba, amigo Cavalieri, do privilégio que todos nós magistrados do Estado do Rio de Janeiro tivemos em relação a sua companhia. Durante anos a seu lado enriquecemos nossas vidas. Cada um — tenho certeza — levará consigo a saudade do seu convívio diário. Permita-me rememorar uma lenda Judaica sobre o verdadeiro significado da amizade. Não são nas palavras, nos sorrisos ou nas confraternizações que destacamos os verdadeiros amigos. Escolhi a lenda do DUPLO SILÊNCIO em razão de sua personalidade: Dois amigos cultivavam o mesmo campo de trigo, trabalhando arduamente a terra com amor e dedicação, numa luta estafante, às vezes inglória, à espera de um resultado compensador. Passam-se anos de pouco ou nenhum retorno. Até que um dia, chegou a grande colheita. Perfeita, abundante, magnífica, satisfazendo os dois agricultores que a repartiram igualmente, eufóricos. Cada um seguiu o seu rumo. À noite, já no leito, cansado da brava lida daqueles últimos dias, um deles pensou : “Eu sou casado, tenho filhos fortes e bons, uma companheira fiel e cúmplice. Eles me ajudarão no fim da minha vida. O meu amigo é sozinho, não se casou, nunca terá um braço forte a apoiá-lo. Com certeza, vai precisar muito mais do dinheiro da colheita do que eu”. Levantou-se silencioso para não acordar ninguém, colocou metade dos sacos de trigo recolhidos na carroça e saiu. Ao mesmo tempo, em sua casa, o outro não conciliava o sono, questionando:
“Para que preciso de tanto dinheiro se não tenho ninguém para sustentar, já estou idoso para ter filhos e não penso mais em me casar. As minhas necessidades são muito menores do que as do meu sócio, com uma família numerosa para manter”. Não teve dúvidas, pulou da cama, encheu a sua carroça com a metade do produto da boa terra e saiu pela madrugada fria, dirigindo-se à casa do outro. O entusiasmo era tanto que não dava para esperar o amanhecer. Na estrada escura e nebulosa daquela noite de inverno, os dois amigos encontraram-se frente a frente. Olharam-se espantados. Mas não foram necessárias as palavras para que entendessem a mútua intenção. Amigo é aquele que no seu silêncio escuta o silêncio do outro. A vida sempre começa agora... Numa construção de passado que só termina quando a caixa do futuro se acaba. Hoje testemunhamos a correção de sua escolha. A Magistratura brasileira agradece a dedicação e a honradez de todos os seus milhares de julgamentos e ensinamentos. Perante Deus, sua família, e de todos os homens tenha a absoluta certeza do dever cumprido. Não deixe de sonhar. Fazer um céu com pouco a gente faz; Basta uma estrela, Uma estrela e nada mais. Pra ter nas mãos o mundo, Basta uma ilusão. Um grão de areia É o mundo em nossa mão. Sonhar é dar à vida nova cor; Dar gosto bom às lágrimas de dor. O sol pode apagar, o mar perder a voz, Mas nunca morre um sonho bom dentro de nós. (Mário Lago) Obrigado por tudo e seja muito feliz!”
“Hoje não tenho condições de falar. A gratidão é a memória do coração, e eu tenho coração. Saio daqui muito feliz em ver que o futuro desta casa será ainda mais brilhante do que foi até hoje na direção de Vossa Excelência. Para vocês todos o meu muito obrigado por tudo aquilo que vocês representaram na minha vida. Eu creio que a maioria dos desembargadores que aqui estão recebeu meu voto. Durante muitos anos estive no Órgão Especial , votei em quase todos. Nunca me arrependi" Sergio Cavalieri Filho, Desembargador do TJRJ e Membro do Conselho Editorial
2009 NOVEMBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 35
Inovações penais Lei 12.015/2009
Guaraci Vianna
Desembargador do TJRJ
A
pós muitas décadas de vigência, vem o Código Penal sendo substancialmente alterado, nos recentes anos, por leis setoriais, como a Lei 11.106/05, que baniu o crime de rapto e de sedução do nosso Sistema Jurídico, dentre outras modificações. Anuncia-se agora a vigência da Lei 12.015/09, que alterou profundamente o Título VI da Parte Geral do referido Código (crime contra os costumes). De fato, o texto revogado apresentava muitas incongruências no que se refere aos costumes sexuais modernos, mas as novas disposições, por certo, trarão muitas controvérsias que serão debatidas no meio jurídico. A respeito dessas novas disposições penais é que trataremos neste pequeno e superficial estudo, sem adentrar nas discussões jurídicas e sociais que o tema merece. A partir de agora, pela Lei 12.015/2009, a apuração dos crimes praticados contra a dignidade sexual não depende mais da iniciativa da vítima ou de seus responsáveis. A ação penal, que nesses casos tinha um caráter privado, passou a ser pública. Ou seja, antes da nova Lei, se houvesse um crime contra menor de 14 anos de idade e não tivesse havido lesões corporais, as autoridades que tomassem conhecimento do fato não podiam agir, pois o direito de ação pertencia à família da vítima; agora passa a ser da competência do Ministério Público.
36 JUSTIÇA & CIDADANIA | NOVEMBRO 2009
Antes, sem a manifestação da vítima ou de seu responsável, o delegado, por exemplo, estava impedido de instaurar o inquérito para apurar o fato, e o Promotor de Justiça, por sua vez, não tinha como oferecer a denúncia em Juízo. Agora a Ação Penal é Pública e Condicionada à representação, salvo se a vítima for menor de 18 anos, hipótese em que a Ação será Pública Incondicionada (artigo 225 do CP). Outro avanço foi a fusão dos crimes de estupro e o de atentado violento ao pudor numa figura única, sem distinguir o sexo da vítima. Agora o homem também pode ser sujeito passivo do crime de estupro. Destarte, constranger alguém mediante violência ou grave ameaça a ter conjunção carnal, praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso é crime de estupro, independentemente de ser a vítima homem ou mulher. Outro ponto muito importante e essencial é o tipo específico chamado de estupro de vulnerável, que substituiu os crimes sexuais praticados com presunção de violência. O estupro de vulnerável é a prática de relações sexuais ou ato libidinoso com menor de 14 anos ou com pessoa que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência. E a pena é de 8 a 15 anos de reclusão. Essa figura penal é muito importante porque elimina
Foto: Rosane Naylor
aquela discussão que existia na jurisprudência acerca do constrangimento da vítima por razão de idade. Não se fala mais em violência; a simples prática de relação sexual ou ato libidinoso com menor de 14 anos é suficiente para a consumação do crime, o que protege muito mais a criança e o adolescente. As penas de todos os crimes sexuais foram aumentadas caso sejam cometidos contra adolescente maior de 14 e menor de 18 anos ou se o resultado for lesão corporal de natureza grave. Caso haja morte da vítima, a pena é de reclusão, de 12 a 30 anos, havendo pena de multa quando na consecução do crime havia o fito de auferir vantagem econômica. Então, temos o seguinte: são proibidas relações sexuais, consentidas ou não, com qualquer pessoa menor de 14 anos, ou com quem não tenha condições de entender o caráter do fato ou de autodeterminar-se. Com consentimento não viciado e sem violência ou fraude, acima dessa idade (14 anos), as relações sexuais não têm relevância penal, salvo as hipóteses típicas (prostituição, estupro, corrupção de menores etc), onde, inclusive, há agravamento da pena em razão da menoridade. Há que se mencionar aqui a exploração sexual de crianças e adolescentes que engloba os casos de exploração sexual comercial (prostituição tradicional, tráfico para fins sexuais, turismo sexual e pornografia convencional e via Internet, condutas tipificadas na Lei 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente), que difere do abuso sexual de crianças e adolescentes, que, em última análise, engloba as condutas no Código Penal, com muita ênfase no estupro do vulnerável já referido, e os casos de constrangimento e violência no espaço doméstico e familiar. A Lei cria novo tipo penal de “Favorecimento da Prostituição ou Outra Forma de Exploração Sexual de Vulnerável” (art. 218-B do CP), adota o conceito do anterior artigo 228 do CP, com atualizações, nos seguintes termos: “Submeter, induzir ou atrair criança ou adolescente menor de 18 (dezoito) anos à prostituição ou outra forma de exploração sexual, facilitá-la, impedir ou dificultar que a abandone”. A pena prevista é de 4 a 10 anos, sendo que o proprietário, o gerente ou o responsável pelo local que permitir as práticas descritas no caput também responde pelo mesmo crime (§ 2º, II). Sendo estabelecimento comercial, constitui-se efeito obrigatório da sentença a cassação da licença para localização e da autorização de funcionamento (§ 3º). Ainda como inovação, as ações penais de natureza sexual passaram a ser públicas condicionadas e não mais privadas. Serão públicas incondicionadas se a vítima tiver menos de 18 anos ou for considerada vulnerável, independentemente da situação financeira e relação familiar (artigo 225). Em contrapartida, os processos correrão em segredo de justiça (artigo 234-B). A mesma lei, em seu art. 5º, cria um novo tipo penal no Estatuto da Criança e do Adolescente: o artigo 244-B, segundo o qual se constitui crime, punível com um a quatro anos de reclusão, “corromper ou facilitar a corrupção de menor de 18 (dezoito) anos, com ele praticando infração penal ou induzindo-o
a praticá-la”. O novo tipo penal substitui de maneira expressa o disposto na Lei nº 2.252, de 1º de julho de 1954, devendo ser interpretado segundo as normas e princípios contidos na Lei nº 8.069/90. Assim, com maior razão em relação àquilo que já vinha reconhecendo a Jurisprudência quanto ao disposto na Lei nº 2.252/54, o crime previsto no artigo 244-B estatutário deve ser considerado formal, sendo absolutamente irrelevante, para sua caracterização, o fato de a criança ou adolescente com a qual se pratica o crime ter ou não algum histórico infracional, até porque o objetivo declarado do legislador foi coibir — e com maior rigor — prática semelhante. O novo dispositivo legal traz ainda importante inovação em seu parágrafo primeiro, que prevê incidir nas mesmas penas quem comete o crime por meios eletrônicos, inclusive salas de bate-papo da Internet. O propósito consiste em conferir maior proteção a crianças e adolescentes. A pena básica, do tipo fundamental do crime de estupro, é a mesma. No entanto, a Lei estruturou melhor as sanções de acordo com a idade e o resultado. Ou seja, crime comum praticado com menor de 14 anos, a pena é de 8 a 15 anos de reclusão (artigo 217-A). Mas se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave, a pena sobe para 10 a 20 anos de reclusão (artigo 217-A, § 3º). E se da conduta resulta morte, a pena é de 12 a 30 anos de reclusão (artigo 213, § 2º). De maneira que se elimina, assim, 2009 NOVEMBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 37
De fato, o texto revogado apresentava muitas incongruências no que se refere aos costumes sexuais modernos, mas as novas disposições, por certo, trarão muitas controvérsias que serão debatidas no meio jurídico.
outra discussão que havia na jurisprudência, se devia, ou não, aplicar a lei de crimes hediondos no caso de menor de 14 anos, independente do resultado (lesão corporal ou morte). Agora, com a nova lei, fica claro que havendo lesão corporal a pena é maior, e se resulta na morte da vítima, como anteriormente dito, pode chegar a até 30 anos de reclusão. Relevante destacar que, como toda lei nova, ela está sujeita a interpretações distintas, mas imaginamos que haverá pouco espaço para interpretações que venham a desproteger a criança e o adolescente. O fato de as penas não terem sido diminuídas; mas, ao contrário, serem agravadas pela nova lei, diminui o risco, por exemplo, de que o condenado pela lei velha venha se beneficiar da lei nova, ante a impossibilidade de se operar a retroatividade de lei mais grave. Por exemplo, o artigo 218 do Código Penal, quando fala do favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual de vulnerável, de criança menor de 18 anos (artigo 218-B), mantém uma pena básica de 4 a 10 anos de reclusão, mas se o crime é praticado com o fim de obter vantagem econômica, aplica-se também pena de multa (§ 1º). Incorre nas mesmas penas quem pratica conjunção carnal ou outro ato libidinoso com alguém menor de 18 anos e maior de 14 anos nessa situação descrita (inciso I). Ou seja, a partir de agora, ao contrário do que acontecia antes, quem praticar ato libidinoso ou relações sexuais com menor de 18 anos, mesmo que essa pessoa já tenha se corrompido por meio da prostituição, comete crime e a pena varia de 4 a 10 anos. Interessante ainda o destaque para a discussão sobre o assunto de que praticar relação sexual com maior de 14 e menor de 18 anos que já havia se prostituído não era crime. 38 JUSTIÇA & CIDADANIA | NOVEMBRO 2009
Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça absolveu um caso concreto no Estado do Mato Grosso do Sul justamente porque não havia essa previsão legal com clareza; ou seja, entendeuse que naquele caso o indivíduo que praticou relações sexuais consentidas com menor de 18 anos não cometia crime. Ele havia sido acusado e condenado pelo Tribunal pelo tipo previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente, que previa a figura do favorecimento da prostituição. O STJ entendeu que esse tipo de crime só praticava quem efetivamente tirava proveito econômico da exploração do menor, não aquele que simplesmente praticava relações sexuais. Note-se que a nova lei inova criminalizando a conduta dos clientes das casas de prostituição, pois estes, como consumidores dos serviços sexuais, são considerados pela lei como os fomentadores desse mercado deplorável. A nova lei mantém uma punição para os donos, responsáveis e gerentes de estabelecimentos comerciais que são coniventes ou estimulam a prostituição de menores. Agora, além de praticar esse crime, constitui efeito obrigatório da condenação, a cassação da licença de funcionamento. Motéis, por exemplo, que recebem menores de idade estão sujeitos a essas sanções. Outra inovação é a solicitação do documento de identidade na entrada do motel. Pedir identidade em motel é um dever jurídico, uma obrigação do gerente. Ele não pode receber em seu estabelecimento um menor de idade. Nenhum menor pode entrar em uma boate ou ver um filme proibido para menores; por que poderia entrar em um motel? Evidentemente que não pode. Uma curiosidade é em relação aos casos em que menores de 18 anos passam a viver maritalmente. Nestes casos, é preciso examinar sempre a lei como um programa constituído de valores sociais que precisam ser preservados. No entanto, sua aplicação prática depende de uma série de circunstâncias do mundo real. Por exemplo, o direito penal é o direito da culpa, é o direito do fato, é preciso que o indivíduo pratique um fato que seja penalmente previsto e é preciso que em princípio ele tenha agido dolosamente, com vontade de transgredir os valores previstos na norma. Praticar relações sexuais consentidas com maior de 14 anos não é crime. A lei permite que o maior de 14 anos tenha disponibilidade da sua sexualidade. Já com os menores de 14 anos, jamais, nunca. Esse é o divisor de águas, casos concretos poderão existir em que menores de 14 anos estejam em regime de união estável, serão exceções que precisam ser avaliadas, caso a caso, a fim de verificar se efetivamente existe o chamado elemento subjetivo, a intenção de cometer a violação da norma penal. A questão comportaria muitas outras abordagens; mas, para sair do lugar comum, procurou-se acrescentar novas visões sobre o tema, o que pode gerar a sensação de incompletude. Contudo, isso nos dá a certeza de que há muito ainda o que falar ou fazer, e aqui no caso a escrever; e diante do pouco espaço que ocupamos, se nos derem oportunidade, voltaremos a nos manifestar para apresentar o assunto sob outras óticas, isso se antes os doutos não o fizerem com maior brilho e substância.
A
I - Introdução consciência política é imprescindível à construção da cidadania. Esta sempre esteve atrelada ao poder, considerando a lógica do materialismo histórico de Karl Marx e a relação dialética existente na busca pelo poder entre as classes dominante e dominada ao longo da História. No ordenamento brasileiro, os direitos políticos abrangem tanto o direito de votar quanto o de ser votado. É o que denominamos de capacidade eleitoral ativa e capacidade eleitoral passiva. Essa consiste no direito de ser votado, de eleger-se para um cargo político (elegibilidade); aquela representa o direito de votar, o direito de alistar-se como eleitor (alistabilidade). De acordo com o Código Eleitoral brasileiro, os servidores da Justiça Eleitoral são proibidos de exercer qualquer atividade partidária, sob pena de demissão. Essa vedação, contida no Código Eleitoral, implica perda dos direitos políticos enquanto durar o vínculo do cidadão-servidor com a Justiça Eleitoral, por impossibilidade de preenchimento de uma das condições de elegibilidade, qual seja, a de filiação partidária. Em outras palavras, enquanto for servidor da Justiça Eleitoral, o cidadão estará submetido à restrição dos seus direitos políticos, vez que não poderá estar filiado a nenhum partido e, portanto, impedido de disputar cargos eletivos. Contrariamente a essa restrição contida no artigo 366 do Código Eleitoral brasileiro, o Constituinte originário de 1988 teve como função primordial estabelecer no país o estado democrático de direito e uma democracia participativa. O objetivo deste artigo é promover o debate acerca do resgate da cidadania dos servidores da Justiça Eleitoral brasileira de modo a demonstrar que o artigo 366 do Código Eleitoral, além de não ter sido recepcionado pela Constituição Federal de 1988, foi revogado tacitamente pela Lei nº 8.112/90. II – Conflito aparente de normas A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 1º, dispõe que a cidadania é fundamento da República Federativa do Brasil. Isso significa que todo o texto constitucional deve ser sempre interpretado à luz desse fundamento. As condições de elegibilidade estão previstas no artigo 14 da Constituição Federal, senão vejamos: “Art. 14 (...) § 3º São condições de elegibilidade, na forma da lei: I) nacionalidade brasileira; II) pleno gozo dos direitos políticos; III) alistamento eleitoral; IV) domicílio eleitoral na circunscrição; V) filiação partidária; e VI) ter a idade mínima exigida.” Já o artigo 15 da Constituição Federal veda a cassação dos direitos políticos, assim como estipula os casos de sua perda ou suspensão, in verbis: “Art. 15. É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de: I – cancelamento da naturalização por sentença 2009 NOVEMBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 39
E m foco
Falta gestão aos tribunais
A
administração inadequada do Judiciário está diretamente relacionada a problemas tais como a morosidade judicial e a falta de investimentos para atender melhor ao cidadão. É o que revela pesquisa da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), divulgada durante o XX Congresso Brasileiro de Magistrados, promovido pela entidade em São Paulo, entre os dias 29 e 31 de outubro último. Segundo o levantamento, as unidades da federação com alto índice de desenvolvimento foram as que mais desembolsaram com a Justiça em termos absolutos. Maria Tereza Sadek, professora da Universidade de São Paulo, especialista em Judiciário e autora da pesquisa, compilou os dados consolidados pelo Conselho Nacional de Justiça nas publicações do ‘Justiça em Números’ e os comparou com outros de natureza socioeconômica, como o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) dos estados e a participação do Judiciário local no Produto Interno Bruto (PIB). A pesquisa “Justiça em Números: Novos Ângulos” evidenciou que não é automática a correlação entre carga de trabalho e lentidão no Judiciário dos estados e apontou a necessidade de uma administração mais qualificada das cortes judiciais. De acordo com a pesquisa, o volume de trabalho poderia ser um fator a explicar o desempenho das cortes. Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, São Paulo, Santa Catarina e Distrito Federal — estados com maior IDH — registraram mais processos em 2007 que os outros 14 que compõem o grupo com baixo e médio/baixo desenvolvimento. O número de casos novos por 100 mil habitantes nessas unidades da federação foi 13.833, enquanto nos estados com baixo e médio/baixo IDH foi 10.790. A mesma situação se verificou no ano passado: 40 JUSTIÇA & CIDADANIA | NOVEMBRO 2009
foram 14.232 processos nos estados com alto desenvolvimento contra 11.118 nos de menor desenvolvimento. Também em 2007, segundo o estudo, a carga de trabalho dos juízes de 1º grau nos estados com alto desenvolvimento foi 2,20 vezes maior que nos de menor desenvolvimento. Em 2008, o índice foi 2,56 vezes maior. Na segunda instância, a taxa era parecida em todos os estados, mas, no ano passado, alterou-se, passando aqueles com maior desenvolvimento a registrar carga de trabalho 93% superior a das outras unidades da federação menos desenvolvidas. Isso se explica pelo volume de processos, que aumentou em 45%. “A maior crítica que se faz ao Judiciário diz respeito à sua morosidade. No entanto, será que existe alguma explicação que possa ser encontrada na própria máquina? Ou seja, o número de juízes, a despesa, a quantidade de computadores, a carga de trabalho e o número de casos novos interferem na taxa de congestionamento? O primeiro indicador que usei é o número de juízes e a taxa de congestionamento. Vimos que nada bate, que nenhum dos fatores externos explica a lentidão, o que nos leva à conclusão de que o desempenho do Judiciário depende fortemente da administração interna“, afirmou Maria Tereza. De acordo com a Professora, as mazelas do Judiciário decorrem da incapacidade de muitos gestores em alocar os recursos de forma adequada. Nesse esforço em prol da administração mais qualificada, Maria Tereza destaca a importância de todos os magistrados participarem da gestão. Nesse sentido, a AMB lançou a campanha “Gestão Democrática do Poder Judiciário”, como forma de incentivar os juízes e servidores a participarem da elaboração e administração
do orçamento das cortes as quais integram. O Presidente da Associação, Mozart Valadares, afirmou que 99% dos magistrados desconhecem os valores que a administração dos tribunais destina anualmente para a comarca em que atuam. Segundo afirmou, a transparência na aplicação dos recursos é necessária para evitar problemas relacionados à falta de estrutura, tais como ausência de segurança nos fóruns, carência de pessoal e pouca informatização. A campanha prevê o oferecimento de cursos à distância aos magistrados pela Fundação Getúlio Vargas, e presenciais pela Escola Nacional da Magistratura, assim como outras 16 escolas no âmbito dos estados. A AMB também irá promover seminários sobre o tema nas associações regionais e disponibilizará um site, já a partir de novembro, com informações sobre o assunto. A entidade também realizará pesquisas de opinião junto a juízes e serventuários sobre quais seriam as prioridades nas comarcas em que trabalham. E, por último, irá propor ao Ministério da Educação a inclusão da disciplina Gestão do Judiciário na grade curricular dos cursos de Direito. Mozart Valadares lembrou que a gestão precária do Judiciário decorre principalmente do fato de os magistrados não terem tido formação para desempenhar essa função. “Nossa formação é jurídica. Antes da Constituição Federal de 1988, não tínhamos autonomia financeira nem administrativa. O cargo de presidente de tribunal era algo honorífico, para o coroamento da carreira. Essa campanha é histórica. Visa a preparar melhor o juiz. Vamos exigir do magistrado que comece a se interessar pela gestão do Judiciário”, afirmou. A iniciativa da AMB recebeu elogios do Presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de
Justiça, Gilmar Mendes. “O que percebemos nas inspeções do CNJ é uma concentração de gastos nos tribunais e falta de investimento na Justiça de primeiro grau, exatamente aonde o cidadão vai procurar justiça. A partir dessa postura, acredito que vamos mudar esse quadro”, disse o Ministro, no Congresso. Na avaliação de Gilmar Mendes, a participação dos magistrados na preparação do orçamento é fundamental. Ele lembrou que o Judiciário é cada vez mais demandado. Somente no ano passado foram 70 milhões de novas ações. “Tenho a impressão de que é fundamental a participação do juiz no que tange à formulação do planejamento estratégico”, afirmou o Ministro, destacando a preocupação do CNJ, órgão de fiscalização e estratégia do Judiciário brasileiro, com a questão do planejamento. Ele destacou a Resolução número 70 do Conselho, editada com o intuito de fixar um prazo de cinco anos para a aplicação dos planos de gestão dos tribunais. O objetivo da medida é garantir a continuidade das iniciativas desenvolvidas entre uma administração e outra, tendo em vista que o mandato nos cargos diretivos dos tribunais não ultrapassa dois anos. Gilmar Mendes ressaltou ainda a importância de os magistrados, de um modo geral, se empenharem para desenvolver uma boa gestão. “Participar da gestão não significa apenas ter ingerência nessas definições globais. O juiz será um bom gestor se mantiver a sua vara atualizada; se tiver vencido a Meta 2, que prevê o julgamento das ações distribuídas até dezembro de 2005 até o final deste ano; se não tiver processo em prescrição. Ser um bom gestor não significa apenas estar bem informado sobre o orçamento de sua unidade judicial, mas gerir bem a sua própria vara”, afirmou. 2009 NOVEMBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 41
A TRIBUTAÇÃO DO FURTO
Sacha Calmon
Advogado e Professor Titular da UFRJ
O
s fatos ilícitos não geram tributos, pois o Estado não pode se associar à criminalidade ou dela tirar proveito. O Código Tributário Nacional, no art. 3º, é conclusivo: tributo é toda prestação pecuniária compulsória (obrigação de dar, de natureza pecuniária), em moeda ou em valor que nela se possa exprimir (índices como ORTN, etc.), que não constitua sanção de ato ilícito (ou seja, que não se afigure como pena pecuniária imposta aos autores de atos ilícitos), instituída em lei (obrigação legal, e não contratual) e cobrada administrativamente (lançada por agentes competentes do Estado), com observância das leis (atividade administrativa vinculada à lei e, portanto, não discricionária, vedado o arbítrio dos funcionários fiscais). Essa definição de tributo é das mais perfeitas do mundo, juridicamente falando, porque: 1) extrema o tributo, cujo fato gerador é lícito, da multa, cujo fato gerador é a prática de ato ilícito; 2) diz que a obrigação tributária vem da lei, e não do contrato, como a paga de um aluguel; 3) distingue o tributo — necessariamente lançado pelos funcionários públicos competentes — de outras obrigações, algumas até de natureza privada, que também são impostas por lei, como o pagamento do seguro obrigatório de prédios ou a obrigação de alimentos, que não exigem intermediação administrativa. Quanto aos tributos, como dito, os seus fatos geradores são sempre lícitos. No caso dos impostos, denotam a capacidade contributiva dos contribuintes: ter renda (IR), imóveis urbanos (IPTU), veículos (IPVA), imóveis rurais (ITR), importar ou 42 JUSTIÇA & CIDADANIA | NOVEMBRO 2009
exportar (impostos de importação e de exportação), vender mercadorias ou prestar serviços de transporte não-local ou de comunicações (ICMS), prestar serviços de qualquer natureza (ISS), e assim por diante. Nas taxas e contribuições, o Estado nos presta um serviço ou exerce o seu poder de fiscalização. Por isso pagamos um “habite-se”, uma contribuição em troca da aposentadoria, a obtenção de um passaporte, um alvará de construção ou uma taxa de coleta de lixo e de esgoto. Como visto, trata-se sempre de fatos lícitos, sejam eles do contribuinte ou do Estado. Bem por isso, o Estado não pode exigir impostos sobre produção e circulação de bens e serviços (ICMS e IPI) quando, no curso de uma circulação de mercadorias (circuito que começa na produção, passa pela circulação e termina no consumo), elas são furtadas. O furto é a apropriação de coisa alheia móvel, com animus definitivo e desde que a ação seja exercida “furtivamente”, sem violência. Quando há violência ou ameaça, passa-se ao roubo. Deixando de fora o Direito Penal, voltemos ao Tributário, que valora o furto de mercadorias — ato ilícito a que alude o art. 3º do CTN — como excludente de tributação. Com efeito, é absurdo que a vítima do crime de furto tenha de pagar ICMS e — se for produto industrializado — IPI pela saída da mercadoria de seu estabelecimento promovida pelo ladrão! Como se diz popularmente: “Depois da queda, o coice”. Embora o tema pareça simples, gerou discussão no passado que ainda persiste. Vários Fiscos exigem imposto de mercadorias
Foto: Rosane Naylor Foto: Arquivo Pessoal
Com efeito, é absurdo que a vítima do crime de furto tenha de pagar ICMS e — se for produto industrializado — IPI pela saída da mercadoria de seu estabelecimento promovida pelo ladrão!
roubadas. Neste caso será preciso examinar os fatos geradores do ICMS e do IPI. No meu Curso de Direito Tributário, 10ª edição (Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 479), pronunciei-me sobre o assunto, vincando a ideia de que não é a simples saída física o fato gerador do ICMS. Ali consignamos que uma tese sobre o conceito de fato gerador do então ICM, inauguralmente levantada com o advento da Emenda Constitucional nº 18/65 e defendida por autoridades fiscais — certamente porque ampliava ao máximo a noção de fato gerador — sustentava que a saída física de mercadorias do estabelecimento comercial, industrial ou produtor, pouco importando a causa, o título jurídico ou o negócio, era o verdadeiro pressuposto ou fato gerador do tributo. A tese, como registrou Alcides Jorge Costa, está hoje inteiramente superada. Em seu lugar, contrapôs-se a tese doutrinária unânime que entende não haver circulação sem a transferência de propriedade das mercadorias. É compartilhada, entre outros, por Souto Maior Borges, Aliomar Baleeiro, Geraldo Ataliba, Fernando Brockstedt, Paulo de Barros Carvalho, José Eduardo Soares de Melo, Roque Antonio Carrazza, Alberto Xavier e Hugo de Brito Machado. São clássicas as ponderações de Aliomar Baleeiro ao refutar a opinião de que a mera saída física de mercadorias pudesse configurar hipótese de incidência do ICM. Diz ter a impressão de que “essa arrojada tese, grata ao Fisco estadual, porque até a saída pelo furto ou roubo seria fato gerador, não alcançou o sufrágio dos tributaristas e tribunais brasileiros”.
A operação que dá ensejo à circulação é, no dizer de Aliomar Baleeiro, “todo negócio jurídico que transfere a mercadoria desde o produtor até o consumidor final” ou, segundo Alcides Jorge Costa, “qualquer negócio jurídico ou ato jurídico material que seja relativo à circulação de mercadorias”. Alberto Xavier explica: “Em primeiro lugar, deve ter-se presente que a Constituição descreve a hipótese de incidência deste tributo como sendo a operação relativa à circulação em si mesma considerada. A ênfase posta no vocábulo ‘operação’ revela que a lei apenas pretendeu tributar os movimentos de mercadorias que sejam imputáveis a negócios jurídicos translativos da sua titularidade. Somente terá relevância jurídica aquela operação mercantil que acarrete a circulação da mercadoria como meio e forma de transferir-lhe a titularidade. Por isso a ênfase constitucional na expressão operações de circulação de mercadorias. O imposto não incide sobre a mera saída ou circulação física que não configure real mudança de titularidade do domínio”. Tanto é assim que o STJ editou a Súmula nº 166, que reza: Não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte. No mesmo sentido vai a jurisprudência pacífica do STF, da qual são exemplos, entre outros, os seguintes julgados: AI nº 131.941-1, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, in DJ 19.4.91, p. 4.583; Representação nº 1.355 – PB, Min. OSCAR CORRÊA, RTJ 121/1271, entre tantos outros. 2009 NOVEMBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 43
A teorização aplica-se também ao IPI. Isto posto, veremos, entretanto, que as entradas e saídas físicas apresentam serventia. Como se sabe, os bens imóveis se transmitem pelo registro da escritura no cartório. Já os móveis se transferem pela tradição (aqui no sentido técnico de entrega da coisa em mãos do comprador). Mudemos o momento do crime para aprofundar a análise da questão: as mercadorias estão em trânsito e são furtadas. Prevalece, como sempre, o brocardo latino res perit domino — a coisa perece em prejuízo do seu dono. Se a venda é FOB, já houve a entrega, e os impostos já incidiram, devendo ser normalmente recolhidos pelo vendedor. O preço deve ser pago, e os créditos de ICMS e de IPI devem ser aproveitados pelo comprador, visto que a Constituição só determina o estorno em caso de isenção ou não-incidência decorrentes de razões jurídicas (imunidade ou isenção: art. 155, § 2º, II). A nossa nãocumulatividade não se orienta produto por produto, mas sim por períodos de tempo: tudo que entra tributado (a entrada dá-se no momento da entrega) gera crédito a deduzir, e tudo o que sai tributado gera débito a pagar. Do ponto de vista do adquirente das mercadorias, dá-se apenas a entrada (crédito), mas não a posterior saída (débito), pois não poderá revender os bens que lhe foram furtados. Mas isso não por culpa sua, e sim da ineficiência do serviço de segurança pública do próprio Estado, que não pode transferir o ônus de sua incúria ao particular, proibindo-lhe de aproveitar créditos por tributo que efetivamente suportou. Se a venda é CIF, ao contrário, a mercadoria se perde nas mãos do vendedor, antes da entrega (que constitui, já se disse, o aspecto temporal do fato gerador do ICMS e do IPI). Se o comprador ainda não pagou, não o fará. O negócio jurídico não chegou a se aperfeiçoar, mas o vendedor terá se debitado do ICMS e do IPI. Deve estornar os débitos, pois o fato gerador não chegou a acontecer, mas manter os créditos relativos aos insumos utilizados na produção das mercadorias furtadas, pelas mesmas razões expostas acima, ou seja: os impostos embutidos no preço dos insumos foram pagos ao Estado e suportados pela vítima do crime. A negativa dos créditos seria um terceiro golpe no contribuinte vitimado pelo roubo: depois da queda, o coice e a pisada da besta.
44 JUSTIÇA & CIDADANIA | NOVEMBRO 2009
Do ponto de vista do adquirente das mercadorias, dá-se apenas a entrada, mas não a posterior saída, pois não poderá revender os bens que lhe foram furtados. Mas isso não por culpa sua, e sim da ineficiência do serviço de segurança pública do próprio Estado, que não pode transferir o ônus de sua incúria ao particular, proibindo-lhe de aproveitar créditos por tributo que efetivamente suportou.
Foto: Rosane Naylor
PROCURADORES DO ESTADO E INTIMAÇÃO PESSOAL Marco Antonio dos Santos Rodrigues
Procurador do Estado do Rio de Janeiro Professor Assistente de Direito Processual Civil da UERJ
N
1. O direito à intimação pessoal no processo civil o direito processual civil brasileiro, ato fundamental para comunicação no curso do processo, dando ciência de seus atos e termos, é a intimação. Esse ato de comunicação processual deve se dar, via de regra, através do advogado, pela via da publicação na imprensa oficial, conforme estabelecido no caput do artigo 236 do Código de Processo Civil. Diante dessa previsão, como regra geral, as partes devem ser intimadas por meio de seus advogados, que devem acompanhar as publicações efetuadas pelo Poder Judiciário no órgão oficial de imprensa.
Determinados órgãos, porém, gozam de prerrogativas específicas quanto à intimação. O primeiro deles é o Ministério Público, na forma do parágrafo 2º do artigo 236 do Código de Processo Civil, que garante aos membros do Ministério Público sua ciência pessoal1. Confira-se, outrossim, a Defensoria Pública. O artigo 5º, parágrafo 5º, da Lei nº 1060/50, concede aos defensores públicos, cuja carreira seja organizada e mantida pelos Estados o benefício processual da intimação pessoal ao longo de todo o processo2. Ademais, a Lei Complementar nº 80/94, que organiza a referida carreira, segue no mesmo sentido, consagrando 2009 NOVEMBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 45
expressamente a ciência pessoal dos atos e termos da causa às Defensorias Públicas instituídas nos Estados3. Também os procuradores de entes públicos devem possuir a prerrogativa da intimação pessoal: o interesse público que justifica a criação da própria carreira, para atuação na defesa do Estado ou de entidades da Administração indireta, impõe que possuam uma diferenciada forma de intimação, em que não haja risco de não ocorrer a ciência de um ato processual. Assim sendo, aos membros da Advocacia da União e da Procuradoria da Fazenda Nacional o legislador federal também conferiu tal benefício, na Lei Complementar nº 73/93, no seu artigo 384. No caso da Procuradoria Geral Federal, carreira instituída pela Lei nº 10.480/2002 para a representação judicial das entidades da Administração Indireta federal, e da Procuradoria do Banco Central, também há previsão expressa da garantia da ciência pessoal dos atos processuais, na Lei nº 10.910/2004, em seu artigo 175. No que tange às Procuradorias dos Estados, porém, não há previsão no Código de Processo Civil ou em lei federal que estabeleça a intimação pessoal em favor dos Procuradores em caráter geral, para todo e qualquer processo, mas apenas previsões quanto a situações especiais em que se lhes defere tal prerrogativa, como nas ações de execução fiscal, em que a Lei 6830/80 define expressamente que haverá a ciência pessoal aos representantes da Fazenda Pública6. No entanto, a ausência de norma federal não pode levar à conclusão de que não haja a referida garantia em favor das Procuradorias estaduais7. 2. Uma questão de isonomia As Procuradorias dos Estados fazem jus ao benefício da cientificação pessoalmente dos atos do processo, em primeiro lugar, por uma evidente razão de isonomia. Vê-se que o legislador procurou criar a garantia processual em questão às carreiras jurídicas em que haja alguma razão para a diferenciação da intimação em relação aos demais litigantes da relação processual. Muitas vezes legislar implica realizar distinções entre sujeitos, e essa atividade não caracteriza necessariamente uma violação à igualdade. A isonomia pode se revelar sob dois aspectos: o formal e o material. O primeiro deles representa a mera igualdade entre sujeitos diante da lei. No entanto, para que a garantia constitucional da igualdade (artigo 5º, caput, da Constituição da República) seja efetiva, imprescindível também que seja observada sob o prisma material, isto é, no plano real, o que impõe que os desiguais sejam tratados de maneira desigual, a fim de atingi-la. Dessa forma, não há inconstitucionalidade na previsão de uma prerrogativa processual de tal espécie em favor de certas carreiras jurídicas, de modo a promover a isonomia substancial. Na hipótese do Ministério Público, trata-se de norma que se justifica na natureza dos interesses defendidos pela instituição em questão, uma vez que atuará em demandas em que há um interesse público evidente, ou alguma outra espécie de interesse que justifique a sua presença na causa, como no caso do incapaz. 46 JUSTIÇA & CIDADANIA | NOVEMBRO 2009
Com relação à Defensoria Pública, a previsão dessa prerrogativa parece ter fundamento no elevado volume de causas a serem patrocinadas por esse órgão, bem como nas dificuldades materiais à sua atuação, como obstáculos fáticos ao contato direto com o assistido. No caso da Advocacia da União, da Procuradoria da Fazenda Nacional e da Procuradoria Federal, o interesse público a ser defendido em suas atuações, o elevado número de funções a serem exercidas e a dificuldade material muitas vezes encontrada na obtenção de informações para atuação justificam as previsões legais concessivas de intimação pessoal. Assim, as normas mencionadas no capítulo anterior atuam como mecanismo de promoção da igualdade material entre as carreiras jurídicas beneficiadas e os demais advogados, procurando estabelecer uma paridade de armas no processo, objetivo não só da isonomia processual, mas também da própria garantia constitucional do acesso à Justiça8. Quanto aos Procuradores do Estado, muitas das razões existentes para as demais carreiras jurídicas gozarem da prerrogativa processual em análise também se fazem presentes. As Procuradorias dos Estados atuam diretamente buscando defender o interesse público em jogo, nas demandas sujeitas à sua representação. Ademais, também quanto a estas se verifica um grande número de funções a serem exercidas e uma dificuldade material frequente para obtenção de informações à sua atuação. Assim sendo, na falta de norma processual expressa, isso não exclui do magistrado seu dever de zelar pela igualdade entre as partes, especialmente a material, dever esse que lhe é imposto pelo artigo 125, I, do Código de Processo Civil, o que determina que deve o Judiciário se valer da analogia para promover a igualdade, reconhecendo o direito à intimação pessoal aos Procuradores da Fazenda estadual9. Nessa esteira, vale recordar que o próprio artigo 126 do Código de Processo Civil permite ao julgador que, para decidir, aplique a analogia, na ausência de previsão legal. Dessa maneira, diante da existência de diversas normas que impõem a ciência pessoal dos atos processuais a carreiras jurídicas, e inserindo-se as Procuradorias dos Estados nas mesmas razões justificadoras da aplicação de tais regras diferenciadoras, impõe-se a aplicação da analogia, estendendose a prerrogativa a essa carreira. 3. A competência estadual para legislar sobre questões procedimentais – o caso da Lei Orgânica da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro Além da própria isonomia, que justifica o benefício processual à Fazenda estadual, mister faz-se salientar que a aludida prerrogativa também pode advir de previsão específica em legislação estadual. Conforme se verifica no artigo 22, I, da Constituição da República, a competência legislativa é privativa da União para legislar em matéria de direito processual. No entanto, em razão da autonomia dos entes federativos, o constituinte instituiu competência legislativa concorrente à União,
Estados e Distrito Federal para procedimentos em matéria processual, nos termos do artigo 24, XI10. Diante disso, verifica-se que os Estados, no âmbito de sua autonomia organizacional, podem instituir normas procedimentais especiais, a fim de melhor aplicar as normas processuais definidas pela União, sem com elas conflitar. Nesse sentido, insere-se o artigo 44, IV, da Lei Complementar do Estado do Rio de Janeiro nº 15/80, que confere aos Procuradores do Estado a prerrogativa de tomar ciência pessoal dos atos e termos do processo11. Dessa forma, à luz de previsão de norma específica estadual, editada com base em competência legislativa concorrente para a instituição de normas procedimentais em matéria processual, resta evidente que a Procuradoria do Estado do Rio de Janeiro goza da prerrogativa de intimação pessoal quanto aos atos e termos do processo12, possuindo tal direito cristalinamente outras Procuradorias Estaduais às quais a lei estadual tenha conferido o benefício, no âmbito da competência legislativa concorrente.
4. Conclusões Apesar de existir norma geral prevendo a intimação dos advogados através da publicação na imprensa oficial, não há vedação à instituição de outra forma específica para a realização da ciência às partes dos atos do processo, como a lei federal realiza com relação ao Ministério Público, Defensoria Pública, Advocacia da União, Procuradoria da Fazenda Nacional e Procuradoria Federal, conferindo-lhes a comunicação de atos processuais pessoalmente. Por força da isonomia e por uma interpretação finalística das normas instituidoras de meios especiais de intimação, deve ser estendida a prerrogativa em tela às Procuradorias dos Estados, que se deparam com dificuldades semelhantes às carreiras expressamente beneficiadas na lei, bem como atuam também em defesa do interesse público. No caso da Procuradoria do Estado do Rio de Janeiro, norma estadual específica concede a intimação pessoal, devendo ser observada em todos os processos em que os membros da carreira atuem, salvo previsão expressa em contrário.
NOTAS 1 “Art. 236. No Distrito Federal e nas Capitais dos Estados e dos Territórios, consideram-se feitas as intimações pela só publicação dos atos no órgão oficial. (...) § 2o A intimação do Ministério Público, em qualquer caso será feita pessoalmente”. 2 “§ 5° Nos Estados onde a Assistência Judiciária seja organizada e por eles mantida, o Defensor Público, ou quem exerça cargo equivalente, será intimado pessoalmente de todos os atos do processo, em ambas as Instâncias, contando-se-lhes em dobro todos os prazos.” O Superior Tribunal de Justiça reconhece tal prerrogativa à Defensoria Pública, conforme se verifica no seguinte julgado: STJ, 2ª Turma, rel. Min, Herman Benjamin, EDcl no Ag 906012, publ. DJ 24.3.2009. 3 “Art. 128. São prerrogativas dos membros da Defensoria Pública do Estado, dentre outras que a lei local estabelecer: (...) I – receber, inclusive quando necessário, mediante entrega dos autos com vista, intimação pessoal em qualquer processo e grau de jurisdição ou instância administrativa, contando-se-lhes em dobro todos os prazos;” 4 “Art. 38. As intimações e notificações são feitas nas pessoas do Advogado da União ou do Procurador da Fazenda Nacional que oficie nos respectivos autos”. 5 “Art. 17. Nos processos em que atuem em razão das atribuições de seus cargos, os ocupantes dos cargos das carreiras de Procurador Federal e de Procurador do Banco Central do Brasil serão intimados e notificados pessoalmente”. 6 “Art. 25. Na execução fiscal, qualquer intimação ao representante judicial da Fazenda Pública será feita pessoalmente. Parágrafo Único – A intimação de que trata este artigo poderá ser feita mediante vista dos autos, com imediata remessa ao representante judicial da Fazenda Pública, pelo cartório ou secretaria”. 7 Em sentido contrário: “PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. INTIMAÇÃO PESSOAL DO PROCURADOR DO ESTADO. DESNECESSIDADE. RECURSO ESPECIAL INTERPOSTO FORA DO PRAZO ESTABELECIDO. 1. Ao contrário do Advogado da União, do Procurador da Fazenda Nacional, do Defensor Público e do Ministério Público, os Procuradores de Estado, do Distrito Federal e de Municípios, não fazem jus ao beneficio da intimação pessoal, sendo válida a intimação efetuada via imprensa. 2. Agravo interno a que se nega provimento” (STJ, 6ª Turma, rel. Min. Jane Silva, AgRg no Ag 970341, publ. DJ 20.10.2008). 8 Para Mauro Cappelletti, o direito de ação poderia ser exprimido como uma completa paridade de armas. Confira-se: “A efetividade perfeita, no contexto de um dado direito substantivo, poderia ser expressa como a completa ‘igualdade de armas’ – a garantia de que a conclusão depende apenas dos méritos jurídicos relativos das partes antagônicas, sem relação com diferenças que sejam estranhas ao Direito e que, no entanto, afetam a afirmação e a reivindicação dos direitos. Essa perfeita igualdade, naturalmente, é utópica. As diferenças entre as partes não podem jamais ser completamente erradicadas. A questão é saber até onde avançar na direção do objetivo utópico e a que custo. (...)” (CAPPELLETTI, Mauro. GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, reimpressão, 2002, p. 15) 9 Nesse sentido, MARTINS, Fernando Barbalho. “Os Procuradores do Estado e o direito à intimação pessoal”. In: Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro, vol. XX. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 75. 10 “Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: (...) XI – procedimentos em matéria processual;” 11 “Art. 44. São prerrogativas dos Procuradores do Estado: (...) IV – tomar ciência pessoal de atos e termos dos processos em que funcionarem;” 12 O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro possui precedente adotando a norma estadual em questão: “AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE COBRANÇA RITO SUMÁRIO. SENTENÇA PUBLICADA EM DEZ DE FEVEREIRO DO CORRENTE ANO. O ESTADO SÓ TEVE ACESSO AOS AUTOS EM DEZESSEIS DE MARÇO DO MESMO ANO. CONTAGEM DO PRAZO A PARTIR DA DATA EM QUE OS AUTOS FORAM RETIRADOS DE CARTÓRIO PELA PROCURADORIA DO ESTADO, DE ACORDO COM O ARTIGO 44, IV DA LEI COMPLEMENTAR DE N º 15/1980. - DECISÃO QUE SE REVOGA PARA QUE SEJA RECEBIDO O RECURSO DE APELAÇÃO. - INCIDÊNCIA DO ART. 557, CAPUT, DO CPC. RECURSO A QUE SE DÁ PROVIMENTO” (TJRJ, 14ª Câmara Cível, rel. Des. Edson Scisinio Dias, AI 21996/2009, julg. em. 9.7.2009). No mesmo sentido, há precedente do Superior Tribunal de Justiça: EDcl no Ag 710585/BA, 2ª Turma, rel. Min. Francisco Peçanha Martins, julgado em 6/12/05, DJ 6/3/06.
2009 NOVEMBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 47
D epoimento
“EU TENTEI ME LIVRAR PELO SUICíDIO, A VLADO NINGUÉM PÔDE SALVAR” Depoimento do jornalista Sérgio Gomes, participante ativo do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, nos anos de 1970 e 1980. Estava preso no DOI-CODI quando Vlado foi assassinado. Publicado no jornal “Unidade”, em outubro de 1992.
N
aquele dia 25 de outubro de 1975, a equipe de torturadores era dirigida pelo capitão Ramiro. Eram três equipes no DOI-CODI, cada uma em plantão de 24 horas, com 48 de folga. O capitão Ramiro tinha um estilo diferente das duas outras equipes. Andava sempre munido de um sarrafo e sabia exatamente onde bater, nos cotovelos, nos joelhos, nos tornozelos – nas articulações. Ele conhecia muito bem a anatomia humana e desmontava uma pessoa com poucos golpes e sem barulho. Tinha prazer especial em amarrar as pessoas na chamada cadeira do dragão, que é uma espécie de troninho, de metal, molhado, onde os braços e as pernas são imobilizados, amarra-se um fio elétrico no pênis, outro na orelha e aí, em seguida, com uma maquininha, um dínamo, chamada de “pimentinha”, iam dando choques. Não é um choque que queima, não sei te dizer se é amperagem ou voltagem. Depois de encapuzar a pessoa, o capitão Ramiro jogava amoníaco sobre a parte frontal do capuz e apertava aqui na parte abaixo do queixo, de tal maneira que a pessoa ficava com aquele capuz bem colado no rosto. Ao mesmo tempo, Ramiro dava porradas, gritos, choques elétricos e jogava amoníaco no capuz – a pessoa ia respirando esse amoníaco. À medida que o choque elétrico se dá, se você estiver expirando, você não consegue inspirar, e se você estiver inspirando, não consegue expirar. Então, como os choques são dados aos trancos, você vai ficando com a respiração completamente descontrolada e esse amoníaco entra pelas sua narinas, invade o cérebro como se fosse uma batalha de espadas, uma coisa maluca, cortando seu cérebro de todo jeito – e você ali imobilizado, levando choques, porrada gritos. 48 JUSTIÇA & CIDADANIA | NOVEMBRO 2009
Tudo isso arma uma situação que é como se fosse surreal, você já não tem mais noção de se é com você mesmo que está acontecendo, começa a ficar confuso, não há saida para aquilo, você está amarrado. Entre a loucura e a morte Fui submetido a isso muitas vezes e percebi em mim que a qualquer momento morreria, a qualquer momento podia ter um derrame, um colapso, a coisa ia se desagregar. Sentia essa proximidade. Você vai ficando completamente fora de si. É uma coisa que até precisaria ser vista por médicos neurologistas, para saber o que acontece, porque eu soube depois que, diante de situações-limite como esta, de dores muito agudas e aflições muito intensas, o cérebro dá um tipo de descarga e mata o indivíduo para salvá-lo do enlouquecimento. Se a pessoa sofre um acidente de automóvel e tem esmagamento da coluna, por exemplo, que dizem ser a mais terrível das dores, o sujeito morre de dor, morre para fugir dessa dor, que é tão lancinante que a pessoa vai enlouquecer. Então, antes de enlouquecer, a pessoa se salva morrendo. A morte como alternativa Eu senti isso. Tanto é que, numa dessas ocasiões, depois de passar por uma dessa sessões do capitão Ramiro, me desamarraram, me tiraram o capuz, me deixaram lá, eu vomitei bílis, vomitei uma coisa como se fosse placenta, eu estava todo erodido, me lembro que abriram a porta do lugar onde estava, trouxeram uma pessoa, que não sei quem é, que tinha sido recentemente presa, e lhe disseram: “Ólha, é melhor
Foto: Arquivo Pessoal
Jornalista Sérgio Gomes
colaborar senão vai acontecer com você a mesma coisa que está acontecendo com esse cara aí, que já está no fim”. Isto me deixou com uma mistura de cagaço e humilhação, porque eu estava sendo usado a essa altura já como exemplo do estrago que se pode fazer com um ser humano. Depois de vários dias eu tinha emagrecido bem, estava todo arrebentado, minha condição era usada para produzir pavor nos outros. Estou ali e vejo sobre um banquinho um vidro de amoníaco, o vidro que o capitão Ramiro usava. Então fico oolhando para aquele vidro e resolvo me suicidar, porque a coisa tinha passado do que parecia suportável, eu ia enlouquecer. Pego o vidro e tento tirar a tampa de plástico, dessas que tem como se fosse um biquinho de peito para dentro, cuja borda de plástico praticamente adere ao gargalo. Você tem de ter uma unha muito boa para conseguir separar esse plástico, que tem uma certa pressãozinha que resiste, ou então você tem de tirar com o dente. Eu estava com a boca toda fodida, então estava tentando tirar com o dente e com a mão, torcendo para que engolir o amoníaco daquele vidro fosse suficiente para me matar logo. Estou nessa tentativa desesperada para me matar quando entram o capitão Ramiro de novo e o seu grupo, me arrancam aquele vidro, me reamarram na cadeira do dragão e aí começa outra sessão indescritível, coisa maluca. Na manhã do dia 25 Então eu tinha passado por isso várias vezes. E lá naquela cela solitária, com o ouvido na janelinha, eu podia ouvir os gritos: “Quem são os jornalistas? Quem são os jornalistas?” Pô, o que
podia ser? Não tinha ideia de que fosse o Vlado, não tinha a menor ideia. Pelo tipo de luta, pelo tipo de grito, pelo tipo de porrada, sabia que estava sendo feito com alguém exatamente aquilo pelo que eu tinha passado e sabia o que podia acontecer. Algum tempo depois, um grande silêncio. Mais um pouco de tempo e há um remanejamento, deslocam-se pessoas de um lado para outro dentro daquelas instalações lá na delegacia, desse ambiente onde eles tinham gente presa. Mais tarde sou informado por um médico chamado David Rumell que tinham apagado um cara, não sabia ainda quem era. Só venho a saber de quem se trata no dia seguinte, quando o Paulo Sérgio Markun, que foi um dos dois jornalistas que teve direito de ir ver o corpo, se encontra comigo numa das salas e me diz que tinham matado o Vlado. Foi de manhã, lá pela hora do almoço há uma azáfama, uma correria. Ele foi torturado durante toda a manhã e lá pela hora do almoço se dá o tal silêncio. A pessoa para de ser torturada e em seguida há uma azáfama, uma correria, a gente percebe que tem alguma coisa estranha acontecendo. Eles tinham acabado de matar o Vlado. Suicídio que não houve Sobre a hipótese de suicídio, inclusive a foto que eles divulgaram, tenho a dizer que eu estive preso numa daquelas celas. Por esse tempo todo fiquei preso em praticamente todas as celas ali. Não há nenhuma possibilidade de suicídio. Ninguém ficava com cinto, ninguém podia ficar com cinto. Depois da morte do Vlado, ele fazem justamente o remanejamento das pessoas dentro do DOI-CODI, para deslocar o corpo, montar a farsa, bater as fotografias. A cela onde eles tiraram a foto do Vlado era uma das celas que estava toda ocupada por pessoas presas. Quer dizer, o Vlado jamais esteve preso numa dessas salas que correspondiam às celas da delegacia. Ele foi torturado lá dentro, na sala especial onde ficava a cadeira do dragão. As pessoas não eram torturadas nas celas, eram torturadas lá dentro. Então o Vlado nunca esteve no lugar onde dizem que ele se suicídou. Ele estava sendo torturado daquela maneira que eu descrevi de forma simples e eu tenho para mim que ele morreu disso, de derrame, de colapso, pois foi uma longa sessão de terrivel tortura. Não sei se é possivel, se a religião judaica admite que se faça a exumação do corpo, porque, se fizerem, certamente encontrarão traços de amoníaco. Quanto a esse depoimento do japonês chamado Paulo, que se suicidou agora, que disse ter sido o Vlado morto de madrugada não pelo capitão Ramiro, mas por outro, e que foi afogado numa lata com água e enxofre, isso é alucinação. O Vlado não foi assassinado de madrugada e eu não vi ninguém ser torturado ou afogado em água com enxofre. Isso não era o que se fazia ali. Então, eu afirmo: o Vlado não se suicidou. O Vlado foi assassinado, sob o comando da equipe dirigida pelo capitão Ramiro. Na manhã do dia 25 de outubro ele foi submetido a tortura, amarrado à cadeira do dragão, sob choques elétricos, possivelmente um fio amarrado ao sexo e outro à orelha, levando porrada de ripa nas articulações; e sendo asfixiado com amoníaco que era derramado sobre o capuz de lonita que se usava para impedir que os presos vissem os torturadores. 2009 NOVEMBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 49
Foto: Marcello casal JR/ABr
TORTURA NÃO TEM ANISTIA Paulo Abrão Pires Junior
Presidente da Comissão de Anistia
A
aplicação da Lei da Anistia, de 1979, é um exemplo privilegiado das tensões recorrentes entre o Direito e a política. É fato que, no âmbito da criação das normas, as relações entre o Direito e a política são insuprimíveis, e isso leva a alguns conceberem a lei como um acordo político de perdão tanto aos perseguidos quanto aos perseguidores. Essa equivalência dos atos de resistência com os atos de repressão dos torturadores não deve prosperar. Ela não sobrevive a constatações fáticas: em 1979, o Congresso rejeitou a anistia “ampla, geral e irrestrita”; a lei não refere aos crimes dos torturadores, os quais o Estado negava existirem; não se encontra um único perseguido que tenha sido interlocutor do suposto “acordo”; e o Congresso que aprovou o projeto do governo era controlado, inclusive com a presença de “senadores biônicos”, caracterizando-se a existência de uma “autoanistia”. O Direito tem refutado o esquecimento para os crimes de tortura, pois: tortura não constitui crime político; a teoria e a dogmática jurídicas da conectividade dos delitos também não concedem espaço para anistiar tais crimes; aspectos políticos que não estejam explícitos na lei são irrelevantes na aplicação do Direito sob a ótica do princípio da independência do juiz; a melhor tradição ética desde Nuremberg recusa a prescritibilidade e a anistia a crimes contra a Humanidade; a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos — à qual soberanamente aderimos e onde hoje o Brasil é réu — não admite “autoanistia”. 50 JUSTIÇA & CIDADANIA | NOVEMBRO 2009
Permitir que possíveis acordos políticos afastem a Justiça valoriza a impunidade e sinaliza que em novos rompantes autoritários bastar-se-ia, ao final, realizar “acordo político” ou “autoanistia”. A conclusão é a de que não se pode admitir a lei de 1979 como um pacto ou acordo, e, mesmo se fosse este o caso, o acordo político não teria validade jurídica. Não se trata de revisar a Lei da Anistia, mas, sim, interpretála adequadamente. Não se trata de revanchismo, pois não se deseja torturar os torturadores, mas sim processá-los e julgálos segundo o devido processo legal e o direito ao contraditório. Rompida a ditadura, cabe às instituições do estado de direito estabelecer as bases para a não repetição: implementar uma Justiça de transição com memória, verdade e justiça. Agora, a OAB acionou o STF a decidir se a tortura está abrigada na lei de 1979. A política reencontra-se com o Direito. O STF é o mais político de todos os tribunais, pois interpreta a Constituição — a síntese jurídica dos compromissos éticos e políticos da sociedade. O conteúdo político da decisão sobre a ação é inafastável, porém, a decisão precisa se pautar pelos valores postos em nossa ordem jurídica democrática. Sinalizaremos a não repetição e consolidaremos a democracia e seus valores? Terá o Direito um papel civilizatório capaz de promover o que há de melhor na política: as garantias para as liberdades públicas presentes e futuras, contra todas as formas de autoritarismos, de esquerda ou de direita? Publicado no jornal “O Globo” do dia 24/09/09.
2009 NOVEMBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 51
52 JUSTIÇA & CIDADANIA | NOVEMBRO 2009