ISSN 1807-779X
Edição 113 - Dezembro de 2009
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2 JUSTIÇA & CIDADANIA | DEZEMBRO 2009
E ditorial
O LOBO PERDE O PELO, MAS NÃO PERDE O VÍCIO
Foto: Sandra Fado
O
velho e surrado provérbio do lobo se aplica igualmente aos ladrões, estupradores, estelionatários e principal mente aos políticos corruptos que infestam a vida pública brasileira, e que, a cada dia praticam mais e reiteram seus deprimentes crimes contra a sociedade que juraram defender. Os escândalos largamente difundidos nos jornais e televisão com as imagens de políticos em Brasília, recebendo pacotes de dinheiro advindo de empreiteiras de obras públicas e concessionárias de serviços, afrontam descaradamente a opinião pública. Os deputados, secretários de Estado e o próprio Governador do Distrito Federal, José Roberto Arruda, diretamente atingidos pelas imagens das cenas transmitidas pela televisão, inclusive pelas diligências da Polícia Federal, representam a atual situação de desmoralização e o quadro putrefato do governo da capital da República. A continuada delinquência praticada pelo já conhecido, José Roberto Arruda, desde os tempos em que, como senador, na companhia do também conhecido Antonio Carlos Magalhães, participaram da quebra do sigilo das votações no Senado Federal, se renova dando vazão ao velho provérbio. Vale lembrar que da vil maroteira que a dupla praticou naquela Casa do Congresso Nacional, ressaltaram-se na ocasião as cenas patéticas e lamuriosas do então senador José Arruda, chorando, pedindo perdão e invocando o nome de Deus. Tudo mentira. Era o perjuro confessando o crime, que agora em pior situação, pratica vergonhosamente. A Nação, estarrecida com tanta podridão, falta de caráter, pudor e vergonha desses biltres, políticos desonestos e imorais, que corroem com despudor as funções que exercem, espera ansiosa e impacientemente que a Polícia Federal conclua com presteza as investigações, já que as provas vivas das improbidades praticadas são demais notórias, encaminhando os processos devidamente instruídos com as provas mais que evidentes como publicadas nos jornais e Televisão, para que a Justiça tenha condições de rapidamente condenar esses rapineiros dos dinheiros públicos.
É firme a atuação do Relator do escabroso processo que transita no Superior Tribunal de Justiça, sob a responsabilidade do eminente e digno jurista, Ministro Fernando Gonçalves, cujas providências tomadas em benefício da justa apuração dos crimes denunciados já demonstram que desta vez os delinquentes pagarão pelos desmedidos crimes praticados. Do que foi visto nas televisões e lido nos jornais, de tanta patifaria e canalhice, o que avulta de revolta, asco e nojo, é o cinismo dessa camarilha criminosa que jurou defender o povo, que se queda desamparado, sem a devida assistência nos hospitais públicos, enquanto essas quadrilhas se lambuzam com o dinheiro que falta nos hospitais, nas creches, nas estradas e no saneamento básico.
Orpheu Santos Salles Editor 2009 DEZEMBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 3
EDIÇÃO 113 • Dezembro de 2009 ORPHEU SANTOS SALLES EDITOR TIAGO SANTOS SALLES DIRETOR EXECUTIVO ERIkA BRANCO diretorA DE REDAÇÃO DAVID SANTOS SALLES EDITOR ASSISTENTE DIOGO TOMAZ DIAGRAMAdor Giselle Souza Jornalista colaboradora Luciana Peres Revisora EDITORA JUSTIÇA & CIDADANIA AV. NILO PEÇANHA, 50/GR.501, ED. DE PAOLI RIO DE JANEIRO – RJ CEP: 20020-906 TEL./FAX (21) 2240-0429 SUCURSAIS SÃO PAULO RAPHAEL SANTOS SALLES AV. PAULISTA, 1765 / 13°ANDAR SÃO PAULO – SP CEP: 01311-200 TEL. (11) 3266-6611 PORTO ALEGRE DARCI NORTE REBELO RUA RIACHUELO, 1038 / SL.1102 ED. PLAZA FREITAS DE CASTRO CENTRO – Porto Alegre – RS CEP: 90010-272 TEL. (51) 3211-5344 BRASÍLIA Arnaldo gomes SCN, Q.1 – Bl. E / Sl. 715 EDIFÍCIO CENTRAL PARK BRASÍLIA – DF CEP: 70711-903 TEl. (61) 3327-1228/29 CORRESPONDENTE ARMANDO CARDOSO TEL. (61) 9674-7569 revistajc@revistajc.com.br www.revistajc.com.br CTP, IMPRESSÃO E ACABAMENTO ZIT GRÁFICA E EDITORA LTDA ISSN 1807-779X 4 JUSTIÇA & CIDADANIA | DEZEMBRO 2009
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S umário
Amador Aguiar: o predestinado
Foto: STJ
Foto: Sandra Fado SCO/STJ
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editorial
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miguel torga
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O notável Amador Aguiar
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Dom Quixote: 12 “Tecendo vidas” ressocializa presas A crise no Judiciário 18 e a criação do STJ
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Harvard Law School Association
A adoção por casais homossexuais e a nova Lei da Adoção
Ausência de sucessão no 26 transporte público licitado O PAPEL DA AGU NA GARANTIA 29 DA SEGURANÇA JURÍDICA DO DESENVOLVIMENTO NACIONAL
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A Magistratura pede socorro
A efetivação do sonho constitucional
Os profissionais jurídicos 20 no litígio de família
LRF, LEI ELEITORAL E A 30 REDUÇÃO DOS MANDATOS DOS CHEFES DE PODER Em Foco: 34 Conciliação também na execução da sentença
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LIBERA JÁ! 36 A COMPOSIÇÃO DOS 40 TRIBUNAIS SUPERIORES MST, CPI E REFORMA AGRÁRIA 48 2009 DEZEMBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 5
miguel torga Bernardo Cabral
Consultor da Presidência da CNC Membro do Conselho Editorial Chanceller da Confraria Dom Quixote
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Foto: TJRJ
á alguns anos, Zuleide e eu, costumamos frequentar, quando possível, a cidade de Chaves, na fronteira de Portugal com a Espanha. Ali, no Balneário que compõe as chamadas Termas, deparei com personalidades ilustres do mundo literário e político de Portugal e Espanha. Dentre elas, uma para mim tinha significado maior. Diversas vezes, cruzamos os nossos passos, mas nunca a interrompi para qualquer indagação, ou mesmo para satisfazer uma natural curiosidade, pois sabia de que ali se encontrava cuidando da saúde e, portanto, merecido o respeito a quem era considerado um homem de trato difícil e de quem se propalava que se afastara das elites intelectuais por considerá-las pedantes. A minha intenção era dizer-lhe que sabia um pouco da sua vida, até mesmo porque, quando menino, ingressara ele no Seminário de Lamego, cidade onde ocorreu o nascimento de minha saudosa mãe, sete anos antes de vir ele ao mundo. E mais, ter eu conhecimento de que aos 13 anos de idade viera para o Brasil e, em Minas Gerais, trabalhado como capinador, apanhador de café, vaqueiro e até caçador de cobras, na fazenda de um tio que já se encontrava no Brasil há muito tempo. Curiosamente, foi esse tio que identificou naquele garoto a vontade de estudar, o que o levou a custear os seus estudos no Liceu Leopoldina, onde, de imediato, se destacou como um dos alunos mais dotados. Aos 18 anos regressou a Portugal e, em Coimbra, terminou o Liceu e frequentou a Faculdade de Medicina, onde concluiu o seu curso aos 24 anos e aos 34 a sua especialização em otorrinolaringologia. Médico atuante, cultivou ao mesmo tempo a Literatura e se tornou colaborador da revista PROENÇA — importante órgão difusor da segunda fase do modernismo português — dela se afastando mais tarde, instante em que confirmou, com esse gesto, a sua tal forma intransigente que o manteve afastado, por toda a vida, de escolas literárias e até do convívio com os círculos culturais portugueses. Tudo isso era reflexo da sua origem: proveniente de família humilde, nascido em 12 de agosto de 1907, em São Martinho da Anta, distinto transmontano de Vila Real, infância rural dura, viveu a realidade do campo, cercado de árduo trabalho contínuo,
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contato com as misérias e com a morte, o que lhe valeu tornarse poeta do mundo rural. No seu segundo livro, “O Outro livro de Job”, de poesia (o primeiro, “Ansiedade “, de 1928), o nome de batismo, Adolfo Correia Rocha, submerge pela força do pseudônimo MIGUEL TORGA, por ele escolhido de forma propositada. Foi o caminho encontrado para homenagear duas glórias da literatura espanhola, dois Miguéis — Cervantes e Unamuno — e a natureza rude e selvagem que tanto impactou a sua mocidade; TORGA é uma planta brava da montanha. Sua criação literária foi intensa. Mais de 50 obras em prosa e poesia, além de peças de teatro e um DIÁRIO em 16 volumes, publicados entre 1941 e 1994. Vale colocar em relevo: Rampa (1930); Orpheu Rebelde (1958); Poemas Ibéricos (1965); Criação do Mundo (1931); Bichos (1940) e Novos Contos da Montanha (1944). Indicado diversas vezes para o Prêmio Nobel de Literatura, conseguiu antever no “Réquiem por Mim”, último trecho do seu “Diário”, que o seu fim chegaria em breve. Morreu dois dias depois, em 1995, aos 88 anos de idade. Nesse ano, perguntei ao Doutor Mário Carneiro — Diretor Clínico das Caldas de Chaves (e seu médico particular), como era, do alto dos seus 60 anos ininterruptos de exercício da Medicina, ter sido o profissional que cuidara do seu Colega Miguel Torga — ambos quase da mesma idade. A sua resposta, cautelosa — sempre se recusou a prestar declarações à imprensa sobre o seu Cliente —, trouxe-me uma revelação. Ele, Miguel Torga, tinha um coração sensível, apesar da constante rudeza: — jamais cobrara consultas, na sua especialidade médica, aos menos afortunados. E concluiu a sua lacônica revelação: apesar de poucos amigos era um homem de conversa agradável. Pena que dele não me tenha aproximado o suficiente para dizer-lhe o quanto admirava a sua postura cívica, sobretudo quando denunciou os crimes da guerra civil espanhola e do Ditador Franco, o que lhe valeu a prisão pela polícia portuguesa, além da apreensão de suas obras pela censura. Lamento, profundamente, não lhe ter feito as perguntas que me inquietavam e deploro não ter dele podido ouvir as respectivas respostas.
O notável Amador Aguiar
NOta do Editor Paulo Planet Buarque, jornalista, advogado, radialista, esportista e dirigente do São Paulo Futebol Clube. Fui seu colega no Ministério do Trabalho, em São Paulo (1952-1954). Foi Deputado Estadual por vários mandatos e Presidente do Tribunal de Contas do Município. Personalidade ímpar, afável e de extraordinário bom caráter, participou de várias administrações nos governos de Laudo Natel, Franco Montoro, Mário Covas, Jânio Quadros e outros. Exerce atualmente a advocacia com seu valoroso colega Edgard Leite.
Foto: Arquivo Bradesco
Paulo Planet Buarque
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ícero Pompeu de Toledo era o Presidente do São Paulo Futebol Clube, que dava seus primeiros passos com vistas à construção do seu estádio — o maior do Brasil de propriedade particular —, nos longínquos anos de 1960, quando eu — membro da Comissão que se criara para levar a efeito o que, então, se considerava simplesmente um sonho irrealizável — soube que por trás dessa ideia havia alguém que igualmente se entusiasmara e contribuía para que aquele sonho pudesse se realizar: Amador Aguiar. Junto a ele, que já então era Presidente e “dono” do Banco Brasileiro de Desconto, atual Bradesco, estava também o seu dirigente máximo, também torcedor do São Paulo: Lázaro de Mello Brandão, que foi seu companheiro nas primeiras e gloriosas jornadas na criação do maior e mais importante Banco Brasileiro, que ultrapassava, inclusive, os depósitos do próprio Banco do Brasil, o banco oficial do estado brasileiro. Amador Aguiar, a quem conheci nessa época, caracterizava-se principalmente pela simplicidade. Ninguém que o conhecesse pessoalmente poderia sequer imaginar que fosse ele o Presidente do Banco Brasileiro de Desconto. Igual característica tem Lazaro de Mello Brandão, que o sucedeu e ainda hoje, já com mais de oitenta anos, continua na labuta diária na condução do Banco, embora não exerça a Presidência. Amador Aguiar, a quem a Revista Justiça & Cidadania — criada e dirigida pelo notável Orpheu Santos Salles, cuja vida também merece, sem dúvida, um livro, célebre pela história vencedora — deliberou homenagear, foi um homem singular. Apenas quem teve a oportunidade de conhecê-lo mais
intimamente poderia entender as razões maravilhosas do seu enorme sucesso empresarial, principalmente se considerarmos que foi um simples bancário, que ao lado de Lazaro de Mello Brandão, transformou uma simples casa bancária onde ambos trabalhavam em Marília neste assombroso Banco, o Bradesco! Lembro-me, com enorme carinho, de um instante da sua relação amiga, quando chamou-me à sede do Bradesco e me fez acompanhá-lo até a tipografia no subssolo, onde estava instalada a gráfica, um dos seus “xodós” administrativos, para mostrarme que ali estavam imprimindo as minhas cédulas de candidato a Deputado Estadual, o que, claro, tanto me ajudou na eleição, e depois reeleição, com uma das maiores votações do Estado. Um gesto, uma atitude, uma demonstração afetiva, sem qualquer tipo de interesse, que mostrou-me quem era Amador Aguiar, o bancário que se transformara em um dos maiores banqueiros do País! O homem simples, que adorava andar de sapatos sem meias, mas que sabia, como poucos, conduzir o Banco que ele e seu eterno companheiro, Lázaro de Mello Brandão, haviam criado a partir de pequenina casa Bancária! Essa é a tarefa alegre e contemplativa que me é oferecida nesta oportunidade em que se busca homenagear quem foi e sempre será lembrado: o notável Amador Aguiar! 2009 DEZEMBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 7
AMADor aguiar O PREdestinado
Da Editoria
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mador Aguiar nasceu predestinado a se tornar um empreendedor e vitorioso realizador. Nasceu em terras e berço dos bandeirantes que descobriram o interior do Brasil, marcando os rumos da nacionalidade e deixando as marcas e caminhos a percorrer por corajosos desbravadores neste gigantesco País. De origem humilde, e com inteligência, intuição, muito trabalho e dedicação conquistou os louros de suas grandes vitórias. Como líder nato soube formar e arregimentar uma grande e valorosa equipe, com a qual realizou empreendimentos que se multiplicaram e continuam a se expandir com arrojo e pujança por toda a Nação. O embrião se formou em Marília, de onde, da Casa Bancária Almeida & Companhia, transformada no Banco Brasileiro de Descontos, partiu para as grandes iniciativas e empreitadas. Foi o primeiro banqueiro a acreditar e abrir créditos para os pequenos agricultores, especialmente para os colonizadores rurais japoneses, italianos e alemães, que durante o período da Guerra sofreram grandes restrições de crédito e financiamento rural. A confiança concedida aos colonos foi retribuída com a expansão vertiginosa do Banco, que aliada a outras importantes e inovadoras iniciativas, propiciou que o Bradesco se transformasse no maior Banco privado do País, posto que manteve por mais de 50 anos. Dentre as iniciativas adotadas por Amador Aguiar, a mais meritória de importância social e cultural, sem dúvida, foi a criação da Fundação Bradesco, presente, hoje, em todos os Estados brasileiros e Distrito Federal, com 40 Escolas 8 JUSTIÇA & CIDADANIA | DEZEMBRO 2009
instaladas prioritariamente em regiões de acentuadas carências socioeconômicas, proporcionando, em seus 53 anos de existência, ensino formal gratuito e de qualidade a mais de 2,1 milhões de alunos, que somados a participantes de outras modalidades de cursos presenciais e à distância, superou 3 milhões de atendimentos, tornando a Fundação uma das maiores instituições de ensino privado do Brasil e do mundo. O seu entusiasmo pela educação levou-o a instituir o ensino nas escolas da Fundação, já com a participação de crianças, como fundamentado em suas declarações: “As crianças e os jovens aprenderão a pensar, se quiserem, como pensamos; aprenderão a trabalhar como trabalhamos. Nós queremos formar os homens que vão continuar nossa obra...” e mais, esta oração cívica: “Cremos na educação como fator decisivo do desenvolvimento e instrumento indispensável à realização pessoal do ser humano, através da sua integração na força do trabalho”. Como verdadeiro bandeirante do século XX, Amador Aguiar concretizou o sonho de um homem empreendedor e de reconhecido espírito de liderança, que, juntamente com sua equipe de liderados, foi capaz de transformar o sonho engendrado na cidade de Marília, interior de São Paulo, fazendo de uma pequena agência bancária, um dos maiores conglomerados financeiros do País. E foi com coragem e competência que esse homem de hábitos simples, introvertido, dedicado ao trabalho, com
Foto: Arquivo Bradesco Amador Aguiar
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Foto: Arquivo Bradesco Lázaro Brandão e Amador Aguiar
Amador Aguiar, verdadeiro bandeirante do século XX, revelou em sua proveitosa vida e gestão à frente da direção da Organização Bradesco, com abrangente visão dos negócios, amor ao próximo e à Pátria, o que deixou perpetuado nas obras que criou e com tenacidade desenvolveu.
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honradez, dignidade e amor ao próximo, conseguiu com a determinação inerente aos predestinados alcançar o ápice da sua realização. Além do império financeiro que construiu, dedicou-se também, com extraordinário sucesso, em outras várias atividades de agricultura e pecuária, com propriedades em todo o País, notadamente em São Paulo, Paraná, Minas Gerais, Goiás e Pará, deixando marcado o exemplo de preservador, defensor do meio ambiente, como deixou assinalado em várias ocasiões, em especial no livro “Aves Brasileiras”, do ambientalista Johan Dalgas Frisch: “É para os adolescentes de hoje — aos quais caberá em futuro próximo dirigir os destinos desta terra — que endereçamos nossas palavras. Compete a eles salvaguardar para seus sucessores as últimas reservas naturais do Continente. Confiamos que, ao galgarem posições de destaque na sociedade, saberão lutar melhor que nós para defender os derradeiros redutos da flora e fauna deste País”. Foi condecorado pelo Governo Federal, com a Ordem do Mérito da Educação, no grau de Comendador, em reconhecimento à especial atenção que sempre dedicou à Fundação Bradesco, obra criada sob sua inspiração, cujos princípios se baseiam no desenvolvimento das potencialidades intelectuais, físicas e morais dos seus alunos. Na ocasião, a Professora Esther de Figueiredo Ferraz, então Ministra da Educação, ao entregar-lhe o laurel, enfatizou: “Um homem que vê na juventude as maiores reservas da Nação e tem os olhos sempre voltados para a educação do povo brasileiro”. Avesso à política, recusou-se a participar dos ministérios do Presidente Getulio Vargas, em 1952, e do Presidente João Goulart, na formação do governo parlamentarista, e posteriormente em 1963, na volta do presidencialismo, sob a alegação de não poder se afastar da direção do Bradesco. Entretanto, levado por circunstâncias políticas e dificuldades financeiras na Prefeitura do Município de São Paulo, acedeu exercer temporariamente a Secretaria das Finanças, a fim de dar, com a respeitabilidade do seu nome, respaldo público e moral à situação da Prefeitura. Indicado em 1963 como candidato a Vice-Governador do Estado de São Paulo na companhia de Ademar de Barros, recusou, indicando como candidato o Sr. Laudo Natel, que assumiu o governo de São Paulo, com a cassação de Ademar de Barros em 6 de junho de 1966. Vale recordar, para reflexão, uma mensagem expedida em 1982, num momento em que pairavam dificuldades para a Nação: “Esta despretensiosa mensagem é destinada aos nossos incomparáveis companheiros de trabalho e extensiva aos nossos acionistas e
Em oportuna e devida homenagem, “post-mortem”, a Confraria Dom Quixote e a Revista Justiça & Cidadania reverenciarão a memória dessa importante personalidade que foi Amador Aguiar, com a inauguração na sede do Bradesco, na Cidade de Deus, em Osasco, São Paulo, da estátua de Dom Quixote de La Mancha, símbolo do idealismo puro, da coragem, destemor, renúncia, ética, moralidade, amor, perseverança e determinação, dogmas que encontram similitude com os sonhos, intenções, propósitos, ações que levaram esse humilde bandeirante a tornar-se um gigante, pelas obras que deixou implantadas nas mãos dos seus fiéis seguidores, como exemplos a serem seguidos e permanentemente continuados. A grandeza dessa fulgurante personalidade, que se configura como um dos mais importantes vultos brasileiros, que vivenciaram no século passado, deixando continuados exemplos e rastros de grandeza educacional, de cultura, desenvolvimento e progresso, tem o seu nome assegurado no panteon da história do Brasil.
Foto: Arquivo Bradesco
clientes. Vamos ajudar o Brasil a superar suas atuais dificuldades, trabalhando mais e melhor. Esta é a única providência, realmente válida, e que está ao alcance de qualquer pessoa. ...devemos cumprir a nossa parte nessa tarefa, com destacada atuação, dentro do nosso lema. ‘Só o trabalho pode produzir riquezas’, com entusiasmo, otimismo, sem esmorecimento; ...somos úteis à nossa Pátria, magnificamente entrosados, conscientemente disciplinados, de inigualável força de vontade, e sabemos, temos a certeza de que as palavras ‘difícil’ e ‘impossível’, quando empregadas no sentido da defesa da boa moral e do bem material e coletivo, simplesmente não existem no nosso dicionário.” Amador Aguiar, verdadeiro bandeirante do século XX, revelou em sua proveitosa vida e gestão à frente da direção da Organização Bradesco, com abrangente visão dos negócios, amor ao próximo e à Pátria, o que deixou perpetuado nas obras que criou e com tenacidade desenvolveu. As inúmeras e vitoriosas iniciativas que implementou marcaram indelével a sua existência e resistirão ao tempo, e certamente, se desdobrarão pelos seus sucessores em vastos, significativos e continuados ensinamentos. Em 12 de fevereiro de 1990, é exaltado pelos seus devotados companheiros, com o Título Honorífico de Presidente Emérito da Organização Bradesco, em reconhecimento aos grandes e vitoriosos resultados que proporcionou, e a tudo que fez por ela e pela comunidade, com seus magníficos exemplos de trabalho, entusiasmo, talento e honradez, sintetizados no lema da casa: “Só o Trabalho pode Produzir Riquezas”. Nessa mesma data, na Assembleia Geral Ordinária, o bravo guerreiro fatigado de tantos combates e de vitoriosas lutas, certo e consciente de ter formado uma boa equipe para continuar engrandecendo a Organização, dirige mensagem indicando o Sr. Lázaro de Mello Brandão para sucedê-lo no cargo de Presidente do Conselho de Administração da Organização Bradesco, com o seguinte teor: “E nesta oportunidade, convencido de que será também a vontade soberana dos nossos acionistas e da unanimidade dos nossos companheiros de trabalho, não poderia deixar de manifestar uma vez mais o meu desejo, já por todos conhecido, de que a Presidência desse Conselho venha a ser ocupada pelo caríssimo companheiro Lázaro de Mello Brandão.” A escolha do seu fiel companheiro, Sr. Lázaro de Mello Brandão, para sucedê-lo na presidência do Conselho de Administração, cuja posse ocorreu nesse mesmo dia, revelouse uma decisão acertada com os significativos progressos alcançados em todos os setores da Instituição, que também contaram com o apoio incondicional de novos companheiros, indicados pelo Sr. Brandão, oriundos dos quadros formados na própria casa, que seguindo o exemplo de dedicação e espírito de equipe, deixado por Amador Aguiar, ajudaram a conduzir por caminhos seguros os destinos dessa grande Organização chamada Bradesco.
Amador Aguiar
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“Tecendo vidas” ressocializa presas
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s regressas do sistema carcerário de Anastácio, Mato Grosso do Sul, têm motivos de sobra para abandonar o crime. A comarca daquela cidade promove, desde o ano passado, um programa voltado para a ressocialização das detentas. Trata-se do projeto Tecendo Vidas, coordenado pela Juíza Nária Cassiana Silva Barros, titular da única vara do Município. Segundo a Magistrada, a iniciativa permitiu que as presas aprendessem a tecer produtos artesanais, que são postos à venda em eventos da comunidade. A renda é toda revertida para elas e o sustento de suas famílias. Nária, agora, quer ampliar o projeto. “temos com a ideia de alugar um ponto comercial para expor esses produtos. Por enquanto, o material fica na Delegacia, o que dificulta o acesso da população. O Conselho poderia pagar esse ponto comercial para que a população tenha um acesso mais fácil na aquisição desses materiais”, afirmou. Revista Justiça e Cidadania – O que é o Projeto Tecendo vidas? Nária Cassiana Silva Barros – O Projeto Tecendo Vidas foi criado em 2008 e partiu da ideia de uma agente policial e de uma assistente social, que pediram apoio ao Conselho da Comunidade do Fórum para ensinar artesanato às presas. As detentas aprenderam a tecer tapetes, forros de mesa, capas de almofada, suportes para papel higiênico; enfim, fazem várias coisas. O Conselho da Comunidade entra com o material, linhas, agulhas e demais itens necessários. Como em Anastácio só ficam as mulheres, elas fazem esses produtos e colocam para venda na comunidade. Sempre que há uma festa, tanto em Anastácio como na cidade vizinha, os produtos são expostos e a renda oriunda das vendas é toda revertida para elas e o sustento de suas famílias. Participa do projeto quem quer, mas todas 12 JUSTIÇA & CIDADANIA | DEZEMBRO 2009
Foto: Arquivo Pessoal
Entrevista: Nária Cassiana Silva Barros, Juíza de Direito do TJMS
Foto: Stockxpert
se interessaram em participar. Estamos incentivando a comunidade a colaborar também. Agora temos a ideia de alugar um ponto comercial para expor esses produtos. Por enquanto, o material fica na Delegacia, o que dificulta o acesso da população. O Conselho poderia pagar esse ponto comercial para que as pessoas tenham um acesso mais fácil na aquisição desses materiais. JC – Quem ficaria nesse ponto comercial? NCSB – Seriam as próprias presas do regime semiaberto. Há também a assistente social, que acompanha o programa. Ela faz os relatórios dos dias trabalhados, qual foi a produção de cada uma delas e, no final do mês, presta contas e repassa o valor que lhes é devido. JC – Quem compõe o Conselho da Comunidade? NCSB – É formado pelo Juiz Titular da Comarca, o Promotor de Justiça, a Defensora Pública, um assistente social, um representante da Ordem dos Advogados do Brasil e um representante da Associação Comercial. JC – Quais têm sido os resultados desse projeto? NCSB – O projeto tem surtido muitos efeitos. Como as detentas têm ocupação, elas não ficam mais inquietas nas delegacias. Antes tínhamos muitos problemas, com o brigas e intrigas. As presas do semiaberto saíam e voltavam com drogas ou alcoolizadas. Na cidade, não há mão de obra para elas. Aí ficavam na rua, aprontavam. Agora, como há ocupação durante o dia, essas presas preferem ficar na Delegacia. Com isso, diminuímos o índice de problemas que estavam ocorrendo. Outro fator importante também é a renda, que, mesmo sendo pouca, é muito importante para a manutenção dessas famílias, que, na maior parte, são formadas por pessoas carentes. Muitas não têm trabalho nem fonte de renda. O dinheiro que entra por meio desse projeto ajuda bastante na economia da família da detenta.
JC – Na sua avaliação, por que é importante que o Judiciário se volte para a questão da ressocialização? NCSB – O Judiciário deve se voltar para essa questão, com certeza. Tem que fazer o papel dele de incentivar, criar planos. Iniciativas são sempre bem-vindas. A ideia agora do CNJ (com o programa Começar de Novo, de ressocialização) é muito benéfica. Todos sabem que o sistema carcerário está falido. Temos que ter ideias novas, pedir o apoio da sociedade para tentar inserir essas pessoas na comunidade, dando a elas outra oportunidade. Se não houver ajuda por parte dos órgãos públicos e da comunidade, as pessoas sairão do sistema muito piores do que entraram. JC – Quem ensina as presas a tecerem as peças? NCSB – A professora é a policial que deu a ideia de criar o projeto. Como ficava na Delegacia e via que as presas não estavam fazendo nada, teve a ideia de começar a ensiná-las a fazer esses artesanatos. Nos dias em que está de folga, ela ensina as detentas. Agora, a policial está fazendo outros cursos na capital, de outros tipos de artesanato, para ensiná-las. JC – Essa atividade pode resultar na redução da pena? NCSB – Sim. A cada três dias trabalhados, elas ganham um de remissão. Isso também as incentiva bastante. Já que estão ociosas e sem renda nenhuma, passam a acreditar que é muito melhor trabalhar, ganhar seu dinheiro e, ainda por cima, obter a remissão de um dia. JC – Qual é a população carcerária de Anastácio? NCSB – Temos um convênio com Aquidauna, uma cidade muito próxima a nossa, separada apenas por uma ponte. Como não possuímos estabelecimentos penais adequados e Aquidauna tinha apenas estabelecimentos para homens, acordamos que as detentas ficariam em Anastácio e os detentos em Aquidauna. Em Anastácio, ao todo, temos 14 detentas, oriundas dessas duas cidades. 2009 DEZEMBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 13
A EFETIVAÇÃO DO SONHO CONSTITUCIONAL DA CELERIDADE PROCESSUAL
Mauro Luiz Campbell Marques Ministro do STJ
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obretudo contemporaneamente, o incremento econô mico-financeiro e as sucessivas crises redundantes do aumento da atividade de mercado na era globalizada fizeram desaguar no Judiciário um volume extraordinário de ações e seus consectários (recursos e medidas incidentais) sem que investimentos compatíveis com os reclamos da cidadania fossem alocados ao Sistema Judiciário como um todo. Se considerarmos exclusivamente o que ocorreu com o Poder Judiciário no Brasil, temos que acrescer o fato inconteste que, ainda que em alguns Estados da federação, recursos financeiros tenham sido destinados à Justiça, seus órgãos gestores se mostraram desatualizados sob o ponto de vista da gestão pública, graças à extraordinária centralização administrativa e à dificuldade própria de nobres julgadores despidos, via de regra, de qualquer intimidade com a lida de corriqueiros temas relativos à árdua tarefa de gerir a cousa pública. O resultado previsível dessa fórmula, que, sob tais premissas, nascera falha, foi o estrangulamento nas instâncias julgadoras, onde milhões de processos passaram a se arrastar sem qualquer perspectiva para os jurisdicionados brasileiros, mercê do exemplo desse gargalo que vinha de cima para baixo, tudo isto funcionando como se ilhas fossem. Nada mais desestimulante para se vislumbrar do que um planejamento estratégico capaz de levar, também para o Judiciário, o princípio constitucional da eficiência na
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Administração, incorporado que foi ao Texto Maior através da Emenda n.º 45/2004. (Como se qualquer sistema pudesse ser idealizado e pensado para ser ineficiente...) De inestimável valia a instalação dos Conselhos Nacionais de Justiça e do Ministério Público para políticas públicas, sobretudo as voltadas para a fixação de procedimentos uniformizados e estrategicamente postos à disposição de todos os integrantes do Sistema Judiciário, sem embargo da atuação correcional necessária aos que recalcitram, insistindo em contaminar a nobilíssima missão de julgar. A par de uma evidente mudança de concepção e, por que não averbar, de cultura mesmo, novas e alvissareiras ideias se firmam através de iniciativas nascidas e aprimoradas nos próprios organismos do Judiciário, com inequívoco realce para a digitalização de todos os autos em tramitação no Poder Judiciário brasileiro, começando pelo seu maior Tribunal, o Superior Tribunal de Justiça. Não é, portanto, recente o acréscimo ideológico, na Constituição da República vigente, de garantias, em favor das partes em âmbito judicial e administrativo, da razoável duração dos processos. Sob a perspectiva do direito objetivo, entretanto, trata-se da norma extraída do atualíssimo inc. LXXVIII, do art. 5º, da Lei Maior. Muito se comenta sobre esta razoável duração, mas pouco se discute acerca da parte final do referido dispositivo, que determina a observância de “meios que garantam a
Foto: Sandra Fado SCO/STJ Foto: Sandra Fado SCO/STJ
celeridade de sua tramitação”. Estes meios já estão por aí, permeando a legislação processual e, entre eles, o art. 538, parágrafo único, do Código de Processo Civil, referente aos embargos de declaração protelatórios. Os aclaratórios, por dispensarem preparo e sucumbência, vêm sendo um meio de impugnação de decisões judiciais usado abusivamente na esfera judicial. Como se sabe, sendo um recurso destinado ao saneamento de omissões, contradições, obscuridades ou erros materiais, seu caráter infringente só pode ser admitido quando, por ocasião da reversão dos vícios mencionados, houver modificação do resultado do julgamento. É costume, entretanto, ver as partes manejando embargos de declaração “com efeitos infringentes”, como se coubesse a elas atribuir ou não tal efeito aos aclaratórios. Ora, não compete à parte atribuir efeitos infringentes à peça recursal; é o Tribunal que, observando a situação descrita no parágrafo anterior, reconhece ou não a infringência. No mais das vezes, a parte vem recebendo um provimento conforme a jurisprudência dos Tribunais Superiores desde a origem, em demandas que se arrastam até alcançarem as instâncias extraordinárias (em sentido lato) por mais de seis ou sete anos. Chegando a controvérsia ao Superior Tribunal de Justiça, esses provimentos são confirmados monocrática e colegiadamente e, não satisfeita, a parte sucumbente opõe embargos de declaração com manifesto propósito infringente,
sem sequer apontar a existência de vícios que autorizariam, à luz da lei, o manejo deste recurso. Não há como negar, portanto, o caráter protelatório do recurso aclaratório, e, sobre isso, ainda é necessário lançar uma ordem de consideração, que tem a ver com o papel do Poder Judiciário e das partes na sistemática processual. A Constituição da República preconiza de forma muito veemente, como já dito, a necessidade de resolver de forma célere as questões submetidas ao Poder Público (arts. 5º, inc. LXXVIII, e 37, caput), posto que essas demandas dizem com as vidas das pessoas, com seus problemas, suas angústias e suas necessidades. A seu turno, a legislação infraconstitucional, condensando os valores e princípios da Lei Maior, é pensada para melhor resguardar direitos, e não para servir de mecanismo subversivo contra eles. Em tempos de severas críticas ao Código de Processo Civil brasileiro, é preciso pontuar de que pouco ou nada adiantará qualquer mudança legislativa destinada a dar agilidade na apreciação de processos — como essas tantas que temos experimentado — se não houver uma revolução na maneira de encarar a missão dos Tribunais Superiores e do Supremo Tribunal Federal. Enquanto reinar a crença de que esses Tribunais podem ser acionados para funcionar como obstáculos dos quais as partes lançam mão para prejudicar o andamento dos feitos, será constante, no dia a dia, o desrespeito à Constituição. Como se não bastasse isso, as consequências não param aí: aos olhos do povo, essa desobediência é fomentada pelo Judiciário, e não combatida por ele; aos olhos do cidadão, os juízes passam a ser inimigos, e não engrenagens de uma máquina construída unicamente para servi-lo. É por isso que, enfrentando situações em que os embargos de declaração são utilizados como mecanismos de chicana jurídica, com visível caráter protelatório, na falta de modificação no comportamento dos advogados (públicos ou privados) — que seria, como já dito, o ideal —, torna-se indispensável que também os magistrados não fiquem inertes, que também eles, além dos legisladores, tomem providências, notadamente quando o próprio sistema já oferece arsenal para tanto. É caso de aplicar o art. 538, parágrafo único, do Código de Processo Civil, sem esquecer, entretanto, de diversos outros meios que garantam a celeridade, tais como o art. 557, § 2º, também do CPC. Enfim, é preciso deixar de lado uma certa leniência para com os que utilizam de forma errônea o Judiciário; pois, do contrário, haverá deslealdade para com a cidadania. Temos que estabelecer por meta prioritária a fixação de critérios cada vez mais objetivos na tentativa de desafogar os órgãos superiores do Judiciário a permitir a entrega da prestação jurisdicional de maneira mais efetiva e com mais qualidade, fortalecendo as instâncias (inicial e recursal originárias) que bem devem avaliar o caderno processual, convertendo em realidade um sonho constitucional absolutamente factível. 2009 DEZEMBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 15
A MAGISTRATURA PEDE SOCORRO Eliana Calmon Ministra do STJ
NOta do Editor Fincado no princípio adotado pela Revista, desde os primórdios de sua fundação há 10 anos, de defesa intransigente do Poder Judiciário e da Magistratura, temos que concordar e aplaudir o posicionamento da magnífica e extraordinária Ministra Eliana Calmon, no seu pedido de SOCORRO! Inicialmente, declaramos ser inteiramente favoráveis ao princípio proporcional, reservado aos membros do Ministério Público e representantes da Ordem dos Advogados do Brasil, na constituição e formação das Cortes dos Tribunais Superiores. Entretanto, como demonstrado pela nossa ilustre articulista, a representatividade constitucional do MP e da OAB no Superior Tribunal de Justiça, como vem acontecendo, por certo extrapola o intuito dos legisladores da Carta Magna, pois a continuar o atual sistema de nomeações no STJ, proximamente teremos nessa Corte, não um quinto, mas a metade ou mais dos ministros representantes dessas duas conceituadas categorias, o que, certamente, contraria, não somente as regras e normas, como objetivamente devem ser preenchidas as vagas decorrentes das aposentadorias e afastamentos dos respectivos titulares. A digna e conceituada Ministra Eliana Calmon, está de parabéns pelo inconformismo e razão no apelo, cabendo aos vários órgãos associativos da Magistratura agirem junto à cúpula do Poder Judiciário, para postulação perante o Poder Legislativo, de regulamentação da matéria, a fim de que o preceito constitucional do quinto proporcional não seja desvirtuado.
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quinto constitucional, criado pela Constituição Federal de 1934, vem sendo questionado ao longo dos anos, principalmente agora quando se abre uma ampla discussão sobre a sua sobrevivência. Não pretendo discutir tal aspecto, mas outro bem mais sério em relação à Magistratura, tão questionada e cobrada no momento em que se faz a revisão das instituições nacionais e assume o Poder Judiciário a importância necessária à realização dos novos direitos. A estrutura constitucional do Poder Judiciário tem na base apenas magistrados que ingressam na carreira por concurso público, com experiência mínima de dois anos e, depois de no mínimo cinco anos, podem chegar aos tribunais intermediários. 16 JUSTIÇA & CIDADANIA | DEZEMBRO 2009
Os tribunais, diferentemente, contam na formação não apenas com os juízes de carreira, mas também com membros do Ministério Público e advogados, na proporção de um quinto, escolhidos pelas suas categorias respectivas, sendo chamados de representantes do quinto constitucional. As três categorias de magistrados, nominados de desembargadores, estaduais ou federais, têm formação inteiramente distinta; por isso mesmo, na composição das turmas de julgamento, tem-se a preocupação de mesclar a formação, de modo a se manter o equilíbrio na representação, considerado a essencialidade na aplicação da justiça. No topo da estrutura, como órgãos máximos da Justiça, estão o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça. Para os juízes, entretanto, é o STJ o órgão maior pela sua formação, constituído de dois terços de magistrados de carreira, dentre os seus trinta e três integrantes. Enquanto são os ministros do Supremo Tribunal Federal, como Corte política, escolhidos livremente pelo Presidente da República, o Superior Tribunal de Justiça tem formação eminentemente técnica e eclética, contando com trinta e três integrantes, sendo onze desembargadores dos Tribunais de Justiça dos Estados, onze dos Tribunais Regionais Federais e onze outros dentre membros do Ministério Público e advogados. A escolha dos integrantes do STJ obedece a um complexo procedimento, mas é um ponto luminoso sob a ótica democrática, porque dele participam os Três Poderes da República: o Judiciário escolhe três candidatos, formando uma lista tríplice levada ao Executivo; este indica ao Legislativo um dos nomes para exame; se homologada a indicação, caberá ao Presidente da República a nomeação daquele que até os setenta anos de idade será o julgador maior de todos os conflitos de interesse da nação. Quando da elaboração da Constituição de 1988 e das Emendas Constitucionais seguintes, pretendeu-se estabelecer, como texto impresso, regra que consagrasse o equilíbrio entre as categorias, a exemplo do consignado para a formação do Tribunal Superior do Trabalho; na escolha dos ministros daquela Corte, observa-se a origem, de forma a se manter equilibrada a participação dos magistrados de carreira e dos oriundos do quinto constitucional. Seja por atrofia política, seja por falta do necessário empenho dos órgãos representativos, o certo é: deixou de
constar no texto constitucional a observância da gênese dos magistrados na composição do STJ. A falta de texto escrito tem ensejado grave distorção na formação do “Tribunal da Cidadania”, deixando-se de observar a paridade pretendida pelo legislador constitucional. Assim, os desembargadores que chegam aos tribunais como representantes das categorias dos advogados e do Ministério Público tornam-se juízes e podem, a partir da nomeação, concorrer a uma vaga no Superior Tribunal de Justiça. A prática, à evidência, desequilibra a formação ec lética da Corte, porque os advogados transformados em desembargadores somados aos ministros ocupan tes da vaga de advogado originalmente terminam por se constituírem em maioria. No passado, a escolha dos desembargadores, oriundos do quinto, dava-se dentre os que ti nham especial realce na Corte, identificados como verdadeira mente vocacionados; isto somente se pode saber com o desem penho da função jurisdicional. Entretanto, nos últimos anos as escolhas passaram a obedecer a critérios outros, de tal forma que advogados recém-chegados aos tribunais, com dois ou três anos de Magistratura, podem concorrer às vagas do STJ, dispu tando com desembargadores de carreira, com mais de vinte ou trinta anos de Magistratura e vasta experiência de julgador. A prática, além de quebrar a paridade, é de flagrante injustiça para com a Magistratura de carreira, cujos integrantes a escolheram em tenra idade, prepararam-se por toda a vida para o exercício da função, após se submeterem a concurso de provas e títulos, viverem o desconforto da judicatura em longínquas cidades do interior, angustiarem-se com as disputas promocionais, padecerem com as dificuldades de escolha até ascenderem aos tribunais. E, quando podem almejar o coroamento da carreira, ascendendo a um Tribunal Superior, enfrentam como concorrentes os colegas do quinto constitucional, muitos dos quais com menos de cinco anos de Magistratura; se tivessem ingressado por concurso não estariam aptos a disputar sequer uma vaga nos tribunais inferiores. Todos se dizem vocacionados, mas não enfrentaram a Magistratura, seja porque não quiseram se submeter ao concurso público, ou à remuneração incompatível com o seu nível econômico, seja porque não aceitaram a árdua trajetória iniciada nas cidades interioranas. Enfim, não se compatibilizaram com as dificuldades no exercício da Magistratura. A distorção na formação da Corte leva a uma outra perplexidade: os magistrados de carreira chegam ao STJ com nada menos que cinquenta anos, exatamente pelo longo caminho a percorrer, diferentemente dos colegas que, com apenas dez anos de advocacia podem se tornar desembargadores e assim aportarem ao STJ com pouca ou pouquíssima experiência na judicatura e idade cada vez menor. A face mais perversa da disfunção aqui registrada, sob o ângulo subjetivo do juiz, são as poucas chances de um magistrado de carreira, dentro do STJ, as funções reservadas aos juízes mais antigos: como presidência, vice-presidência,
corregedoria, Justiça Eleitoral, Escola de Magistratura, etc. ficam cada vez mais nas mãos dos representantes do quinto. Os magistrados de carreira chegam à Corte Superior com idade média de sessenta anos e como tal permanecem na Corte por apenas dez anos, em média, sem tempo de chegar aos cargos de direção, diferentemente dos magistrados oriundos do quinto, que, na plenitude dos quarenta e poucos anos, podem ter trajetória de mais de vinte anos e assim assumirem as funções de direção da Casa. Tenho observado a absurda distorção, tenho lamentado estar a Magistratura brasileira sendo dirigida e conduzida quase que exclusivamente pelos advogados transformados em juízes pelo mecanismo constitucional do quinto, e tenho me indignado com a omissão dos órgãos representativos como Associação dos Magistrados Brasileiros, Associação dos Juízes Federais e até da Associação dos Juízes para a Democracia. Defendem a abolição do quinto, desmancham-se em pronunciamentos contra a regra constitucional, mas são incapazes de encetar uma eficiente defesa institucional em favor dos magistrados de carreira no aspecto mais perverso da sua sobrevivência. Até aqui tenho mantido a discrição necessária ao exercício do meu mister, na esperança de ver corrigida a distorção. Entretanto, chego à conclusão da necessidade de falar para que se possa ver o óbvio: as insensatas e injustas escolhas, sob o aspecto subjetivo, desestimulam a Magistratura, desprestigiam os juízes de carreira que, céticos quanto ao acesso, vão aos poucos se transformando em modestos servidores públicos, sem a pujança que se espera de um agente político como deve ser o magistrado. Sob a ótica objetiva, a disfunção traz a preocupação de prejuízos institucionais irreversíveis pela inserção de julgadores com pouca vivência e sem formação adequada em um tribunal eminentemente técnico como é o Superior Tribunal de Justiça. Não questiono a sobrevivência do quinto constitucional, no momento acho muito mais grave o que se passa no STJ. A minha preocupação, se guardada e só timidamente esboçada interna corporis, e inteiramente sem sucesso, faz-me parecer covardemente acomodada e fugitiva de uma realidade inexorável. É preciso combater todas as práticas que possam macular a última das trincheiras de cidadania: O JUDICIÁRIO. 2009 DEZEMBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 17
A crise no Judiciário e a criação do STJ Roberto Rosas
Professor Titular da Universidade de Brasília Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional
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A crise do Judiciário o dia 20 de maio de 2004, o Superior Tribunal de Justiça comemorou o 15º aniversário de sua instalação. Naquela ocasião, falamos em nome do Conselho Federal da OAB o texto a ser descrito. Após, refletiremos sobre os últimos cinco anos. A palavra crise, de etimologia grega, significou forma de opção, de escolha; mas no Brasil, a crise significa fase difícil, conturbada, aguda. Em todos os tempos há crise do Estado, da sociedade, do Direito, da Justiça. Se como cidadãos estamos vinculados a todas essas crises, a da Justiça toca os magistrados, advogados e o Ministério Público, porque ela está nas nossas vidas profissionais e angustia a todos, e todos devem pelejar para a superação da crise da Justiça. Pela primeira vez ouviu-se falar em crise do Supremo Tribunal. Andava-se pela década de 40, e algo clamava por soluções. Na verdade, era mais crise do Recurso Extraordinário do que da Corte Suprema. Em 1946, quando da edição da Constituição, o Supremo recebeu menos de 2000 processos. Por isso, a Carta Magna criou o Tribunal Federal de Recursos, com 9 ministros, principalmente para julgar os recursos nas causas de interesse da União, antes apreciadas pelo STF. Soluções De 1947 a 1987, 40 anos portanto, verificou-se que o STF não saiu da crise, e o TFR também viveu período conturbado. Novamente providências foram tomadas, e a mais contundente foi a criação do Superior Tribunal de Justiça para conciliar as crises do STF e do TFR. Mas não bastava a criação de um tribunal, era necessário dar a ele ossatura, feição própria, e mensagem de otimismo aos militantes no Judiciário. Abriu-se 18 JUSTIÇA & CIDADANIA | DEZEMBRO 2009
a grande oportunidade do acesso das demandas a Brasília, na conciliação do poder da região, com o federalismo e a isenção de uma Corte longe dos embates locais. O cidadão acredita na Justiça e quer acesso, mas também quer a saída, no dilema da prestação jurisdicional segura e rápida, e isso não é resolvido nas eternas reformas do Judiciário, porque sem reforma estrutural da Justiça, desburocratização processual e reforma do Judiciário com objetividade, estaremos enganando a sociedade, os juízes, os advogados e os jurisdicionados, como ocorre na presente reforma, ora em exame no Congresso, simplesmente cosmética e superficial. Sem reforma processual profunda e objetiva para a massa das demandas, nada será feito. Processo para todas as camadas, e não processo complexo que não atinge aos milhões de demandas em curso no Brasil, e não solução para os órgãos de cúpula do Judiciário, vítima das consequências de um intrincado sistema processual, vazio de soluções para resolver, com mais de dois milhões de processos que circulam somente na cidade de São Paulo. A criação do STJ Essa Corte foi criada para ajudar no combate à crise. Tem lutado tenazmente para superá-la e atender ao cidadão que respeita a Justiça e acredita no Judiciário, o mais respeitado e acatado dos poderes, aqui e no mundo. Necessita de meios, de fórmulas, mas o mundo jurídico agradece a este Tribunal pelo que fez, e fará, mas nos unamos numa cruzada para evitar uma chamada crise do Superior Tribunal de Justiça. Essas observações refletiram a preocupação dos últimos quinze anos. Vejamos então, neste momento (março/2009), se as observações procediam na superação de uma futura crise do Superior Tribunal de Justiça.
Foto: Rafael Wallace/Alerj
Os problemas dos vinte anos Muito esforço tem sido empreendido pelas administrações, e o profundo entendimento dos ministros no atingimento de metas ideais, numa Corte, talvez, a mais gigante do mundo, onde cada ministro recebe cerca de mil processos mensalmente. Com a maior diligência, se o magistrado julgar trinta processos por dia (inclusive domingos e feriados) concluirá o mês com novecentos processos findos, e na prateleira, para o mês seguinte, terá cem processos. Em 2008 foram recebidos 277.000 e julgados 354.000. É um número fantástico. A adoção de regras para os recursos repetitivos dará ampla margem de escoamento de processos que exigem trabalho manual (informática, papel, divulgação e espaço). A vintenária dicotomia REsp/RE ainda causa uma série de recursos, ou até dúvida sobre os procedimentos. Em qualquer dificuldade, haverá a interposição dos dois recursos, num volume nem sempre insignificante. Há necessidade de um esclarecimento ou desvendamento dessa dicotomia. Sobre o juízo de admissibilidade do REsp, há exagero na negativa sobre as grandes questões, matérias relevantes, demandas de vulto, interesse geral ou de uma gama de pessoas. O que acontece? Nesses casos, os relatores dão provimento ao agravo, com grande tempo perdido com a interposição do agravo de instrumento. O STJ estimulou (no salutar sentido) a adoção da medida cautelar para dar efeito suspensivo ao recurso especial. Teses avançadas foram defendidas, e deviam ser aplaudidas, para o prestígio da futura decisão do STJ. De nada vale o provimento do REsp muito tempo depois do cumprimento de uma decisão.
É fantástico o número de recursos e agravos interpostos. A sucessiva interposição de REsp e depois agravo é impressionante no volume de feitos e perda de tempo. O STJ recebeu, em 2008, 121.000 agravos. Ora, é repensar se estamos no paroxismo entre a liberdade na subida do então recurso extraordinário (sem juízo de admissibilidade até 1956) ou hoje, num imenso número de REsp/RE inadmitidos. A solução está na fixação de pressupostos para a interposição. Muito se fala sobre estas soluções, algumas para o STF, que tem feição diversa de um tribunal de natureza infraconstitucional, e o tribunal da cidadania. A adoção da repercussão geral esvaziará o STJ nos dois sentidos: de processos e de prestígio. Este certamente, aquele continuará com a relutância de recursos baldios. As dúvidas pronunciadas em 2004 continuam. Há necessidade da redução da competência do STJ? Aumentar o número de membros? É solução de empresa sem praticidade. Aumentar o número de empregados sem racionalização de serviços e atividades. As restrições devem vir em lei, sobre matérias ou critérios de avaliação, numa transparência total. O futuro As preocupações continuam com um relevante tribunal, um dos maiores do mundo (270.000 processos no ano de 2008). É o cidadão confiante no acesso a esse tribunal. Encontremos as saídas. O juiz deve adaptar-se às novas realidades e assumir as novidades com o pensamento inserido em observações de Richard Posner, em recente livro (How Judge Think, 2008, Harvard University). 2009 DEZEMBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 19
Os profissionais jurídicos no litígio de família Peterson Barroso Simão Juiz do TJRJ
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empre aprendendo e sentindo, faço essa reflexão e, de modo geral, parabenizo a todos os profissionais que tenham a missão de solucionar os complexos litígios de família. Quando da formação dos núcleos familiares, seus fundadores proclamam votos de perenidade. É o amor, in perpetuum, jurado no altar, no murmúrio dos afagos, na procriação de um novo ser. É a promessa assumida sem o “vírus” do pecado, na perspectiva de que “para que o amor produza todo o bem de que é capaz, deve ser livre, generoso, irrestrito e integral”. Em “O Casamento e a Moral”, Bertrand Russell sublinha: “A essência do bom casamento é o respeito recíproco pela personalidade combinado com aquela profunda intimidade, física, mental e espiritual, que faz do amor sério entre o homem e a mulher a mais frutífera de todas as aventuras humanas. Esse amor, como tudo que é grande e precioso, exige sua própria moral, e frequentemente acarreta um sacrifício do menor ao maior; porém esse sacrifício deve ser voluntário, porque, quando não é, destrói a própria base do amor pela qual é feito” (grifo nosso). A ficção jurídica, celestial, tem perante a eternidade os seus minutos de espaço. Às vezes se dilarga, duro toda uma vida; outras, nem tanto, sequer uma intempérie conjugal. Os percalços da existência atingem, por infinitas razões, pessoas até preparadas para a vida, outras nem tanto. O escoadouro das desavenças familiares são as Varas Especializadas, superlotadas. Nelas são procurados pais, mães, alimentos, separações, interdições, divórcios, enfim, uma infindável gama de interesses. O material com que se lida nas Varas de Família é o desajuste das afinidades e os desencontros de vontades, fomentando o 20 JUSTIÇA & CIDADANIA | DEZEMBRO 2009
mútuo desrespeito. São episódios que poderiam ser abordados, íntimos dos parceiros em descompassos, através dos conselhos amadurecidos dos mais vividos, familiares e amigos. O ajuste, ou o reajuste, nem sempre acontece. E quando implode, ruma para os escritórios advocatícios, dos quais duas vertentes emergem: uma busca da parte adversa a reconciliação, ou, no mínimo, a conciliação, para que não sejam acirradas as disputas; a outra, ao diverso, acirra os ânimos, cuja vitória lhe trará vantagens e renome, alcançando espaço, por vezes no tapete da mídia, quando os personagens são destaques no quadro social. Dentre tantos, tais são os motivos pelos quais, como Juiz de Vara de Família, sempre pugnamos no sentido de que os operadores do direito nesta área (Advogados, Juízes, Promotores de Justiça, Defensores Públicos, Assistentes Sociais, Psicólogos, Oficiais de Justiça, Serventuários) melhores frutos colherão na fluência da especialização vocacional. Lidam com os mais profundos sentimentos humanos, posto que as partes, de rotina, são sempre marido, mulher e filhos, os quais, por vezes, passam acentuados desgastes, por uma infinita gama de causas. Porém o bom profissional bem pode superá-los, ao diverso de alastrar conflitos, às vezes mesmo criá-los onde não existam, ou apenas embrionários, passíveis de serem seccionados no nascedouro. Em matéria de família, a sensibilidade jurídica (art. 5°, LICC) pode ser mais preciosa do que a letra fria e o rigorismo do texto legal. A literatura concernente informa que os filhos municiam as armas dos pais, sendo explosivos usados com frequência para vencer a resistência do “adversário”; já nos deparamos com inúmeros processos ajuizados, tendentes a uma só separação; vimos maridos despejados do próprio lar, despojados até
Foto: Arquivo Pessoal
de seus pertences pessoais, de bens e salários, reduzidos à miséria jurídica; outros, impiedosamente, acionados por alimentos; defrontamo-nos com o rancor no coração de certas mães, assacando contra pais no pregão fantasmagórico de abuso sexual às filhas, quando por eles levados às visitações; encontramos pais poderosos sonegando alimentos, optando pela temporária prisão; a pecha de adultério e conduta desonrosa são vigorosamente apregoadas nas acirradas disputas, imputações de um para com o outro cônjuge, fruto do rancor ante o esmorecimento ao respeito recíproco e da estima fenecida, gravando, a ferro e fogo, marcos increpantes para os próprios filhos, não raro causando-lhes sequelas emocionais. Idosos na barra dos Tribunais se separando, se divorciando, mesmo quando no inexorável final da existência. Detectamos erro de cônjuges complacentes um com o outro, mantendo acesa a fogueira da desavença atiçada por estranhos; cônjuges doentes abandonados, no permissivo legal ou não, tendo por abrigo as casas de caridade, os asilos como derradeiro lar, interdições, às vezes tão forjadas de um cônjuge em face do outro. Pais e filhos se digladiam pelos mais mesquinhos motivos. Vimos abandono material, isto e muito mais, que um profissional especializado não pudesse minorar as causas e seus efeitos. Tudo pode ficar mais complicado quando a parte procura pelo advogado especializado, o qual, através da lógica e da razoabilidade, sentirá a possibilidade de êxito, ou não, da demanda e o compromisso de levar ao Judiciário somente a verdade. Saibam todos que o êxito em Varas de Família o fundamento do melhor sucesso, é diretamente proporcional à transigência, prudência, paciência e ao equilíbrio. Lapidar a senha do eminente Desembargador Ellis Hermydio Figueira em um dos julgados da sua lavra vivencial: “O ADVOGADO É O PRIMEIRO JUIZ DA CAUSA.” O profissional especializado ouvirá a parte, constatará a veracidade dos fatos e, não conseguindo aparar arestas, reconciliará, ou conciliará as exigências, desapaixonadamente, sem agressividade, sem malucar o caráter e a honra, moderadamente impulsionará o Judiciário e, sem trair os seus objetivos, restringirá o odioso e ampliará o favorável, preferindo, sempre, as soluções menos benignas à racionalidade dos conflitos humanos. Afinal, “exaltar, enaltecer com entusiasmo, ou maldizer, detratar com veemência não é argumentar; será uma ilusão, fruto da paixão irrefreada, ou indício de inópia à razão”. Cumpre evitar, nas Varas de Família, qualquer inclinação simpática ou antipática, solidariedade ou ojeriza por qualquer das partes, eis que a paixão se sobrepõe, sem se perceber, à boa-fé. Como Defensor Público, cargo que exercemos por uma década, ou como Juiz de Direito, há vários anos tivemos reflexos negativos e não poucos desgastes emocionais, lutando por pautar no limite do razoável. Não há paradoxo algum, o advogado, ainda que veemente,
deve evitar extrapolar os limites que lhe impõe a deontologia da sua profissão, quase sacerdotal, sob pena de provocar a odiosa LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ, por todos os ângulos censurável, levando eles, patrocinador e a parte patrocinada, a responderem civil e criminalmente. São raríssimos mesmo os profissionais especializados que se deixam impregnar pela paixão das partes, que se permitem atos atentatórios à dignidade da Justiça, jogando para a galeria ou resistindo injustificadamente aos trâmites da lide, retardando indevidamente o cumprimento da obrigação, viciando atos processuais, deduzindo pretensão sabidamente desonesta e improcedente, que desvirtua a seriedade processual, altera a verdade dos fatos, provoca incidentes desnecessários, ilaqueando a boa-fé da Justiça. Em audiência, já vimos mais razão naquele que ficou silente do que naquele que pretende falar demasiadamente. Em todas as Varas, mas principalmente nas de Família, o profissional especializado faz uso da dialética jurídica, da linguagem formal, educada, sóbria e técnica, emprestando luzes de sua experiência em produção técnica, em amadurecida reflexão sobre o conflito de interesses familiares, que não foram abortados e/ou se concretizaram como inevitáveis, substitui a bravata pelo alto nível e responsabilidade das discussões jurídicas. É importante que se use a linguagem da diplomacia, que não se arrede da realidade, que não se deixe enganar nem pelo próprio cliente e jamais substitua a razão pela emoção, pois sabe que em litígio de Família, NÃO EXISTEM VENCEDORES, TODOS SÃO VENCIDOS. 2009 DEZEMBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 21
Fotos: Alexandre Vidal
Da esquerda: Eric Holm-Olsen, Wolff Klabin, Yann Duzert, Ana Pessoa, Jason Dyett, Francisco Müssnich, Samuel Elia, Carlos Gouvea, Max Fontes, Dennis Hearne, Marcus Fontes, James Sinclair, Marcelo Mester, Luciana Tornovsky
Harvard Law School Association Governador Sérgio Cabral e Cônsul-Geral dos EUA Dennis Hearne participam da solenidade de posse da nova Diretoria no Brasil
Da Redação
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O advogado Max Fontes, sendo reeleito Presidente da Harvard Law School Association of Brazil
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o último dia 2 de dezembro, foi empossada a nova Diretoria da Harvard Law School Association of Brazil – HLSAB, entidade fundada há 120 anos nos EUA, que reúne, ao redor do mundo, cerca de 35.000 exalunos e professores da renomada instituição. Realizada no Salão Nobre da Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, a solenidade contou com a presença do Governador Sérgio Cabral e do Cônsul-Geral dos EUA Dennis Hearne, além de inúmeras autoridades, magistrados, juristas e empresários. O advogado Max Fontes foi reeleito Presidente da HLSAB e como VicePresidentes assumiram os advogados Luiz Müssnich, Marcus Fontes e Luciana Tornovsky. Em seu discurso, o Presidente Max Fontes destacou que 2009 foi um ano muito especial não somente para Harvard, como também para o Rio de Janeiro e para o Brasil. “Os motivos para essa celebração são muitos. No campo acadêmico, nossa Associação realizou um feito inédito. Graças a parceria firmada com o Tribunal de Justiça do RJ e com a EMERJ e ao apoio financeiro, logístico e institucional da FGV Direito Rio, trouxemos pela 1ª vez ao país um ministro da Suprema Corte dos EUA. O Justice Antonin Scalia veio ao Rio para participar do Seminário Internacional Direito e Desenvolvimento em que discutimos sobre o papel da Justiça no enfrentamento da crise financeira. Uma iniciativa que se insere num projeto institucional mais amplo que temos de ampliar a integração dos Judiciários dos 2 países”, ressaltou Max Fontes. Projetos sociais desenvolvidos por membros da HLSAB foram também mencionados como motivos para comemoração, dentre eles o Projeto de Capacitação Ambiental, que recebeu R$300.000,00, da Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça, para ajudar 1.000 jovens da Favela da Rocinha e da Cidade de Deus. O projeto foi concebido em benefício do Instituto
Governador Sérgio Cabral entre os advogados gêmeos Max Fontes e Marcus Fontes
O Governador Sérgio Cabral discursando durante a Confraternização Anual de Harvard e solenidade de posse da nova Diretoria
Reação, ONG criada pelo medalhista olímpico Flávio Canto, que visa afastar jovens carentes de situação de vulnerabilidade social através do esporte e do reforço escolar. Max destacou ainda a criação de um Prêmio anual para homenagear pessoas e instituições que prestem serviços relevantes em prol do Direito, da Liberdade e da Justiça. “Conforme entendimentos havidos com o seu neto, Kadu, esse prêmio será idealizado e desenhado por um dos maiores gênios da arquitetura mundial, Dr. Oscar Niemeyer, e terá como símbolo inicial ‘um homem se destacando no mundo, um verdadeiro expoente, um líder de idéias e de ações’”, registrou Max. O Presidente da HLSAB ressaltou igualmente a importância de celebrar 2009 em virtude do crescente papel dos juízes na vida republicana brasileira e da importância da vitória do Rio de Janeiro para sediar os Jogos Olímpicos de 2016. “Há exatos dois meses, o Rio de Janeiro foi escolhido como sede das Olimpíadas de 2016 e, desde então, fomos tomados por uma vibração contagiante, um entusiasmo coletivo e pungente, que está fazendo ressurgir, silenciosamente, um novo Brasil: mais seguro de si e de seu povo, de sua cultura e de suas tradições. Esse é um sentimento fundamental para qualquer projeto de sociedade e de Nação. Isso porque essa vibração nos faz sentir que aquele ‘país do futuro’ imaginado no passado, poderá, enfim, se tornar mais próximo do presente. Um presente que temos que construir nos próximos seis anos. Um desafio imenso que exigirá não somente um maciço investimento em infraestrutura, mas, sobretudo, uma eficaz interlocução dos 3 Poderes da República: seja no planejamento e na execução das obras pelo Executivo, seja na elaboração do marco regulatório dos Jogos pelo Legislativo, seja na interpretação, por parte do Poder Judiciário, das regras que criarão direitos e deveres para todos os agentes participantes.
A Primeira-Dama do Estado, Dra. Adriana Ancelmo, Governador Sérgio Cabral e o Presidente da HLSAB Max Fontes
O Governador Sérgio Cabral recebendo homenagem dos membros da Diretoria de Harvard, Max Fontes, Marcus Fontes e Wolff Klabin
Max Fontes, Maximino Fontes, Claudio Soares Lopes, Sérgio Cabral, Marcus Fontes e Dennis Hearne 2009 DEZEMBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 23
Senador Bernardo Cabral, Dra. Maria Regina Nova e o Des. Luis Felipe Francisco
Apesar dessa vitória só ter sido possível graças a sintonia dos 3 níveis de governo, podemos dizer que, para o povo fluminense, essa conquista teve início com uma postura simples do Governador no início de seu mandato. Um gesto singelo feito em 2006, mas que introduziu uma verdadeira ruptura no antigo modelo de gestão de nosso Estado: a busca de uma sintonia, de uma harmonia e de uma convergência com o Município do RJ e com o Governo Federal. Tudo para que o Rio de Janeiro pudesse resgatar seu papel de vanguarda, e assim como os americanos fizeram esse ano ao eleger Obama, pudesse celebrar esse momento histórico de hoje: de um reencontro de uma cidade com o seu povo e com seu destino”. Em seu discurso, o Governador Sérgio Cabral ressaltou o excelente momento em que o Brasil se encontra e, em particular, o Estado do RJ, com o início dos preparativos para as Olimpíadas de 2016. “O Rio de Janeiro vive seu melhor momento das ultimas décadas graças a retomada da relação perdida com o governo federal e com o Município do RJ.” Após o seu discurso, o Governador recebeu uma homenagem especial dos membros da Diretoria de Harvard em reconhecimento por seu empenho pessoal para a escolha do RJ como sede dos Jogos Olímpicos. A mesma homenagem foi concedida ao Cônsul-Geral dos EUA Dennis Hearne, pela apoio do Consulado Americano às atividades da HLSAB. Em seu discurso de agradecimento o Cônsul-Geral enfatizou que “o governo federal, estadual e municipal estão trabalhando juntos para aproveitar ao máximo os investimentos para o Rio de Janeiro. A vitória do Rio de Janeiro em 2 de outubro vai permitir o desenvolvimento na área de segurança, a revitalização da zona portuária e a prospecção dos recursos disponíveis no pré-sal.”
Os membros da Diretoria de Harvard, Gustavo Miguez de Mello e Antonio Carlos Rodrigues do Amaral com o ex-Ministro da Justiça, Paulo de Tarso Ribeiro 24 JUSTIÇA & CIDADANIA | DEZEMBRO 2009
O Presidente do Tribunal de Contas do Município do RJ, Thiers Montebello, com os membros da Diretoria de Harvard, Max Fontes, Francisco Müssnich e Marcus Fontes
Lélis Teixeira, Dennis Hearne, Max Fontes, Francisco Müssnich, Claudio Lopes e Marcus Fontes
Presidente do Flamengo Marcio Braga entre os advogados Max e Marcus Fontes
O Diretor Sergio Chermont de Brito com o ex-presidente do Tribunal de Justiça do RJ, Des. Murta Ribeiro e a Desembargadora Maria Inês Gaspar
Os membros da Diretoria de Harvard, Marcus Fontes, Antonio Carlos do Amaral, Joaquim Falcão e Francisco Müssnich, com o Procurador-Geral de Justiça Claudio Lopes
O Cônsul-Geral dos EUA Dennis Hearne recebendo homenagem da Vice-Presidente da HLSAB Luciana Tornovsky e do Presidente da Harvard Business School James Sinclair Harvard law school association of brazil President: Max Fontes, LL.M.’00 Vice-Presidents: Luiz Müssnich, LL.M.’89; Marcus Fontes, ITP/LL.M.’01; Luciana Tornovsky, ITP/LL.M.’00 Program Directors (Rio de Janeiro): Corinto Falcão, LL.M.’72; Diego Faleck, LL.M.’05 Program Directors (São Paulo): Daniel Facó, LL.M.’99; Maria Bertoletti, ITP/LL.M.’99 Director for Academic Affairs: Carlos Portugal Gouvêa, LL.M.’04, S.JD.’07
O Vice-Presidente da HLSAB Marcus Fontes com Maurício Dinepi, Presidente do Jornal do Commercio
Directors for International Affairs: Alexandre Vidal Porto, LL.M.’00 (EUA); Luis Dias de Souza, LL.M.’01 (Brasil) Board of Directors: Altamiro Boscoli, LL.M.’65, Antonio Carlos Rodrigues do Amaral, ITP/LL.M.’94 (Emeritus), Ary Oswaldo Mattos Filho, ITP/LL.M.’68, Daniel Vargas, LL.M.’04, S.J.D.’10; Francisco Müssnich, LL.M.’79, Francisco Dornelles, ITP’66 , Gustavo Miguez de Mello, ITP’69, Joaquim Falcão, LL.M.’68; João Grandino Rodas, LL.M.’78; Luiz Carlos Sturzenegger, LL.M.’94, Sérgio Kós Chermont de Brito, LL.M.’55; Sergio Tostes, LL.M.’69 Secretary: Álvaro Jorge, LL.M.’02 Treasurer: Maria Cristina Mattioli, LL.M.’94
Max Fontes com o Cônsul-Geral dos EUA Dennis Hearne e o medalhista olímpico Flávio Canto, fundador do Instituto Reação
O Diretor da HLSAB Daniel Facó com o Governador Sérgio Cabral e o Presidente Max Fontes
HLSAB Honorary Member: Justice Carlos Mario da Silva Velloso, H.M.’05
Salão Nobre da Bolsa de Valores do Rio de Janeiro 2009 DEZEMBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 25
AUSÊNCIA DE SUCESSÃO NO TRANSPORTE PÚBLICO LICITADO
Bernardo A. Cardoso de Oliveira Advogado
N
o dia 25 de outubro de 2009, foi realizado um Congresso, promovido pelo TJRJ e CEDES, em Angra dos Reis, versando sobre as controvérsias que afligem as concessionárias de serviços públicos. Naquela oportunidade, enfrentou-se o tormentoso tema que envolve a existência — ou não — de sucessão no transporte público licitado. Isso porque as concessionárias de serviço público (v.g., Metrô-Rio e Supervia) vêm sendo severamente penalizadas com um passivo absolutamente inesperado, sobretudo porque as referidas concessionárias não pactuaram tais obrigações, pois não constam nos respectivos contratos de concessão, muito menos nos editais de licitação. Para palestrante foi convidado o Ministro Luis Felipe Salomão e para debatedor o advogado Leonardo Pietro Antonelli. Inicialmente, o Ministro Salomão fez uma brevíssima introdução sobre o Recurso Especial, com a visão de quem saiu há pouco mais de um ano de um tribunal estadual e se deparou com a difícil tarefa de mudar a perspectiva do exame das questões que sobem ao Superior Tribunal de Justiça. Os tribunais locais fazem a justiça do caso concreto, e o STJ, por força de missão constitucional, tem outra perspectiva. Eis a síntese das preocupações do Ministro Luis Felipe Salomão externadas no evento realizado pelo TJRJ e CEDES (Centro de Estudos e Debates): “O STJ é um tribunal de precedente; então, uma vez firmado 26 JUSTIÇA & CIDADANIA | DEZEMBRO 2009
o precedente pelos mecanismos internos; uma vez julgada a questão pela seção, todos os recursos terão a mesma solução. Não adianta um ministro ter opinião divergente porque vai esbarrar nos Embargos de Divergência, assim todos os juízes seguem a mesma linha. Deve se ter em vista que quem analisa provas, quem faz justiça no caso real, é a câmara local. O STJ tem uma função precípua que é a de ser o guardião do direito federal. Ele uniformiza a jurisprudência e, em tese, não está preocupado com a justiça do caso concreto, o STJ preocupado-se apenas em saber se houve violação à lei ou se os tribunais estão interpretando de maneira divergente a mesma questão; se for esse o caso, o STJ intervém; do contrário a justiça está feita naquele caso concreto. Assim funciona o STJ, e é por isso que algumas questões não chegam a ser conhecidas, muito embora tenham extraordinária relevância para o caso concreto. Outra observação cabível é que, diante desse volume de causas mencionado, vai sendo criada na corte o que chamamos de jurisprudência defensiva, ou seja, há uma análise muito mais rigorosa dos pressupostos de admissibilidade do Recurso Especial e do Agravo. Normalmente o STJ encerra muitas questões nos pressupostos específicos. Dentre as diversas Súmulas, que impedem o conhecimento do Recurso Especial, destacam-se
Foto: Rosane Naylor
a 5/STJ — da “simples interpretação de cláusula contratual” — e a 7/STJ — que menciona “pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial” — que atingem muitas das questões que vão ao exame da corte, e inclusive têm barrado, no caso da sucessão de empresas, a grande maioria da admissão de recursos pelo STJ”. Pois bem, enfrenta-se aí a primeira grande preocupação. Com efeito, observa-se a existência de 1330 (um mil, trezentos e trinta) demandas judiciais — indenizatórias — direcionadas contra a Supervia e o Metrô-Rio, o que sem dúvida é um número elevado, mas em contrapartida apenas 2 (dois) Recursos Especiais foram conhecidos, por conseguinte tiveram exame de mérito. Todos os demais foram inadmitidos pela 3ª Vice Presidência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, sempre com amparo nas Súmulas 5 e 7 do Superior Tribunal de Justiça. Por isso mesmo, na palestra cujo tema foi: “Os impactos das decisões judiciais sobre a sucessão obrigacional dos transportes de passageiros”, realizada no dia 5 de novembro de 2007, sob a presidência do Juiz de Direito Cláudio Dell´Orto, o Ministro Luiz Fux, sintetizou que “se isso não for bem resolvido na instância local, há uma certa interdição de análise pelo Superior Tribunal de Justiça”. A par de todas as dificuldades, faz-se necessário examinar a teoria geral da concessão e o que tem acontecido no Superior
Tribunal de Justiça sobre sucessão. A respeito do tema proposto, a jurisprudência inicialmente entendia que o contrato de concessão foi firmado entre as partes e, portanto, só vincula as mesmas de modo que o credor, que é terceiro, não pode ser prejudicado. O fundamento legal seria o artigo 42, do Código de Processo Civil, que versa sobre alienação de coisa litigiosa, conforme Recurso Especial 399.569-RJ, Min. Rel. Ruy Rosado de Aguiar, 4ª Turma do STJ, julgado em 10.2.2003. O referido acórdão, nas palavras do Ministro Luiz Fux no mesmo evento, “...é uma jurisprudência que vou cognominar de paternalista — protecionista sem o mínimo fundamento legal. Não há um artigo de lei citado nessa jurisprudência. Esse voto tem uma lauda e meia e dispõe o seguinte: se a concessionária exerce o mesmo trabalho da outra, a mesma atividade da outra, ela automaticamente é responsável por tudo quanto possa ter acontecido, aplicável o artigo 42, do Código Civil.” O Ministro Luis Felipe Salomão, por sua vez, no evento realizado na AMAERJ, teve oportunidade de examinar detidamente a questão, ocasião em que entendeu que “não se trata da alienação da coisa, a coisa não está sendo alienada. Não se trata de direito litigioso, é que ocorreu antes o fato ensejador daquele suposto direito de responsabilidade, mas não se trata de alienação da coisa nem de direito litigioso. E, portanto, esse dispositivo não tem aplicação. 2009 DEZEMBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 27
Analisando a questão à luz do direito público, observa-se que as regras do direito administrativo constitucional dispõem que as empresas criadas pelo governo respondem por danos segundo as regras de responsabilidade objetiva.
A interpretação do 42, e ainda como se diz no parágrafo terceiro, que era um processo de conhecimento, diz que a sentença proferida entre as partes originárias estende os efeitos ao adquirente e ao cessionário. Na verdade, ele diz respeito ao processo de conhecimento no qual houve alienação de um bem que era litigioso, de uma propriedade, de um carro, de alguma coisa que estivesse em disputa e houvesse a substituição da legitimidade dos que litigavam no processo. Absolutamente não é o caso. Não tem aplicação no 42. Poderia-se pensar na responsabilidade patrimonial para se atingir bens de terceiros em relação a uma dívida antiga, mas esbarramos na questão da não extinção da pessoa jurídica originária. Por fim, e apenas também uma reflexão, o credor, nesse caso, não vai ficar a ver navios. Acho que não se abordou aqui, mas como se não obtida a indenização por intermédio da pessoa jurídica ainda não extinta, quem responde lá atrás é o Estado. Ele é o responsável. Perdoem-me, eu cheguei a pincelar isso, mas acho que temos que refletir, não vai entrar no precatório, não; porque é dívida alimentar. Então, penso que o Estado responde não pela via do precatório, mas responde sem deixar a parte a ver navios”. Analisando a questão à luz do direito público, observa-se que as regras do direito administrativo constitucional dispõem que as empresas criadas pelo governo respondem por danos segundo as regras de responsabilidade objetiva. E, na hipótese de exaurimento dos recursos da prestadora de serviços, o Estado responde subsidiariamente. Consolidando os fundamentos supra, de forma magistral, o Ministro Luiz Felipe Salomão no evento promovido pelo CEDES 28 JUSTIÇA & CIDADANIA | DEZEMBRO 2009
e TJRJ, destacou o segundo, e mais recente precedente, favorável às empresas, relatado pelo Ministro João Otávio de Noronha que, “no caso, o precedente se refere ao Metrô1, e não à Supervia, mas a hipótese é exatamente idêntica. E ele diz: “É defeso atribuir o cumprimento de obrigação por ato ilícito contraída por empresa prestadora de serviços públicos a outra que não concorreu para o evento danoso, apenas porque também é prestadora dos mesmos serviços públicos executados pela verdadeira devedora. Tal atribuição não encontra amparo no instituto da responsabilidade administrativa, assentado na responsabilidade objetiva da causadora do dano e na subsidiária do Estado, diante da impotência econômica ou financeira daquela”. Colhe-se dos fundamentos esposados pelos Ministros Luiz Fux e Luis Felipe Salomão que a questão, apesar de tormentosa, tem se encaminhado ao respeito pelo contrato de concessão, aqui merecendo destaque a valiosa contribuição do Ministro Luiz Fux, quando constatou que “a Corte Especial é claríssima em manter a fidelidade na obediência do próprio contrato, pois estas entidades que exercem atividades delegadas encerram mega-atividades. E as grandes corporações gostam de inteirar-se do início, do meio e do fim. Elas precisam saber os limites da sua responsabilidade”. Em absoluta sintonia, com as preocupações das grandes corporações, o advogado Leonardo Antonelli, na qualidade de debatedor do congresso demonstrou os reflexos financeiros das decisões judiciais quando constatou que “inegavelmente o transporte coletivo de massa no Brasil e no mundo, implica na realização de milhões e até mesmo bilhões de reais de investimento (como exemplo recente o trem-bala para as olimpíadas, orçado em 30 bilhões de reais) e, evidentemente, aquele que investe 10, 100 ou 600 milhões necessita saber o início, meio e fim.” “Para restringir o exemplo a duas empresas (Supervia e Metrô-Rio), entre tantas que Brasil afora sofrem deste mesmo problema, somente estas duas são chamadas a adimplir na fase de execução 1.330 processos, cujo valor HISTÓRICO somado é de mais de R$600 Milhões de reais. Estes dados foram auditados ano após ano pela KPMG (Metrô) e pela Price (Supervia), conforme consta nos seus balanços sucessivamente publicados desde 1998, data do início da concessão.” Sem embargo, a análise sobre existência de sucessão deve ser bem decidida nos tribunais locais, posto que o STJ nem sempre pode examinar o mérito da questão, mormente se existente ou não a sucessão, tendo em vista o teor das Súmulas 5 e 7 do STJ. Todavia, colhe-se que a jurisprudência sobre sucessão está mais para observância ao contrato de concessão, na medida em que o próprio Ministro Luiz Fux afirmou que “a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, ao meu modo de ver, está mais próxima ao porto do que ao naufrágio”, porque reflete o recente precedente da 2ª turma, capitaneado pelo Ministro João Otávio de Noronha. NOTAS 1 REsp. 738.026-RJ, Ministra Relatora Eliana Calmon, redator do acórdão ministro João Otávio de Noronha, 2ª Turma do STJ.
O PAPEL DA AGU NA GARANTIA DA SEGURANÇA JURÍDICA DO DESENVOLVIMENTO NACIONAL José Weber Holanda Alves
A
Advocacia-Geral da União – AGU, vive um momento histórico e especial, pois, plagiando o nosso Presidente Lula: “Nunca na história desta AGU um membro da carreira ocupou o mais alto cargo deste Órgão”. A oportunidade está posta e não se deve perdê-la, mostrando ao povo brasileiro que a escolha foi acertada, e que, a partir de então, a AGU será sempre comandada por um de seus membros. Esse é o momento de afirmar a atuação republicana de excelência, seja na orientação jurídica da gestão pública, seja na representação do Estado nos tribunais. A nova administração da AGU terá como principal desafio a consolidação da imagem da eficiência dos Advogados Públicos Federais junto aos Poderes da República e à sociedade, os verdadeiros clientes e razão de existir deste órgão. A AGU é reconhecida como necessária e fundamental para a garantia da segurança jurídica do Estado e para o bem-estar do cidadão brasileiro, porque não há políticas públicas nas áreas de saúde, educação, previdência, emprego, por exemplo, que se sustentem sem o devido assessoramento jurídico e a devida defesa legal por parte dos advogados públicos. Daí o caráter de essencialidade que permeia a atuação e, consequentemente, a responsabilidade dos integrantes das carreiras jurídicas. Pertencer a uma instituição com a capilaridade e a transversalidade da Advocacia-Geral da União requer espírito público dedicado e propensão ao diálogo. É importante salientar que os integrantes da AGU têm que incrementar a cultura da conciliação como exigência do atual processo de evolução e amadurecimento das instituições públicas, com vistas a um desenvolvimento nacional alicerçado em atos jurídicos perfeitos, ágeis, seguros. Visão estratégica e trabalho coordenado refletem bem o espírito que a nova administração da AGU deve imprimir durante
Foto: Arquivo Pessoal
Procurador Federal
a sua gestão e, para isto, enfrentará os seguintes desafios: garantir a segurança jurídica para o desenvolvimento nacional; fortalecer as prerrogativas de Instituição de Estado por meio de uma nova Lei Orgânica mais atual e realista; assegurar aos seus membros a garantia de que não serão responsabilizados por suas opiniões técnicas; ampliar a transparência dos atos da Instituição por meio dos canais de comunicação interna e externa; incrementar os instrumentos extrajudiciais de resolução de conflitos; aparelhar a Instituição com melhor infraestrutura física e maior reconhecimento dos nossos recursos humanos. Para alcançar, de maneira plena esses desafios é necessário o apoio de todas as carreiras jurídicas e dos servidores administrativos que fazem a AGU. 2009 DEZEMBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 29
LRF, LEI ELEITORAL E A REDUÇÃO DOS MANDATOS DOS CHEFES DE PODER
Rodrigo Tostes de Alencar Mascarenhas
O
mandato dos Chefes do Poder Executivo é de quatro anos e o dos demais poderes é de dois anos. No entanto, a análise de normas oriundas do direito financeiro e do direito eleitoral demonstra que, em boa parte deste tempo, o dirigente tem sua liberdade de atuação significativamente tolhida, como procuraremos demonstrar neste breve trabalho. A realização de qualquer despesa pública pressupõe, dentre outras dezenas de coisas, a prévia existência de dotação orçamentária. Ou seja, para se gastar é preciso que este gasto tenha sido previsto no orçamento. Ocorre que, quando se trata de um novo Chefe do Executivo, esta lei orçamentária decorrerá de um projeto de lei encaminhado pelo governo anterior. Ou seja, o novo prefeito pode passar todo o primeiro ano de seu mandato podendo gastar apenas aquilo que foi planejado por seu adversário, cujo projeto político a população acaba de reprovar nas urnas. Assim, é plenamente possível que um prefeito — eleito com o programa de construir postos de saúde — não possa fazer nada disso em seu primeiro ano de mandato se o seu antecessor tiver colocado no orçamento previsão de obras apenas de asfaltamento. Tem-se, portanto, uma primeira grande frustração, que a meu ver violenta o princípio democrático, 30 JUSTIÇA & CIDADANIA | DEZEMBRO 2009
segundo o qual o programa aprovado nas urnas pelo povo é aquele que deve ser executado. Ademais, as despesas classificadas como “investimentos” (o que inclui a execução de qualquer obra), cuja execução ultrapasse um exercício financeiro, só podem ser realizadas se estiverem incluídas no plano plurianual (conhecido como “PPA”), que é um instrumento de planejamento que, a partir da CF de 1988 (art. 167, §1º), tornou-se não somente obrigatório como, ademais, tem que ser aprovado por meio de lei formal. O conteúdo mínimo do PPA, para a esfera federal, está previsto na CF, que determina que ele “estabelecerá, de forma regionalizada, as diretrizes, objetivos e metas da administração pública federal para as despesas de capital e outras delas decorrentes e para as relativas aos programas de duração continuada”1. Qual é, então, o problema para o novo mandatário? O problema é que, como previsto em seu nome, o PPA se refere a mais de um ano, na verdade, a três2 anos. Ou seja, é bem possível que no primeiro e até no segundo ano de seu governo nosso novo mandatário esteja no curso do período de um PPA aprovado por seu antecessor, que pode, evidentemente, não ter incluído no plano investimentos que só passaram a ser prioritários com a última eleição.
Foto: Rosane Naylor
Ou seja, num país tão carente de políticas públicas na área social, um ente não pode iniciar um programa no último ano do mandato do respectivo dirigente.
É verdade que o PPA não é imutável. Ou seja, ele pode ser modificado no seu curso por outra lei. Mesmo assim, trata-se de mais uma restrição que alcança o mandatário e cuja utilidade deve ser avaliada, não só pelo direito, mas pelos especialistas em gestão pública, planejamento e teoria política, a fim de que se verifique se o que se ganha com o planejamento — a nosso ver muito pouco, pelo grau de abertura do PPA — compensa o que se perde com o travamento de políticas públicas. Além das limitações orçamentárias, existem diversas outras que surgem de duas leis: a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e a lei eleitoral3. Ambas estão carregadas de boas intenções — garantir a responsabilidade das finanças públicas e a higidez das eleições — mas, no entanto, criam limitações extremamente rigorosas na atuação dos mandatários, o que inviabiliza inclusive diversos programas sociais. O pior é que, em anos eleitorais, existe uma sobreposição de proibições derivadas das duas leis, o que faz com que as restrições sejam ainda maiores. Em relação às proibições decorrentes da lei eleitoral, um ponto fundamental é saber se a proibição atinge apenas o ente em cuja esfera estiverem sendo realizadas eleições ou se, ao contrário, todos os entes são sempre atingidos4. Na
1ª hipótese a restrição atingiria apenas 1 em cada 4 anos. Na 2ª, a restrição atingiria 2 anos em cada 4 (ou seja, ano sim ano não). Não temos dúvida de que a interpretação mais correta, sob todos os pontos de vista, é a primeira, já que restrições — ainda mais da magnitude que veremos a seguir — se interpretam restritivamente. No entanto, a segunda interpretação tem sido defendida por importantes autoridades. Com efeito, na virada de 2007 para 2008 (ano em que ocorreram eleições municipais), o Governo Federal anunciou que efetuaria alterações no programa Bolsa Família. Face à restrição — que analisaremos a seguir — de execução de novos programas sociais em ano eleitoral, o então Presidente do TSE, Ministro Marco Aurélio Mello, deu entrevistas (objeto de diversas manchetes na virada do ano) sustentando a posição de que tais alterações seriam ilegais (ou seja, sustentando que, embora se tratassem de eleições municipais e que o programa alterado era federal, ainda assim a referida restrição seria aplicável). É verdade que seu sucessor temperou um pouco a questão5; mas, ainda assim, a insegurança jurídica permanece, o que é péssimo para o gestor sério. Pois bem, como já adiantado, no último ano do mandato ou — dependendo da interpretação que se dê ao dispositivo 2009 DEZEMBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 31
Como se tudo isto não bastasse é de se destacar que a aplicação do dispositivo aos Chefes dos demais Poderes e instituições é ainda mais absurda uma vez que o mandato de tais dirigentes é, em regra, de dois anos, com o que eles sofrerão a incidência da proibição durante 1/3 de seu mandato.
em questão — em qualquer “ano em que se realizar eleição” (ou seja, no 2º e no 4º ano do mandato), segundo o art. 73, §10º, da Lei nº 9.504/97, é proibido distribuir gratuitamente bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública, exceto nos casos de: calamidade pública, estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior. Ou seja, num país tão carente de políticas públicas na área social, um ente não pode iniciar um programa no último ano do mandato do respectivo dirigente. O pior é que, perdoe-se a insistência, dependendo da interpretação, isso tampouco pode ser iniciado no 2º ano6. Ora, o problema é que, devido ao fato, já comentado, de que o Chefe do Executivo governa o primeiro ano com o orçamento decorrente de proposta enviada por seu antecessor, é bem provável que não haja previsão orçamentária que permita o início do programa no 1º ano de governo, o que, em decorrência do referido dispositivo, igualmente inviabiliza sua execução no 2º ano. Conclui-se, então, que novos programas sociais só são facilmente iniciados no 3º ano de governo. Se estivéssemos na Escandinávia é bem possível que a população pudesse esperar. No Brasil, isto quase nunca é possível. Note-se que a interpretação gramatical do dispositivo pode levar a resultados desastrosos. Por exemplo, a entrega de uniforme escolar para alunos da rede pública não deixa de ser uma “distribuição gratuita de bens” que, portanto, estaria proibida. Ora, podemos demonstrar os equívocos de tal interpretação, mas o fato é que ela é “compatível” com a expressão gramatical da norma, o que, aliado à velha compreensão (“em vigor” em alguns manuais) de que a 32 JUSTIÇA & CIDADANIA | DEZEMBRO 2009
administração só pode fazer o que estiver expressamente autorizado em lei, expõe um prefeito que assim o fizer aos riscos de uma ação de improbidade. Seguindo a linha temporal, somos levados aos limites estabelecidos pela LRF. Estes, na verdade, aplicam-se não apenas aos Chefes do Executivo; mas, igualmente, aos chefes de outros poderes. Pois bem, a primeira limitação (seguindo a linha temporal) estabelecida pela LRF se encontra em seu art. 42, que veda “ao titular de Poder ou órgão referido no art. 20, nos últimos dois quadrimestres do seu mandato, contrair obrigação de despesa que não possa ser cumprida integralmente dentro dele, ou que tenha parcelas a serem pagas no exercício seguinte sem que haja suficiente disponibilidade de caixa para este efeito”. Compondo a regra proibitiva, o parágrafo único do dispositivo estabelece que “na determinação da disponibilidade de caixa serão considerados os encargos e as despesas compromissados a pagar até o final do exercício.” Em linguagem leiga a interpretação do dispositivo pode parecer simples. As autoridades referidas não podem contrair, nos últimos 8 meses de seu mandato, dívida que não possa ser paga dentro do próprio mandato, salvo se deixarem “em caixa” dinheiro suficiente para que a dívida seja paga pelo sucessor. Mas a regra está longe de ser simples. Algumas expressões merecem atenção especial, “cumprir”, “obrigação de despesa”; “disponibilidade de caixa” e “encargos e despesas compromissadas”. Com efeito, o dispositivo estabelece que a obrigação de despesa contraída nos últimos 8 meses do mandato tem que ser “cumprida integralmente”. Ora, o que é cumprir integralmente uma despesa pública? A pergunta se
impõe porque a execução da despesa pública é um procedimento (e, como tal, dividido em distintas fases) complexo, regulado por lei própria — Lei n.º 4.320/64 — que não se utiliza da expressão “cumprir” despesa, e sim das expressões — que correspondem a distintas fases —“empenhar”, “realizar”, “liquidar”, “efetuar” ou “ordenar” o “pagamento” de despesas. Assim, a insegurança jurídica na definição da matéria é extremamente prejudicial aos gestores públicos. Como se tudo isto não bastasse é de se destacar que a aplicação do dispositivo aos Chefes dos demais Poderes e instituições é ainda mais absurda uma vez que o mandato de tais dirigentes é, em regra, de dois anos, com o que eles sofrerão a incidência da proibição durante 1/3 de seu mandato. Seguindo com as proibições, temos aquela (prevista no art. 21, parágrafo único, da LRF) segundo a qual “é nulo de pleno direito o ato de que resulte aumento da despesa com pessoal expedido nos cento e oitenta dias anteriores ao final do mandato do titular do respectivo Poder ou órgão”. Ainda na esfera de pessoal — mas agora se voltando para a Lei eleitoral (art. 73, V, da Lei n.º 9.504/97) —, temos a proibição, aplicável no mesmo período7, de que o agente efetue quaisquer atos que importem em admissão, que demita sem justa causa e que, dentre outras medidas “ex officio”, remova, transfira ou exonere servidores públicos8. Ou seja, a rigor, a simples transferência de um médico de um posto de saúde localizado em um bairro, para outro posto em bairro distinto, estaria proibida neste período. Já nos três meses que antecedem o pleito, é proibido (pelo art. 73, VI e seu § 3º da Lei n.º 9.504/97) “realizar transferência voluntária de recursos da União aos Estados e Municípios, e dos Estados aos Municípios, ressalvados os recursos destinados a cumprir obrigação formal preexistente para execução de obra ou serviço em andamento e com cronograma prefixado, e os destinados a atender situações de emergência e de calamidade pública.” Note-se que, em nossa federação hipercentralizada do ponto de vista fiscal, as transferências voluntárias compõem parte significativa do orçamento de quase todos os municípios e boa parte dos estados. Com a regra em questão, qualquer obra com estes recursos que não tenha se iniciado neste prazo só poderá ser iniciada no ano seguinte, alongando-se o tempo de atendimento às demandas da população. Em suma, o Chefe do Executivo (e, em menor medida, os chefes dos demais poderes) tem um tempo bem inferior ao de seus mandatos nominais, no qual estarão efetivamente livres para executar seu programa. O pior é que estes entraves se aplicam justamente num momento em que, em outra seara — constitucional —, cresce cada vez mais o movimento de máxima valorização e de possibilidade de execução forçada dos direitos sociais com o crescimento exponencial da demanda de diversas providências por parte do poder público, que, para piorar, no pouco tempo que lhe resta livre tem que executar suas ações sob o comando de leis extremamente burocratizantes como a Lei n.º 8.666/93. Em suma, se não há dúvida de que os objetivos buscados pela LRF e pela lei eleitoral são importantes, por outro lado
há de se refletir se eles justificam a intensidade dos entraves colocados para a gestão pública. A nosso ver o legislador “errou na mão” e alguns ajustes se tornam necessários, sob pena de frustrarmos cada vez mais a expectativa da população por uma boa prestação de serviços públicos. NOTAS Reforçando a determinação constitucional, o art. 5o , § 5o da Lei de Res ponsabilidade Fiscal estabelece que “a lei orçamentária não consignará dotação para investimento com duração superior a um exercício financeiro que não esteja previsto no plano plurianual ou em lei que autorize a sua inclusão, conforme disposto no § 1o do art. 167 da Constituição.” 2 Segundo o art. 165, § 9o da CF, este prazo deveria ser estipulado em lei complementar. Assim, o dispositivo legal que “fixa” este prazo é o art. 23 da Lei n. 4.320/64, segundo o qual “As receitas e despesas de capital se rão objeto de um Quadro de Recursos e de Aplicação de Capital, aprovado por decreto do Poder Executivo, abrangendo, no mínimo, um triênio.” O problema é que este dispositivo tratava de um mero “quadro”, ou demons trativo, que deveria acompanhar a proposta de lei orçamentária. 3 Lei n. 9.504/97. 4 Na 1ª hipótese a restrição valeria para os municípios apenas em ano de eleição municipal e para estados e a União em eleição estadual e federal. Na 2ª hipótese, em qualquer ano eleitoral, todo e qualquer ente sofreria a restrição. 5 Para que se tenha uma ideia da polêmica, ao noticiar, em maio de 2008, a posse do novo presidente do TSE, Ministro Carlos Ayres Britto, o sítio do jornal O Globo afirmava: “O grande debate nas eleições deste ano deverá ser a ampliação de programas sociais do governo Lula (...). O presidente fez várias viagens a municípios para falar da ampliação destes programas e os partidos de oposição contestaram formalmente (...) no TSE. O anteces sor de Britto na presidência do TSE, ministro Marco Aurélio Mello, criticou a prática de ampliar os programas sociais e insinuou que ela seria ilegal pelo fato de este ano ser de eleições nos municípios. Mais cauteloso, Brit to apontou apenas que essa será uma grande questão a ser definida pelo TSE neste ano. Esse tema é um fio de navalha, porque a linha que separa o legal do ilegal é muito tênue, comentou o novo presidente do TSE. Ele considerou primeiro o fato de haver eleições em todos os anos pares, ora municipais, ora presidenciais. Assim, os governantes reclamam, segundo Britto, que o veto à ampliação destes programas poderia levá-los a gover nar ano sim, ano não. O problema, para ele, está em manter o equilíbrio de forças entre os candidatos, verificando se há mesmo benefícios indevidos aos municípios aliados ao governo. Como fica a paridade de armas entre os candidatos nesta temporada de caça aos votos? Perguntou” (http://oglobo.globo.com/pais/mat/2008/05/08/para_presidente_do_ tse_partidos_devem_ser_fieis_programas-427278944.asp, consulta feita em 30.03.2009). 6 No qual haverá eleições em outros entes. 7 O dispositivo localiza temporalmente a proibição nos 3 meses que antece dem o pleito e até a posse dos eleitos. As eleições, no Brasil, se realizam sempre no 1º domingo de outubro (art. 28, 29, II e 77 da CF). Assim, dependendo da data em que caia o 1º domingo de outubro, a proibição atingirá os últimos seis meses de mandato ou os últimos 5 meses e 3 se manas do mandato. 8 A Lei ressalva: a nomeação ou exoneração de cargos em comissão e designação ou dispensa de funções de confiança; a nomeação para cargos do Poder Judiciário, do Ministério Público, dos Tribunais ou Conselhos de Contas e dos órgãos da Presidência da República; a nomeação dos aprova dos em concursos públicos homologados até o final do sexto mês do último ano de mandato; a nomeação ou contratação necessária à instalação ou ao funcionamento inadiável de serviços públicos essenciais, com prévia e expressa autorização do Chefe do Poder Executivo; e a transferência ou remoção ex officio de militares, policiais civis e de agentes penitenciários. 1
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E m foco
Conciliação também na execução da sentença
A
Semana Nacional da Conciliação, promovida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), será ampliada no ano que vem. A conselheira Morgana Richa, presidente da Comissão de Acesso à Justiça e Cidadania, que é o órgão responsável pela fiscalização e elaboração do planejamento estratégico do Judiciário brasileiro, anunciou que a meta para 2010 é levar a negociação a outras fases do processo, principalmente à execução da sentença. A composição nesta etapa processual é mais comum na Justiça do Trabalho, por estar prevista na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Nos ramos Federal e Estadual, por sua vez, é proposta no início do conflito, quando os direitos ainda não foram reconhecidos. Segundo a conselheira, a mudança no foco tem como objetivo proporcionar maior rapidez e efetividade à decisão judicial. A proposta de ampliar o rol das hipóteses em que a composição entre as partes é possível não parece tão simples, ainda mais no caso da execução da sentença. “A conciliação é mais fácil antes do julgamento, pois os direitos ainda não foram reconhecidos. Depois que o processo é julgado, o recuo entre as partes é mais difícil. É um desafio. Porém é necessário para dar efetividade à sentença judicial”, afirmou Morgana Richa. A conselheira contou que a ideia de estender a conciliação surgiu após uma experiência verificada na última edição da Semana Nacional da Conciliação, realizada entre os dias 7 e 11 de dezembro últimos, na Vara de Execuções Fiscais da cidade de São Paulo. Esse juízo conseguiu eliminar 1.410.122 processos após o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Núcleo de Planejamento e Gestão do Tribunal de Justiça de São Paulo e a Secretaria Municipal de Justiça colaborarem para o aperfeiçoamento do sistema eletrônico, permitindo que trocasse informações com a Prefeitura e a Procuradoria da Fazenda municipal de forma mais ágil. Aquela vara, no entanto, conta ainda com acervo de 1.172.331 processos em andamento e 538.078 execuções arquivadas provisoriamente. O acervo do juízo é significativo se
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levado em consideração o fato de que foi criado em novembro do ano passado. Para o CNJ, uma das saídas para reduzir o estoque é a realização de acordos com as procuradorias da Fazenda, mesmo após o início do processo. “Temos que evoluir a conciliação conforme a própria demanda do Judiciário. Um ponto que necessariamente deverá ser pensado para 2010 é a efetividade da execução judicial”, afirmou Morgana Richa, destacando que a medida visa a atender todo o Brasil. A conselheira explicou que a conciliação passará a ser proposta após a decretação da sentença e para qualquer tipo de ação. O foco, entretanto, será maior na execução fiscal. Esse processo geralmente é mais moroso, principalmente por envolver órgãos públicos, que sempre foram inacessíveis no que diz respeito à conciliação, segundo afirmou. “Temos que evoluir a conciliação de acordo com a própria demanda do Judiciário. Um ponto que necessariamente deve ser pensado para 2010 é a conciliação na fase de execução, etapa esta mais complexa. Na execução fiscal é mais importante ainda por atingir os órgãos públicos, que são vistos como intocáveis para efeitos de conciliação”, disse. Morgana Richa acredita ser possível a realização de acordos mesmo após a decretação da sentença. Segundo ela, a medida é importante e pode até contribuir para acelerar o pagamento dos precatórios – crédito estabelecido por determinação do juiz, a ser pago por entes públicos. Estimativas indicam que a dívida de estados e municípios já ultrapassaria R$ 100 bilhões. “A conciliação é um processo de aproximação das partes. Mesmo depois de reconhecido o título, é possível as partes cederem. Com isso, processos que duram 10 ou 15 anos seriam solucionados”, afirmou. A proposta de estender à conciliação é bem vista. O presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJ-RJ), desembargador Luiz Zveiter, afirmou que a composição deve ser proposta em qualquer etapa do processo. “A conciliação tem que se dar em todas as fases processuais. E com qual intuito? Encurtar o caminho do
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processo através de um acordo que satisfaça as partes”, disse. O presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região (Rio de Janeiro), desembargador Aloysio Santos, explicou que a conciliação na execução já ocorre nesse ramo do Judiciário. “Isso está previsto na CLT. A conciliação é nosso objetivo maior. Então, ainda que superada a fase de instrução e o julgado feito, o juiz do trabalho pode, a qualquer momento e com base na Consolidação das Leis do Trabalho, propor a conciliação, inclusive durante a execução”, afirmou o magistrado, destacando que a conciliação tornou-se a nova política do tribunal, adotada tanto pela primeira como pela segunda instância. No encerramento da Semana Nacional da Conciliação, realizado em solenidade no Palacete Neocolonial do Botafogo de Futebol e Regatas, no dia 11 de dezembro último, Morgana Richa lembrou que os tribunais de Justiça do País receberam, no ano passado, 70 milhões de novas ações. Essa demanda, quando dividida entre a população, traduz-se em um processo por cada três habitantes. Se levado em consideração o fato de que em cada ação há pelo menos duas partes, no polo passivo e ativo, mais da metade dos brasileiros teriam demanda no Judiciário, explicou. De acordo com a conselheira, as estatísticas apontam a necessidade de se criar alternativas para a resolução mais célere de todos esses conflitos. “É preciso instalar uma cultura voltada para a conciliação. O papel do CNJ é justamente esse: direcionar as políticas estratégicas de modo a haver maior investimento na conciliação”, disse. O resultado da Semana Nacional da Conciliação realizada nesse ano foi impressionante. Balanço parcial, divulgado no dia do encerramento, apontava a celebração de 81.613 acordos pelas justiças Federal, do Trabalho e Estadual, que
somavam o montante de R$762.923.577.79. O Judiciário Trabalhista foi o que obteve a maior negociação: R$357,1 milhões no total. Em seguida está o Judiciário dos estados, com R$352,6 milhões acordados, e o Judiciário Federal, com R$53,1 milhões. Nessa edição, foram realizadas 184.035 audiências em todo o País e atendidas 345.224 pessoas. Morgana Richa explicou que os valores envolvidos são ainda maiores, se considerados os dados da Semana Nacional da Conciliação, promovida pelo CNJ em setembro, para acelerar a Meta 2 do Judiciário, que visa o julgamento de todos os processos distribuídos até dezembro de 2005. A Semana Nacional da Conciliação integra o Programa Conciliar é Legal, criado pelo CNJ em 2006. Naquele ano, o projeto foi realizado apenas em um dia – 8 de dezembro, em comemoração ao Dia da Justiça. Foram realizadas na ocasião 46.493 acordos. Em 2007, muitos tribunais estenderam a iniciativa por vários dias, dando início à Semana. O número de conciliações subiu para 96.492 naquele ano. Já no ano passado, o CNJ registrou a obtenção de 130.848 composições em todo o Brasil. Para o conselheiro Nelson Tomaz Braga, o balanço tem sido cada vez mais positivo. “Estamos criando a consciência nacional de que o conciliar é legal, não apenas no termo da legalidade. Estamos criando uma nova mentalidade, que alcançou a todos os juízes, empresas, parceiros do CNJ e sociedade”, disse. Em decorrência do movimento liderado pelo Conselho, a conciliação, poderá se tornar obrigatória. A comissão de juristas criada pelo Senado Federal para elaborar o anteprojeto de reforma do Código de Processo Civil cogitou incluir na norma um dispositivo nesse sentido. 2009 DEZEMBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 35
LIBERA JÁ!
Siro Darlan
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Desembargador do TJRJ Membro da Associação Juízes para a Democracia Membro do Conselho Editorial
NOta do Editor O corajoso artigo do eminente e conceituado desem bargador Siro Darlan, que com grande satisfação publicamos, esperando que produza, sem hipocrisia, os devidos debates entre o Poder Público e a sociedade, constitui uma tentativa necessária para minorar as desgraças que estão corroendo a sociedade, matando inocentes e vitimando desgraçadamente a juventude que se encontra completamente desamparada de efetiva assistência pública, em uma luta inglória, na qual o crime está levando vantagem. O nosso articulista é um experimentado magistrado no trato dos problemas da juventude, e pontificou com grande competência na direção dos Juizados de Infância e Juventude, abordando o relevante assunto da liberação das drogas, que necessita urgentemente de debates para o encontro de resultados que venham encontrar o caminho e a solução para acabar com o tráfico e a violência que campeiam livremente, desafiando a ordem e a lei.
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ssisti entusiasmado ao depoimento do policial norteamericano Jack Cole, na Escola da Magistratura do Rio de Janeiro, defendendo, com argumentos pautados na realidade de sua vivência de 40 anos de guerra contra as drogas, a liberação do comércio de todas as drogas tidas como ilícitas pela legislação. Os dados estatísticos de mortos, presos, e dispêndio financeiro com essa guerra inútil apontam na direção de que a sociedade precisa sair desse entorpecimento patrocinado por uma política que só olha para a preservação
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Segundo Jack, somente no México morreram 6.290 pessoas no ano de 2008, na batalha contra os cartéis de drogas; enquanto nos Estados Unidos 2 milhões e 200 mil pessoas superlotam as prisões. O Brasil já é o 4º país mais encarcerador do planeta, com 470 mil presos e mais 500 mil cumprindo penas alternativas. Enquanto isso, a produção mundial de drogas ilegais nunca cresceu tanto.
dos lucros financeiros que a economia das drogas proporciona, desprezando os valores humanos e apostando na segregação de negros e pobres, que são os clientes referenciais das prisões em todos os países proibicionistas. Segundo Jack, somente no México morreram 6.290 pessoas no ano de 2008, na batalha contra os cartéis de drogas; enquanto nos Estados Unidos 2 milhões e 200 mil pessoas superlotam as prisões. O Brasil já é o 4º país mais encarcerador do planeta, com 470 mil presos e mais 500 mil cumprindo penas alternativas. Enquanto isso, a produção mundial de drogas ilegais nunca cresceu tanto. Será que essa política que só prende, mata e discrimina é capaz de eliminar a praga das drogas e salvar nossas crianças e famílias? No Brasil, essa guerra tem envergonhado a Polícia, que dia a dia sofre derrotas acachapantes, como foi o caso da derrubada do helicóptero que causou a morte de três combatentes. Em seguida a resposta foi ainda pior, com 29 mortos que a Polícia atribui a marginais, porque assim fica mais fácil deglutir, mas a reação da família de três deles levou a autoridade policial a pedir desculpas públicas pela injúria assacada. Está claro que o abuso de drogas, como o alcoolismo, é um problema social e de saúde pública. Empurrar as drogas para a clandestinidade, do mesmo modo que aconteceu com o álcool na década de 1920, serve apenas para aumentar os preços, atrair o crime e promover a corrupção policial e de outras autoridades, além das criminosas e ilegais incursões nas comunidades pobres dominadas pelos grupos criminosos. Está claro que a proibição tem fomentado a prática criminosa organizada com objetivos de obter cada vez maiores lucros.
Segundo o Policial norte-americano, a legalização das drogas e dos serviços de apoio às comunidades através da implantação de políticas públicas responsáveis e consequentes é o remédio verdadeiro e capaz de pôr fim à essa guerra insana, incluindo o financiamento integral para o tratamento dos dependentes. Àqueles que questionam o custo financeiro desse tratamento, respondeu que em 2002 só a quinta parte dos fundos contra as drogas foi usada para a reabilitação. Igualmente importante é um eficiente programa publicitário e educacional para demonstrar os malefícios do uso de drogas e um investimento em políticas públicas visando eliminar a pobreza e a falta de oportunidade, que fazem com que as drogas sejam atrativas. O mercado ilegal, gerado devido à proibição das drogas, tem causado sérios danos sociais não apenas no Brasil, mas mundialmente. O financiamento norte-americano dessa guerra destinou cerca de 1.300 milhões de dólares ao México e à América Central no ano de 2008. Promoveu-se um derramamento de sangue com violações dos direitos fundamentais, torturas e confissões forjadas, tal como ocorre nas incursões nos morros do Rio de Janeiro. O resultado é, dentre outros danos, a evasão escolar de milhares de crianças e a falta ao trabalho de trabalhadores que, intimidados por essa violência, permanecem em casa com graves prejuízos para o desenvolvimento e a economia do país. Jack Cole acusa os Estados Unidos de fomentarem o crime organizado no México e na América Central com uma lei que exige a deportação dos imigrantes não cidadãos, incluindo os residentes legais que forem sentenciados por certo tempo de crimes. Afirma que as autoridades locais utilizam estas políticas para perseguir muita gente inocente. 2009 DEZEMBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 37
A liberação dos presos sentenciados por crimes de drogas leves resultaria de imediato em uma economia ao erário que possibilitaria a criação de programas de tratamento e educação das vítimas das drogas.
Afirmou ainda que o Governo dos Estados Unidos, ao mesmo tempo em que se pronuncia publicamente contra as drogas, comercia secretamente com os narcóticos, e cita como exemplos: 1. durante a guerra do Vietnã, a CIA participou no comércio de heroína no sudeste da Ásia, onde supria as tropas norte-americanas; 2. na década de 1980, a CIA intercambiava armas e dinheiro por cocaína com os contras que lutavam contra o governo sandinista da Nicarágua; 3. durante a intervenção da antiga União Soviética no Afeganistão, os Estados Unidos ajudaram os grupos fundamentalistas mulçumanos de direita trocando sua heroína por armas. Concluindo, Jack Cole afirmou que a guerra contra as drogas é racista ao atribuir ao Presidente Nixon o comentário de que: “O problema são os negros. A chave é criar um sistema para eliminar os protestos que tenha essa finalidade, mas sem que seja notado”. Esse comentário seria uma resposta aos movimentos de luta pelos direitos civis dos afrodescendentes. E, embora haja consumidores de drogas em todas as etnias e classes sociais, seja por divertimento, seja por razões médicas, a aplicação das leis é tremendamente injusta, porque elege os negros numa proporção cinco vezes maior do que as outras etnias para serem encarcerados. Vê-se que no Brasil não é diferente, mas podem-se acrescentar às razões étnicas a predominância dos pobres, analfabetos e desempregados, muito embora sejam os de classe média e os ricos os responsáveis pelo capital que sustenta o comércio das drogas, mas raramente frequentam os Tribunais e menos ainda as prisões. Também no Brasil são os jovens entre 16 e 25 anos negros e mulatos que ocupam grande percentagem da população carcerária. Segundo o Policial, o fracasso da aplicação das leis proibicionistas é tão evidente que foi fundada uma organização que trabalha na busca da legalização das drogas. O fundador foi o próprio Jack Cole, que acredita que se deve eliminar a proibição das drogas, da mesma maneira que foi eliminada a proibição do álcool em 1933, quando, um dia depois da 38 JUSTIÇA & CIDADANIA | DEZEMBRO 2009
revogação dessa lei, Al Capone e toda sua quadrilha de contrabandistas ficaram sem trabalho. O que se propõe não é uma apologia às drogas, mas que, com a eliminação da criminalização do uso e do comércio de drogas, seja criado um Fundo de Promoção de Políticas Públicas de educação, saúde, trabalho e habitação para mostrar à sociedade, sobretudo às crianças e aos jovens, os malefícios do uso e abuso de drogas. Esse Fundo seria implementado com os tributos gerados pela venda das drogas e utilizado como um antídoto para curar os doentes provenientes do uso de substâncias entorpecentes. A liberação dos presos sentenciados por crimes de drogas leves resultaria de imediato em uma economia ao erário que possibilitaria a criação de programas de tratamento e educação das vítimas das drogas. O redirecionamento dos milionários recursos hoje destinados a fomentar a guerra do tráfico possibilitaria o desenvolvimento de políticas de habitação e emprego para as comunidades mais pobres, hoje dominadas pelo poder dos criminosos e a educação e profissionalização dos jovens, que seriam os principais beneficiados com as políticas públicas. Perguntou-se, no Seminário, ao policial o que ele achava da posição das mães de família diante dessa proposta de liberação das drogas, ele respondeu que na década de 1930 foram as mães, com slogans que concitavam todos a salvarem as crianças e as famílias, as responsáveis pela campanha pela liberação do álcool. A carta emocionada do pai, cujo filho de 26 anos, vítima do “crack”, matou uma jovem de 18 anos na Zona Sul do Rio de Janeiro, emoldura a dura realidade desse mal que atinge todas as classes sociais e deve nos conduzir a um debate sério e racional. Pode não ser uma ideia nova nem revolucionária, mas com certeza poderia trazer melhores resultados do que a atual, em que apenas acumulamos despesas vãs e óbitos desnecessários, além de uma das mais eficientes redes de corrupção do planeta. Vamos pensar e debater esse tema tabu?
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A COMPOSIÇÃO DOS TRIBUNAIS SUPERIORES
Mozart Valadares Pires
Presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros
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Foto: TJRJ
composição das cortes superiores é uma preocupação antiga da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB). Logo que tomei posse como presidente da entidade com o maior número de magistrados do mundo — que congrega mais de 13 mil juízes de todas as áreas e instâncias —, em 12 de dezembro de 2007, denunciei que o acesso aos tribunais superiores merecia uma discussão mais aprofundada. Naquela época, afirmei que o atual modelo de recrutamento, pautado, sobretudo, em critérios de conveniência política, está em descompasso com os princípios democráticos e com o ideal republicano, além de não refletir adequadamente o sistema de freios e contrapesos informador da relação entre os Poderes da República, que deve ser sempre de independência e harmonia. No que diz respeito especificamente à ascensão ao Superior Tribunal de Justiça, a Magistratura de carreira encontra-se em total desprestígio, pois atualmente os membros oriundos da Advocacia e do Ministério Público ocupam mais da metade das vagas na referida Corte, reflexo do forte trânsito e capacidade de articulação política que caracteriza os integrantes do quinto. A continuar assim, é possível antever que, dentro em breve, chegaremos ao paradoxo de não termos magistrados de carreira integrando os tribunais superiores. A Lei Federal nº 7.746, de 30 de março de 1989, estabelece as regras para a composição do STJ. De acordo com a legislação, o STJ é composto por 33 ministros nomeados pelo Presidente da República dentre brasileiros com mais de 35 anos e menos de 65 anos, de notável saber jurídico e reputação ilibada. Um terço dos 33 ministros deve ser juízes dos Tribunais Regionais
Federais e 1/3 desembargadores dos Tribunais de Justiça, indicados em lista tríplice elaborada pelo Superior Tribunal de Justiça. O restante das vagas (o outro 1/3) é destinado a advogados e membros do Ministério Público. Ainda que não possa haver qualquer distinção entre os desembargadores dos Tribunais de Justiça e Regionais Federais, há duas espécies de desembargadores em relação à origem dos mesmos: magistrados de carreira e egressos do quinto constitucional. E a referida lei não determina de forma explícita que a indicação de desembargadores para a lista tríplice deve observar, obrigatoriamente, a origem da carreira. Assim, membros da Advocacia e do Ministério Público, que já têm 1/3 das vagas ao STJ garantidas por lei, acabam sendo indicados também às vagas destinadas aos membros da Magistratura de carreira. Dessa forma, são abertas aos advogados e membros do MP duas portas de acesso ao STJ. Em função disso, atualmente, quatro das 22 vagas reservadas para a Magistratura de carreira no STJ são ocupadas por magistrados do quinto. A AMB entende que apenas aqueles juízes aprovados em concurso público, que avançaram na carreira de forma lenta e gradual e foram promovidos por merecimento ou antiguidade deveriam ser candidatos ao STJ nas vagas reservadas aos desembargadores dos Tribunais de Justiça e Regionais Federais. Muitos juízes não almejam o STJ, mas gostariam de ser representados por um magistrado de carreira. Na tentativa de impedir tão grave quadro, a AMB ajuizou, em 20 de maio de 2008, junto ao Supremo Tribunal de Federal (STF) a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4078, questionando
Foto: Bob Paulino
o inciso I do artigo 1º da Lei 7.746/89, que determina que 2/3 das vagas sejam preenchidas por desembargadores estaduais e federais, sem especificar que eles devem ser magistrados de carreira. Com a ação, exigimos que seja observada a origem do magistrado na nomeação de ministros ao STJ para dar fim ao desequilíbrio entre os de carreira e os egressos do quinto. Enquanto não é observada a origem da carreira no recrutamento de desembargadores estaduais e federais para a composição do STJ, a indicação de advogados e membros do MP exige conceitos subjetivos de notável saber jurídico e conduta ilibada assim como dez anos de atividade ou exercício da função como pré-requisitos para os que desejarem compor as listas de indicação. Sem exigir o mesmo dos candidatos a preencher uma das vagas da Magistratura de carreira, parece estar óbvio ao legislador que o juiz promovido ao cargo de desembargador percorreu longo caminho no Tribunal. De fato não se tem registro no Brasil, depois da Constituição de 1988, de ascensão ao 2º grau de juiz com menos de dez anos de carreira. Mas o mesmo não acontece com os oriundos do quinto, que chegam aos tribunais já como desembargadores o que, em tese, os coloca como potenciais candidatos à lista. Dessa forma, a aprovação em concurso, que deveria ser uma vantagem, acaba sendo prejudicial ao juiz de carreira que almeja a ascensão ao STJ. Para a AMB, o certame para escolha dos integrantes do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Corte de mesmo nível hierárquico do STJ, é um exemplo a ser seguido, já que o critério da origem de seus membros vem sendo rigorosamente observado. No caso do TST, a Constituição Federal é explícita
ao afirmar em seu art. 11, inciso I, que os 2/3 das vagas destinadas à Magistratura na composição do Tribunal devem ser preenchidos por “magistrados de carreira”. A preocupação era justamente impedir que o TST pudesse, em algum momento, ser formado exclusivamente por juízes egressos do quinto e das outras classes representadas na Justiça do Trabalho. A preocupação da AMB não é somente com o STJ, mas a entidade também busca democratizar o acesso ao Supremo Tribunal Federal (STF). No último dia 12 de novembro, a entidade protocolou no Congresso Nacional Proposta de Emenda à Constituição (PEC) assinada pelo Deputado Vieira da Cunha (PDT-RS) que propõe mudanças nos critérios de escolha dos ministros da Suprema Corte. O objetivo da AMB é estabelecer regras objetivas para fundamentar a indicação do Executivo para a Corte máxima do país e reduzir o componente político da escolha. A PEC estabelece, entre outros critérios, a idade mínima de 45 anos para os indicados a ministro do STF e 20 anos de atividade jurídica. Eles comporão uma lista sêxtupla, elaborada pelos próprios ministros do Tribunal, que será submetida à escolha do Presidente da República. O nome eleito pelo Chefe do Executivo terá, ainda, que ser aprovado por 3/5 dos votos do Senado Federal, tanto na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) quanto no plenário. Entre os nomes da lista sêxtupla deverá haver, no mínimo, 1/3 de magistrados de carreira. Mais do que defender prerrogativas da Magistratura brasileira, a AMB pretende contribuir para o aperfeiçoamento da credibilidade do Judiciário com a apresentação da PEC ao Congresso Nacional e da ADI ao Supremo. 2009 DEZEMBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 41
A ADOÇÃO POR CASAIS HOMOSSEXUAIS E A NOVA LEI NACIONAL DA ADOÇÃO (LEI Nº 12.010/2009) Luiz Carlos de Barros Figueiredo Desembargador do TJPE Professor da ESMAPE Membro da Confraria Dom Quixote
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lei Federal nº 12.010/2009 de 3 de agosto de 2009 entrou em vigor noventa dias após sua publicação, em novembro do mesmo ano, mantendo/trazendo em seu bojo uma enorme polêmica, respeitante à possibilidade ou não de se autorizar adoção conjunta em favor de parelhas homossexuais, pelo simples fato de haver se mantido silente sobre o tema. Tendo participado ativamente do processo legislativo que resultou na lei mencionada, na qualidade de coordenador da Comissão Pró-Convivência Familiar e Comunitária de Frente Parlamentar Pela Adoção, que elaborou o seu anteprojeto, além do fato de ser autor do primeiro livro no Brasil que abordou o tema (“Adoção para Homossexuais”, Editora Juruá), por ocasião da redação do livro ”Comentários à Lei Nacional da Adoção”, lançado pela mesma editora no final de 2009, tive oportunidade de novamente estudar o assunto, sendo o presente artigo uma síntese das opiniões contidas em ambas as obras. De logo destaco que a razão de novamente haver tratado academicamente do mesmo tema decorreu quase que exclusivamente do fato de ter me defrontado com opiniões antagônicas comentando a nova redação dada ao artigo 42, e seu parágrafo segundo, do ECA, conforme se verá adiante, além do que a minha leitura da mudança guardar um certo distanciamento das opiniões dos comentaristas autores de tais posicionamentos. 42 JUSTIÇA & CIDADANIA | DEZEMBRO 2009
Cumpre destacar antecipadamente que, quando em 2002 editei o primeiro livro mencionado, o tema era um verdadeiro tabu, resultando que fui louvado pela comunidade LGBT; inclusive recebendo prêmios por tal iniciativa. Todavia, agora, ao defender um ponto de vista aparente mente contrário aos interesses desses cidadãos, quem sabe, alguns haverão de querer me crucificar. Entretanto, agradar ou desagradar não pode ser base para uma opinião acadêmica isenta. Muito menos se a opinião for emitida por um julgador. Registro que o meu pensamento ali externado não se baseou em qualquer momento sobre a orientação sexual do adotante. Para mim, isto é um aspecto fora de questão. A análise ali foi feita à luz dos direitos humanos. Do igual exercício de direito à cidadania. Em apertada síntese, a minha análise tomou como ponto de partida as disposições constitucionais respeitantes à igualdade de direitos e vedação de discriminação em razão do sexo, da prevalência dos superiores interesses da criança, da falta de sustentação científica para o argumento de que os filhos de homossexuais tenderiam a ter a mesma orientação sexual, seja por imitação dos referenciais seja pela suposta promiscuidade ou que a união de pessoas do mesmo sexo não constitui família. A ressalva que apresentei direcionava-se exclusivamente para os casos em que os adotandos pudessem ser vítimas de
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constrangimento ou de atos atentatórios à sua dignidade, pois, de resto, o deferimento, ou não, deveria ocorrer em idênticas condições àquelas realizadas por casais heterossexuais. Após a publicação daquele livro, algumas sentenças foram prolatadas deferindo a adoção de crianças em favor de ambos os integrantes da parelha homossexual. As duas primeiras no Rio Grande do Sul, sendo que uma delas foi objeto de apelação, e mantida, por unanimidade, pelo Egrégio Tribunal de Justiça daquele Estado. Ao que consta, a mesma decisão foi também recorrida, através de Recurso Especial, para o Superior Tribunal de Justiça, não se sabendo, ainda, o seu desfecho. Seguiram-se decisões do Juiz da Infância e da Juventude de Catanduva-SP, Recife-PE, Brasília-DF e Goiania-GO, sempre no mesmo sentido. O acórdão do único caso recorrido, oriundo da 7ª Câmara Cível do TJRS, na Apelação Cível nº 70013801592- Bagé/ RS, da relatoria do Desembargador Luiz Felipe Brasil Santos, de cujo julgamento também participou a Desembargadora Maria Berenice Dias e o Desembargador Ricardo Raupp Ruschel tem o seguinte teor: “APELAÇÃO CÍVEL. ADOÇÃO. CASAL FORMADO POR DUAS PESSOAS DE MESMO SEXO. POSSIBILIDADE — Reconhecida como entidade familiar merecedora da proteção estatal, a união formada por pessoas do mesmo
sexo, com características de duração, publicidade, continuidade e intenção de constituir família, decorrência inafastável é a possibilidade de que seus componentes possam adotar. Os estudos especializados não apontam qualquer inconveniente em que as crianças sejam adotadas por casais homossexuais, mais importando a qualidade do vínculo e do afeto que permeia o meio familiar em que serão inseridas e que os liga aos seus cuidadores. É hora de abandonar de vez preconceitos e atitudes hipócritas desprovidas de base científica, adotandose uma postura de firme defesa da absoluta prioridade que constitucionalmente é assegurada aos direitos das crianças e dos adolescentes (art. 227 da Constituição Federal). Caso em que o laudo especializado comprova os saudáveis vínculos existentes entre as crianças e as adotantes. NEGARAM PROVIMENTO.UNÂNIME.” A partir de tais decisões (monocráticas e colegiada), diversas foram as opiniões emitidas no sentido da possibilidade de concessão das adoções em favor dos casais homossexuais, agora reavivadas com a vigência da Lei Nacional da Adoção. Feitos estes breves balizamentos sobre o histórico recente do tema em comento, passemos a analisar o que dizia o texto original do ECA, em confronto com a atual redação, assim como as opostas posições surgidas após a publicação da nova lei. 2009 DEZEMBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 43
Foto: Stockxpert
O Estatuto da Criança e do Adolescente, em sua redação original de julho de 1990, no art. 42 e o seu § 2º, dizia: podem adotar os maiores de vinte e um anos, independentemente do estado civil. § 2º – A adoção por ambos os cônjuges ou concubinos poderá ser formalizada, desde que um deles tenha completado vinte e um anos de idade, comprovada a estabilidade da família. Agora, com a lei nº 12.010/2009, o mesmo artigo tem o seguinte teor: Art. 42. Podem adotar os maiores de 18 (dezoito) anos, independentemente do estado civil. § 2º Para adoção conjunta, é indispensável que os adotantes sejam casados civilmente ou mantenham união estável, comprovada a estabilidade da família. (grifei!) Em uma primeira leitura do caput e do § 2º do artigo 42 é fácil se chegar à conclusão de que praticamente nada se inovou em relação à velha redação, apenas fixando a questão da maioridade civil aos 18 anos, além da supressão do termo “concubinos”, substituído por “união estável”. Esta, todavia, não tem sido a leitura de muitos profissionais que atuam na área, parecendo mesmo que para eles ocorreu uma verdadeira revolução com a nova redação, muito embora chegando a conclusões absolutamente antagônicas, senão vejamos: Andréa Maciel Pachá, Enio Gentil Vieira Júnior e Francisco Oliveira Neto, ao comentarem este parágrafo pelo viés da questão da adoção por parelha homossexual, dizem: 44 JUSTIÇA & CIDADANIA | DEZEMBRO 2009
“O dispositivo reforça a opção do legislador brasileiro de não aceitar a adoção por pessoas do mesmo sexo figurando como pai e como mãe. A Constituição reconhece como união estável só aquela constituída por homem e mulher (art. 226, parágrafo 3º). Registrese que existem decisões judiciais que superam esse entendimento e deferem adoções a pessoas em união homoafetiva.”1 Em sentido contrário, Marcos Duarte, Presidente do IBDFAM Ceará, diz: “Embora não exista impedimento no substitutivo para a adoção por casais homoafetivos, o legislador perde a oportunidade de legalizar este tipo de união por mero preconceito. Ao permitir a adoção conjunta por adotantes que vivam em união estável, implicitamente há permissão para a adoção por parceiros homossexuais já que proliferam decisões em quase todos os estados brasileiros reconhecendo a união estável entre esses casais, tendo inclusive o Superior Tribunal de Justiça decidido no sentido de atribuir direito de meação a excompanheiro homoafetivo”. (grifei)2 O mesmo pensar tem o advogado Enézio de Deus, senão vejamos: “Assim, diante da atual ausência de lei federal a regulamentar os efeitos das uniões homossexuais no Brasil, autorizados(as) estarão os(as) magistrados(as) da Infância e da Juventude a continuar se valendo da
analogia como instrumento de integração legislativa (arts. 5º, da LICC e 126, do CPC), o que conduz à inevitável aplicação da legislação da união estável aos pleitos de pares do mesmo sexo, atribuindolhes todo o plexo de direitos familiares — inclusive, para efeito de adoção em conjunto de crianças e adolescentes.”3 Declarando antecipadamente minha amizade e admiração pelos ilustres comentaristas Andréa e Francisco, meus companheiros no comitê gestor do Cadastro Nacional da Adoção – CNA, tenho como um pouco exagerado o comentário, pois não acredito que o fundamento para a rejeição de adoção em conjunto por casais formados por pessoas do mesmo sexo tenha sido minimamente influenciado por este dispositivo, o qual, como antes afirmei, apenas alterou a idade mínima para adotar de 21 para 18 anos e formulou pontual melhoria terminológica ao texto original. O mesmo penso em relação às 2 (duas) outras opiniões contrárias à dos mencionados magistrados. Na minha visão, a questão é um pouco mais ampla, senão vejamos: o art. 226, § 3º, da Constituição da República considera como ENTIDADE FAMILIAR a união estável entre O HOMEM e a MULHER, sendo, portanto, cláusula específica. De sua vez, o art. 3º, IV, da C.R., em cláusula genérica diz: “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, SEXO, cor, idade, e quaisquer outras formas de discriminação”. Disso decorre que não há conflito intraconstitucional no que diz respeito à possibilidade de uma interpretação extensiva do conceito de união estável, validando-o para uniões entre pessoas do mesmo sexo, mas é patente que não há amparo constitucional para entender tais uniões como entidade familiar. Portanto, em um primeiro olhar, chega-se à conclusão de que se for considerado pelo intérprete da norma o conceito genérico (união estável), já não havia desde a redação original do ECA vedação à adoção para parelhas homoafetivas, razão pela qual, nessa linha interpretativa, as decisões judiciais referenciadas concederam a adoção para casais homossexuais. E é exatamente por isso que a opinião de Marcos Duarte e Enézio de Deus, data maxima venia, é, por assim dizer, incompleta. Sendo perfeitamente compatível com a extensão do conceito de união estável entre pessoas do mesmo sexo presente na Constituição da República, por decorrência não há como negar dependência previdenciária, partilha de bens adquiridos na vida em comum, etc. Todavia, se o ponto de partida para a análise considera o conceito específico (entidade familiar), a conclusão inexorável é a de que não há, ainda, base constitucional para o seu deferimento. Já que não é entidade familiar, ou seja, a primeira vista ter-se-ia que mudar o art. 226 da Carta Política. Nem mesmo se faria necessário recorrer ao conceito de sociedade conjugal (também formado por homem e mulher §5º, art. 226, C.R.). Se o art. 227, § 5º, da carta Magna diz que a adoção será assistida pelo Poder Público, NA FORMA DA LEI, e a lei (no caso, sem dúvidas, é o ECA) não prevê expressamente
Santos Salles A
crise atual decorreu de um imperativo psicossocial clássico nas economias de mercado, ou seja, o envolvimento de toda a sociedade, sem intervenção adequada dos governos, na busca de resultados financeiros e no mercado de capitais, em face do crescimento da economia em padrões acima das necessidades de consumo dos que têm capacidade de absorver a produção. Dessa forma, os investimentos foram valorizados também em patamar mais elevado do que seu intrínseco valor estrutural, com o que, em lDireito Tributário um determinado momento, tal evolução, sem sustentabilidade real, necessariamente, terminaria por explodir, gerando mais lDireito Previdenciário uma crise cíclica de capitalismo, em dimensões maiores do que aquelas lDireito que ocorreremdas após 1929. Relações de Consumo O efeito psicológico de uma percepção superficial dos lDireito elementos causadores Civil da crise, indiscutivelmente, acabou por gerar um prolongamento ilusório de um “boom econômico”, lDireito do Trabalho já diagnosticado por especialistas como sem condições de permanência, a partir de 2006/2007. lDireito Penal Empresarial Os mercados não são autorreguláveis, mas as regulações oficiais lDireito quase sempreAdministrativo são insuficientes para corrigir suas distorções, mormente quando as próprias autoridades iludemse quanto à sua capacidade de conduzi-lo. lDireito Internacional Por outro lado, os investidores que o alimentam e que, não lMediação e Arbitragem poucas vezes, também se iludem com a fortaleza estrutural do progresso e do desenvolvimento, terminam sendo, lPetróleo, Gás momento em simultaneamente, causa e Energia efeito geradoredaquele que a constatação da impossibilidade de sua permanência em lDireito das Telecomunicações níveis elevados indefinidamente torna-se evidente. Em outras palavras, há um ponto de equilíbrio, que seria o limite crítico entre uma realidade controlável, propiciadora da estabilidade dos mercados, e a atuação dos agentes econômicos e autoridades tanto para perceber, quanto para promover uma intervenção corretiva, sempre que esse limite crítico, precário por natureza, é ultrapassado. É que, de outra forma, a atuação dos agentes econômicos passa a ser aleatória e desordenada, na busca desesperada de salvar o que lhes parece em risco de se perder, terminando, a ação das autoridades com poder regulatório, por ser superada pela atuação de investidores e consumidores. São estes, de rigor, aqueles que determinam os humores da realidade econômica, nas crises e nos tempos de bonança. Assim, há um ponto de equilíbrio permanente, na economia de mercado, sempre que os investidores, os agentes produtivos (agricultura, indústria, comércio e serviços) e os agentes públicos atuam na perspectiva de um desenvolvimento projetado, detendo pleno conhecimento dos fatores sociais, políticos, econômicos, de consumo e emprego, e sendo capazes de mantê-los constantes mediante controle induzido, por meio de políticas creditícias e fiscais capazes de estimular desestimular setores queandar possam Av. ou Paulista, 1765 -13° provocar os desequilíbrios definidos como indesejáveis pelos TEL: +55 (11) 3266-6611 - São Paulo agentes econômicos e públicos em conjunto. Nesse contexto de adequadaRio política mercado,- Brasília a própria conjunção de de de Janeiro - Campinas agentes públicos e privados conformará o nível de gastos Belo Horizonte públicos e despesas burocráticas, sempre que estes possam
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a possibilidade de adoção conjunta em favor de pessoas do mesmo sexo, não há como deferi-las. Ao contrário, em se admitindo que o Código Civil também possa albergar normas relativas à adoção, como esta Lei nº 12.010/09 o faz, não há que se afastar pura e simplesmente a incidência do art. 1.622, do Código Civil, como pretende Enézio de Deus no artigo antes referenciado. A propósito, o art. 1.622, CC, assim reza: “Ninguém pode ser adotado por duas pessoas, salvo se forem marido e mulher ou se viverem em união estável.” Por outra parte, o Código Civil regula a união estável nos arts. 1.723 a 1.727, mas, repetindo a Carta Magna, art. 226, § 3º, só reconhece como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher. Embora reconhecendo que a segunda alternativa de interpretação, de minha autoria, pelo menos em tese, pode causar danos emocionais e patrimoniais ao filho adotivo de apenas um dos integrantes da parelha homossexual, o fato é que ela é a tecnicamente mais adequada. Ou seja, minha discordância com o conteúdo sociológico das sentenças que concederam adoções para parelhas homossexuais, ou com a opinião de Berenice Dias contida no artigo “O lar que não chegou” é nenhuma. Apenas os pontos de partida Constitucionais recrutados por elas nas sentenças e no opinativo estão, a meu ver, equivocados. “Para não dizer que não falei das flores”, o lado bom do meu raciocínio é que leva à inafastável conclusão de que não precisa modificar a Constituição da República, com todos os problemas decorrentes do quorum especial. Basta que se mude a lei, o que, convenhamos, em tese, é bem mais fácil. Por isso mesmo o projeto original tratava da não vedação de adoção em função de ORIENTAÇÃO SEXUAL, o que é muito diferente da mera menção a não discriminação em razão de sexo. A polêmica estaria encerrada. O primeiro substitutivo da Deputado Tetê Bezerra ao texto original do Deputado João Matos foi extremamente explícito, quando dizia:” Art. 38 I Qualquer pessoa maior de 18 anos pode adotar, obedecidos os requisitos específicos desta Lei. Parágrafo Único. Para adotar em conjunto, é indis pensável: I - Que os adotantes sejam casados civilmente ou man tenham união estável, hipótese em que será suficiente que um deles tenha completado 18 anos e comprovada a estabilidade da família; II - Que haja comprovação da estabilidade da convi vência, na hipótese de casal homoafetivo” (grifei!). Com isso, chamou a atenção das bancadas evangélicas que textualmente disseram que só votariam o projeto se houvesse a supressão total do dispositivo. Em nome dos interesses de tantas crianças institucionalizadas, o acordo foi fechado com a supressão; ou seja, em linguagem popular, na busca do que lhes parecia ser o ótimo, perderam o bom. Para estes comentaristas que invocam as decisões favoráveis às adoções conjuntas de pessoas do mesmo sexo, não é demais lembrar que só uma delas foi submetida a um tribunal estadual, 46 JUSTIÇA & CIDADANIA | DEZEMBRO 2009
pois, infelizmente, o Ministério Público que atuou nestes quase uma dezena de casos se posicionou mais ideologicamente do que como custos legis, não recorrendo das sentenças. Acredito que não há como se vender ilusão ou prometer um “terreno no céu”. A essência do direito pretendido é boa, sempre assim defendi. Suas virtudes, todavia, não podem servir de lastro à destruição de todo o arcabouço constitucional. As sentenças referidas não podem, de per si, ter o efeito extensivo pretendido pelos articulistas já mencionados. A questão é que tais sentenças fizeram coisa julgada inter partes, sem efeitos erga omnes, resultando que não se sabe como os nossos tribunais superiores irão decidir quando se defrontarem com um caso concreto. Como se garantir segurança jurídica para os diversos outros casos de pessoas que querem regularizar situações fáticas, já ajuizadas ou não? Como antes fiz referência, a decisão do TJRS antes mencionada foi objeto de um Recurso Especial perante o STJ, restando se aguardar o seu posicionamento para que a questão fique mais bem balizada. Finalizando estes comentários trazidos a lume em razão da opinião dos ilustres autores mencionados, lembro que o principal papel de uma Constituição é servir de pacto político de uma determinada sociedade em um determinado momento histórico. No meu livro “Adoção para Homossexuais”4 consta uma pesquisa feita em quatro capitais brasileiras, segmentada, onde fica claro que ainda existe grande resistência da sociedade brasileira em relação à adoção para casais homossexuais, o que compromete a ideia do pacto político antes referenciado. É preciso que novas pesquisas, com maior rigor científico, sejam realizadas, para que se tenha certeza do momento adequado para implantar a medida. REFErências DEUS, Enézio de. Nova Lei da Adoção e Homoafetividade. Disponível em http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=533. Acesso em 27/10/2009. DIAS, Maria Berenice. O Lar que não chegou. Disponível em http:// www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=527Acesso em 27/10/2009. DUARTE, Marcos. Nova Lei Nacional de Adoção: a perda de uma chance de fazer justiça. Disponível em http://www.ibdfam.org. br/?artigos&artigo=526. Acesso em 27/10/2009. Figueiredo, Luiz Carlos de Barros. Adoção para Homossexuais. Juruá Editora, Curitiba: 2001. Pachá, Andréa Maciel; Oliveira Neto, Francisco; Vieira Júnior, Enio Gentil. Novas Regras para a Adoção. AMB., Brasília: 2009.
NOTAS Pachá, Andréa Maciel; Oliveira Neto, Francisco; Vieira Júnior, Enio Gentil. Novas Regras para a Adoção. A.M.B., Brasília: 2009. 2 DUARTE, Marcos. Nova Lei Nacional de Adoção: a perda de uma chance de fazer justiça. Disponível em http://www.ibdfam.org. br/?artigos&artigo=526. Acesso em 27/10/2009. 3 DEUS, Enézio de. Nova Lei da Adoção e Homoafetividade. Disponível em http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=533. Acesso em 27/10/2009. 4 FIGUEIREDO, Luiz Carlos de Barros. Adoção para Homossexuais. 1ª edição. Curitiba: Juruá Editora, 2001, p. 113 a 138. 1
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o momento em que o mundo comemora vinte anos do fim da cortina de ferro e da derrubada do muro de Berlim, a Associação Internacional dos Juristas (W.J.A.), comemora os primeiros dez anos do monumento alusivo à paz mundial. Edificado em 1999, na fronteira da Áustria com a Hungria, teve por objetivo homenagear personalidades das Ciências Jurídicas que tenham contribuído na luta pela defesa dos direitos humanos para todos os povos e nações. Composto de pedra römerstelnbruch ( uma das riquezas minerais do local ) e erigido na cidade St. Margarethen na divisa com a cidade de Sopron - local do primeiro ponto do separatismo europeu resultante do conflito da guerra fria ( capitalismo versus socialismo) – esse monumento tem gravado, dentre os luminares do Direito internacional, o nome do nosso conterrâneo José Bernardo Cabral, que é indiscutivelmente uma das inteligências mais lúcidas nascidas na Manaus do Amazonas brasileiro. Esse galardão, com certeza, lhe foi concedido em reconhecimento pela contribuição dada à redemocratização e à consolidação da democracia no Brasil, respectivamente, nas funções de Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Relator da Comissão de Sistematização da Assembléia Nacional Constituinte, Ministro da Justiça e Senador da República Cabral a partir daquele momento, escolhido por aclamação, passou a presidir a Casa Maior do Direito Internacional no solo brasileiro, função que permanece exercendo até o presente momento. O marco da paz no bordo Austro-Hugaro foi construído no último ano do século XX, no momento que o mundo comemorava dez anos do fim daquela página infeliz da história universal. Ao comemorar o seu primeiro decênio e duas décadas do fim daquele modelo esdrúxulo de separatismo, a WJA facultou aos homenageados vivos que propusessem nomes para somaremse aos seus como prova de colaboração indelével à luta em favor dos direitos humanos. Ai, o nosso herói numa demonstração de reconhecimento a quem o acompanha não só nessa luta mas em todas as missões que abraçou no correr da vida, e fazendo justiça passou a dividir o laurel com a sua amada, consorte e companheira de todas as horas: a respeitabilíssima senhora Zuleide da Rocha Bernardo Cabral, que passou a ter também o seu nome gravado naquele monumento. No ano de 1999, brasileiros ilustres como o Jornalista Phelippe Daou e o Ministro Ilmar Galvão (representando o Supremo Tribunal Federal) estiveram presentes àquela sessão memorável. Recentemente em 24 de outubro de 2009 minha esposa e eu tivemos a honra e alegria de sermos testemunhas oculares do segundo capitulo dessa meritória e merecida homenagem. E, para fechar com chave de ouro a efeméride, o embaixador do Brasil na Índia – o diplomata Marco Brandão - ao oferecer ao homenageado ágape de reconhecimento ao mérito, de forma sincera, assim se expressou: se o Brasil hoje alcançou o grau de credibilidade que possui, inclusive no Continente Asiático, é porque tem uma Constituição cidadã que lhe dá estabilidade política, 2009 DEZEMBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 47
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MST, CPI E REFORMA AGRÁRIA Marco Falcão Cristinelis Juiz Federal do TRF-2ª Região
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ão há movimento social mais legítimo do que a luta daqueles que querem terra para cultivar. Trata-se de resgate da cidadania histórica para a efetiva base de um País/Estado fundado, como o Brasil, na social democracia. O movimento representado pelo MST remonta às capitanias hereditárias e às culturas de latifúndios que deram origem às desigualdades que hoje convivemos como filhos do capitalismo selvagem. Acerca desse tema, é sempre relevante mencionar Raymundo Faoro para uma melhor ilustração das bases de desenvolvimento político, social e econômico da sociedade brasileira e seus governantes.1 A função social da propriedade privada é um dever cívico imposto ao Poder Público e aos proprietários em geral. O princípio em questão decorre da almejada sociedade fraterna 48 JUSTIÇA & CIDADANIA | DEZEMBRO 2009
idealizada no preâmbulo de nossa Carta Magna de 1988, como consolidação das bases da Revolução Francesa de 1789 (liberdade, igualdade e fraternidade). Nessa modernidade de valores políticos e jurídicos, instala-se o epílogo desse confronto entre o aparelho estatal e os campesinos com a Comissão Parlamentar de Inquérito – CPI2 do Movimento dos Sem-Terra – MST. O pano de fundo dessa ocorrência, porém, deve ser realçado para que os vetores da equação sejam conferidos: o direito legítimo a uma política pública da terra versus a ilegalidade da atuação do MST versus a omissão do Poder Público na satisfação dessa dívida social. Opto, dentre as alternativas, pela grave omissão dos governantes ao longo da história.
A Constituição e as leis estão repletas de comandos e instrumentos para que o administrador público informe, oriente, aja e satisfaça a dívida entre o trabalhador do campo e a propriedade rural. É certo, todavia, que só intervindo o Estado poderá resolver a demanda, pois ambos atores sociais desconhecem o valor do manto de um Estado de Direito. A paz não é a ausência de conflito, mas a presença da justiça social do Estado. O MST não digladia com as armas jurídicas, mas com a violência. O latifúndio exerce a sua propriedade como objeto de um absolutismo individual pleno, de tempos feudais. No Brasil, essencialmente a partir da promulgação da Constituição Cidadã, há o pluralismo partidário e o direito de participação de forma sensivelmente elástica. Entretanto, as dimensões do sistema de contestação pública e do direito de participação são insuficientes para a garantia do ideal democrático. É o que retrata a ausência de integração entre a maioria dos indivíduos e o arcabouço normativo a que estão submetidos. Não basta viver em uma democracia, mas estar ciente de seus compromissos com ela. (1)A terra improdutiva; (2)a propriedade mal utilizada; e, (3)a gleba que produz produtos proibidos caracterizam ilícito político, social e penal, respectivamente. O trabalhador rural tem direitos sobre elas. E esse direito deve ser satisfeito pelo Poder Público, sob pena de omissão. Como antecedente necessário para a compreensão do Estado e da relevância da supremacia do interesse público sobre o particular, é preciso dar ênfase ao domínio político, ou eminente, que decorre do poder de soberania do Estado. Esse domínio eminente se manifesta pelas limitações administrativas intervencionistas que incidem sobre a liberdade e sobre a propriedade. Tal intervenção ocorre sempre que o Poder Público, compulsoriamente, retira ou restringe direitos dominiais particulares ou submete o uso de bens privados a uma destinação de interesse público. Os instrumentos postos à disposição dos governantes são muitos. A forma de intervenção estatal mais relevante é a desapropriação, seguida da transferência compulsória de um bem ao domínio público, prévia e justamente indenizada, em dinheiro, salvo exceções legais, para atender ao bem-estar social ou a interesse coletivo ou público, tendo o sistema previsto três modalidades: a clássica(CF, art. 5º, inciso XXIV)3; a sanção (CF, arts. 182, § 4º, III4; e 1845); o confisco (CF, art. 243 e parágrafo único). Cito em destaque apenas o exemplo mais barato, pois nessa expropriação o Estado não está obrigado a indenizar o proprietário. É o caso do art. 243 da Constituição Federal de 1988, cuja execução é viabilizada pela Lei nº 8.257, de 26.11.1991. Para tanto, é importante frisar que a referida Lei nº 8.257, de 26.11.1991 está inserida na competência cível e segue rito próprio para que o imóvel seja incorporado ao patrimônio da União, afastando qualquer argumento de violação à propriedade privada, como direito individual protegido pelo
art. 5º, inciso XXII, da Constituição Federal; a uma, porque garante o contraditório e a ampla defesa daquele que é o proprietário ou eventual detentor do imóvel expropriado; a duas, pois revela a efetiva supremacia do interesse público sobre o particular, como domínio inerente ao Estado na proteção e satisfação da ordem pública. Cabível ressaltar que não se trata de juízo de conveniência e oportunidade, de discricionariedade do Poder Executivo, como o é, normalmente, nas desapropriações clássicas de utilidade e necessidade públicas e de interesse social. A Carta e a legislação são claras: “as glebas (...) onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas SERÃO IMEDIATAMENTE EXPROPRIADAS...”. Dessa forma, como quis o Constituinte, a expropriação de glebas não se vincula ao desfecho da ação penal decorrente, em face da atividade ilícita ligada ao tráfico de entorpecentes. Posso, portanto, afirmar que uma vez localizada a gleba com cultivo ilegal, confiscada pelo Poder Público em atividade administrativa ou penal, confeccionado o respectivo laudo de avaliação e constatação das substâncias psicotrópicas cultivadas na extensão da gleba, a expropriação, no rito previsto na Lei nº 8.257, de 1991, pode ser iniciada, sem prejuízo da instauração ou continuação do flagrante ou inquérito policial e nem sequer da eventual ação penal proposta pelo Ministério Público. Diante desse quadro legal, o Poder Legislativo cumpriu seu papel de normatizar situações conflituosas. No âmbito do Poder Judiciário está instalado no Conselho Nacional de Justiça – CNJ, o Sistema Nacional de Bens Apreendidos – SNBA. Temos as leis e as glebas cadastradas quando vinculadas ao crime e seu processo judicial, com destinação final dirigida ao Poder Público, com a obrigatoriedade de vinculação do bem ou dos fundos respectivos para assentamento de colonos. Sobre a dicotomia relatividade social e absolutismo individual, é possível afirmar: (i) a própria Constituição mitiga o caráter absoluto da propriedade ao permitir a desapropriação por simples juízo de conveniência e oportunidade dos Poderes constituídos, por necessidade e utilidade públicas e interesse social, quando crava essa possibilidade no próprio art. 5º, destinado à preservação da Carta Magna dos direitos e garantias individuais, salvaguardando o direito de propriedade (CF, art. 5º, inc. XXII); porém, determinando que a propriedade atenda sua função social (inciso XXIII) e, ainda, permitindo que o Estado retire compulsoriamente a propriedade particular para transferi-la ao patrimônio público, mediante relevante interesse público (inciso XXIV); (ii) a pena criminal, apesar da individualização da pessoa do condenado, pode incidir sobre os bens dele, estendida a seus sucessores, com o respectivo perdimento até o limite do valor do patrimônio transferido (inciso XLV); (iii) a pena criminal também pode ser adotada para fins de perda de bens (inciso XLVI, letra b); (iv) a privação de bens, pelo confisco, atende ao devido processo legal, em especial o cível, pois é garantido na legislação 2009 DEZEMBRO | JUSTIÇA & CIDADANIA 49
regulamentadora do art. 243 da Constituição, a saber a Lei nº 8.257/2001, o direito de defesa, do contraditório e dos recursos postos à disposição do proprietário ou possuidor de bens imóveis onde forem encontradas a produção de plantas psicotrópicas (inciso LIV); (v) por consequência, é possível afirmar que a presunção de inocência do inciso LVII só é dirigida à culpabilidade em relação à pessoa do condenado e não é extensiva a seus bens, razão pela qual não é necessário aguardar-se o trânsito em julgado de sentença penal condenatória para que o Poder Público confisque e exproprie o patrimônio móvel, imóvel, direitos, ações e/ou qualquer bem de valor econômico vinculados a atividades ilícitas ligadas à criminalidade e ao tráfico de entorpecentes; (vi) já a Lei nº 10.409/2002 presumia de origem ilícita o bem vinculado ao acusado, quando regulava a matéria6; (vii) a Lei nº 11.343/2006 prescreve, da mesma forma, a ideia e a mesma filosofia da sua lei antecedente, Lei nº 10.409/2002 , esta revogada pelo art. 75 da nova lei de drogas. Notoriamente que, tanto para as leis que regulamentam o art. 243 da Constituição Federal dirigidas às atividades criminosas do tráfico de drogas (Lei nº 8.257, de 1991 e Lei nº 11.343 de 2006), como para a legislação penal geral, o sistema quis prever o perdimento de bens imóveis e móveis, produtos e valores, em favor do Estado, tanto em relação àqueles utilizados na prática criminosa quanto àqueles adquiridos com a própria atividade ilícita, mesmo que não utilizados para o seu exercício ilegal.7 Resta questionar acerca do destino da reforma agrária, cuja ações dependem do Poder Executivo para a efetivação da justiça social de terras, o próprio equilíbrio das forças do trabalho e do capital e a harmonia no campo. Essa atuação reflete diretamente sobre a fome, a movimentação populacional entre as regiões e o futuro produtivo do manancial de bens e insumos não industrializados e, indiretamente, sobre o desemprego, a ocupação desordenada das cidades e a segurança pública em geral. O teatrólogo Shakespeare, criador da frase “ser ou não ser, eis a questão”, já previu que toda peça tem um fim, pois ela encarna uma ilusão, que nunca é duradoura. No caso dos Sem-Terra, o poder constituído nunca enfrentou o tema como dívida política, como verdade incorporada aos mandatos que se vencem e se renovam. Aliás, o filósofo também deixou impiedosamente desmas carado, em outra peça de sua autoria (“Macbeth”), que: “A vida é uma sombra errante/Um pobre comediante que se pavoneia/ No breve instante que lhe reserva a cena/Para depois não ser mais ouvido/É um conto de fadas, que nada significa/Narrado por um idiota, cheio de voz e fúria”. Isso quer dizer que o ator é sempre egocêntrico, nunca altruísta, pois ele sempre vive da cena e nunca se preocupa com a realidade. Ora, não se pode governar para o espelho. A tendência dessas dívidas sociais é crescer até se tornarem poder legítimo ou poder revolucionário. Já estamos quase lá, claro, em relação à guerrilha no campo. Essa forma de governar é díspare em relação aos dogmas da república. 50 JUSTIÇA & CIDADANIA | DEZEMBRO 2009
Podemos esperar, portanto, bons resultados da CPI no Congresso Federal, já que, necessariamente, a abordagem será ampla, pois um argumento sempre leva ao outro, e de outro para as causas, efeitos e suas responsabilidades. NOTAS Faoro, Raymundo. “Os donos do Poder: formação do patronato político brasileiro”. – 13. ed. São Paulo: Globo, 1998. 2 O Controle Legislativo, também denominado parlamentar, é desempenhado pelo Poder Legislativo em relação a determinados atos da Administração Pública. Respeitadas as devidas esferas de competência, é exercido pelo Congresso Nacional, Senado Federal e Câmara dos Deputados, no âmbito Federal; pelas Assembleias Legislativas e Distrital, no âmbito estadual e, naturalmente, pelas Câmaras de Vereadores em relação aos municípios. O objetivo é conformar a atuação da Administração Pública com os altos interesses do Estado e da comunidade, e os mecanismos que proporcionam ao Legislativo o controle de certos atos da Administração Pública são as comissões parlamentares de inquérito, dentre outros. 3 “a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição.” 4 “... desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurando o valor real da indenização e os juros legais.” 5 “Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei.” 6 Vide o revogado parágrafo único do art. 44 da Lei nº 10.409, de 2002, verbis: “Incumbe ao acusado, durante a instrução criminal, ou ao interessado, em incidente específico, provar a origem lícita dos bens, produtos, direitos e valores referidos neste artigo.” 7 Sobre o tema, para maior amplitude, faço remissão ao artigo intitulado “CONFISCO DE TERRAS”, de autoria de João Bosco Medeiros de Sousa, Juiz Federal na Paraíba, que assim conclui seu texto: “Conclusões – A Constituição Federal vigente confirmou o direito de propriedade no art. 5º, XXII, consagrou a função social de propriedade, no art. 5º, XXIII, integrou a justiça social ao conceito de ordem econômica, no art. 170, conservou o instituto jurídico da desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária, no art. 184, e introduziu o confisco, a que chama de expropriação de terras rurais cultivadas ilegalmente com plantas psicotrópicas, no art. 243. O parágrafo único desse art. 243 equiparou terras rurais a quaisquer bens apreendidos ‘em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins’. Conquanto autoaplicável, o art. 243 foi regulamentado pela Lei nº 8.257, de 27 de novembro de 1991, que instituiu procedimento judicial específico para a expropriação de terras rurais com cultivo de plantas psicotrópicas. O conceito de plantas psicotrópicas vem diretamente dessa Lei nº 8.257, art. 2º. A área passível de confiscação corresponde à de todo o imóvel, não ficando restrita a parte, ou partes, do imóvel (=gleba). A circunstância de a Constituição Federal ter utilizado, no caput do art. 243, a terminologia expropriação e, no parágrafo primeiro, o vocábulo confisco, reforça a certeza, no caso, de tratar-se de confisco, dada a não previsão de indenização. Esse raciocínio não pode ser afastado, sequer à vista da ressalva do art. 5º, XXIV, por falta de expressa especificação; o caráter de pena é, portanto, evidente e a não indenização pelo bem confiscado é sintomática dessa conceituação. Com efeito, o confisco, forma derivada de aquisição de terras para assentamentos rurais, constitui importante avanço, tanto para fins de direito agrário quanto em termos de direito penal e de política criminal, como meio de coibir a cultura ilegal e a exploração de plantas psicotrópicas.” 1
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