Revista Justiça & Cidadania

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ISSN 1807-779X

Edição 118 - Maio de 2010

R$ 16,90


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S umário Foto: Nelson Jr./SCO/STF

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Guardião da Liberdade

Foto: Arquivo Pessoal

Foto: Luiz Antonio/SCO/STJ

editorial

Dom Quixote: 24 Projeto ajuda população a adquirir a casa própria Direito Desportivo e Justiça 26 Desportiva – Linhas Gerais

Foto: Arquivo Pessoal

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Hipóteses de exclusão da responsabilidade

O marketing como elemento estruturante

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Meios Alternativos de Solução 36 de Conflitos na Previdência Complementar COMPROMISSO COM A VALORIZAÇÃO 40 DA MAGISTRATURA em foco: 48 Mudanças à vista na Execução Fiscal A OAB-rj sagra a primeira 50 Mulher advogada no TJERJ

Foto: Arquivo Pessoal

Foto: Arquivo Pessoal

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A convenção de arbitragem

Efeitos jurídicos da eleição do empregado

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ERRATA: Na última edição, de número 117, o artigo do Dr. Ives Gandra Martins, membro do nosso Conselho Editorial, intitulado “PNDH-3 em face da Constituição brasileira e das constituições bolivarianas”, teve sua última página, por engano, deslocada da página 20 para a 36.

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EDIÇÃO 118 • MAIO de 2010 ORPHEU SANTOS SALLES EDITOR TIAGO SANTOS SALLES DIRETOR EXECUTIVO ERIkA BRANCO diretorA DE REDAÇÃO DAVID SANTOS SALLES EDITOR ASSISTENTE DIOGO TOMAZ DIAGRAMAdor Giselle Souza Jornalista colaboradora Luciana Peres Revisora EDITORA JUSTIÇA & CIDADANIA AV. NILO PEÇANHA, 50/GR.501, ED. DE PAOLI RIO DE JANEIRO – RJ CEP: 20020-906 TEL./FAX (21) 2240-0429 SUCURSAIS SÃO PAULO RAPHAEL SANTOS SALLES AV. PAULISTA, 1765 / 13°ANDAR SÃO PAULO – SP CEP: 01311-200 TEL. (11) 3266-6611 PORTO ALEGRE DARCI NORTE REBELO RUA RIACHUELO, 1038 / SL.1102 ED. PLAZA FREITAS DE CASTRO CENTRO – Porto Alegre – RS CEP: 90010-272 TEL. (51) 3211-5344

Foto: Gil Ferreira/SCO/STF

Conselho editorial Bernardo Cabral Presidente Alvaro Mairink da Costa ANDRÉ FONTES Antonio Carlos Martins Soares Antônio souza prudente Arnaldo Esteves Lima arnaldo Lopes süssekind aurélio wander bastos Benedito gonçalves carlos antônio navega carlos ayres britTo Carlos mário Velloso CESAR ASFOR ROCHA DALMO DE ABREU DALLARI darci norte rebelo Edson CARVALHO Vidigal eLLIS hermydio FIGUEIRA Enrique ricardo lewandowski Eros Roberto Grau Fábio de salles meirelles fernando neves Francisco Peçanha Martins Frederico José Gueiros

BRASÍLIA Arnaldo gomes SCN, Q.1 – Bl. E / Sl. 715 EDIFÍCIO CENTRAL PARK BRASÍLIA – DF CEP: 70711-903 TEl. (61) 3327-1228/29 CORRESPONDENTE ARMANDO CARDOSO TEL. (61) 9674-7569 editorajc@editorajc.com.br www.revistajc.com.br CTP, IMPRESSÃO E ACABAMENTO ZIT GRÁFICA E EDITORA LTDA ISSN 1807-779X 4 JUSTIÇA & CIDADANIA | MAIO 2010

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GILMAR FERREIRA mENDES Humberto Gomes de Barros Ives Gandra martins Jerson Kelman Joaquim Alves Brito josé augusto delgado JOSÉ CARLOS MURTA RIBEIRO José Eduardo carreira Alvim luis felipe Salomão Luiz Fux Manoel CarpeNa Amorim Marco Aurélio Mello Massami Uyeda MAURICIO DINEPI maximino gonçalves fontes nEY PRADO Orpheu Santos Salles Paulo Freitas Barata Sergio Cavalieri filho Siro Darlan Sylvio Capanema de Souza thiago ribas filho


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E ditorial

Votos contristados “Dura Lex sed lex”

F

oi inesperado o resultado do julgamento no Supremo Tribunal Federal ao pedido formulado pela Ordem dos Advogados do Brasil, para definir a responsabilidade cri­minal dos torturadores pelas atrocidades praticadas durante a ditadura militar, em especial, para o longevo editor desta Revista, cuja norma redacional básica se constitui intransigentemente na defesa do Poder Judiciário e da Magistratura, e que conduz como consequência o respeito à lei e ao direito. A sentença proferida pela Corte Suprema é terminativa e reflete o entendimento jurídico pessoal da maioria dos eminentes ministros que a prolataram, cujo resultado por óbvio é aceito e acatado por absoluto respeito devido ao Estado Democrático de Direito que vivenciamos. As circunstâncias que levaram os ilustres magistrados a não aceitarem a formulação da OAB – Ordem dos Advogados do Brasil, conforme exposto nos votos, refletem o pensamento estrito do Direito nos termos como dispõe a letra fria da lei. Todas as considerações feitas pelos julgadores, contestando o pedido da OAB, foram desconsideradas por dispiciendas as questões dos direitos humanos, com as consequentes barbaridades, atrocidades cometidas contra os presos políticos, inclusive os familiares, filhas, irmãs e mães que sofreram violências como torturas, estupros e mortes, prevalecendo, enfim, e unicamente, a interpretação literal da lei. O jornalista, membro do Conselho da Associação Brasileira da Imprensa e presidente da Comissão de Defesa da Liberdade da Imprensa e Direitos Humanos, com atuação acentuada em todos os movimentos cívicos em defesa da dignidade humana, no passado sofreu inúmeras e continuadas humilhações, com prisões, violências, agressões e torturas, ocorridas em 6 JUSTIÇA & CIDADANIA | MAIO 2010

represália ao exercício de opinião e liberdade de expressão e no uso da prerrogativa constitucional, através da emissora da Rádio Marconi, em São Paulo, manifestando-se contra o golpe revolucionário, até as 21 horas do dia 31 de março de 1964, em pregação pela continuidade legal do governo do Presidente João Goulart, quando os estúdios foram invadidos pela polícia política do Governador Ademar de Barros e as transmissões tiradas abruptamente do ar. Logo após a paralisação da emissora, com a Rádio ocupada e os presentes detidos com voz de prisão, é chamado ao telefone e com surpresa recebe, do citado governador, a proposta da reabertura da Rádio e ainda a oferta de uma importante nomeação no governo, desde que aderisse ao golpe militar, sendo descartada por impossível e imoral, ocasionando a condução aos xadrezes do DOPS de São Paulo; a partir daí por mais de ano percorreu vários presídios, terminando a sua lamentável odisseia no porão do navio presídio Raul Soares, fundeado no estuário do Porto, na cidade de Santos. É duro, dói no âmago do sentimento e é inconcebível para quem sofreu e assistiu a violências e torturas, que ouviu tristonhos, amargurados e indescritíveis relatos de pais, mães, filhos e irmãos, sobre as inomináveis atrocidades cometidas por torturadores, praticadas às suas próprias vistas, contra seus entes queridos, na tentativa de colher depoimentos acusatórios e comprometedores, de assuntos, questões, casos e acontecimentos às vezes inexistentes. E constatar agora, com o citado julgamento, que os crimes de tortura, definidos e praticados por agentes da ditadura militar contra a humanidade e considerados imprescritíveis, haviam sido perdoados sob o manto de uma anistia política,


ápice da emotividade, em face de sua condição anterior, quando pertencia ao Partido Comunista, que lhe rendeu na época ter sido preso e sofrido violências e torturas. Ao finalizar e declarar o seu voto contrário à postulação da OAB, comovido, contaminou pela emoção a maioria dos presentes ao julgamento, inclusive fazendo-os chegar às lagrimas, declamando parte do poema do escritor Mario Benedetti, endereçado ao seu filho: Foto: Sandra Fado

concertada alhures entre os detentores do Poder espúrio e aqueles negociadores, políticos e da sociedade, que na ocasião não tinham as mínimas condições de rejeitar as migalhas oferecidas. Agora, não há como e por que inculpar os sete e dignos magistrados da Corte Suprema pelos contristados votos proferidos, face o entendimento formal e absoluto que tiveram dos termos da Lei da Anistia como aprovada pelo Congresso Nacional. Culpa e responsabilidade dessa anomalia cabe inegavelmente à condescendência tácita dos membros do Congresso Nacional, e, inclusive, à própria direção da OAB da época, que transigiram e negociaram, além de políticos que se encontravam no exílio, como os senhores Leonel Brizola e Luiz Carlos Prestes, que se manifestaram concordando com as condições impostas pelos negociadores da ditadura militar. Diante dos acontecimentos e fatos que se relacionam aos deploráveis atos de violência e verdadeira barbárie praticados por agentes públicos, que agora, mediante o terminativo julgamento ocorrido na Corte Suprema, sepultaram definitivamente os nefandos crimes cometidos, é de se esperar que os membros do Poder Legislativo que se omitiram no passado e continuam se omitindo no presente, em especial, por não atenderem aos reclamos e reivindicações da sociedade, que, ainda hoje, após o desiderato judicial final, clama pela instauração da Comissão da Verdade, a abertura dos arquivos da ditadura e a descoberta dos locais onde foram enterrados os mortos. Como acentuou o Papa Bento XVI: “PERDÃO NÃO É ESQUECIMENTO”. Por oportuno, descreve-se como os ministros votaram: O relatório e voto do eminente Ministro Eros Grau, pronunciado com grande emoção e fundamentos jurídicos, após justificar as várias razões que o levou a rejeitar o pedido da OAB, no sentido de responsabilizar os agentes do governo pelas barbaridades cometidas contra os presos políticos, chegou ao

(...) es bueno que conozcas que tu viejo callo o puteo como un loco que es una linda forma de callar. (...) Y acordarse de vos de tu carita lo ayudaba a callar. Una cosa es morirse de dolor y outra cosa es morirse de verguenza. (...) Llora nomas botija son macanas que los hombres no lloran aqui lloramos todos. Gritamos berreamos moqueamos chillamos maldecimos porque es mejor llorar que traicionar porque es mejor llorar que traicionarse. Llora Pero no olvides. Após o contristado voto do Ministro Eros Grau, votou o Ministro Lewandowski, que pronunciou um arrazoado e bem fundamentado voto, contrariando o Relator, com explícita citação de várias versões do Código Penal e da própria Constituição Federal, acentuando a incidência das leis penais, que conduzem ao julgamento dos agentes públicos que extravasaram das funções com as torturas e violências contra os presos políticos, o que conduz à imprescritibilidade desses crimes. O voto seguinte, da Ministra Carmen Lúcia, envolveu considerações sobre o acordo acertado com a OAB e políticos na aceitação da Lei da Anistia, o que a levou a acompanhar o voto do Relator. O mesmo acontecendo com os ministros Celso Mello, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Ellen Gracie e Cezar Peluso, que também, com os mesmos argumentos e razões, acompanharam o voto do Ministro Relator Eros Grau. O voto do Ministro Carlos Ayres Britto, com o seu estilo calmo e sumamente ponderado, fez contundente menção às torturas e abusos sexuais praticados pelos agentes do governo, com brutais ações de estupro e morte, votando e acompanhando o voto divergente do Ministro Lewandowski.

Orpheu Santos Salles Editor 2010 MAIO | JUSTIÇA & CIDADANIA 7


GUARDIÃO DA LIBERDADE

Discurso proferido pelo Ministro Cezar Peluso em sua posse como Presidente do Supremo Tribunal Federal

Seria difícil traduzir em palavras a intensidade com que vivo este instante. Homem comum, avesso, por índole e radical convicção, a notoriedade e a auto-referencia, logo me obrigo a fazer praga da imensa honra de chegar, pela via sempre compensadora do trabalho, ao mais elevado posto que transcende uma carreira, eleita, há mais de quatro décadas, como projeto de toda uma vida. Foram mais de 15 (quinze) mil dias, desde a primeira comarca no interior de São Paulo, até esta cerimônia que se incorpora, em definitivo, à memória de quem hoje assume a presidência do Supremo Tribunal Federal. Mas evocações não me permitem esquecer os agradecimentos. O primeiro deles ao Exmo. Sr. Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, cuja presença, mais que ao empossando, honra esta Corte, e que me nomeou para integrá-la, com o apoio vigoroso e perseverante do então Ministro da Justiça, Marcio Thomaz Bastos, a quem sou não menos grato pelo gesto de confiança na minha independência, predicado que caracteriza, historicamente, todos os ministros desta Casa. Meus respeitos, igualmente, ao Senado Federal pela aprovação da escolha do meu nome. Agradeço, ao depois, as generosas palavras do nosso decano, Ministro Celso de Mello, que associa, em combinação rara, à sólida cultura jurídica, à impecável correção ética e à inexcedível elegância no convívio colegiado, essa extraordinária segurança intelectual que lhe permite reconhecer e proclamar as virtudes alheias e, não raro, por excesso de fineza, descobrilas até onde não as há. Agradeço ao senhor Procurador-Geral da República, Dr. Roberto Monteiro Gurgel Santos, que dá continuidade à primorosa atuação do nosso querido Dr. Antonio Fernando 8 JUSTIÇA & CIDADANIA | MAIO 2010

Barros e Silva de Souza, a saudação cuja delicadeza não é mais do que o reflexo de sua cativante fidalguia. Com não menor emoção, agradeço a riqueza da retórica e as demasias da amizade desse advogado exemplar, modelo de um cavalheirismo quase anacrônico, Dr. Pedro Gordilho, que sempre me comove como figura humana. Agradeço ao Dr. Ophir Filgueiras Cavalcante Junior a homenagem que, em nome da Ordem dos Advogados do Brasil, cujo Conselho Federal preside com bravura, prestou ao Poder Judiciário. Saúdo, com apreço e cordialidade, o Ministro Gilmar Mendes, a cuja gestão servi com lealdade e ética retilíneas, e que, deixando a difícil missão de sucedê-lo, emprestou sua intrepidez à defesa do prestígio desta Corte e seu descortino à consolidação do Conselho Nacional de Justiça. As conhecidas e bem sucedidas inovações que, aqui e ali, introduziu de modo marcante e irreversível, explicam a inédita aprovação manifestada em editoriais dos mais importantes jornais do País, as quais já lhe fizeram, de público, a devida justiça. Na sua pessoa, homenageio todos ex-presidentes. Igualmente, homenageio meus pares, agradecendo-lhes a generosidade com que, reverentes a regra de saber e de experiência feita, nos conferiram, ao Ministro Carlos Aires Britto e a mim, votos que significam promessa de apoio e de solidariedade no exercício do honroso mister de os representar. E recordo, com saudade inconsolável, o irmão e parceiro, Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, que comigo sonhou sonhos de grandeza desta Casa, em cujas paredes ainda ecoam seus sorrisos e suas esperanças.


Foto: Gil Ferreira/SCO/STF

Gilmar Mendes, Presidente do STFdo Supremo Tribunal Federal Ministro Cezar Peluso, Presidente

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Foto: Nelson Jr./SCO/STF

Ministro Cezar Peluso, Presidente do Supremo Tribunal Federal

Envaidece ascender a tão honroso cargo no singular momento histórico em que, por obra de vertiginosas transformações de ordem econômica, social e política, o País se investe numa posição de relevo no cenário internacional, credenciando-se como interlocutor respeitável no diálogo das nações. Em poucos anos, seremos a quinta economia do mundo. Embora ainda inadimplentes da dívida social, já despertamos do sono secular em berço esplêndido. E nossa atual importância geopolítica justifica que o País, em cujo território não se estabeleceu ainda, dentre vários dispersos pelos continentes, nenhum organismo qualificado da Organização das Nações Unidas, reivindique agora sediá-lo, não à conta de ambição tacanha ou de orgulho vão, mas consciente da contribuição que pode oferecer aos esforços da paz no mundo. Explico-me, Senhor Presidente. A revelação de métodos apropriados para estabelecer padrões consistentes de segurança pública já não pode prescindir da contribuição dos meios universitários, cujos estu­dos e pesquisas concorrem para formulação de políticas de fortalecimento dos sistemas jurídicos de prevenção, investigação, repressão e execução penal, com responsabilidade compartilhada em todos os continentes. É deste ponto de vista que a Organização das Nações Unidas tem a oportunidade de dar mais um passo histórico decisivo, com a criação, com sede em nosso país, de uma 10 JUSTIÇA & CIDADANIA | MAIO 2010

Universidade Internacional de Segurança Pública, concebida como foro produtor de subsídios científicos à busca de soluções inteligentes para as peculiaridades do crime sem fronteiras, que geram instabilidades regionais e ameaçam a paz do mundo. Nenhum país pode enfrentar sozinho a epidemia universal da violência, mas o grau de cooperação entre governos ainda está muito aquém do nível de cooperação percebida entre as redes do crime organizado. Na reunião do Conselho de Segurança da ONU, em 9 de dezembro de 2009, o Secretário Geral da ONU advertiu, só para exemplificar com um fato óbvio, que “as rotas do tráfico de drogas se tornam uma ameaça cada vez mais grave, atingindo todas as regiões do mundo”. Os problemas atuais com que se defronta o tratamento das múltiplas expressões da criminalidade têm debilitado a segurança mundial. Nação alguma pode hoje dizerse totalmente protegida contra os efeitos nocivos da globalização. Visível ou subterrânea, essa criminalidade, favorecida pela Internet, ignora fronteiras, especialmente em operações de tráfico, lavagem de dinheiro, clonagens, fraudes, propagação de vírus e de ofensas à honra das pessoas, em sítios eletrônicos ou páginas de relacionamento. Tal crise contemporânea, que universaliza os sentimentos de medo e insegurança, pede urgente instauração de formas mais estreitas de colaboração entre os países membros da Organização das Nações Unidas.


Atuando, nessa emergência, como instrumento de cooperação institucional, de prevenção e controle da criminalidade, de aplicação das normas internacionais contra o crime organizado e de combate à propagação do terrorismo e da degradação ambiental, a Universidade teria por objetivos básicos fortalecer o intercâmbio, promovendo experiências para compreender essa nova realidade e sugerir soluções mais adequadas em âmbito nacional, transnacional, em zonas de conflitos e em áreas de reconstrução pós-conflitos (a); introduzir, nos sistemas de segurança, mecanismos de aumento da transparência e da confiabilidade das políticas públicas (b); estimular o desenvolvimento científico e tecnológico dos aparatos policiais, no contínuo processo de integração com a comunidade (c); recolher fundos de agências de desenvolvimento para financiar programas, projetos e pianos de ação (d); e definir políticas de cooperação nos termos ditados pelo Conselho Econômico e Social das Nações Unidas – ECOSOC (e). A criação, aqui, de uma Universidade Internacional de Segurança Pública das Nações Unidas, estruturada nesses moldes, será valiosa resposta à Cúpula do Milênio, realizada pela ONU, de 6 a 8 de setembro de 2000, em Nova York, visando a metas estratégicas duradouras para os quadros de miséria, exclusão, desordem ambiental, medo e insegurança, que atingem bilhões de pessoas em todo o globo. Atenderia à Declaração de Salvador, que, há poucos dias aprovada ao termo do XII Congresso da ONU sobre Prevenção de Crime e Justiça Criminal, do qual tivemos a honra de participar como presidente do Comitê Latino-Americano de revisão das regras mínimas de tratamento de presos, apela, mais uma vez, para a necessidade da cooperação internacional. E, em nome da humanidade, daria substância ao permanente empenho da ONU na busca de melhores práticas em favor da vida condigna em todos os domínios das relações humanas. A estabilidade institucional, que, inspirando ao mundo fundada confiança em nossa ordem jurídica, sustenta a ousadia da proposta, é também obra desta Corte. Entre outros, vem o STF exercendo, ao longo da história republicana, mas sobretudo no período que vem do início de vigência da atual Constituição Federal, dois papéis fundamentais na estabilidade do processo de aprendizado e aprimoramento democráticos. A democracia, sabemo-lo todos, não é um dado, mas uma construção permanente, na qual a estabilidade, que a cimenta, não significa ausência de crises e, em particular, de crises políticas, cuja superação constitui incumbência primária das demais esferas de poder, até porque são intercorrências inevitáveis, de certo modo periódicas e previsíveis, da congênita imperfeição da convivência humana. Na milenar trajetória de refinamento do Espírito, a harmonia universal e a domesticação das paixões aparecem apenas como horizonte utópico e princípio da ação prática. Mas a estabilidade, essa transpira a possível certeza do Direito, que, reafirmada e assegurada pelas decisões judiciais na interpretação e aplicação do ordenamento, é capaz, não de

extinguir os conflitos intersubjetivos e as turbulências políticas, as que envolvem a polis, mas de lhes pôr termo racional, enquanto condição ineliminável da fidelidade da ação humana a si mesma e da sobrevivência de uma sociedade civilizada. Concretizá-la tem sido o papel eminente e a grande contribuição desta Corte ao País, sobranceira a injustas acusações de ativismo político, porque consciente do dever jurídico de dar respostas constitucionais necessárias a demandas sociais oriundas da incapacidade de soluções autônomas. Essa obra, que guarda hoje singularidade histórica, não é fruto de suposta diferença de personalidade, de cultura jurídica e de visão do mundo dos membros atuais da Corte, senão característica do cunho analítico da Constituição em vigor e, em certa medida, aliás muito honrosa, do sentimento público de confiança conquistada pela instituição por mérito das gerações de ilustres ministros que nos precederam. O segundo papel tem sido o de, atuando as garantias constitucionais, tutelar os direitos individuais e coletivos, que encarnam a concepção normativa dos valores imanentes em que se decompõe a ideia da dignidade humana, vista como fonte, substância e fim último de toda ordem jurídica, e cujo resguardo é já reconhecido como garantia última do desenvolvimento do projeto comum de convivência ética. O direito não é apenas categoria ou conceito, objeto de válidas lucubrações acadêmicas. O direito é, antes de tudo, vida, que se manifesta nas infinitas possibilidades da ação humana na realização histórica de cada projeto pessoal nesta misteriosa experiência da vida em sociedade. E, porque o é, seu menoscabo, provenha da autoridade ou dos súditos, como centros de poder social, degrada sempre a pessoa humana reduzindo-a, de sujeito da sua história, a objeto disponível da ação alheia e, portanto, ao estado de coisa, infravalente por natureza. E, se não restabelece a ordem jurídica lesada, dentro da qual a lesão à liberdade e à autonomia de cada um é lesão à autonomia e à liberdade de todos, retrocedemos aos estágios fluídos da barbárie. Daí, a perceptível e relevantíssima das tarefas do Supremo de proteger a pessoa humana na dimensão subjetiva e objetiva dos direitos fundamentais, ainda quando sua violação se esconda e dissipe no fluxo das situações que, ética e juridicamente censuráveis, despertam a indignação popular, quase sempre obcecada pelas mais primitivas pulsões e não raro incendiada pela voracidade publicitária de alguns veículos de comunicação de massa. E é nesse contexto que avulta a grandeza da intervenção, sempre provocada, do Supremo Tribunal Federal, ao manter-se fiel ao dever funcional de, velando pela integridade da Constituição da República, restaurar o primado dos direitos civis e políticos, ainda quando afronte expectativas irracionais da opinião pública, cujas projeções não refletem, muitas vezes, aquela profunda consciência ética que nos distingue como seres superiores e nos orgulha de pertencer à raça humana. Os juízes não somos chamados a interpretar nem a reverenciar sentimentos impulsivos e transitórios de grupos ou segmentos sociais. Nosso juramento, formal e solene, que não constitui liturgia, mas promessa dirigida ao povo, é, adaptandoas, quando possível, ao espírito do tempo, aplicar a Constituição 2010 MAIO | JUSTIÇA & CIDADANIA 11


e as leis, tais como legitimamente editadas, sob regime de Estado Democrático de Direito, pelos órgãos representativos da soberania popular, aos quais compete a tarefa de, na dialética democrática Judiciário-Parlamento, segundo a precisa expressão de Chaim Perelmann, mudar as leis e a Constituição, quando já não convenha à sociedade o sentido normativo que lhes emprestem os tribunais. O povo confia em que não sejamos perjuros, nem vítimas da tentação de onipotência. Por isso, acima das conjunturas e das peripécias históricas, nossa autoridade não vem do aplauso ditado por coincidências ocasionais de opiniões, nem se inquieta com as críticas mais ensandecidas. Nos temas cuja controvérsia argúi o mais íntimo reduto da subjetividade humana, como o aborto, a eutanásia, as cotas raciais, a união de homossexuais e tantas outras, não pode a sociedade, irredutivelmente dividida nas suas crenças, pedirnos soluções peregrinas que satisfaçam todas as expectativas e reconciliem todas as consciências. Nosso compromisso, na quase prosaica tarefa cotidiana de decidir as causas segundo nos sugira a inteligência perante os fatos e a lei, é renovar o ato de fé na supremacia da legalidade democrática, na valência de uma ordem jurídica justa e nos grandes ideais humanitários consubstanciados no rol dos direitos fundamentais, preservando e transmitindo, como legado desta às futuras gerações, os valores que tornam a vida humana uma experiência digna de ser vivida e, como tais, definem uma civilização. Mas o honroso encargo de Presidente desta Corte lhe impõe agora, a quem o assume, a par da grave obrigação de, quando menos, concorrer, nos limites de suas forças, sobretudo para o fiel desempenho de ambos esses papéis, essenciais a consolidação e ao aperfeiçoamento da democracia, no mais longo período de estabilidade constitucional da história republicana, o mister de dirigir o Conselho Nacional de Justiça. Deste Conselho, que, posto ainda algo hesitante a respeito da sua precípua vocação constitucional de órgão administrativo de planejamento estratégico, predestinado a conceber e a executar políticas nacionais de fortalecimento do Poder Judiciário, já provou o alcance de corajosas iniciativas em múltiplas áreas de deficiências estruturais da máquina judicial, a primeira tarefa, e não por acaso a primeira na ordem textual da Constituição, e velar pela autonomia do Poder Judiciário e pelo cumprimento do Estatuto da Magistratura. Sob esta fórmula de aparente simplicidade, palpita o seu mais nobre e complexo ofício orgânico, porque, pautando-lhe o exercício das demais atribuições, voltadas todas aos propósitos de eficiência do serviço devido ao povo, tem por pressuposto a necessidade de reconhecer e guardar a dignidade, a independência e a autoridade dos magistrados e dos órgãos jurisdicionais, as quais são predicados elementares da função judicante, garantia dos cidadãos, e não privilégios corporativos. É nobre o ofício, porque, sendo nobre por natureza o serviço da Justiça, no exercê-lo nobilita o povo como seu destinatário e cultua a inteireza do ordenamento jurídico democrático como único ambiente em que vicejam a liberdade e a convivência civilizada. E é complexo, porque exige a particular habilidade de, ainda quando, em nome dos seus elevados objetivos, tenha 12 JUSTIÇA & CIDADANIA | MAIO 2010

de reprimir, com todo o peso da superioridade hierárquica, erros e desvios que, na estrita seara administrativa, financeira e disciplinar, comprometam as atividades judiciais, fazê-lo sem marear os juízes e os tribunais com excessos que, nada acrescendo em termos de eficácia, de um lado levantem suspeitas generalizadas e injustas, capazes de corroer a credibilidade do Judiciário, e, de outro, conotem intromissões desnecessárias e ilegais, tendentes a castrar a autonomia e a desestimular a imprescindível colaboração de seus órgãos diretivos. Deixar de observá-lo não seria apenas desconforme com a letra da Constituição, mas o seria mais com seu espírito vivificante, que foi o de, ao instituir o Conselho, prover o sistema judiciário de um cabal e seleto mecanismo de aprimoramento. E a ninguém escapa que eventual hostilidade coletiva, nascida de abusos ou incompreensões do poder controlador, oporia, em surto de indesejáveis reações emocionais e de conflitos contraproducentes, obstáculos intransponíveis à concretização das altas finalidades que a Constituição reservou ao Conselho, para operar, não contra, mas em favor da Magistratura e, por seu intermédio, em benefício do povo. Se a Magistratura, como todas as demais instituições humanas, não é nem pode ser perfeita, não lhe faltam, como o revela um juízo histórico isento, à luz das restrições políticas que lhe perpetuam a heteronomia orçamentária e de um rígido senso conservador que transcende seus quadros, porque deita raízes na cultura das camadas sociais de que provém a capacidade de reconhecer seus defeitos, de suprir suas deficiências, de purgar seus pecados e de tentar responder, com sinceridade e disposição, aos desafios que lhe proponham diagnósticos precisos e projetos sensatos emanados de um órgão central de planejamento. A descrer dessa capacidade, seria melhor extinguir o Judiciário. Donde estou plenamente convicto de que, nessa emprei­ tada comum, não há outro caminho ao CNJ senão o de convencer a Magistratura, por ações firmes mas respeitosas, de que somos todos, cada qual nas esferas próprias de competência constitucional, aliados e parceiros na urgente tarefa de, corrigindo as graves disfunções que o acometem, repensar e reconstruir o Poder Judiciário, como portador das mais sagradas funções estatais e refúgio extremo da cidadania ameaçada. E, se para o lograr, decerto será preciso agir com rigor e severidade perante desmandos incompatíveis com a moralidade, a austeridade, a compostura e a gravidade exigidas a todos os membros da instituição, o testemunho público de minha dedicação incondicional, por mais de quarenta anos, a Magistratura, não autoriza nenhum magistrado, ainda quando discorde, duvidar de que, na condição de Presidente do STF e do CNJ, vou fazê-lo sem hesitação, como já o fiz quando servi, por dois anos, a Corregedoria do Tribunal de Justiça de São Paulo, por amor da Magistratura. Aliás, só quem ama, já tive oportunidade de dizê-lo, deveria ter o poder de punir. E não faz muito, por duas vezes indagaram-me sobre a marca que gostaria de deixar ao cabo da honrosa missão que me conferiram meus pares. E não titubeei em responder que estimaria ser apenas lembrado como alguém que contribuiu,


nos extremos de sua capacidade, para recuperar o prestígio e o respeito públicos a que fazem jus os Magistrados e a magistratura do meu país. Muitos são os desafios para restaurar esse prestígio. Nem é este o lugar curial para recapitular todas suas conhecidas disfunções, das quais a mais ostensiva, conquanto não exclusiva do Judiciário brasileiro, talvez seja a morosidade das respostas jurisdicionais, que denuncia obstinada crise de desempenho e explica crescente perda de credibilidade institucional. Pesquisas recentes e confiáveis mostram que 43% dos brasileiros, ao sentirem seus direitos desres­ peitados, procuram soluções por conta própria. Só 10% vão diretamente à Justiça. Os outros dividemse na busca de mediação de advogados, no recurso à polícia, na renúncia ao interesse e, pasmem, até no uso da força. É verdade que, entre os que recorrem ao Judiciário, 46% se declaram satisfeitos e, apenas 23%, inconformados. Mas está claro que isso não pode consolar-nos. Ora, as rápidas transformações por que vem passando, sobretudo nas ultimas décadas, a sociedade brasileira, tem agravado esse quadro lastimável, em virtude da simultânea e natural expansão da conflituosidade de interesses que, desaguando no Poder Judiciário, o confronta com sobrecarga insuportável de processos, em todas as latitudes do seu aparato burocrático. E uma das causas proeminentes desse fenômeno está, como bem acentua o Des. Kazuo Watanabe, na falta de uma política pública menos ortodoxa do Poder Judiciário em relação ao tratamento dos conflitos de interesses. O mecanismo judicial, hoje disponível para dar-lhes resposta, é a velha solução adjudicada, que se dá mediante produção de sentenças e, em cujo seio, sob influxo de uma arraigada cultura de dilação, proliferam os recursos inúteis e as execuções extremamente morosas e, não raro, ineficazes. É tempo, pois, de, sem prejuízo doutras medidas, incorporar ao sistema os chamados meios alternativos de resolução de conflitos, que, como instrumental próprio, sob rigorosa disciplina, direção e controle do Poder Judiciário, sejam oferecidos aos cidadãos como mecanismos facultativos de exercício da função constitucional de resolver conflitos. Noutras palavras, é preciso institucionalizar, no plano nacional, esses meios como remédios jurisdicionais facultativos, postos alternativamente à disposição dos jurisdicionados, e de cuja adoção o desafogo dos órgãos judicantes e a maior celeridade dos processos, que já serão avanços muito por festejar, representarão mero subproduto de uma transformação social ainda mais importante, a qual está na mudança de mentalidade em decorrência da participação decisiva das próprias partes na construção de resultado que, pacificando, satisfaça seus interesses. Esta cerimônia, que vai chegando ao fim, é, no seu significado mais profundo, celebração da Justiça. Justiça não se celebra,

porém, onde falte a liberdade. Se pudéssemos condensar, num único vocábulo, os trinta artigos da mais completa e representativa carta de solidariedade que conhece o mundo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, tal palavra seria Liberdade, porque nela se concentram todos os valores próprios da inesgotável noção da dignidade da pessoa humana na plenitude e posse dos seus direitos individuais e sociais. Terá sido isto que expressou um memorável democrata, Franklin Delano Roosevelt, quando advertiu: “Os homens necessitados não são homens livres”. Por isso, a liberdade é o princípio supremo de todas as leis. Por isso, preza-se esta Corte de ser reconhecida como guardiã da liberdade, para cuja definição valho-me de palavras que vão além de qualquer prosa. Palavras de poesia, escritas por uma brasileira cujo nome pronuncio com grande reverência: Cecília Meirelles. E, com não menor gratidão, por me oferecer em seus versos as últimas linhas desta alocução proferida em momento especial da minha vida de juiz: ‘Liberdade Esta palavra que o sonho humano alimenta E não há ninguém que a explique E ninguém que não entenda’.” 2010 MAIO | JUSTIÇA & CIDADANIA 13


Hipóteses de Exclusão da Responsabilidade do Transportador de Cargas (arts. 12 e 13 da Lei 11.442/2007) Paulo Furtado Ministro do STJ

O

I. Introdução Brasil, com 8.511.965 km2 é o país mais extenso da América do Sul, o terceiro das Américas e o quinto do mundo, perdendo apenas para a Rússia (22.402.200 km2), o Canadá (9.970.610 km2), a China (9.517.300 km2) e os Estados Unidos (9.372.614 km2). Natural, portanto, que possua este país de extensão continental uma das maiores malhas rodoviárias do Planeta, podendo-se afirmar que, praticamente, o transporte de merca­ dorias é realizado em rodovias no Brasil, diante da falta de políticas públicas para incentivar a utilização do transporte aquático, embora os grandes recursos hídricos que possuímos e considerando o custo elevadíssimo do transporte aéreo, especialmente para o cidadão comum. Por isso, contamos atualmente com numerosa frota de caminhões e carretas trafegando intensamente pelas rodovias, transportando nossas riquezas e gerando, em consequência, a necessidade de regulamentação sobre o tema, relevantíssimo para a economia nacional. A Lei Federal 6.813, de 10/7/1980, regulava o transporte rodoviário de cargas, dispondo timidamente sobre esta questão tão importante em apenas 5 (cinco) artigos, nada falando sobre a responsabilidade do transportador de cargas. Contudo, com o advento da Constituição Federal de 1988, o segmento dos transportadores de cargas começou a se movimentar, buscando a edição de lei federal que abordasse todos os ângulos desse tema, com a adoção de regras claras em relação à responsabilidade de todos os envolvidos nesta questão, evitando-se também a atuação predatória e irresponsável em mercado tão rentável e com grande potencial de crescimento. 14 JUSTIÇA & CIDADANIA | MAIO 2010

É apresentado, então, o Projeto de Lei 4.358-B, de 2001, de autoria do Deputado Federal Feu Rosa, do qual destaco a seguinte justificativa, que resume os anseios daqueles relacionados ao transporte de cargas em nosso país: Já era tempo de o Executivo preocupar-se com o assunto e dar um passo decisivo nesse sentido, porque não existe norma legal regulamentando o transporte de cargas e seus desdobramentos a serviço do contratante. Ainda o projeto define a forma e a prestação do serviço, bem assim informações para a completa identificação das partes, natureza fiscal com a expedição do contrato ou conhecimento do transporte, assumindo o contratante a responsabilidade do negócio jurídico, cobrindo o período compreendido entre o momento do recebimento da carga e de sua entrega ao destinatário. (Diário da Câmara dos Deputados – edição de 21/12/2001 – pág. 67.523) II. Lei Federal 11.442/2007 – Marco regulatório do transporte rodoviário de cargas Após seis anos de tramitação nas duas Casas Legislativas, finalmente é sancionada pelo Presidente Lula, em 5 de janeiro de 2007, a Lei 11.442, dispondo sobre o transporte rodoviário de cargas por conta de terceiros e mediante remuneração, revogando a mencionada Lei 6.813/1980. O novo diploma legal, segundo especialistas da área, tem por escopo primordial combater a informalidade do setor, fato gerador de insegurança jurídica e econômica. A Lei 11.442/2007 responde satisfatoriamente aos reclamos do setor de transportes, consagrando, em seus dispositivos,


Foto: Luiz Antonio/SCO/STJ

posicionamentos estabelecidos no Código Civil de 2002 e na jurisprudência dos Tribunais Pátrios, podendo-se destacar, dentre os 24 artigos que a compõem, os seguintes pontos: a) o Transporte Rodoviário de Cargas – TRC é considerado atividade econômica, de natureza comercial, exercida por pessoa física ou jurídica em regime de livre concorrência (arts. 1º e 2º); b) o exercício da atividade em tela depende de prévia inscrição do interessado no Registro Nacional de Transportes Rodoviários de Cargas – RNTR-C, da Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT, cabendo a esta instituição a regulamentação deste cadastro (arts. 2º e 3º); c) o Transportador Autônomo de Cargas – TAC, pessoa física, e a Empresa de Transporte Rodoviário de Cargas – ETC, pessoa jurídica constituída por qualquer forma prevista em lei, têm no transporte rodoviário de cargas sua atividade profissional (art. 2º); d) as relações decorrentes do contrato de transporte de cargas são sempre de natureza comercial, não ensejando, em nenhuma hipótese, caracterização de vínculo de emprego, competindo, portanto, à Justiça Comum o julgamento das ações relativas a este diploma legal (art. 5º); e) o transportador é responsável pelas ações ou omissões de seus empregados, agentes, prepostos ou terceiros contratados ou subcontratados para a execução dos serviços de transporte, como se essas ações ou omissões fossem próprias (art. 8º); f) o transportador tem direito a ação regressiva contra os terceiros contratados ou subcontratados, para se ressarcir do valor da indenização que houver pago (parágrafo único do art. 8º); g) a responsabilidade do transportador cobre o período compreendido entre o momento do recebimento da carga e o de sua entrega ao destinatário (art. 9º);

h) a responsabilidade do transportador cessa quando do recebimento da carga pelo destinatário sem protestos ou ressalvas (parágrafo único do art. 9º); i) há causas que excluem a responsabilidade dos trans­ portadores e seus subcontratados (art. 12); j) seguro contra perdas ou danos causados à carga, de acordo com o que seja estabelecido no contrato ou conhe­ cimento de transporte (art. 13), também é excludente da responsabilidade do transportador; k) a responsabilidade do transportador por prejuízos resul­ tantes de perdas ou danos causados às mercadorias é limitada ao valor declarado pelo expedidor e consignado no contrato ou conhecimento de transporte, acrescido dos valores do frete e do seguro correspondentes (art. 14); l) há hipóteses nas quais o expedidor da mercadoria indenizará o transportador rodoviário (art. 17); m) define-se o prazo prescricional de 1 (um) ano para o ajuizamento da ação de reparação de danos relativos aos contratos de transporte, estabelecido como termo inicial da contagem do prazo o momento do conhecimento do dano pela parte interessada (art. 18); e, por fim, n) faculta-se aos contratantes a solução de conflitos pela arbitragem (art. 19). III. Responsabilidade do transportador de cargas Inovando o ordenamento jurídico, a Lei 11.442/2007 regula, de maneira clara e detalhada, a responsabilidade das partes envolvidas no transporte rodoviário de cargas: o transportador, seus prepostos ou terceiros contratados ou subcontratados, o expedidor e o recebedor da mercadoria. 2010 MAIO | JUSTIÇA & CIDADANIA 15


O novo diploma legal estabelece, em seu art. 8º, que o transportador é responsável pelas ações ou omissões de seus empregados, agentes, prepostos ou terceiros contratados ou subcontratados para a execução dos serviços de transporte, como se essas ações ou omissões fossem próprias, tendo ele, contudo, direito à ação regressiva contra os terceiros contratados ou subcontratados, para se ressarcir do valor da indenização que houver pago, na dicção do parágrafo único do mencionado dispositivo legal. Pode-se afirmar que o art. 8º consagra a responsabilidade objetiva do transportador de cargas em relação ao expedidor e ao recebedor da mercadoria, resguardando, porém, o direito daquele à ação regressiva contra terceiros contratados ou subcontratados. O art. 9º preconiza que a responsabilidade do transportador abrange o período compreendido entre o momento do recebi­ mento da carga e o de sua entrega ao destinatário, cessando (a responsabilidade) quando do recebimento da carga pelo destinatário, sem protestos ou ressalvas, conforme o parágrafo do artigo mencionado. Finalmente, a responsabilidade do transportador por prejuízos resultantes de perdas ou danos causados às mercadorias é limitada ao valor declarado pelo expedidor e consignado no contrato ou conhecimento de transporte, acrescido dos valores do frete e do seguro correspondentes, segundo o art. 14. IV. Hipóteses de exclusão da responsabilidade do transportador de cargas A par de regular os fatos que ensejam a responsabilidade do transportador de cargas, a Lei 11.442/2007 sabiamente estabeleceu, nos arts. 12 e 13, as hipóteses de exclusão da responsabilidade do protagonista do transporte rodoviário no Brasil, que são adotadas, ipsis literis, na Resolução 3.056, de 12/3/2009, da Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT, a qual, regulamentando o diploma federal, dispõe sobre o exercício da atividade de transportes rodoviários de cargas por conta de terceiros e, mediante remuneração, estabelece procedimentos para inscrição e manutenção no Registro Nacional de Transportadores Rodoviários de Cargas – RNTCR e dá outras providências. Seja como for, é de se ter presente, inicialmente, que o transporte rodoviário de cargas não se sujeita à outorga de autorização, concessão ou permissão, pois a Lei 11.442/07 estabelece expressamente a natureza comercial do transporte rodoviário de cargas, pelo regime de livre concorrência. Como consequência, tem-se que o contrato de transporte rodoviário de cargas subsume-se ao regime jurídico de direito privado, o que, de antemão, exclui a sujeição passiva da ANTT em demandas que não envolvam o RNTRC – Registro Nacional de Transportadores Rodoviários de Carga. Em casos tais, a responsabilização do transportador será apurada mediante o cotejo do contrato de transporte, segundo as disposições da Lei específica e, subsidiariamente, do Código Civil, dentro do campo jurisidicional da Justiça Comum. As relações jurídicas relativas ao transporte rodoviário de cargas têm natureza comercial (res inter alios) e, portanto, 16 JUSTIÇA & CIDADANIA | MAIO 2010

a resolução dos litígios decorrentes são, via de regra, de competência da Justiça Comum, excluindo a atuação da Justiça Federal. Feitas essas considerações iniciais, passemos às hipóteses da Lei 11.442/2007, repetidas no § 7º do art. 25 da Resolução 3.056/2009. Cumpre esclarecer, pontualmente, que as hipóteses de exclusão de responsabilidade previstas na Lei são explícitas e, em grande escala, encerram questões de interpretação direta, literal, o que dificulta sobremaneira o aprofundamento dos temas. 1) Inciso I do art. 12 – Ato ou fato imputável ao expedidor ou destinatário da carga Se o dano resultante do transporte rodoviário de mercadoria resultar de ato ou fato ocasionados pelo expedidor ou destinatário, é afastada a responsabilidade do transportador de cargas. Exemplo: o expedidor passa ao transportador endereço incorreto para a entrega da carga, ocasionando grande atraso e prejuízos ao destinatário. Por óbvio, os fatos imputáveis exclusivamente aos pólos expedidor e recebedor da carga esvaziam elemento crucial da responsabilidade civil, qual seja: o nexo de causalidade entre a conduta específica do transportador e o denominado evento danoso. 2) Inciso II do art. 12 – Inadequação da embalagem, quando imputável ao expedidor da carga A premissa desta hipótese é que o encargo relativo à embalagem da carga é do seu expedidor, não podendo o transportador ser responsabilizado por avarias no transporte. Contudo, deve-se ressaltar a importância da conferência, pelo transportador, das condições da carga no seu recebimento, sendo imprescindível o registro de quaisquer ocorrências neste sentido, no Contrato ou Conhecimento de Transporte, previsto no art. 6º da Lei 11.442/2007. Também aqui se verifica o esvaziamento do nexo de causalidade, pois a escolha da embalagem, bem como os fatores ligados à sua qualidade e adequação, são elementos alheios à atividade do transportador e não guardam, portanto, correlação com o serviço prestado. 3) Inciso III do art. 12 – Vício próprio ou oculto da carga Não há responsabilidade do transportador se a mercadoria entregue pelo expedidor possui vício próprio, expressão consagrada no art. 102 do Código Comercial, entendida pela doutrina e jurisprudência como o problema inerente à própria mercadoria ou à embalagem inadequada e defeituosa, quando esta couber ao expedidor, favorecendo, tais situações, a ocorrência de avarias. Como exemplo de vício próprio podemos citar o vencimento do prazo de validade. O vício oculto, por sua vez, é aquele escondido numa mercadoria, incapaz de ser prontamente identificado pelo transportador, levando à exoneração de sua responsabilidade. Como exemplo de vício oculto podemos citar eventual falha na resistência mecânica de determinado metal componente de um produto.


Como o transportador não integra a cadeia de produção, por óbvio a sua responsabilidade por eventuais vícios em relação à carga transportada é elidida pela Lei. 4) Inciso IV do art. 12 – Manuseio, embarque, estiva ou descarga executados diretamente pelo expedidor, destinatário ou consignatário da carga ou, ainda, pelos seus agentes ou prepostos A premissa adotada neste caso para liberar o transportador da responsabilidade é o fato de o expedidor, destinatário ou consignatário, ou ainda os agentes e prepostos destes, terem o encargo exclusivo relativo ao manuseio, embarque, estiva ou descarga da mercadoria. 5) Inciso V do art. 12 – Força maior ou caso fortuito De forma geral os conceitos de força maior e de caso fortuito não recebem tratamento diferenciado pelo legislador, o que se repete no presente caso. Justamente por isso não nos deteremos no rigor técnico para distinguir força maior de caso fortuito, desde que a Lei 11.442/2007 utiliza essas expressões como sinônimos, embora haja grandes debates doutrinários a respeito do tema, com diversas opiniões respeitáveis. De forma geral, entende-se que a diferença se assenta na denominada irresistibilidade pelo homem. Nessa perspectiva, ambos os conceitos seriam marcados pela imprevisibilidade, mas havendo possibilidade de ser o obstáculo removível, haveria caso fortuito. De outra banda, sendo completamente irresistível, haveria a força maior. O caso fortuito, pois, é acontecimento imprevisto e inevi­ tável. Força maior é o acontecimento inevitável, irresistível. Para o jurista Hélio Tornaghi, “nessa inevitabilidade reside a característica da força maior e nisso ela se distingue do fato casual, o acaso ou caso fortuito, que é o sucesso imprevisível”. (in Comentários ao Código de Processo Civil, vol.2, p.320321, RT, 1975). Daí decorre distinção generalista mais comum, relacionando o conceito da força maior àqueles eventos oriundos da natureza e, ao caso fortuito, os advindos da ação humana. Estabelecida tal premissa, podem-se considerar abrangidas nestas hipóteses as situações da vida, causadas pelo homem ou pela natureza, conforme o caso, caracterizadas pela inevitabilidade e imprevisibilidade, podendo-se citar como exemplo, consagrado na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, o roubo de carga transportada, conforme se pode verificar no precedente abaixo: PROCESSO CIVIL E COMERCIAL. TRANSPORTE DE CARGA. CONTRATO VERBAL. ROUBO À MÃO ARMADA. PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO RESSARCITÓRIA. DIES A QUO. CIÊNCIA INEQUÍVOCA DO EXPEDIDOR. RESPONSABILIDADE DA TRANSPORTADORA. INEXISTÊNCIA. CASO FORTUITO. – Havendo roubo da mercadoria, não há mais de se falar na entrega desta. Em tal hipótese, o prazo prescricional da pretensão ressarcitória deve ser

Santos Salles A

crise atual decorreu de um imperativo psicossocial clássico nas economias de mercado, ou seja, o envolvimento de toda a sociedade, sem intervenção adequada dos governos, na busca de resultados financeiros e no mercado de capitais, em face do crescimento da economia em padrões acima das necessidades de consumo dos que têm capacidade de absorver a produção. Dessa forma, os investimentos foram valorizados também em patamar mais elevado do que seu intrínseco valor estrutural, com o que, em lDireito Tributário um determinado momento, tal evolução, sem sustentabilidade real, necessariamente, terminaria por explodir, gerando mais lDireito Previdenciário uma crise cíclica de capitalismo, em dimensões maiores do que aquelas lDireito que ocorreremdas após 1929. Relações de Consumo O efeito psicológico de uma percepção superficial dos lDireito elementos causadores Civil da crise, indiscutivelmente, acabou por gerar um prolongamento ilusório de um “boom econômico”, lDireito do Trabalho já diagnosticado por especialistas como sem condições de permanência, a partir de 2006/2007. lDireito Penal Empresarial Os mercados não são autorreguláveis, mas as regulações oficiais lDireito quase sempreAdministrativo são insuficientes para corrigir suas distorções, mormente quando as próprias autoridades iludemse quanto à sua capacidade de conduzi-lo. lDireito Internacional Por outro lado, os investidores que o alimentam e que, não lMediação e Arbitragem poucas vezes, também se iludem com a fortaleza estrutural do progresso e do desenvolvimento, terminam sendo, lPetróleo, Gás momento em simultaneamente, causa e Energia efeito geradoredaquele que a constatação da impossibilidade de sua permanência em lDireito das Telecomunicações níveis elevados indefinidamente torna-se evidente. Em outras palavras, há um ponto de equilíbrio, que seria o limite crítico entre uma realidade controlável, propiciadora da estabilidade dos mercados, e a atuação dos agentes econômicos e autoridades tanto para perceber, quanto para promover uma intervenção corretiva, sempre que esse limite crítico, precário por natureza, é ultrapassado. É que, de outra forma, a atuação dos agentes econômicos passa a ser aleatória e desordenada, na busca desesperada de salvar o que lhes parece em risco de se perder, terminando, a ação das autoridades com poder regulatório, por ser superada pela atuação de investidores e consumidores. São estes, de rigor, aqueles que determinam os humores da realidade econômica, nas crises e nos tempos de bonança. Assim, há um ponto de equilíbrio permanente, na economia de mercado, sempre que os investidores, os agentes produtivos (agricultura, indústria, comércio e serviços) e os agentes públicos atuam na perspectiva de um desenvolvimento projetado, detendo pleno conhecimento dos fatores sociais, políticos, econômicos, de consumo e emprego, e sendo capazes de mantê-los constantes mediante controle induzido, por meio de políticas creditícias e fiscais capazes de estimular desestimular setores queandar possam Av. ou Paulista, 1765 -13° provocar os desequilíbrios definidos como indesejáveis pelos TEL: +55 (11) 3266-6611 - São Paulo agentes econômicos e públicos em conjunto. Nesse contexto de adequadaRio política mercado,- Brasília a própria conjunção de de de Janeiro - Campinas agentes públicos e privados conformará o nível de gastos Belo Horizonte públicos e despesas burocráticas, sempre que estes possam

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contado da data em que houve ciência inequívoca do expedidor acerca do assalto. – Tendo o contrato de transporte sido celebrado verbal­ mente e não havendo alegação das partes no sentido de ter sido acordada qualquer condição especial, aplicamse apenas as regras gerais atinentes a tal contrato. – O roubo de mercadoria transportada, praticado mediante ameaça exercida com arma de fogo, é fato desconexo ao contrato de transporte, e, sendo inevitável, diante das cautelas exigíveis da transportadora, constitui-se em caso fortuito ou força maior, excluindose a responsabilidade desta pelos danos causados ao dono da mercadoria. Precedentes. Recurso especial conhecido e provido. (REsp 904.733/MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 9/8/2007, DJ 27/8/2007, p. 249) DIREITO CIVIL. TRANSPORTE DE MERCADORIAS. ROUBO. FORTUITO E FORÇA MAIOR. INEVITABILI­ DADE. FORÇA MAIOR. EXCLUSÃO DA RESPONSA­ BILIDADE DO TRANSPORTADOR DE INDENIZAR REGRESSIVAMENTE A SEGURADORA QUE COBRIU OS PREJUÍZOS DO CONTRATANTE DO TRANS­ PORTE. PRECEDENTES DA CORTE. RECURSO PROVIDO. I – A presunção de culpa da transportadora pode ser ilidida pela prova da ocorrência de força maior, como tal se qualificando o roubo de mercadoria transportada, como ameaça de arma de fogo, comprovada atenção da ré nas cautelas e precauções a que está obrigada no cumprimento do contrato de transporte. II – Na lição de “Clóvis”, caso fortuito é “o acidente produzido por força física ininteligente, em condições que não podiam ser previstas pelas partes”, enquanto a força maior é “o fato de terceiro, que criou, para a inexecução da obrigação, um obstáculo, que a boa vontade do devedor não pode vencer”, com a observação de que o traço que os caracteriza não é a imprevisibilidade, mas a inevitabilidade. (REsp 160.369/SP, Rel. Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, QUARTA TURMA, julgado em 25/6/1998, DJ 21/9/1998, p. 190) Cumpre divisar, a propósito do tema, do singular tratamento conferido pela jurisprudência pátria, especialmente nas relações de consumo, aos conceitos de fortuito interno e externo para fins de responsabilização civil. De forma geral, tem-se afastado a responsabilidade do fornecedor de determinado serviço apenas nos casos de fortuito externo, este entendido como aquele absolutamente alheio à rotina da atividade econômica desenvolvida. Ou seja: são acontecimentos que refogem à normalidade do processo de produção ou são completamente alheios às rotinas e procedimentos utilizados na execução do serviço. Exemplo da aplicação desse entendimento encontra-se estampado no julgamen18 JUSTIÇA & CIDADANIA | MAIO 2010

to, pelo STJ, do Recurso Especial nº 726.371, de relatoria do saudoso Min. Hélio Quaglia Barbosa, no sentido da exclusão da responsabilidade do transportador decorrente de assalto ocorrido em ônibus, cuja ementa restou assim consignada: PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. INDENIZA­ ÇÃO POR DANOS MORAIS, ESTÉTICOS E MATERIAL. ASSALTO À MÃO ARMADA NO INTERIOR DE ÔNIBUS COLETIVO. CASO FORTUITO EXTERNO. EXCLUSÃO DE RESPONSABILIDADE DA TRANSPORTADORA. 1. A Segunda Seção desta Corte já proclamou o entendimento de que o fato inteiramente estranho ao transporte em si (assalto à mão armada no interior de ônibus coletivo) constitui caso fortuito, excludente de responsabilidade da empresa transportadora. 2. Recurso conhecido e provido. (STJ, REsp 726.371/RJ, Rel. Ministro Hélio Quaglia Barbosa, DJ 5/2/2007). Por outro lado, os casos considerados como de fortuito interno, isto é, aqueles que guardam íntima relação com a atividade econômica desenvolvida, não afastariam a responsa­ bilização do transportador. Aprofundando tal raciocínio, ainda em relação ao chamado fato de terceiro, a jurisprudência tem admitido claramente que, mesmo ausente a ilicitude, a responsabilidade existe, ao fundamento de o fato de terceiro exonerador da respon­ sabilidade ser aquele que com o transporte não guarde conexidade. Vigora no âmbito da jurisprudência do STJ o princípio geral de o fato culposo de terceiro vincular-se ao risco do transportador, que responderia pelo dano em decorrência, exatamente, do risco da sua atividade, preservado o direito de regresso. Tal não ocorreria se o caso fosse realmente fato doloso de terceiro. Portanto, o fato de terceiro, per si, não seria determinante para a exclusão do nexo causal, em razão do alargamento da aplicação da teoria do risco, ressalvado, contudo, o direito de regresso contra o terceiro causador do dano. Nas palavras do eminente Ministro Castro Filho, por ocasião do julgamento do Recurso Especial nº 469867, “em se tratando de responsabilidade de empresas transportadoras, a caracterização do fato de terceiro como excludente de responsabilidade só se mostra possível quando ausente relação de conexidade com o transporte, o que não se verifica em caso de acidente de trânsito, dada a previsibilidade desse tipo de evento por parte de quem atua na área, exatamente por isso é que deve ser inserido, no próprio risco da atividade, como consequência da disposição das vantagens e dos resultados produzidos, o que é denominado pela doutrina de risco-proveito. Destarte, ocorrências como a descrita no caso em apreço não podem ser consideradas súbitas e imprevisíveis, por não serem alheias às possibilidades e perigos correntes do trânsito. Esse o entendimento que, a meu ver, melhor resguarda a possibilidade de indenização das vítimas. E é questão que não pode ser relegada a segundo plano, tendo em vista que os critérios de responsabilidade fundada na culpa nem sempre se mostram aptos a solucionar o grave problema da reparação de danos, mormente


6) Inciso VI do art. 12 – Contratação de seguro pelo contratante do serviço de transporte, na forma do inciso I do art. 13 desta lei Como se infere do texto legal, a responsabilidade do transportador é afastada quando o expedidor da mercadoria contrata seguro. De fato, nos termos do inciso I do art. 13 da Lei, há a obrigatoriedade de toda operação de transporte estar protegida com seguro contra perdas e danos causados à mercadoria, seguro esse a ser custeado pelo contratante do transporte ou pelo próprio transportador. Como é cediço, o Código Civil disciplinou o contrato de transporte de pessoas e coisas, afastando, a priori, celeuma concernente à existência de excludente de responsabilidade do transportador fundada na culpa de terceiro. Nesse ponto, é de se ter em mente que, apesar de o Código de Defesa do Consumidor dispor, em seu art. 14, § 3°, II, que o fornecedor de serviço “só não será responsabilizado quando provar a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro”, tanto a doutrina quanto a jurisprudência eram unânimes ao afirmar não ser a responsabilidade do transportador afastada por culpa de terceiro. A propósito, vale a ressalva de que orientação jurisprudencial majoritária converge no sentido do Código de Defesa do Consumidor só ser aplicável nos contratos de transporte de forma residual, pois o Código Civil vigente é lei posterior e trata do tema de forma específica. Com efeito, com a nova redação do Código Civil, adveio a solução para a antiga polêmica relativa à responsabilidade do transportador, nos casos de evento lesivo ocasionado por culpa de terceiro, preceituando o art. 735 do Código Civil: “A responsabilidade contratual do transportador por acidente com o passageiro não é elidida por culpa de terceiro, contra o qual tem ação regressiva.” Nesse ponto, indaga-se: tal dispositivo teria aplicação, por analogia, quanto ao transporte de cargas? A resposta a essa questão encontra-se na dicção da própria Lei 11.442/2007, em seu art. 13, que assim dispõe: “Sem prejuízo do seguro de responsabilidade civil contra danos a terceiros previsto em lei, toda operação de transporte contará com o seguro contra perdas ou danos causados à carga, de acordo com o que seja estabelecido no contrato ou conhecimento de transporte (...)”. De fato, o inciso VI, do art. 12, exime integralmente a responsabilidade do transportador, uma vez contratado seguro pelo próprio contratante dos serviços. Obrigação, todavia, que

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diante da complexidade dos casos verificados nos dias atuais. E, embora não compartilhe da visão plena e incondicionada de alguns objetivistas, no sentido de que o risco está na base de tudo, tenho que a interpretação favorável à manutenção do nexo causal, mesmo em sendo a vítima pedestre, é a que melhor traduz o juízo de equidade necessário para o caso concreto.” Nesse particular, a redação da nova Lei é inovadora e afasta a responsabilização pelo fato de terceiros em razão de um processo de securitização dessa atividade econômica, como veremos a seguir.

ficará a seu cargo caso não seja cumprida pelo contratante, por ser providência obrigatória. 7) Parágrafo único do inciso VI do art. 12 – Não obstante as excludentes de responsabilidades previstas neste artigo, o transportador e seus subcontratados serão responsáveis pela agravação das perdas ou danos a que derem causa Este dispositivo fecha o rol de causas excludentes da responsabilidade do transportador de cargas, advertindo que, mesmo configurando-se qualquer das hipóteses previstas no art. 12, o transportador e seus prepostos serão responsabilizados pela agravação das perdas e danos por eles provocados. Vale dizer que cabe ao transportador que não provocou avarias, vícios ou danos à carga zelar para impedir a piora da situação da mercadoria. V. Conclusão – A Lei 11.442/2007 é efetivamente o marco regulatório no setor de transporte rodoviário de cargas, diante da inexistência de diploma legal anterior que regulamentasse de forma tão pormenorizada o tema, especialmente em relação à responsabilidade das partes envolvidas nesta temática, diminuindo a informalidade no setor, favorecendo a circulação da riqueza nacional. – Naturalmente, a Lei Federal 11.442/2007 somente terá seus contornos bem delineados quando devidamente esmiuçada pela doutrina e analisada pela ótica dos Tribunais, notadamente do Superior Tribunal de Justiça, responsável por uniformizar a interpretação da legislação federal. – Não se tem dúvida da alta relevância do tema Transporte Rodoviário de Cargas na atual conjuntura econômica do Brasil, nação que ocupa papel cada vez mais decisivo no cenário mundial, possuidora de incontáveis riquezas circulando pelas suas inúmeras rodovias. 2010 MAIO | JUSTIÇA & CIDADANIA 19


O MARKETING COMO ELEMENTO ESTRUTURANTE DA LEGITIMIDADE DO PODER JUDICIÁRIO Agostinho Teixeira de Almeida Filho Desembargador do TJERJ

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Introdução imagem da Justiça brasileira envolve fatores externos ao Poder Judiciário. Por isso, para que se possa identificar que instrumentos de “marketing” mais avultam em importância para propiciar um claro conhecimento da opinião pública sobre o Judiciário, é necessário compreender e desnudar o processo de constituição dessa imagem em seu aspecto temporal. 20 JUSTIÇA & CIDADANIA | MAIO 2010

O tema desta reflexão está estreitamente ligado à questão de legitimidade do Judiciário e da fórmula político-jurídica edificada paralelamente ao desenvolvimento do próprio Estado Democrático na formatação dessa legitimidade: a motivação e a publicidade de seus atos jurisdicionais e administrativos. E aí surge a indagação cuja resposta deve ser perseguida: em que pode o marketing contribuir para que a motivação e a publicidade permitam o aprimoramento da prestação jurisdicional e, por conseguinte, da própria imagem do Poder Judiciário? O contexto que evidencia a relevância desta discussão é o que se convencionou chamar de “crise do Judiciário”, que envolve a imagem do Poder perante grande parte da sociedade, a atitude dos veículos da mídia na construção dessa imagem e a interação entre esses dois fatores. As análises e as proposições ora formuladas têm como referencial teórico os conceitos de ambiente de marketing, promoção, público-alvo, assim como a linguagem no marketing. Crise do Judiciário e círculo vicioso da opinião pública A crise de credibilidade no Judiciário tem se tornado cada vez mais clara. Isto se mostra a qualquer um que acompanhe nos noticiários a tônica da crítica que se faz às decisões judiciais e, sem grande perigo de exagero, a quase tudo quanto se refere ao Poder Judiciário. Evidentemente, não se trata de uma postura particular dos veículos da imprensa, pois se estes contribuem para a formação de opinião dos que a eles têm acesso (certamente o fazem), provavelmente, em maior grau, tendem, antes, a refletir o sentimento e as inclinações de seu público consumidor. Dessa arte, a mídia, em geral, menos forma que espelha a chamada “opinião pública”. Outro não foi o cenário que levou o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Sepúlveda Pertence, a afirmar, já em 2003, num emblemático discurso de formatura a uma turma de bacharéis em Direito, que a crise judiciária alcançava “nos últimos anos dimensões inéditas”1. Conquanto os principais componentes do problema a que se referiu o ex-ministro sejam o custo, a lentidão, a ineficiência (em verdade três faces do mesmo problema) e o que chamou de


“caráter socialmente discriminatório dos resultados concretos da atividade jurisdicional”, pode-se observar que a crise de credibilidade vai além desses fatores. A associação da imagem do Poder Judiciário ao comportamento criticável de certos magistrados também tem sido frequente, o que revela um infeliz traço cognitivo recorrente na opinião pública em que a exceção, justamente por sê-lo, destaca-se de tal modo do padrão esperado que chega a afetar a percepção do fenômeno através da inadequada interpretação do desvio como sendo expressão da normalidade. Observa-se também a comum associação do Judiciário à aparente suntuosidade das suas instalações, o que — especial­mente diante da ausência de conhecimento das atribuições funcionais e da sua importância basilar para a ordem social — acaba por ser tido como não condizente com a situação de pobreza em que se encontra grande parte da população. Certa “imponência”, nesse caso, é necessária para transmitir a força institucional sem a qual a ordem que o Judiciário deve preservar coesa dificilmente poderia ser mantida. Nada tem de relacionado à mera mordomia, que seria incompatível com a rigidez ética da Justiça. Óbvia contribuição, por assim dizer, para a desnaturada imagem do Judiciário, também é devida à corrupção, como são exemplos notórios os casos atuais de improbidade adminis­ trativa em diversos estados da Federação2. Apesar de justa a indignação pública, nota-se mais uma vez como o tratamento monotônico do assunto pela mídia faz com que fatos isolados (e, em verdade, estatisticamente inexpressivos) ganhem contornos de dramática generalidade. Com efeito, um acontecimento negativo no Judiciário tem maior repercussão do que nas demais áreas do setor público, em razão dos conceitos de ética, dignidade, imparcialidade, respeitabilidade, cultura, preparo intelectual e incorruptibilidade que se conectam à imagem dos Magistrados em todos os países desenvolvidos. Pois bem. Quem examina o ambiente da crise de credibilidade do Judiciário constata a existência de um terrível ciclo vicioso, que talvez pudesse ser esboçado em sumária descrição de seu processo através da repetição de fenômenos, que podem ser representados pela progressão das seguintes etapas: • A opinião pública é distorcida pelo desconhecimento da real dimensão e origem dos problemas do Judiciário. Essa distorção é seriamente agravada pela falta de esclarecimento sobre as árduas funções do Judiciário e de como elas são essenciais à ordem social. • As entidades que compõem a chamada “mídia” são formadas por indivíduos dotados da mesma opinião geral, que dão destaque exacerbado às mazelas e interpretam erroneamente certos institutos, impelidos por um impulso bifronte formado pela necessidade de atendimento da demanda do seu público consumidor e pela carência do conhecimento das virtudes do Judiciário. • O noticiário atécnico agrava o desconhecimento e opiniões são formadas sob incorretas percepções dos fatos, motivando outras manifestações midiáticas no mesmo sentido. E, por efeito multiplicador, dá-se maior demanda do público consumidor de informação e uma inevitável visão do Judiciário como instituição desprovida de credibilidade.

O tema visto sob conceitos de marketing Indaga-se: o que está por trás do fenômeno descrito acima? A resposta é intuitiva: informação; ou melhor, carência de informação. É nítido que o público, em grande parte, não é capaz de entender em que consiste o Judiciário e a relevância social e política de sua atuação, que está ligada, em ultima ratio, à garantia dos próprios direitos dos cidadãos, incluído, por evidente, o direito de crítica! Mas há que se reconhecer a parcela de responsabilidade do próprio Judiciário por tal desconhecimento. Quanto há de ausência de atividades informativas e instrutivas por parte daquele que se quer fazer entender? Seguindo-se essa linha de raciocínio, o marketing pode ser uma importante ferramenta para oferecer resposta a estas perguntas. Daí porque é oportuna a utilização dos instrumentos do marketing no âmbito do Poder Judiciário. Marketing, afinal, “é o negócio visto pela perspectiva do seu resultado final, ou seja, do ponto de vista do cliente”, nas palavras de Peter Drucker3. E aí é preciso estabelecer alguns pontos de contato entre o marketing e os serviços do Judiciário. Afinal, o serviço prestado pelo Judiciário tem como “clientes”, ao menos diretamente, as partes no processo. O provimento judicial, nesse sentido, seria o que se chama em marketing de “produto real”, enquanto que o resultado do provimento, a mudança por ele causada às partes, seria o “produto núcleo”. E talvez sob o conceito de “produto ampliado” seja possível enquadrar a legitimidade das decisões — e, portanto, do Judiciário, que as profere — tendo-se a sociedade como consumidora desse produto ampliado. Assim, o correto enfoque num projeto de marketing no âmbito do Judiciário deve ser dado ao fator promoção do produto. A utilização das ferramentas do marketing pode revelar-se extremamente positiva na difusão desse produto, que é a legitimidade da instituição, solidificando sua credibilidade perante a população. Como se sabe, a renovação periódica do Executivo e do Legislativo, por intermédio do sufrágio, é o instrumento com que se busca dar legitimidade a esses poderes. No Judiciário, por sua vez, a legitimidade não está atrelada a eleições periódicas, mas sim à motivação e à publicidade de seus atos. E a importância dessa legitimação e sua difusão, com efeito, podem ser observadas dentro de um contexto de marketing institucional4. Entretanto, o que se tem visto atualmente é que esses fatores de legitimação são praticamente desconhecidos da população. Talvez se possa dizer, sem grande exagero, que são completamente ignorados pela maior parte dos jurisdicionados sem formação jurídica. E como o marketing pode ajudar, sob este ponto? Ora, uma das funções primordiais do marketing é aquela cen­­trada na promoção. Esse componente do chamado “mix” de marketing é precisamente aquele em que se concentram os instrumentos de comunicação. É através da propaganda que a entidade que se utiliza do marketing “integra e coordena seus diversos canais de comunicação, a fim de transmitir uma mensagem clara, consistente e atraente sobre a organização e seus produtos”5. Mensagem clara e atraente? Isto dificilmente se aplica à linguagem jurídica, que compõe o que se conhece como “produto real”. Por razões cujo enfrentamento foge ao escopo 2010 MAIO | JUSTIÇA & CIDADANIA 21


destas breves considerações, a linguagem jurídica é muito distante daquela do uso cotidiano do cidadão comum e, em larga medida, incompreensível. Às partes nos processos é razoável supor que seja feita, por assim dizer, a “tradução” das discussões dos autos, mas o mesmo não pode ser dito sobre a população. Esta, no mais das vezes, acaba enxergando apenas quem decidiu e o que foi decidido; porém, sem a compreensão da fundamentação, não há o convencimento sobre a adequação do provimento ao direito que rege as relações sociais, e pode mais facilmente subsistir à indignação. Não é ocioso lembrar que, no paradigma pós-positivista, o direito não se impõe pela força, mas sim pela fundamentação ética de suas decisões, que devem apresentar razões convincentes e compreensíveis para que ele seja respeitado. Gradativamente, observa-se uma tendência a que a linguagem rebuscada do ambiente forense aos poucos evolua de seu hermetismo para tornar-se mais clara e atraente. Mas, para que se possa cunhar uma proposição realista e de imediata adoção sobre o papel do marketing no Judiciário, é preciso, ao menos no momento atual, admitir que há um jargão técnico e pouco acessível. Sem que isto esteja claro para a própria instituição, não parece factível que ela seja capaz de transmitir de outro modo a matéria-prima de sua legitimação. Para fazer uso de analogia, a situação seria comparável à de uma indústria automobilística que pretendesse fazer propaganda de um carro esportivo (i.e., comunicar ao público o que é vendido e por que o produto é bom) e culpasse as baixas vendas à incompreensão por parte do público do manual de funcionamento do motor, com detalhadas descrições sobre a eficiência termodinâmica, a taxa de compressão, o gerenciamento do regime de admissão e descarga através de eixo-comando de válvulas variável, e daí por diante. Da mesma forma, se o público não compreende a razão pela qual foi dado “efeito suspensivo em um agravo diante da manifesta incompetência ‘ratione materiae’ do juízo ‘a quo’”, não se trata de um problema do jargão, que — fora excessos de puro pernosticismo — tem sua razão de ser, nem de um problema de quem não o compreende, mas simplesmente da falta de uma boa comunicação por parte de quem se quer fazer entender. Em outros termos, o problema é a falta de um bom projeto de marketing. Com isso, torna-se comum que também os órgãos de comunicação social tenham naturais dificuldades de compreender a extensão e o conteúdo da motivação das decisões judiciais. Mesmo de boa-fé, ou por desídia em se inteirar da realidade técnica do fato, prestam verdadeiro desserviço à população ao noticiar — de forma açodada e sem maior rigor — fatos distorcidos e meias verdades. Não por outro motivo, expressiva parcela da própria classe confunde as funções da Polícia, do Ministério e Secretarias de Justiça, do Ministério Público e outros órgãos, com o Judiciário. Num ambiente de desinformação, ou, pelo menos, de deficiente informação, há, decerto, grave comprometimento da garantia constitucional da publicidade dos atos processuais. Conquanto teoricamente “disponível” ao público, em razão do desenvolvimento tecnológico, que permite acesso cada vez mais amplo aos processos através da Internet, há paradoxalmente uma “inacessibilidade do que está 22 JUSTIÇA & CIDADANIA | MAIO 2010

disponível”; ou seja: o cumprimento da garantia constitucional da publicidade acaba por ser meramente formal. A sociedade não tem o conhecimento sobre o funcionamento do Poder Judiciário, e em grande parte não compreende a razão de as coisas serem como são, acirrando o círculo vicioso antes descrito. Também é fundamental o emprego dos instrumentos do marketing para contrapor certo trabalho de “deslegitimação” da função jurisdicional realizado por parte da imprensa, com sensíveis danos à reputação e à autoridade dos órgãos judiciais. Veja-se que é comum os veículos de comunicação condenarem sumariamente pessoas que sequer foram indiciadas. Com isso, a divergência entre “decisões” da mídia e do Poder Judiciário incute na sociedade a falsa percepção de que os magistrados concorrem para a impunidade. Um trabalho de marketing bem planejado, assim, deverá ter sob enfoque também o aspecto informativo. Afinal, a perda de credibilidade que pode ser atribuída à desinformação da mídia muitas vezes tem origem mais remota na carência institucional por parte do Judiciário da utilização de bons instrumentos de comunicação com a sociedade. Se os integrantes dos órgãos de comunicação em massa erram, o Judiciário deve reconhecer sua parcela de responsabilidade em não os fazer entender. Se alguns deles distorcem, deve-se também reconhecer a parcela de responsabilidade consistente em omitir-se na divulgação em termos compreensíveis (e, portanto, impeditivos de distorção por má-fé) das razões pelas quais toma suas decisões. Mais uma vez, portanto, se pode notar que a comunicação é de crucial relevância em qualquer projeto de marketing a ser adotado pelo Judiciário. Não basta que o “produto” tenha boa qualidade se não for conhecido; e para ser conhecido, também deve haver uma comunicação cuidadosamente planejada a fim de atingir os diversos públicos com que se lida. E uma comunicação eficaz deve passar por etapas fundamentais. Para Philip Kotler, elas são oito6: (i) identificação do público-alvo, que no caso pode ser dividido entre o alvo do que ora vem sendo chamado de “produto direto” (a quem bastaria a linguagem tradicional), e divisões adicionais dos públicos-alvo do “produto ampliado”, ou seja, camadas sociais de diferentes níveis educacionais e de acesso a meios de informação; (ii) determinação dos objetivos, que giram ao redor da conscientização e da atitude em relação à “marca” (no caso, as instituições da Justiça); (iii) elaboração da comunicação, que consistiria exatamente em desenvolver formas inovadoras de transmitir ao público de maneira compreensível as motivações e as razões pelas quais os atos do Judiciário são legítimos; (iv) seleção dos canais de comunicação, que possivelmente se concentrariam na mídia escrita (impressa e Internet) e televisiva — em todos os casos envolvendo assessoria de imprensa; (v) estabelecimento do orçamento total de comunicação de marketing; (vi) decisão sobre o mix de comunicação; (vii) mensuração dos resultados da comunicação, o que, por tratar-se de instituição pública, é algo a ser percebido de médio a longo prazo; e (viii) gerenciamento do processo de comunicação integrada de marketing, a fim de que possa haver continuidade e constante aprimoramento dos instrumentos de marketing em prol do Judiciário.


Nessa ordem de ideias, é seguro afirmar a necessidade de investir, por meio do marketing, no esclarecimento da população a respeito de questões que, aparentemente, são falhas do sistema. Há problemas, não se nega, mas também há exageros por falta de informação; há inúmeras iniciativas elogiáveis, abnegadas e inovadoras simplesmente desconhecidas do público. E mais: há possibilidade de se desfazerem mitos e inverdades, contudo é notória a incapacidade da instituição de realizar de modo eficaz os necessários esclarecimentos. É preciso notar que o Judiciário, mais do que qualquer outro poder, reivindica sua própria reforma para vencer seus principais problemas. Realmente, no Judiciário há uma sensível confluência na percepção de seus graves problemas por parte de seus integrantes e pelos destinatários de seus serviços, com destaque para a demora processual. Neste ponto, reside outra importante função a ser cumprida pelo marketing no âmbito do Judiciário: a sua aplicação interna. É da vivência prática que surgem muitas das propostas de desenvolvimento institucional. O enfrentamento diário e repetido de problemas facilita a visualização de instrumentos aptos a contorná-los. É também da interação entre os prestadores dos serviços e seus destinatários que surge muito da percepção acerca do que é o cerne das maiores insatisfações da população, derivadas dos serviços prestados pela instituição. Embora no caso do Judiciário o uso do marketing não se manifeste exatamente como nas empresas privadas, dado o monopólio em termos práticos7 da prerrogativa de determinar a solução jurídica para as lides, a necessidade de “satisfação da clientela” pode ser vista em âmbito do Judiciário sob o enfoque da continuada conquista e manutenção da credibilidade. Qualquer aprimoramento que se pretenda eficaz deve ser objeto de aceitação pelos integrantes da instituição a que ele se destina. Se o marketing interno tem origem nas empresas privadas, em que a organização hierárquica permite em maior grau uma imposição dos modelos organizacionais eleitos pelos administradores, sua necessidade faz-se ainda mais premente no âmbito de uma organização como o Judiciário. Afinal, os seus membros (ao menos os magistrados) necessariamente têm independência funcional e não podem simplesmente ser submetidos a determinações de como fazer seu trabalho, tal como ocorre na empresa privada. O sucesso nas medidas que visam ao aprimoramento do Judiciário depende da formação de um sentimento de equipe, da construção de um compromisso com resultados, da melhoria do relacionamento entre os integrantes da instituição. Se não há a concorrência que se observa nos mercados, não há porque não competir consigo mesmo, até porque os integrantes do Judiciário muito têm a ganhar em respeito e credibilidade. Isso porque “o marketing interno é pré-requisito para a implementação do marketing externo”8, e é esse, pelas razões vistas acima, que permitirá à instituição conseguir melhorar sua imagem perante o jurisdicionado. Assim, é crucial a adoção de mecanismos para divulgar no âmbito interno do Judiciário as ideias e propostas de soluções desenvolvidas por juízes, servidores e demais colaboradores,

dos quais se poderia formar uma rede com a colaboração também de advogados, promotores e defensores públicos. A visão multifacetada dos problemas pode ser mais amplamente exercida, afinal, se a sua identificação e descrição forem atribuídas àqueles que efetivamente os enxergam desde diferentes pontos de vista. Considerações finais Conclui-se, então, que é muito importante a adoção de ações políticas institucionais a serem seguidas pelos tribunais do País, visando ampliar o conhecimento que a sociedade brasileira tem do Poder Judiciário. Só com isso pode-se conceber viável a saída do círculo vicioso em que uma opinião pública desconhecedora do Judiciário reduz-lhe a credibilidade. E, nesse sentido, é preciso desenvolver mecanismos que promovam a interação entre os usuários dos serviços da justiça e seus prestadores, para mostrar que estão verdadeiramente interessados em conhecer a opinião dos destinatários desses serviços e aprimorá-los. É preciso que o Judiciário dê publicidade, num sentido substancial, de suas decisões. Fazer com que os seus atos sejam compreendidos não apenas pelos iniciados na linguagem extremamente técnica que compõe o “produto-real” oferecido. O Judiciário precisa do marketing para evitar uma eventual e progressiva perda de credibilidade. Afinal, não se pode olvidar que se uma instituição, qualquer que seja, chega a um ponto de credibilidade muito baixo, o que felizmente não é o caso da justiça brasileira, é razoável supor que essa instituição se converta em polo atrativo de indivíduos de baixa credibilidade e ao mesmo tempo afaste aqueles que, por sua retidão, não se queiram vincular a desonrarias que não fizeram por merecer. É nítida, assim, a importância de uma ampla adoção dos princípios do marketing, especialmente ao interpretar-se a troca entre o Judiciário e a sociedade, que visualiza a legitimidade da instituição como o produto “oferecido” e a credibilidade como a “receita operacional”. Porque tão essencial quanto os lucros às entidades privadas que pioneiramente desenvolveram o marketing, a credibilidade é primordial a essa instituição fundamental que é o Judiciário. NOTAS 1 h t t p : / / w w w. t s e . g o v. b r / s a d A d m A g e n c i a / n o t i c i a S e a r c h . do?acao=get&id=12726 2 Veja-se a respeito: www.gtmarketing.com.br/produtos.htm 3 Apud GONÇALVES, Marco Antonio. “Marketing jurídico como diferencial competitivo de mercado”. 4 E.g., www.tj.rj.gov.br/dgcon/doutrina_artigos_juridicos/a_politizacao_ do_judiciario_e_seu_marketing_institucional.doc 5 BOTELHO, Delane. “Comunicação e Marketing Institucional”. FGV Rio, 2009, p. 20. 6 KOTLER, Philip, e KELLER, Kevin Lane. “Administração de marketing”, 12. ed., São Paulo: Pearson / Prentice Hall, 2006. p. 538-557 7 A arbitragem, ainda restrita geralmente a causas de expressão monetária extremamente vultosa, por diversas razões não deve ser considerada “concorrente”, propriamente, do Judiciário. 8 BOTELHO, Delane. “Comunicação e Marketing Institucional”. FGV Rio, 2009, p. 37.

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Projeto ajuda população a adquirir a casa própria Entrevista: João Gandini, Juiz da 2ª Vara de Fazenda Pública de Ribeirão Preto (SP)

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erca de duas mil famílias de Ribeirão Preto (SP) que viviam em comunidades carentes foram beneficiadas pelo projeto “Moradia Legal” — que visa à urbanização de áreas favelizadas e até mesmo à construção de novas residências para a população mais carente. A iniciativa foi idealizada pelo Juiz da 2ª Vara de Fazenda Pública daquele município, João Gandini. Ele conta à “Revista Justiça & Cidadania” que o trabalho teve início logo após ter assumido aquele juízo. O Magistrado constatou um número sem fim de ações em tramitação ou com decisão já proferida, mas sem qualquer eficácia, envolvendo casos de assentamentos precários. Gandini chegou à conclusão de que a via judicial não seria a melhor para resolver o problema. E, por isso, foi à rua. Primeiro ele visitou as comunidades, objeto dos processos judiciais. Depois procurou as autoridades competentes e possíveis parceiros na iniciativa privada, constituindo um grupo gestor, responsável pela criação e implantação das medidas destinadas a dar uma solução à ocupação irregular. A prática levou o Magistrado a vencer o Prêmio Innovare — que tem por objetivo justamente reconhecer as boas práticas na Justiça. Para Gandini, no entanto, quem mais saiu ganhando com o programa foi o Judiciário. “Acho que o reflexo mais importante é a respeitabilidade que o Poder Judiciário adquiriu a partir do momento em que toda mídia nacional mostrou que é possível um juiz sair de seu gabinete, ir à rua e encontrar soluções para a comunidade. Isso trouxe um respeito maior à atividade judicante”, afirmou. Revista Justiça & Cidadania – Como surgiu o projeto “Moradia Legal”? João Gandini – Quando assumi a Vara de Fazenda Pública em Ribeirão Preto, verifiquei uma série de problemas. Um deles era justamente os de assentamentos precários ou ocupações irregulares de áreas até mesmo públicas, de risco e proteção ambiental. Comecei a demarcar as comunidades, indo até elas. Com isso, me convenci de que a solução não estava dentro do processo. Até porque muitos tramitavam há mais de uma década sem solução, alguns inclusive já com decisões judiciais 24 JUSTIÇA & CIDADANIA | MAIO 2010

que não tinham sido cumpridas. Resolvi, então, sair às ruas e ir atrás das pessoas que pudessem me auxiliar. Acabei formando um grupo de trabalho, que chamamos de grupo gestor. Há o coordenador geral, que sou eu, o coordenador adjunto e mais cinco coordenadores dos núcleos jurídico, financeiro, físicoterritorial, social e comunitário. Passamos a nos reunir para trabalhar mais detidamente em cima de uma fotografia aérea das comunidades carentes. A partir daí começamos a fazer os projetos e apresentá-los ao Poder Público. E hoje temos essa equação: na época, eram 34 núcleos de comunidades, com 20 mil pessoas morando neles. Hoje temos resolvidas as situações de duas mil famílias mais ou menos. JC – O objetivo, então, é fazer com que a população obtenha a casa própria? JG – Trabalhamos com duas vertentes. Uma delas é a de construir moradias para assentar as pessoas e recuperar, para o Poder Público, as áreas que estavam degradadas. A outra é a urbanização da comunidade. Vamos ao local com técnicos e analisamos o que é possível criar ali. Há lugares em que há 80% de barracos, então não compensa. Teve um caso, do núcleo de Monte Alegre, que ficou mais conhecido, cujo projeto já terminamos. Lá havia 420 famílias. Tiramos apenas 89 delas. As demais ficaram em uma situação relativamente boa. Conseguimos água e esgoto, asfalto, luz, postes, registros, relógios, fiação, lâmpadas, chuveiros econômicos e geladeiras novas para todas as famílias, através de uma parceria com a concessionária de energia elétrica. Essas pessoas passaram a viver outra realidade. Agora estamos fazendo uma reforma, em um trabalho que chamo de promoção humana, que visa à criação de uma rede social, com ONGs, igrejas, prestadoras de serviço e escolas profissionalizantes, de modo a levar, àquelas famílias, tratamentos contra o alcoolismo, drogas, além de cursos profissionalizantes, como de pedreiro, eletricista, pintor, padeiro, manicure, cabeleireiro etc, a fim de colocá-los no mercado formal de trabalho. Começamos a dar os primeiros passos. Estamos reformando uma quadra, que era precária, e uma casa, que separamos para ser a sede de várias ONGs que


JC – Qual é a localidade beneficiada? JG – Essa primeira comentada, que foi urbanizada, é a de Monte Alegre. Para a do PAC, em que 29 residências já foram construídas e outras 691 sairão até o fim do ano, realocaremos o pessoal da região do aeroporto. Há cinco grandes comunidades nessa área, muito complicadas, que devido aos ruídos das aeronaves, não poderiam ficar naquele local. Então, estamos removendo as pessoas de lá. Em outra comunidade, a mais antiga da cidade, que tem 50 anos, fizemos um parceria com o Grupo Alfaville, que está trazendo para cá um grande empreendimento. Essa comunidade fica exatamente no portão de entrada (do empreendimento). Então, quando soube do projeto, procurei (a empresa) e negociamos por um ano mais ou menos. Conseguimos que eles assumissem a construção de casas para 44 famílias. JC – Que retorno essa iniciativa trouxe ao Judiciário? JG – Trouxe reflexos importantes. Os processos não teriam eficácia — ou seja, não resolveriam o problema. Então, eles ficaram paralisados durante o período que tocávamos o projeto. Conforme isso foi acontecendo, muitos foram perdendo o objeto. Verificamos, então, que o objetivo dos processos estava sendo atingido fora deles. Hoje estamos terminado as ações antigas sem que haja novas ingressando no Judiciário. A não ser as que decorrem do próprio projeto. Pode acontecer de encontrarmos, em determinada área, pessoas que não estão cadastradas, que a invadiram recentemente, vindo de outras regiões para se aproveitar do nosso projeto. Essas pessoas, claro, não são atendidas. Esses espertalhões, portanto, estão sendo retirados e as áreas degradadas recuperadas. Mas, fora isso, não temos mais ações, o que é um bom reflexo para o Judiciário. No entanto, acho que o mais importante é a respeitabilidade que o Poder Judiciário adquiriu a partir do momento em que toda mídia nacional mostrou que é possível um juiz sair de seu gabinete, ir à rua e encontrar soluções para a comunidade. Isso trouxe um respeito maior à atividade judicante. JC – Esse projeto vem acompanhado de uma série de outras iniciativas, sobretudo na área social, como o senhor mesmo citou. Uma vertente se verifica na área do fornecimento de medicamentos. O que foi feito nesse campo? JG – Temos vários projetos dessa envergadura, todos em prática, inclusive com renome. O que mais se destacou na mídia foi o “Moradia Legal”, talvez por conta do Prêmio Innovare. O segundo nasceu junto com este quando, ao assumir a Vara de Fazenda Pública, verifiquei milhares de ações pedindo medicamentos, tratamentos, fraldas descartáveis, cadeiras de rodas, próteses, entre outros. Debrucei-me sobre todos esses processos, até durante os fins de semana. Tabulei em

Foto: Arquivo Pessoal

trabalharão com isso. No caso dos assentamentos, fomos atrás de financiamentos em órgão de habitação de São Paulo e no PAC. Neste, conseguimos 720 unidades, que estão sendo agora construídas. Vinte e nove famílias já se mudaram. As demais deverão ir até o fim do ano.

João Gandini, Juiz de Direito do TJESP

que situações os medicamentos eram pedidos, para que moléstias eram, que tipo de informação médica havia nos autos, se a ação era patrocinada por advogado particular, promotor ou Defensoria Pública. Cheguei à conclusão de que havia um abuso fantástico. Primeiro havia gente de outras cidades vindo se aproveitar das liminares de Ribeirão Preto, o que onerava muito o Município. Segundo, os médicos receitavam o nome comercial do remédio, quando muitas vezes havia um genérico, e de boa qualidade. Passamos, então, a optar pelo princípio ativo, o que reduziu os gastos. Verificamos também que os médicos pediam os medicamentos, mas não esclareciam para qual tipo de tratamento. Com o tempo, no entanto, ao ver que o juiz estava olhando o processo e que as liminares passaram a ter um controle maior, eles se acostumaram não só a indicar o medicamento como a fazer um relatório circunstanciado, por ordem do magistrado, sobre como funciona o tratamento, desde o início, e por que a opção por determinada droga, e assim por diante. Esse é um trabalho que deu grandes resultados. JC – Quais foram as dificuldades para a implantação do projeto “Moradia Legal?” JG – Se pensarmos nas dificuldades, não avançamos. Tem hora que dá vontade de desistir, mas falo: “vamos tocando”. A dificuldade maior é o convívio com o Poder Público. A burocracia é muito grande, nem sempre os secretários conseguem falar a mesma língua, mas conseguimos isso. Sempre que atendidas as formalidades, o dinheiro para o projeto aparece. Diria, então, que as dificuldades são operacionais. É ter que trabalhar com 34 mil processos; na diretoria do fórum, que tem 800 funcionários; na diretoria da associação; coordenar sete cursos de pós-graduação e ainda ter que ir à comunidade todo dia para decidir se um barraco está bom, se ele fica ou sai. A dificuldade maior é a de tempo. 2010 MAIO | JUSTIÇA & CIDADANIA 25


Direito Desportivo e Justiça Desportiva – Linhas Gerais Bruno Rezende Advogado

Wagner Nascimento Advogado

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nossa trajetória na seara do Direito Desportivo, tanto no meio acadêmico quanto no dia a dia dos Tribunais desta Justiça especializada, nos motivou a tecer estas breves linhas, que têm por objetivo agregar, compilar e, principalmente, contribuir para a iniciação na introdução ao Estudo do Direito Desportivo. Não temos a pretensão de esgotar o tema, muito menos a ousadia de apresentar um tratado sobre o assunto, mas queremos, sim, realizar este artigo trazendo, em linhas gerais, um panorama legislativo e prático deste tão sedutor e inovador ramo do Direito. O Direito Desportivo surgiu para atender a uma demanda da sociedade em disciplinar/organizar a prática desportiva através de normatização, e tem escopo precípuo de introduzir garantias de todas as espécies, desde a organização até a incolumidade de participantes e espectadores. Nossa doutrina reconhece o Direito Desportivo como ramo autônomo do Direito, sem, logicamente, olvidar sua corre­ lação com as outras divisões do Direito, seja em posição de subordinação (ex vi, Direito Constitucional) ou em caráter de coordenação com as demais disciplinas jurídicas, tais como: o Direito Civil, Processual Civil, Penal e Processual Penal. Na lição de Álvaro Melo Filho, o Direito Desportivo “é o con­ junto de técnicas, regras, instrumentos jurídicos sistematizados que tenham por fim disciplinar os comportamentos exigíveis na prática dos desportos em suas diversas modalidades”. (MELO FILHO, Álvaro. “Direito Desportivo Atual”. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1986, pág.12.) 26 JUSTIÇA & CIDADANIA | MAIO 2010

O Direito Desportivo surgiu para atender a uma demanda da sociedade em disciplinar/ organizar a prática desportiva através de normatização, e tem escopo precípuo de introduzir garantias de todas as espécies, desde a organização até a incolumidade de participantes e espectadores.


Foto: Rosane Naylor

Bruno Rezende, advogado

O Direito Desportivo se mostra como uma realidade mundial. No Brasil não poderia ser diferente, afinal somos o “País do Futebol”, só do futebol não! Somos um País cuja imagem no cenário internacional está intimamente ligada à prática desportiva. O arcabouço do Direito Desportivo pátrio data dos idos de 1941, com a criação do Conselho Nacional de Desportos – CND, que, segundo a previsão contida no artigo 1º do Decreto-Lei nº 3.199/1941, tinha função de “orientar, fiscalizar e incentivar a prática dos desportos em todo o país”. Como corolário, segundo o Desembargador Luiz Zveiter, o surgimento da Justiça Desportiva remonta à Portaria 24/1941 e à Resolução 4/1942, ambas do CND, que instituíram a criação de um “Tribunal de Penas destinado à aplicação de sanções disciplinares” (PERRY, Valed. Direito – Temas, Rio de Janeiro: Editora Destaque, 1981: Justiça Desportiva – Segunda Instância, in “Direito Desportivo”, pág. 213). Mais adiante, o ilustre Procurador de Justiça do Ministério Público, Max Gomes de Paiva, elaborou o “Código Brasileiro de Futebol”, que como a alcunha já anuncia, se aplicava à modalidade de futebol. O codex passou a viger mediante a resolução nº48/1945 do CND. A codificação introduziu significativa alteração na organização da Justiça Desportiva ao prever a criação, em substituição ao Tribunal de Penas, do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD), com competência para julgamento de questões no âmbito das Confederações Brasileiras de

Desportos, em todo o território Nacional; dos Tribunais de Justiça Desportiva (TJD), com competência na esfera estadual junto às Federações; e, Juntas Disciplinares Desportivas (JDD), na seara das ligas municipais. Vale consignar que o poder judicante do CND em grau recursal foi mantido. Através da Deliberação nº 3/1956 do CND, “(...) foi adotado o Código Brasileiro de Justiça e Disciplina Desportiva (CBJDD), o qual pouco depois ficou apenas para os esportes amadores, passando o futebol a adotar o Código Brasileiro de Futebol (CBF), conforme Deliberação nº 7/56, do CND, a qual organizou de vez os Tribunais e suas normas processuais e penais” (PERRY, Valed. Direito – Temas, Rio de Janeiro: Editora Destaque, 1981: Justiça Desportiva – Segunda Instância, in “Direito Desportivo”, pág. 214, autor: Luiz Zveiter). Já em 1962, o CND aprovou a vigência do Código Brasileiro Disciplinar de Futebol (CBDF), dividido em duas partes, processual e penal, com aplicabilidade exclusiva para a modalidade de futebol, restando ao Código Brasileiro de Justiça e Disciplina Desportiva (CBJDD) as demais modalidades. Ambas as codificações estenderam o leque de competência de julgamento pelos Tribunais de Justiça Desportiva, dando azo ao julgamento não só de infrações disciplinares, mas também dos litígios entre clubes, entidades e atletas em matéria cível (contratos, cobranças, cessões de direitos) e trabalhista (demandas laborais envolvendo atletas). A título exemplificativo, trazemos à colação o artigo 28 do CBDF, litteris: 2010 MAIO | JUSTIÇA & CIDADANIA 27


Foto: Rosane Naylor

Wagner Nascimento, advogado

Art. 28. Os órgãos da Justiça Desportiva, nos limites da jurisdição territorial de cada entidade, têm competência, observadas as disposições especiais deste Código, para pro­cessar e julgar as infrações disciplinares praticadas por pessoas físicas ou jurídicas direta ou indiretamente subordinadas à Confederação ou a serviço de qualquer entidade e para processar e julgar os litígios entre associações e seus atletas, entre entidades dirigentes e atleta, entre associações, entre entidades dirigentes e entre estas e associações. Com a Carta da República de 1988, o desporto erigiu ao patamar Constitucional, sendo reconhecida a Justiça Desportiva como um de seus consectários através de dispo­ sição esculpida no seu artigo 217, parágrafo primeiro, que demanda a necessidade de esgotamento das instâncias da Justiça Desportiva, para que questões referentes à disciplina e às competições desportivas possam ser enfrentadas pelo Poder Judiciário, verbis: Art. 217. É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um, observados: I - a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento; II - a destinação de recursos públicos para a promoção prioritária do desporto educacional e, em casos específicos, para a do desporto de alto rendimento; III - o tratamento diferenciado para o desporto profissional e o não-profissional; 28 JUSTIÇA & CIDADANIA | MAIO 2010

IV - a proteção e o incentivo às manifestações desportivas de criação nacional. § 1º – O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei. Verifica-se que este dispositivo introduziu significativa mudança que sedimentou em definitivo a competência em relação à matéria afeta à Justiça Desportiva, no caso: disciplina e competição desportiva. Todas as demais questões retornaram ao crivo do Poder Judiciário. Passado este pequeno intróito e restando delimitados os feixes de atribuição, acreditamos que uma questão possa ter vindo à mente do leitor: a Justiça Desportiva é ou não instância integrante do Poder Judiciário? Não tem “jurisdição”? Não tem competência? Mas mesmo com essas premissas, que poderiam levar a uma conclusão diversa, a resposta negativa se impõe. Nossa mais renomada doutrina entende que a Justiça Desportiva não pode ser considerada instância judicial, muito menos administrativa, pois exerce, em geral, atividade no ramo privado (maiores detalhes serão dados a seguir ao falarmos de atribuição), devendo, pois, ser considerada como meio alternativo de solução de conflitos. A respeito da questão, vale a leitura do aresto do Superior Tribunal de Justiça, verbis: CONFLITO DE ATRIBUIÇÕES – TRIBUNAL DE JUSTIÇA DESPORTIVA – NATUREZA JURÍDICA – INOCORRÊNCIA DE CONFLITO. 1. Tribunal de JUSTIÇA DESPORTIVA não se constitui em autoridade administrativa e muito menos judiciária, não se enquadrando a hipótese em estudo no


art. 105, I, “g”, da CF/88. 2. Conflito não conhecido.” STJ nº 000220441 – rel. Min. Waldemar Zveiter. Mergulhando no mundo desta instância sui generis, é de suma importância trazer o teor da Lei nº 9.615/1998 — que instituiu normas gerais sobre o desporto (apelidada de Lei Pelé ou Lei Geral Sobre Desporto – LGSD) e possui capítulo específico regulamentando a Justiça Desportiva —, pois com base em seus preceitos podemos traçar um apanhado das linhas gerais da Justiça Desportiva Brasileira. À guisa de introdução, para facilitar o entendimento da questio, cumpre-nos explicitar que a referida legislação sofreu diversas modificações, as principais através das Leis nº 9.981/2000, 10.264/2001 e 10.672/2003. A LGSD se mostra bastante retalhada, o que dificulta seu entendimento em uma interpretação sistemática. No artigo 50 da LGSD está previsto que a organização, o funcionamento e as atribuições da Justiça Desportiva, limitadas ao processo e julgamento das infrações disciplinares e às competições desportivas, serão definidas em códigos desportivos, facultando-se às ligas constituir os próprios órgãos judicantes desportivos, com atuação restrita às suas competições. As transgressões referentes à disciplina e às competições desportivas sujeitam o infrator a penas que vão de advertência à indenização e suspensão por partida ou prazo (artigo 50, §1º, da Lei nº 9.615/1998). A relação jurídica entre os atletas e entidades de prática desportiva, com os Tribunais de Justiça Desportiva é, em sua essência, contratual e exsurge dos pactos firmados entre os clubes e atletas com suas respectivas entidades de administração do desporto (v.g Confederações e Federações), que propiciam sua participação nas competições oficiais. Não devemos deixar de mencionar, sem, no entanto, querer complicar, que os Tribunais de Justiça Desportiva possuem natureza privada, quando atrelados à entidade de administração do desporto com natureza de pessoa jurídica de direito privado (art. 16 da LGSD), mas também podem ostentar natureza pública, quando ligados às competições promovidas pelo Poder Público. A esta altura, o leitor com formação jurídica deve estar se indagando: temos uma Justiça, uma lei regulamentando sua organização, funcionamento e atribuições, até aqui sem maiores problemas, mas qual o meio normativo que viabiliza o julgamento das questões referentes à disciplina e à competição? Qual o código desportivo previsto no mencionado artigo 50 da LGSD? A resposta não é tão simples, pois não presenciamos no Direito Desportivo uma codificação de direito material una como ocorre, por exemplo, no Direito Penal (excetuando-se as demais leis extravagantes). Aprovado pelo Conselho Nacional de Esportes – CNE, através da Resolução nº 1 de 23/12/2003, o Código Brasileiro de Justiça Desportiva – CBJD foi o primeiro código desportivo aprovado após a promulgação da CRFB de 1988, criado em atendimento ao previsto no artigo 42 da Lei nº 10.671/2003, que introduziu a necessidade de o Código de Justiça Desportiva ser adaptado aos preceitos da LGSD.

Cabe-nos aqui fazer um breve parêntese, para explicitar que a edição do CBJD não se deu através de processo legislativo, em virtude da prerrogativa conferida ao CNE, pelo artigo 11, inciso VI da LGSD, que autoriza ao Conselho aprovar os Códigos da Justiça Desportiva e suas alterações. O CBJD revogou os mencionados CBDF e CBJDD e se destina à organização, ao funcionamento, às atribuições da Justiça Desportiva brasileira e ao processo desportivo, bem como a previsão das infrações disciplinares desportivas e de suas respectivas sanções, no que se referem ao desporto de prática formal, regulam-se por lei e por este Código. (Artigo 1º com a Redação dada pela Resolução CNE nº 29 de 2009). Verifica-se, pois, que o CBJD abarca todas as entidades compreendidas pelo Sistema Nacional do Desporto, que congrega as pessoas físicas e jurídicas de direito privado, com ou sem fins lucrativos, encarregadas da coordenação, administração, normalização, apoio e prática do desporto, bem como as incumbidas da Justiça Desportiva e, especialmente: as entidades nacionais de administração do desporto; as entidades regionais de administração do desporto; as ligas regionais e nacionais; e as entidades de prática desportiva filiadas, ou não, a estas. Excluise da seara do CBJD, por previsão legal expressa, os Comitês Olímpico e Paraolímpico Brasileiros (Art. 51 da LGSD). Além do CBJD, existem outros códigos desportivos, notadamente na esfera da Administração Pública, editados em virtude do permissivo contido no artigo 25 da LGSD, e vinculados, via de regra, às entidades que possuem personalidade jurídica de direito público, como o Código Nacional de Organização da Justiça e Disciplina Desportiva – CNOJDD, editado pelo Ministério do Esporte e responsável pela organização da Justiça Desportiva, do processo e medidas disciplinares relativas aos eventos esportivos sob a sua organização, coordenação e/ou supervisão. Deixamos consignado que, por amor à didática, muitas polêmicas foram deixadas de lado, pois caso fossem mencio­ nadas, certamente dariam “pano para as mangas” a uma obra literária abordando unicamente estes temas. Certo é que muitas destas questões foram esvaziadas e/ou solucionadas com a aprovação do “novo” CBJD (na verdade, reforma introduzida através da Resolução do CNE nº 29 de 2009). Despedimo-nos, lançando, para fim de reflexão, a mensagem de que “espetáculo” é o Desporto, e tudo o que de positivo está ligado a sua prática; nesta toada, o Direito Desportivo e sua Justiça especializada devem servir, unicamente, como meio, instrumento, de seu fomento. Referência bibliográfica BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil de 5 de outubro de 1988; BRASIL, Lei nº 9.615, de 24 de março de 1998; MELO FILHO, Álvaro. “Direito Desportivo Atual”. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1986. pág.12; PERRY, Valed. Direito – Temas, Rio de Janeiro: Editora Destaque, 1981: Justiça Desportiva – Segunda Instância, in “Direito Desportivo”, págs. 213/214.

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A CONVENÇÃO DE ARBITRAGEM: SUA FORÇA VINCULANTE E SEUS REFLEXOS NA JURISDIÇÃO PENAL Nelson Luiz Pinto

Professor de Direito Processual Civil da Uerj Mestre e Doutor em Direito Processual Civil pela PUC/SP

I – Da natureza jurídica da arbitragem e sua força vinculante palavra “arbitragem” é derivada do latim “arbiter” (juiz, louvado, jurado), sendo especialmente empregada na linguagem jurídica para significar o procedimento utilizado na solução de litígios. Arbitragem é instituição pela qual as partes confiam a árbitros, que livremente designam a missão de resolver seus litígios1, envolvendo direitos patri­ moniais disponíveis. A arbitragem é, pois, uma técnica para a solução de controvérsias através da intervenção de uma ou mais pessoas que recebem seus poderes de uma convenção privada, decidindo com base nessa convenção, sem intervenção do Estado, sendo a decisão destinada a assumir eficácia de sentença judicial. As pessoas que queiram utilizar esse meio de solução de controvérsia devem ser capazes e o litígio deverá versar sobre direitos patrimoniais disponíveis. Vale ressaltar que a arbitragem é o meio de resolução de conflitos mais simples e objetivo, e os julgadores, além de imparciais, são técnicos especializados na área científica sobre a qual recai o objeto litigioso, e, via de regra, do mais alto quilate científico e respeitabilidade. Esses atributos conferem às partes um julgamento seguro e rápido. Muito se discute se arbitragem teria natureza prepon­ derantemente contratual ou se prevaleceria a natureza jurisdicional, ou ainda se teria natureza mista. Em linhas gerais, para os que defendem a natureza contratual, a arbitragem seria oriunda de um acordo entre as partes e, portanto, refletiria uma obrigação de natureza eminentemente privada.

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Para aqueles que entendem ser a arbitragem uma forma de solução de conflitos alternativa ou mesmo substitutiva ao poder do Estado, a sua natureza predominante seria a jurisdicional. Tem-se, ainda, aqueles que afirmam ter a arbitragem tanto natureza contratual como jurisdicional, sustentando assim sua natureza mista. Com absoluto acerto, afirma Tavares Guerreiro estar hoje superada essa discussão, pois não seria necessário “nos fixar em qualquer uma das teorias que procuram desvendar a natureza do instituto: nem à contratual nem à jurisdicional, nem à mista”. E conclui: “Preferimos, nesse particular, a posição nitidamente assumida por Clive Schmitthoff, ao simplificar a oposição aparentemente irredutível entre caráter contratual e caráter jurisdicional da arbitragem, afirmando que o instituto tem, simplemesmente, um elemento contratual e um jurisdicional. O primeiro (the agreement of the parties) é que determina ou que dá causa à existência do segundo (the jurisdiction of the arbitor). Parece bem claro, segundo Schmitthoff, que ‘The arbitor, as a private judge chosen by the parties or appointed in accordance whit the arbitration agreement, must approach the issues before him in the same apirit as a judge appointes by the State. He must be absolutely impartial’. Um e outro elementos, o contratual e o jurisdicional, são relevantes para explicar a arbitragem”.2 Com efeito, na sistemática estabelecida na legislação brasileira em vigor (Lei 9.307/96), encontram-se os dois aspectos ou elementos acima descritos: contratual, na medida em que as partes interessadas podem facultativamente submeter a solução de seus litígios ao juízo arbitral mediante


Foto: Arquivo Pessoal

convenção de arbitragem (art. 3o da Lei 9.307/96), ao invés de recorrer à jurisdição exercida pelo Estado; e jurisdicional, em razão do procedimento arbitral, que se inicia a partir do surgimento da lide (o efetivo litígio), após a constituição do tribunal arbitral, o que somente ocorrerá quando for aceita a nomeação pelo único árbitro ou pelo último dos árbitros, se as partes decidirem recorrer a um colégio de árbitros (art. 19 da Lei 9.307/96). Ainda assim, predomina na doutrina o entendimento de que a Lei 9.307/96 adotou a teoria jurisdicional, tendo em vista que em seu art. 31 estabelece: “A sentença arbitral produz, entre as partes e seus sucessores, os mesmos efeitos da sentença proferida pelos órgãos do Poder Judiciário e, sendo condenatória, constitui título executivo”. É inescusável, entretanto, em face da Lei 9.307/96, a verificação dos aspectos contratuais e jurisdicionais da arbitragem, com as seguintes características: a autonomia da vontade; a convenção privada; a opção das partes de escolher as regras a serem utilizadas na solução do conflito e o consequente afastamento da prestação jurisdicional do Estado. II – Da unidade da jurisdição estatal e da interferência da Lei 9.307/96 na jurisdição penal Decorre expressamente do texto constitucional ser a jurisdição um poder do Estado, a ser exercido de forma unitária, podendo, entretanto, os órgãos que integram o Poder Judiciário receber competência concreta para o exercício da jurisdição em razão de critérios definidos pelo legislador, visando racionalizar a administração da justiça.

A distribuição da competência pelo critério hierárquico, funcio­ nal, territorial ou material, este último visando à especialização da jurisdição, não compromete a unidade da jurisdição, conferida de forma abstrata aos órgãos do Poder Judiciário. Como leciona Ada Pellegrini Grinover: “A função juris­ dicional, que é uma só a atribuída abstratamente a todos os órgão do Poder Judiciário, passa por um processo gradativo de concretização, até chegar-se à determinação do juiz competente para determinado processo: através de regras constitucionais e legais que atribuem a cada órgão o exercício da jurisdição com referência a dada categoria de causas (regras de competência), excluem-se os demais órgãos jurisdicionais para que só aquele deva exercê-la, em concreto”.3 Segundo Cândido Rangel Dinamarco, discorrendo sobre a jurisdição: “Sendo una como expressão do poder estatal, que é também uno e não comporta divisões (supra, n. 117), a rigor a jurisdição não seria suscetível de classificação em espécies”. E complementa: “As conhecidas classificações das espécies de jurisdição justificam-se, apesar disso, pela utilidade didática de que são portadoras e por serem elementos úteis para o entendimento de uma série de problemas processuais, como a competência, graus de jurisdição, poderes decisórios mais amplos do juiz em certos casos etc”.4 Com relação, especificamente, à classificação da jurisdição em civil ou penal, afirma Dinamarco: “Fala-se inicialmente em jurisdição civil em contraposição a jurisdição penal, em simetria com a classificação do próprio direito processual em direito processual civil e direito processual penal. Assim como a rigor o direito processual não comporta tais adjetivações, sendo 2010 MAIO | JUSTIÇA & CIDADANIA 31


Da unidade da jurisdição, decorre necessariamente que os sistemas processuais civil e penal, estruturados sob os mesmos princípios constitucionais, devem obrigatoriamente interagir, de forma a garantir que, na prática, essa unidade não seja quebrada, desrespeitada, comprometendo não apenas a unidade da jurisdição mas sua própria autoridade.

invariavelmente um conjunto de normas e princípios de direito público e tendo objeto próprio (supra, nn. 8-9), assim também a jurisdição não é civil ou penal, ao sabor dos fundamentos penais ou não-penais das pretensões sobre a quais ela se exerce”.5 Não é diferente a lição trazida por Athos Gusmão Carneiro, que, citando José Frederico Marques, afirma: “Como função inerente do Estado, a jurisdição, poder-dever de administrar justiça, é una e homogenea, qualquer que seja a natureza jurídica do conflito que deva resolver”.6 Na verdade, essa doutrina já era enfatizada por João Mendes de Almeida Júnior: “O Poder Judiciário, delegação da soberania nacional, implica a ideia de unidade e totalidade da força, que são as notas características do conceito de soberania. O Poder Judiciário, em suma, quer pelos juízes da União, quer pelos dos Estados, aplica leis nacionais para garantir os direitos individuais; o Poder Judiciário não é federal, nem estadual; é eminentemente nacional, quer se manifestando nas jurisdições estaduais, quer se aplicando ao cível, quer se aplicando ao crime, quer decidindo em superior, quer decidindo em inferior instância”.7 Da unidade da jurisdição, decorre necessariamente que os sistemas processuais civil e penal, estruturados sob os mesmos princípios constitucionais, devem obrigatoriamente interagir, de forma a garantir que, na prática, essa unidade não seja quebrada, desrespeitada, comprometendo não apenas a unidade da jurisdição mas sua própria autoridade. É o que ocorreria, por exemplo, se se admitisse que uma mesma questão ou que os mesmos fatos pudessem ser apurados e valorados simultaneamente pela justiça cível e pela criminal. 32 JUSTIÇA & CIDADANIA | MAIO 2010

Como revela Carvalho Santos, citado por Ricardo Teixeira Brancato: “Tanto a jurisdição civil como a criminal, operando embora em campos diversos, guardam a unidade no mesmo propósito de realizar a justiça através de manifestações de uma só atividade social. Absurdo que essas instâncias possam se mover para o reconhecimento de fatos diversos e opostos, ‘como absurdo ainda seria que as duas ações, que apenas constituem um duplo processo de reparação do mesmo fato danoso, materialmente idêntico, pudessem ter vida desintegrando-se uma da outra sobre o mesmo ponto de fato, isto é, divergindo naquilo que constitui a sua matéria comum”.8 A esse respeito, cita Manoel Pedro Pimentel lição de Washington de Barros Monteiro, no sentido de que: “efetivamente, repugna conceber que o Estado, em sua unidade, na repressão de um fato reputado como ofensivo da ordem social, decida soberanamente, por um de seus órgãos jurisdicionais, que esse fato constitui crime, que seu autor é passível de pena e o condene a sofrer o castigo legal; e que esse mesmo Estado, prosseguindo na repressão do fato antijurídico, venha a declarar, que é perfeitamente lícito, que não acarreta responsabilidade alguma para seu autor, que não está assim adstrito ao dever de compor os danos a que deu causa. Chocante ofensiva do prestígio da justiça seria essa contradição, pela qual o mesmo ato seria, a um tempo, justo e injusto, lícito e criminoso, irrepreensível e condenável, legítimo e punível”.9 Conforme ainda lição de Francisco Assis Toledo, “a inexistência, assim proclamada, do ilícito civil constitui obstáculo irremovível para o reconhecimento posterior do ilícito penal,


pois o que é civilmente licito, permitido, autorizado, não pode estar, ao mesmo tempo, proibido e punido na esfera penal, mais concentrada de exigências quanto à ilicitude”.10 Ressalta ainda Alcides Amaral Sales que “à semelhança do que ocorre no direito italiano, o legislador pátrio também se inspirou, nessa complexa matéria, no chamado princípio da unidade da jurisdição, diversamente do que acontece em outros países, cujos sistemas, fundados no princípio oposto, a saber, o da separação das jurisdições, considera uma delas autônoma e exclusiva”, para então concluir: “É preciso sempre evitarem-se decisões conflitantes entre juízes integrantes do mesmo Poder. Inexistindo essa possibilidade de conflito, nada impede que ambos realizem, segundo seu livre convencimento e de acordo com critérios próprios do respectivo processo, cada qual o seu julgamento. Quando, porém, essa independência das jurisdições civil e penal puder conduzir, como no caso em exame, as decisões contraditórias e absurdas, há que se admitir a prejudicialidade de uma decisão sobre a outra, do juízo penal em relação ao cível, ou vice-versa, pouco importa”.11 Nesse sentido decidiu a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, no Inquérito 33-0/SP, relator o Ministro Vicente Cernicchiaro, cuja ementa é a seguinte: “O Direito, como sistema, é unitário, inexiste contradição lógica. A ilicitude é una, não obstante repercussão distinta nas várias áreas dogmáticas. A denúncia deve imputar fato ilícito, atribuível (ação ou omissão) ao acusado. Se o narrado na denúncia foi declarado lícito, no juízo cível, enquanto não desconstituído o julgado, impede a imputação criminal. Aquela decisão configura prejudicial (CPP, art. 93). Denúncia rejeitada”. É também importante transcrever, a esse respeito, a lição de Júlio Fabbrini Mirabete: “Tem força vinculante na justiça penal a sentença civil que conclui pela não existência de uma infração penal. Se a decisão irrecorrível de prejudicial civil em processo penal faz desaparecer elementos constitutivos do crime descrito na denúncia, tornando atípicos os fatos atribuídos ao réu, tal decisão tem força vinculante que deve ser aceita como verdadeira pela jurisdição criminal, desaparecendo a justa causa para a ação penal. Trata-se de formulação da vontade do Estado, que, nessa hipótese, alcança o Ministério Público ou o querelante, ainda que não tenham participado do processo prejudicial”.12 Para Bento de Faria, “o juízo criminal tem competência para decidir todas as circunstâncias constitutivas do fato delituoso ligadas ao mesmo fato”. Mas excepciona: “as questões cíveis de fundamental importância, das quais depende a certeza da existência do crime, ou seja, as referentes à propriedade e aos direitos reais e a existência ou interpretação dos contratos” e “as referentes ao estado das pessoas (matrimônio, filiação, adoção etc.)”.13 Parece-me, portanto, absolutamente incontroverso que a unidade da jurisdição implica na comunicação dos sistemas processuais civil e penal, de forma tal que a existência de questão de fato já decidida no juízo cível ou que necessariamente precise ser decidida no juízo cível, impede o exercício da jurisdição penal sobre essa mesma questão.

Essa comunicação entre os dois sistemas processuais, o civil e o penal, é refletida na legislação quando, por exemplo, o art. 584, II, do Código de Processo Civil considera título executivo judicial no processo civil, a sentença penal condenatória, bem como quando os arts. 92 e 93 do Código de Processo Penal, ao tratarem das questões prejudiciais, fazem referência a questões cuja análise na jurisdição cível determina ou possibilita a suspensão ou mesmo o trancamento da ação penal. Com relação à arbitragem, em especial à convenção arbitral, é ela hoje, por força da Lei 9.307/96 e como demonstrado no tópico anterior, impedimento contratual absoluto para que se instaure a jurisdição cível a respeito das questões sobre as quais as partes convencionaram a arbitragem. O Código de Processo Civil, modificado neste particular pela Lei 9.307/96, estabelece em seu art. 267, VII, acima transcrito, que a existência de convenção de arbitragem entre as partes é causa de extinção do processo sem julgamento do mérito, pois o mérito da questão, por disposição voluntária das partes, à qual a lei reconhece força vinculante, deve necessariamente ser apreciado pelo árbitro, cuja sentença, por força do art. 31 da Lei 9.307/96, produz, entre as partes e seus sucessores, os mesmos efeitos da sentença proferida pelos órgãos do Poder Judiciário e, sendo condenatória, constitui título executivo. Não se pode deixar de reconhecer que a nova redação do art. 267 do CPC, dada pela Lei 9.307/96, atribuiu à convenção de arbitragem (inciso VII do art. 267 do CPC) eficácia equivalente à existência de litispendência e de coisa julgada, que também, de acordo com o inciso V desse dispositivo legal, acarretam a extinção do processo sem julgamento do mérito. Também por força da Lei 9.307/96, foi introduzida no art. 584 do Código de Processo Civil, no rol dos títulos executivos judiciais, ao lado da sentença condenatória proferida no processo civil (inciso I) e da sentença penal condenatória transitada em julgado (inciso II), a sentença arbitral (inciso VI), que hoje, portanto, tem a mesma força e autoridade da sentença emanada de qualquer órgão do Poder Judiciário, mesmo porque, segundo dispõe o art. 18 da Lei 9.307/96: “O árbitro é juiz de fato e de direito, e a sentença que proferir não fica sujeita a recurso ou a homologação pelo Poder Judiciário”. Assim sendo, parece-me cristalino que, estando determinados fatos submetidos à arbitragem, por força de uma convenção de arbitragem válida e eficaz, o óbice que essa convenção opera para o exercício da jurisdição estatal a respeito dessas questões, óbice este cuja constitucionalidade já foi afirmada pelo Supremo Tribunal Federal, não se limita apenas à jurisdição civil, estendendo-se forçosamente também à jurisdição penal ou criminal, que fica assim impedida de valorar os fatos e de apreciar a licitude das condutas sujeitas à arbitragem, até que venha a ser proferida a decisão arbitral sobre esses mesmo fatos, em todas as hipóteses em que, para a constatação do ilícito penal, seja necessária a configuração do dano ou dos prejuízos de natureza civil. Concluir-se em sentido contrário, equivale a negar-se a unidade da jurisdição, bem como vedar os vasos comunicantes entres os sistemas processuais civil e penal. 2010 MAIO | JUSTIÇA & CIDADANIA 33


Além disso, o entendimento oposto permitiria que se afastasse o caráter vinculante da cláusula compromissória, negando-se assim vigência ao texto da Lei 9.307/96, pois a parte que quisesse se furtar ao império da convenção arbitral bastaria invocar a jurisdição penal para apuração de fatos também caracterizadores de prejuízos a serem indenizáveis no cível, para, posteriormente, utilizar-se da força executiva no cível da sentença penal condenatória e, assim, impedir a instituição da arbitragem a respeito desses mesmos fatos. Desta forma, é imperioso concluir que a convenção de arbitragem provoca, na jurisdição penal, os mesmo efeitos gerados na jurisdição civil, sempre que o tipo penal em questão depender da apuração de fatos, que, por convenção entre as partes, estiverem submetidos à arbitragem e, assim, subtraídos da jurisdição estatal (civil ou penal). III – Arbitragem como modo de transação antes do oferecimento da denúncia penal Por outro lado, ainda que se atribua o caráter meramente contratual à convenção de arbitragem, enquanto não for ela devidamente invocada e instituída, estaria afastada a justa causa para configuração de crime na jurisdição penal, uma vez que a composição entre as partes para o ressarcimento de danos e prejuízos, naqueles crimes em que a constatação era necessária para a tipificação penal (como é o caso, por exemplo, do crime tipificado no art. 171 do Código Penal), faz descaracterizar o comportamento punitivo. Vejamos, a propósito, os seguintes julgados: Sendo o estelionato crime de cunho patrimonial, a sua consumação depende da efetiva obtenção da vantagem ilícita, correspondente à lesão patrimonial de outrem. Assim, desde que o prejuízo não se mostre efetivado, não há razão para se punir o agente, quando este restituiu ao lesado o produto de sua locupletação, antes do oferecimento da denúncia. (TACRIM – SP – AC – Rel. Gonçalves Sobrinho – RT 536/328). No mesmo sentido: RT 50/65. O crime de estelionato, ainda que básico, não se concretiza quando o agente repara os danos causados à vítima antes do oferecimento da denúncia. (TACRIM – SP – AC 324.155 – Rel. Ercílio Sampaio). A consumação do estelionato está relacionada à efetiva verificação de uma diminutio patrimonii, em sentido econômico. É óbvio, portanto, que se tal diminuição inexistiu, em virtude de pronta reparação de dano, antes mesmo do início da ação penal, não há cogitar de tipicidade da conduta posta em prática pelo agente. (TACRIM – SP – AC – Rel. Silva Franco – RT 580/366 – 368 e JUTACRIM 77/300). Em sede de estelionato, o ressarcimento de prejuízo, através do pagamento de cheque emitido sem provisão de fundos, antes do oferecimento da denúncia, afasta qualquer tipo 34 JUSTIÇA & CIDADANIA | MAIO 2010

de fraude, devolvendo-se, portanto, trancar a ação penal pelo crime previsto no art. 171, § 2º, VI, do CP, conforme interpretação das Súmulas 246 e 554 do STF. (STJ – HC – Rel. Edson Vidigal – j. 05.08.1999 – RT 771/560) Porquanto, a teoria contratual explica a arbitragem como sendo modalidade de transação, conhecido instituto de direito civil, previsto nos artigos 1.025 e seguintes do Código Civil de 1916. Evidentemente que, sendo a arbitragem modo de transação, significa dizer que as partes contratantes da convenção arbitral transacionaram sobre todos os direitos patrimoniais disponíveis, que compõe o escopo do contrato, de maneira que fica inibida a denúncia penal imputando crime que visa a tutela penal do patrimônio, por conta de que o conflito patrimonial se encontra equacionado por esta modalidade extrajudicial de solução de controvérsia. A convenção arbitral implica, pois, o equivalente à transação entre a “se dizente” vítima e o suposto agente do crime contra o patrimônio antes do oferecimento da respectiva denúncia penal. IV – Conclusão Com fundamento em todo o exposto, concluímos que a cláusula compromissória de arbitragem tem força vinculante para impor o afastamento da jurisdição estatal a respeito de questões patrimoniais disponíveis envolvendo partes capazes, relativamente a litígios que possam surgir em decorrência de relações contratuais entre essas partes. Essa força vinculante do compromisso de arbitragem não ofende o princípio constitucional da inafastabilidade do controle jurisdicional, conforme já se manifestou, a esse respeito, o Supremo Tribunal Federal. Em face na unidade da jurisdição estatal, é perfeitamente oponível na justiça criminal a convenção de arbitragem para afastar o controle pela jurisdição estatal sobre fatos relativos a uma relação privada e contratual entre as partes, especialmente quando esses fatos se constituem em pressuposto para a caracterização do tipo penal objeto da denúncia. NOTAS STRENGER, Guilherme Gonçalves. “Do Juízo Arbitral”, RT 607/31. GUERREIRO, José Alexandre Tavares. “Fundamentos da Arbitragem do Comércio Internacional”. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 37. 3 GRINOVER, Ada Pellegrini; SCARANCE FERNANDES, Antonio e GOMES FILHO, Antonio Magalhães. “As nulidades no processo penal”. 7.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001. p. 45. 4 DINAMARCO, Cândido Rangel. “Instituições de Direito Processual Civil”. São Paulo: Malheiros Editores, 2001, vol. I, p. 314. 5 Op. cit. p. 319. 6 CARNEIRO, Athos Gusmão. “Jurisdição e Competência”. 9. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1999. p. 21. 7 “Direito Judiciário Brasileiro:”. 5. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1960. p. 47. 9 “Ciência Penal”. 3. ed., 1974, p. 573. 10 “Estudos e pareceres de Direito Penal”. Ed. RT, 1973, p. 52. 11 “Princípios Básicos de Direito Penal”. Ed. Saraiva, 1987, p. 153/154. 12 “Dos efeitos da coisa julgada cível na esfera criminal”. JUTACRIM 81/8. 13 “Código de Processo Penal Interpretado”. 8. ed. Ed. Atlas, p.206. 14 “Código de Processo Penal”. 1942, vol. 1, p. 166. 1 2


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Meios Alternativos de Solução de Conflitos na Previdência Complementar Rosalía Agati Camello Economista e Advogada

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Apesar de desejável a solução de conflitos por meios alternativos, em verdade a consecução dessa competência, especialmente no âmbito da Previdência Complementar, não se configura como tarefa simples.

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N

o mês de abril deste ano assumiu a Presidência do Supremo Tribunal Federal (STF) o Ministro Cezar Peluso. No seu discurso de posse, o Ministro destacou que o STF, desde a vigência da atual Constituição Federal, vem exercendo dois papéis fundamentais no processo de aprendizado e aprimoramento democráticos: tutela dos direitos individuais e coletivos e garantia de estabilidade social, reafirmada e assegurada pelas decisões judiciais na interpretação e aplicação do ordenamento jurídico. Enalteceu o serviço da Justiça, destacando o ordenamento jurídico democrático como sendo o “único ambiente em que vicejam a liberdade e a convivência civilizada”, e prosseguiu qualificando o Poder Judiciário como “refúgio extremo da cidadania ameaçada”. Trouxe ao conhecimento alguns dados estatísticos, os quais apontam que 43% dos brasileiros procuram suas próprias soluções ao terem seus direitos desrespeitados; apenas 10% buscam a Justiça. Os demais utilizam a mediação de advogados, do poder policial, por vezes renunciam aos direitos e outras vezes fazem uso da força. Dos que recorrem ao Judiciário, 46% se declaram satisfeitos e 23% inconformados. O Ministro Cezar Peluso relatou ainda que “as rápidas transformações por que vem passando, sobretudo nas últimas décadas, a sociedade brasileira, têm agravado esse quadro lastimável, em virtude da simultânea e natural expansão da


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conflituosidade de interesses que, desaguando no Poder Judi­ ciário, o confronta com sobrecarga insuportável de processos, em todas as latitudes do seu aparato burocrático”, sublinhando que uma das causas proeminentes desse fenômeno está na falta de uma política pública menos ortodoxa do Poder Judiciário em relação ao tratamento dos conflitos de interesses. Discorrendo, ainda sobre as características indesejáveis de nosso atual mecanismo judicial, afirmou que é tempo de incorporar ao sistema os chamados meios alternativos de resolução de conflitos, que, com o instrumental próprio, sob rigorosa disciplina, direção e controle do Poder Judiciário, sejam oferecidos aos cidadãos como mecanismos facultativos de exercício da função constitucional de resolver conflitos. “Noutras palavras, é preciso institucionalizar, no plano nacional, esses meios como remédios jurisdicionais facultativos, postos alternativamente à disposição dos jurisdicionados, e de cuja adoção o desafogo dos órgãos judicantes e a maior celeridade dos processos, que já serão avanços muito por festejar, representarão mero subproduto de uma transformação social ainda mais importante, a qual está na mudança de mentalidade em decorrência da participação decisiva das próprias partes na construção de resultado que, pacificando, satisfaça seus interesses”. É, de fato, entusiasmante essa manifestação, que gera a expectativa altamente positiva de que em um ambiente

democrático, com estabilidade institucional, os próprios cidadãos possam construir a solução para os seus conflitos. Esforços nesse sentido, ainda que não atingindo ou envolvendo diretamente o cidadão, estão sendo aplicados pela Advocacia Geral da União – AGU, por meio da Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal – CCAF. Criada em 2007, sediada em Brasília, a CCAF tem como atuação principal solucionar amigavelmente os conflitos entre os órgãos da União e as entidades da Administração Federal Indireta. A partir de julho de 2008, a CCAF passou também a conciliar as controvérsias entre os Estados e o Distrito Federal e a União, visando propiciar maior celeridade na implementação das políticas públicas, através da diminuição das demandas judiciais e administrativas envolvendo aqueles entes da Federação e a União. São questões como repasses de recursos federais e execução de convênios sobre impostos, exemplos de conflitos que podem ser submetidos à composição no âmbito da CCAF. Os órgãos, entidades públicas e entes políticos interessa­ dos na conciliação encaminham suas questões por meio de manifestações escritas, identificando as partes que devem compor as reuniões conciliatórias. Uma vez alcançado o acordo, os efeitos se aplicarão com a homologação do Advogado-Geral da União. 2010 MAIO | JUSTIÇA & CIDADANIA 37


A Previc, neste momento, assume nova competência, podendo vir a se constituir em um ente fomentador de inovações no enfrentamento e na resolução de conflitos no segmento da Previdência Complementar fechada, propiciando aos seus diversos agentes uma nova perspectiva de gestão.

Certamente, nem todos os casos podem ser submetidos a essa modalidade de resolução de conflitos, em face da natureza das demandas, sobretudo quando se está diante de questões que devam considerar o princípio da autonomia dos entes federativos. A Previc. A Lei nº 12.154 e a nova competência. Foro de solução de conflitos Observa-se que, nesse mesmo diapasão, recentemente, em dezembro de 2009, ao criar a Superintendência Nacional de Previdência Complementar – Previc, a Lei 12.154 (e também o Decreto Presidencial nº 7.075 e a Portaria nº 183, de 26 de abril de 2010, do Ministério da Previdência Social) trouxe, dentre as competências da nova Superintendência, a de “promover a mediação e a conciliação entre entidades fechadas de previdência complementar e entre estas e seus participantes, assistidos, patrocinadores ou instituidores, e também a de dirimir os litígios que lhe forem submetidos na forma da Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996”. Apesar de desejável a solução de conflitos por meios alternativos, em verdade a consecução dessa competência, especialmente no âmbito da Previdência Complementar, não se configura como tarefa simples. Primeiramente, deve-se interpretar, com cautela, o referido dispositivo legal. Ao definir “promover a mediação e a conciliação”, teria o legislador objetivado que a Previc se estruturasse para executar ações de mediação e conciliação ou, por outro lado, que agisse como fomentador desses mecanismos de resolução 38 JUSTIÇA & CIDADANIA | MAIO 2010

de conflitos entre os agentes do segmento de previdência complementar? É importante observar que, ao final da redação dessa competência, a expressão utilizada é “bem como dirimir os litígios que lhe forem submetidos na forma da Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996.” Neste caso, o verbo dirimir contém o significado de fazer cessar; decidir, resolver. Efetivamente, quem resolve tem a competência de decidir e quem decide, arbitra. Tem-se, assim, que ao definir a competência para “promover a mediação e a conciliação entre entidades fechadas de Previdência Complementar e entre estas e seus participantes, assistidos, patrocinadores ou instituidores”, intencionou o legislador que a Previc atuasse como fomentador de adoção de meios alternativos de resolução de conflitos, enquanto que, ao dispor sobre a competência para dirimir os litígios que lhe forem submetidos na forma da Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996, o legislador lhe atribuiu poderes para arbitrar, na medida e nos critérios indicados na lei ali referida, que dispõe sobre a arbitragem. A Previdência Complementar. Fundamentos e especificidades operacionais. Sistema aberto e sistema fechado A Previdência Social no Brasil, em breve síntese, está estruturada sobre três pilares: o regime geral de Previdência Social, os regimes próprios de Previdência Social e a Previdência Complementar.


A Previdência Complementar, por sua vez, pode ser desenvolvida por meio do sistema aberto e do sistema fechado. O sistema aberto prevê que os planos de benefícios sejam instituídos por entidades abertas de previdência complementar, os quais podem ser oferecidos, na forma individual, a quaisquer pessoas físicas e, em sua concepção coletiva, quando tenha por objetivo garantir benefícios previdenciários a pessoas físicas vinculadas, direta ou indiretamente, a uma pessoa jurídica contratante. Atualmente, o órgão fiscalizador dessas atividades é a Susep – Superintendência de Seguros Privados. No outro pólo, se desenvolve o sistema fechado, onde se prevê que os planos de benefícios podem ser criados por patrocinadores ou por instituidores. As entidades fechadas de Previdência Complementar são acessíveis aos empregados de uma empresa ou grupo de empresas e aos servidores da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, quando os planos de benefícios forem concebidos no âmbito desses patrocinadores. Essas entidades serão acessíveis a associados ou membros de pessoas jurídicas de caráter profissional, classista ou setorial, quando os planos de benefícios forem de iniciativa desses entes denominados instituidores. É neste segmento, o das Entidades Fechadas de Previdência Complementar, que a Previc, órgão fiscalizador, poderá atuar, promovendo a mediação e conciliação de conflitos, originados nas relações entre essas entidades e seus participantes, assistidos, patrocinadores e instituidores ou dirimindo conflitos que lhe forem submetidos. O fortalecimento das relações entre participantes e as EFPCs Essa competência para a resolução de conflitos, no âmbito da Previdência Complementar, em particular no sistema fechado, foi definida muito recentemente, e até a publicação deste periódico, provavelmente ainda não terão sido estabelecidos os procedimentos para o seu desenvolvimento. Tarefa de tal magnitude, de fato, não se afigura de fácil realização em razão da complexidade para se conceber planos de Previdência Complementar, assim como para instituir e gerir entidades de Previdência Complementar. As atividades para a consecução dos contratos dos planos de Previdência Complementar, geridos pelas entidades fechadas de Previdência Complementar, envolvem matérias de grande complexidade. Estudos demográficos e atuariais, definição de premissas mais adequadas à massa de participantes e sua expectativa de evolução no tempo, evolução salarial, são elementos basilares da constituição das obrigações de um plano de benefícios, que encontra ainda mais complicadores a depender do segmento da atividade econômica em que se situem os empregados desse plano, o grau de periculosidade e insalubridade, que afetam diretamente os benefícios de risco, oferecidos pelo plano, e outros tantos aspectos que devem ser considerados.

Por outro lado, relativamente à gestão dos ativos desses planos de benefícios, outras variáveis devem ser administradas. Definições sobre o percentual dos ativos, que devem ser alocados aos investimentos no segmento de renda variável e no segmento de renda fixa, são apenas duas das infinitas combinações com que um gestor de recursos pode se deparar. Como resultado da gestão dos planos de benefícios por essas entidades, e de outras variáveis externas, produzidas, por exemplo, por alterações do cenário macroeconômico, os planos de benefícios, se concebidos na modalidade de benefício definido ou contribuição variável, poderão produzir déficits ou superávits. As formas mais adequadas de equacionamento de déficits ou destinação de superávits, invariavelmente, são matérias que despertam grande conflituosidade. Outras questões relativas à execução do plano de benefícios, como, por exemplo, a interpretação do Regulamento do Plano de Benefícios, de onde decorre, em grande parte, o cálculo dos benefícios a serem pagos, também são fontes de divergência. Atualmente, a maioria das entidades fechadas de Previdência Complementar enfrenta essas questões no Poder Judiciário, por meio de ações ajuizadas pelos participantes e assistidos. O Brasil possui, em grandes números, cerca de 400 entidades fechadas de Previdência Complementar, envolvendo uma população em torno de 2 milhões de participantes e 4 milhões de assistidos, administrando cerca de R$500 bilhões de ativos financeiros, configurando-se, em termos absolutos, no oitavo sistema de Previdência Complementar do mundo. Com essas referências, pode-se compreender que a tarefa de solução de conflitos, seja por via judicial ou por meios alternativos, não se apresenta como uma das mais simples no âmbito da Previdência Complementar fechada. Os meios alternativos de resolução de conflitos, como instrumentos definidos, claramente positivados, surgiram no ordenamento legal brasileiro em 1996. Portanto, pouco tempo se passou para a formação de um histórico consistente e passível de análise sistemática. Como destacado no início deste texto, o Presidente do Supremo Tribunal Federal aponta a adoção desses meios como uma possibilidade que vai muito além do desafogo dos órgãos judicantes e da aplicação de maior agilidade no andamento dos processos judiciais. Talvez estejamos vivenciando tempos jamais observados pela sociedade brasileira, em que o amadurecimento da democracia, também bastante recente em nossa história, tenha propiciado a oportunidade de manifestação da conflituosidade inerente às relações humanas, o que levou ao ajuizamento de milhões de ações, que atualmente tramitam pelo Judiciário. Ao mesmo tempo, em um movimento reflexo, a sociedade parece buscar por uma oportunidade de agir, tendo um papel mais efetivo na solução de seus conflitos. A Previc, neste momento, assume nova competência, podendo vir a se constituir em um ente fomentador de inovações no enfrentamento e na resolução de conflitos no segmento da Previdência Complementar fechada, propiciando aos seus diversos agentes uma nova perspectiva de gestão. 2010 MAIO | JUSTIÇA & CIDADANIA 39


Compromisso com a valorização da magistratura

Da Redação

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eterminação, perseverança, dedicação e trabalho. Esses ingredientes juntos podem levar ao sucesso. Mas além deles, é preciso sinceridade, ética, firmeza de caráter e gentileza para alcançar metas imponderá­ veis. Mulher de fibra e de trabalho,a Desembargadora Willamara Leila, reúne todas as qualidades de uma líder visionária do Poder Judiciário. Nascida em Goiânia, casada e mãe de três filhos, a Presidente do TJETO vive um momento ímpar na carreira profissional de um Magistrado: preside a Corte do Judiciário Tocantinense. Antes, assumiu cargos igualmente importantes, a exemplo da Corregedoria-Geral da Justiça e da Presidência do Tribunal Regional Eleitoral. Nesta entrevista à “Revista Justiça & Cidadania”, conhe­ ceremos um pouco mais sobre a Desembargadora, seus desafios, seu trabalho e suas metas à frente do Tribunal de Justiça do mais novo Estado do País. Justiça & Cidadania – Como parte da sua carreira jurídica, a senhora assumiu a Presidência do Tribunal Regional Eleitoral. Qual a sua avaliação sobre as novas regras para as eleições? Willamara Leila – Creio que evoluímos muito na questão das eleições. O Sistema Eleitoral Brasileiro, para mim, é um dos mais avançados do mundo. Até hoje, não entendo por que o nosso modelo não foi aproveitado pelos países mais desenvolvidos, que se dizem muito mais evoluídos, quando temos um sistema de urna eletrônica que, em minha opinião, é um dos mais perfeitos. O resultado é quase simultâneo. Na época em que estava no 40 JUSTIÇA & CIDADANIA | MAIO 2010

Tribunal Regional Eleitoral, tive a oportunidade de presidir a primeira eleição com urna eletrônica do Tocantins. Participei de todos os cursos sobre a urna e constatei a eficiência e a confiabilidade do sistema. Temos um dos melhores sistemas do mundo, sem dúvida alguma. Quanto às doações pela Internet, acredito que fazem parte da evolução natural da sociedade. Dentro de pouquíssimo tempo, ninguém mais conseguirá fazer muita coisa sem o uso dessa ferramenta, que é essencial em nossa vida hoje. JC – Quais mudanças significativas a senhora vê em relação ao combate aos crimes eleitorais? WL – As mudanças são notórias. Tive a oportunidade de presidir o Tribunal Regional Eleitoral exatamente na época das eleições municipais, quando foram julgados todos aqueles processos dos chamados “ficha suja” — como ficou conhecida a situação dos candidatos que possuíam algum tipo de processo. As cassações que temos visto ultimamente e que não ocorriam no Brasil, para mim, são uma evolução do Direito Eleitoral. A sociedade organizada lançando os manifestos, fazendo toda essa divulgação como fizeram a Associação dos Magistrados do Brasil e a Associação do Ministério Público, é uma campanha de conscientização do eleitor. Isso tudo, para mim, é motivo de esclarecimento. E creio que os candidatos, vendo que a Justiça Eleitoral não está para brincadeira, vão deixar de lado o caminho da ilegalidade, não pensando mais apenas em si mesmos e passando a pensar na sociedade que eles representam. O povo não é desonesto e não quer ser representado por políticos desonestos.


JC – Dentre as ações realizadas pelo TJETO, em 2009, quais a senhora destacaria? WL – Graças a Deus e ao empenho dos servidores e diretores, tivemos excelentes ações em 2009. A começar pela infraestrutura, que foi e está sendo nosso foco principal. Acredito que a construção dos Fóruns fará toda a diferença na vida dos servidores da Justiça e de milhares de moradores dos treze municípios beneficiados. As obras em Paranã, Figueirópolis, Itaguatins, Palmeirópolis, Wanderlândia, Alvorada e Arraias já começaram. Estamos acompanhando e fiscalizando de perto todas elas. Uma equipe da Diretoria de Obras do Tribunal, criada na nossa gestão, tem verificado in loco cada município, e eu conto com a ajuda dos juízes locais e dos servidores para nos auxiliar na fiscalização. Já abrimos licitação para a construção de mais seis Fóruns no interior. Serão contemplados os municípios de Novo Acordo, Augustinópolis, Xambioá, Araguatins, Goiatins e Miranorte. Também já determinei a licitação dos Fóruns de Porto Nacional, Guaraí e Araguaína, que serão os maiores. Também estamos reformando dezessete Fóruns do interior. Visitamos cada Comarca e constatamos as tristes condições de trabalho em cada uma delas. Com essas reformas, garantiremos mais dignidade aos servidores, magistrados e cidadãos. Para este ano, também reformaremos a sede do Tribunal de Justiça. Lançamos a pedra fundamental do Centro de Educação Infantil (CEI), que será construído em Palmas em um terreno doado pela Prefeitura Municipal. A obra terá 598m² de área construída. Outro projeto que iniciaremos agora é a construção de Unidades Judiciárias, que são pequenos fóruns em cidades que não são sede de Comarca, distantes, o que dificulta o deslocamento dos jurisdicionados. Nelas os trabalhos serão desenvolvidos no próprio município, por um Juiz de Direito, um Promotor, um Defensor Público e um Escrivão, que se deslocarão da sua Comarca até a unidade, onde contarão com instalações adequadas. Com isso, queremos democratizar o acesso da população ao Judiciário. Já demos início a todas essas ações, mas muitas outras serão desenvolvidas, não só em

Foto: TJ Tocantins/Ascom

JC – O Tocantins é um Estado jovem, mas que já conquistou seu espaço no cenário nacional. O TJETO está no mesmo caminho? WL – O nosso Estado tem apenas 21 anos. Nós temos um Tribunal composto por 12 desembargadores e 134 juízes. É a Magistratura que está no início, é composta por juízes muito dignos, capazes e eficientes. Enfim, nosso Judiciário vai bem, mas estamos trabalhando para atingir a excelência na prestação jurisdicional que desejamos. Atendemos à demanda; mas, assim como em outros Estados, ela está crescendo, então temos que crescer com ela também. E, aos poucos, vamos superando os obstáculos para oferecer uma prestação jurisdicional cada vez mais eficiente. Temos tudo para ser modelo para o Brasil. Possuímos todas as condições necessárias para atingir essa meta. Por sermos um Estado jovem, com muito por fazer, podemos começar tudo certo e implantar por aqui um modelo novo no Judiciário do País.

Desembargadora Willamara Leila, Presidente do TJETO

prol dos servidores e magistrados, mas principalmente em prol do jurisdicionado, que é nosso público-alvo. JC – A senhora implantou a Escola Judiciária, uma iniciativa inovadora que visa qualificar os servidores, e estruturou a Escola Superior da Magistratura. Como será desenvolvido o trabalho nas duas instituições? WL – O conhecimento é fator determinante para a valorização do servidor e para o aperfeiçoamento dos serviços prestados. Sempre acreditei na educação e na qualificação profissional como fatores preponderantes para a transformação da sociedade. O Judiciário, assim como os demais poderes constituídos, tem a missão de garantir a cidadania, através da distribuição de uma justiça célere, segura e eficaz, assegurando o respeito aos direitos individuais e coletivos. Cumprir essa missão requer uma equipe apta, qualificada e consciente do seu papel no Tribunal de Justiça. Com esse propósito, de qualificar, aprimorar e estimular os servidores, promovendo a modernização e o desenvolvimento do Judiciário do nosso Estado, nós criamos, em 2009, a Escola Judiciária do Tocantins. Estamos com o curso “Gestão do Judiciário” com 1.234 inscritos para um quadro funcional de 1.381 servidores. Isso mostra que nossos servidores estavam ansiosos para adquirir mais conhecimento. As aulas da Escola Judiciária serão transmitidas em tempo real, via satélite. Cada uma das 42 Comarcas do Estado já conta com estrutura tecnológica para recebimento das aulas. Com a Escola Judiciária, proporcionaremos a cada servidor 2010 MAIO | JUSTIÇA & CIDADANIA 41


a conquista da excelência profissional que ele almeja e ao Tribunal de Justiça o fortalecimento institucional. A Escola Superior da Magistratura é um instrumento importante de transformação do Judiciário. O trabalho árduo e sacerdotal dos juízes exige o exercício diário da ética, do conhecimento jurisdicional, da isenção nas decisões. Sabemos a relevância da formação continuada dos magistrados para melhor prestar a jurisdição com racionalização, eficiência e efetividade, dentro da mais moderna técnica de administração gerencial e princípios das ciências humanas. Por isso, lutamos muito para a estruturação da Esmat. Hoje, com a criação dos cargos pela Assembleia Legislativa, poderemos melhorar os serviços prestados ao cidadão, que é nosso principal objetivo, repito.

JC – Desde novembro do ano passado as ações do Pleno são transmitidas pela Internet e as aulas da Escola do Judiciário serão transmitidas ao vivo. A senhora considera a informatização como uma ferramenta importante no Judiciário? WL – Indispensável. Acho que hoje, em nossa vida, não se consegue realizar grandes projetos e grandes obras se você não contar com esse auxílio indispensável da tecnologia da informação. E essa questão da transmissão das sessões plenárias ao vivo pela Internet é mais uma forma de dar transparência a todas as ações desenvolvidas no Tribunal de Justiça. Não é todo mundo que tem acesso a uma sessão plenária. Hoje, qualquer pessoa em qualquer lugar do mundo pode assistir, do começo ao fim, a um julgamento, pelos desembargadores do Tocantins, de todos os processos que se encontram na pauta. Isso é uma coisa que facilita a vida das pessoas que têm alguma questão a ser resolvida conosco e facilita também a vida dos Advogados. Não foi só essa porta que nós abrimos. No site do Tribunal de Justiça, temos o link “Fale Conosco”. Todas as perguntas enviadas ao Tribunal de Justiça são respondidas. Quando direcionadas à Presidência, por mim; quando a outros setores, por seus respectivos diretores. E continuaremos abrindo outras vertentes para total transparência.

JC – Durante sua gestão, foram priorizadas também a cultura e a responsabilidade social. A senhora instituiu o coral “De Canto a Canto” e praticou diversas ações sociais como a doação de computadores e de alimentos para entidades de combate ao câncer. A senhora acredita que no papel do Poder Judiciário também estão incluídas ações dessa natureza em benefício da sociedade? WL – Sim, com certeza. É muito importante que o Poder Judiciário se aproxime do cidadão, não só no tocante aos processos, mas também no auxílio e apoio às pessoas menos favorecidas. Responsabilidade social é dever de todos. O coral “De Canto a Canto” era um sonho, um anseio dos servidores há muitos anos. Eu apenas incentivei. Sei que os servidores que participam do coral estão muito felizes, a música é uma terapia para a alma. A questão da doação dos alimentos, fizemos uma gincana solidária entre as diretorias e servidores. Foram arrecadadas cinco toneladas de alimentos, doamos tudo para entidades como a Liga de Prevenção ao Câncer, em Palmas, e a uma associação que atende quase mil doentes de câncer, em Araguaína. Vamos continuar, não vamos parar, não. No final do ano passado, criamos a Associação das Voluntárias do Poder Judiciário, a exemplo de Goiás, formada por juízas e esposas de magistrados, teremos a nossa primeira reunião dentro de poucos dias. Pretendemos desenvolver este ano uma série de ações para beneficiar outras entidades também, mas continuaremos auxiliando as entidades que cuidam do tratamento do câncer. Se pensarmos bem, essa doença está assustando a todos, indistintamente, e precisamos ajudar da forma que pudermos.

JC – Com a inspeção do CNJ no Estado do Tocantins, foram apontadas algumas áreas que precisariam de mudanças imediatamente. O Judiciário já deu uma resposta quanto às deficiências? Além da posse de 19 juízes e a finalização do concurso para servidores, o que tem sido feito para melhorar os serviços para o cidadão? WL – Quando assumimos, antes de tomar qualquer atitude administrativa, procuramos detectar os problemas que existiam no Poder Judiciário. Nas Comarcas, havia a falta de estrutura física e de tecnologia da informação. Essas questões foram colocadas em um relatório próprio e, em seguida, começamos a tomar as atitudes que achávamos que deveriam ser tomadas. Havia um concurso em andamento, concluído com bastante sucesso, e os novos servidores já tomaram posse. O problema da infraestrutura física estamos resolvendo, como já salientado. Criamos a Diretoria de Obras no Tribunal de Justiça. Antes, todas as obras do Poder Judiciário eram realizadas pelo Estado. Começamos a tomar conta da nossa própria casa.

JC – Ano passado a Assembleia Legislativa do Tocantins aprovou a criação da Vara Especializada no Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a mulher em Gurupi, Araguaína e Palmas. Como está sendo a estruturação dessas Varas? WL – A primeira que criamos foi a Vara Especializada de Palmas. No Fórum, toda a estrutura material está pronta. E estamos apenas ultimando a contratação do corpo técnico, porque essa Vara chegará com toda a estrutura que precisa para funcionar, ou seja, terá psicólogo, assistente social, enfim, atenderá realmente à mulher vítima da violência, em toda sua amplitude.

JC – Quais os projetos do Judiciário Tocantinense para 2010? WL – Temos muitos projetos. Agora, começaremos a colher os frutos que plantamos em 2009: realizar o concurso para os cargos que foram criados; inaugurar os Fóruns; dar início às novas obras e reformas; continuar a nossa proposta de valorização dos servidores com os cursos de capacitação e outros cursos que virão. Enfim, valorizar cada vez mais a nossa Magistratura, para que todos se sintam tranquilos, felizes e trabalhem com o compromisso de bem servir ao povo do nosso Estado.

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Efeitos Jurídicos da Eleição do Empregado a Cargo de Diretor da Empresa José Geraldo da Fonseca

Desembargador do TRT da 1ª Região

Foto: Arquivo Pessoal

V

Introdução ou de logo antecipando que uso o termo empresa para significar a atividade do empresário porque se trata de expressão consagrada pelo uso. A própria CLT o usa ora para significar a atividade do empresário, ora para referir-se ao próprio empresário, ora para definir estabelecimento, ou fundo de comércio, ou grupo econômico, ou sucessão de empregadores, e o mais. Exemplo claro do que digo está no próprio art. 2º, onde o legislador disse que “empregador é a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviços”. Se tivesse dito apenas que empregador é a empresa, teria construído um conceito tão perfeito de empresa que faria corar de ódio Asquini, Vivante e Ascarelli, para dizer o mínimo, mas ao avançar num didatismo desnecessário baralhou o conceito de empresário ao de empresa e o de empresa ao de estabelecimento e mais não fez senão pôr água numa fervura que já vem de longe. Há um ditado popular que diz que é o uso do cachimbo que deixa a boca torta. Não adianta, penso eu, tentar plantar na cultura geral do foro que o correto agora é dizer sociedade simples ou sociedade empresária segundo se queira referir às sociedades que têm ou não têm elemento de empresa porque a praxe já sedimentou o termo empresa, assim como autores muito famados continuam usando a expressão direito comercial em vez de direito empresarial1. Tudo isso é filigrana que não leva a lugar nenhum. Decerto não desconheço que isso causa algum desconforto aos civilistas, encantados com as novidades do novo Código Civil, nem aos empresarialistas, até ontem comercialistas, mas o que esses estudiosos muito depressa fizeram foi adotar o nomem juris direito

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empresarial para o velho e combalido direito comercial, a partir de um silogismo tão simples quanto óbvio. Desde o século XIX já se sabia que nas sociedades civis existiam organizações econômicas destinadas à produção de bens ou serviços, comandadas por pessoas que reuniam e adaptavam recursos a essas necessidades sociais e remuneravam aqueles que emprestavam seu esforço pessoal à consecução desses objetivos. Deu-se a essa organização dos fatores de produção o nome empresa, e a quem a comandava, o de empresário. Empresa foi, é e será, sempre, a atividade organizada pelo empresário para produzir alguma coisa para o mercado. A primeira ideia de empresa estava no art. 632 do Código francês de 1807, que, ao enumerar os atos de comércio, incluiu todas as empresas de manufatura e as empresas de fornecimento. Como o conceito de empresa fiava-se na ideia de uma organização que praticava atos de comércio, era comerciante aquele que fazia da prática dos atos de comércio sua profissão habitual. Até aí o direito que regulava essa atividade era chamado direito comercial porque era o “direito dos que praticavam com regularidade atos de comércio”. Quando se firmou o entendimento de que o sujeito que organizava essa empresa, isto é, essa organização econômica destinada à produção ou à circulação de bens ou serviços para o mercado, podia melhormente ser chamado de empresário, o conceito de comerciante evoluiu “daquele que pratica habitualmente atos de comércio” para “aquele que organiza a empresa”, e aí o comerciante virou empresário e o direito comercial virou direito empresarial. É por isso que para o escárnio dos empresarialistas eu continuo chamando o empresário de comerciante e o direito empresarial de direito comercial. O Prof. Rubens Requião é que está certo. Ele diz que quando o art. 19 do Regulamento nº 737, de 1850, incluiu as empresas no rol dos atos de comércio, o legislador brasileiro deu ao conceito de empresa a ideia de repetição de atos de comércio, exatamente como estava no direito francês, e como já haviam observado Jean Escarra e Inglez de Souza. No fundo é tudo a mesma coisa. Mas não vim criar polêmica. Vim investigar que efeitos jurídicos respingam no contrato de trabalho quando o empregado é alijado dessa condição e alçado à condição de diretor da empresa onde trabalha. Não falo do sujeito que nunca foi empregado e já veio contratado como diretor, mas do que até ontem era empregado subordinado e, por vontade dos sócios, diretores ou acionistas, deixou de sê-lo para tornar-se diretor. Como disse Aristóteles2, “uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo”. O estagirita tinha razão desde aquela época. Se o sujeito era empregado e passa a diretor da empresa, não pode ser empregado de si mesmo. Algum reflexo isso deve ter sobre o contrato de trabalho e sobre o ponto a doutrina e os tribunais não têm consenso. O que quero estudar são os efeitos da eleição do empregado a cargo de diretor da empresa (ou, se acharem mais fashion, da “sociedade empresária”) sobre o contrato de trabalho. Esta é a minha empresa. Viram como o termo é dúbio? O sentido aqui é de empreitada! 44 JUSTIÇA & CIDADANIA | MAIO 2010

Contrato de trabalho A CLT diz que o contrato individual de trabalho é o acordo tácito ou expresso que corresponde à relação de emprego3. Conceito oco, tautológico e óbvio. Se todo contrato é um negócio bilateral, é, antes de mais, um acordo de duas ou mais vontades. O direito não conhece nem reconhece nenhum acordo contra a vontade. Dizer que contrato é acordo é afirmação que bem poderia não estar ali. Afirmar que um acordo é um acordo e que corresponde à relação de emprego é o mesmo que dizer que uma coisa é uma coisa que corresponde a outra coisa que ninguém explica o que é. Falaremos disso noutra ocasião. Por ora, basta ter em boa conta que o contrato de trabalho é de atividade; não tem conteúdo específico4. Sendo intuitu personae, e de trato continuativo, quem se emprega aliena por tempo indeterminado a si próprio ou a sua força de trabalho em prol da atividade empresarial que o contrata, remunera e dirige a prestação pessoal desse serviço5. A esse prestar serviços para outrem os hispânicos chamam “ajenidad”, outra coisa óbvia porque o trabalho prestado a si mesmo pode ser tudo, menos trabalho segundo a acepção que aqui nos interessa. Só se pode falar em trabalho se se tratar de atividade produtiva despendida em favor de outrem, e mediante pagamento. Fique, assim, a primeira premissa: não há contrato de trabalho consigo mesmo, como, em regra, consigo mesmo não há outro contrato qualquer. Contrato é um negócio jurídico bilateral, donde se intuir que se o empregado é eleito para cargo de direção da empresa, não poderá ser patrão de si mesmo. Ou prevalece o contrato de trabalho, no todo ou em parte, ou o contrato cessa e dá lugar a outro, seja de mandato ou representação, ou o sujeito passa a órgão da sociedade, e aí não há nem contrato nem mandato, mas algum efeito isso há de ter sobre a relação de emprego, que é o elemento ético, imaterial, subjacente ao próprio contrato de trabalho. Vimos que empregador é a empresa, e que empresa é a atividade do empresário. Empresa não é sujeito de direito, mas objeto dele. Seu conceito é econômico. Para o direito do trabalho, empresa é uma categoria jurídica6. Brunetti dizia que a empresa, como entidade jurídica, é uma abstração7, e os “efeitos da empresa não são senão efeitos a cargo do sujeito que a exercita”. Ao que disse, se, do lado político-econômico, a empresa é uma realidade, “do jurídico é uma abstração porque, reconhecendo-se como organização de trabalho formada das pessoas e dos bens componentes da azienda, a relação entre a pessoa e os meios de exercício não pode conduzir senão a uma entidade abstrata, devendo na verdade ligar-se à pessoa do titular”. Esse sujeito titular é o empresário. Empresa é uma realidade econômica8, centro de decisão capaz de adotar estratégia voltada à produção de bens e serviços9, uma combinação de fatores de produção — terra, capital,trabalho — ou unidade de produção que trabalha para o mercado10. O fim da empresa resulta da atuação de três fatores: dissociação entre propriedade e controle, interferência sindical e intervencionismo estatal. A dissociação entre a propriedade e controle da empresa moderna gerou o que Galbraith chamou de tecnoestrutura11,


A doutrina que contesta a existência de contrato de trabalho no caso dos altos empregados também diz que a eleição do empregado a cargo de direção fulmina a subordinação jurídica, núcleo do contrato de emprego, e faz, com isso, desaparecer a figura do empregado. Há nisso uma meia-verdade.

isto é, controle e administração da empresa por técnicos, longe das mãos dos donos. A intervenção dos sindicatos também altera a face legal da empresa porque pulveriza o poder do empresário, já que os delegados sindicais, de pessoal, de empresa, as comissões internas e os representantes dos trabalhadores participam, de uma ou de outra forma, dos órgãos de administração, da divisão de lucros, dos desígnios do negócio12. O intervencionismo estatal que também influi no formato da empresa está no controle dos preços, na fixação do câmbio, nas regras de mercado, na autorização para funcionar, nas normas técnicas que edita, na fiscalização que se permite fazer para o bem do interesse público, na tributação, nas regras protetivas do meio ambiente de trabalho, da saúde ocupacional e na segurança dos trabalhadores e na utilidade dos produtos e serviços que as empresas põem no mercado. Quando o legislador celetista diz que empregador é a empresa, empresta ao conceito a funcionalidade que esse ramo especializado do direito reclama, na medida em que acentua a importância do fenômeno da despersonalização da figura do empregador de modo a antecipar que nenhuma modificação da estrutura da empresa ou na alteração de sua titularidade será relevante para os direitos do empregado e para a sorte do contrato de trabalho, premissas, aliás, ditas, com todas as tintas, nos arts.10 e 448 da CLT13. Para o direito do trabalho, empresa é sociedade hierarquizada não dotada de personalidade, e que tem por objetivo realizar o bem comum da comunidade em que se insere14. É essa ideia de sociedade hierarquizada que legitima na pessoa do empresário o direito potestativo sobre o contrato de trabalho e os poderes disciplinar e diretivo sobre seus empregados e demais colaboradores. Mas é exatamente essa hierarquização que põe em combate num mesmo ringue o contrato de trabalho e o cargo de direção do empregado quando o trabalhador, por vontade da empresa, é alçado da condição de subordinado à de um de seus órgãos diretivos, ou investido de mandato. A CLT é pródiga em regras que dão à empresa um caráter institucional. Essa ideia de empresa como instituição não é

isenta de críticas. Opõe-se a ela a objeção de que o conceito de empresa como instituição pressupõe unidade de propósito e objetivos comuns, quando a prática mostra que há permanente conflito de interesses entre dirigentes e trabalhadores15. A essa restrição opõe-se Magano — e com sobrada razão —, remarcando que posições potencialmente conflitantes das individualidades que compõem a comunidade empresarial não obstam que, num processo dialético de superação, a empresa persiga e alcance objetivos próprios, que não se confundem com os objetivos dos diversos grupos em conflito16. Em suma, o fato de existirem na empresa interesses particulares ocasionalmente em conflito não retira a evidência de que a empresa tem interesse unitário, diverso dos interesses fragmentários que compõem o seu universo de diretores, empregados e colaboradores. Diretor de empresa É fora de dúvida que o empregado eleito diretor da sociedade goza de fidúcia excepcional. Fidúcia provém do latim fiducia, de fidere, confiar, que equivale a confiança, fidelidade, para significar cumprimento pontual, exatidão, exação. No direito romano, a expressão identificava a venda fictícia que se fazia ao credor com a condição de ser desfeita ou de se transferir novamente o bem ao devedor quando este pagasse a dívida por inteiro. Ao credor, chamavam fideicomissário, e ao devedor, fiduciário. A venda provisória, fictícia ou simulada chamava-se fideicomisso. Na acepção corrente, fidúcia significa encargo ou ônus que pesa sobre a propriedade dada em fideicomisso. A expressão conserva a raiz latina de “algo que se dá em confiança de alguém”. Aplicado, o conceito, ao contrato de trabalho, significa que patrão e empregado devem se comportar eticamente em relação à contraparte e a terceiros, respeitando o combinado e, em particular, os deveres não expressos. Quando empregado e patrão contratam um emprego, o que está no alicerce desse comércio jurídico é a confiança mútua. Ambos devem, antes de mais, agir com boa-fé. Embora a fidúcia seja para o direito um valor unitário, a CLT estabelece, a seu modo, pelo menos 2010 MAIO | JUSTIÇA & CIDADANIA 45


quatro tipos de fidúcia, ou para dizer melhor, estabelece quatro graus de fidúcia. Há a confiança genérica, própria de todo e qualquer tipo de contrato de trabalho porque a confiança é a raiz desse negócio, tanto que, esvaída a confiança, rompe-se o contrato mesmo, por justa causa, seja a falta grave praticada pelo empregado, seja pelo patrão. Fala-se, também, em fidúcia específica, que se exige, por exemplo, de certos trabalhadores, como os bancários17. Diz-se, ainda, da fidúcia estrita18, quando a CLT cuida da inexistência de estabilidade no exercício dos cargos de diretoria, gerência ou outros de confiança imediata do empregador. E diz-se, por fim, da fidúcia excepcional, nos casos de gerência de que trata o art.62, II, da CLT19. É esse grau de fidúcia excepcional que equipara o empregado eleito diretor de sociedade empresária ao alto empregado. A CLT não tem disciplina própria para essa classe de trabalhadores que destoam do comum e em muito se aproximam do próprio patronato. A doutrina costuma referir-se aos contratos desses empregados, ou aos empregados eleitos diretores ou órgãos da sociedade empresária, como sujeitos de um contrato misto, isto é, em parte mandato, em parte contrato de trabalho. Quando Galbraith apelida a empresa moderna de tecnoestrutura ou tecnocracia, o que quer significar é exatamente isso: o governo da sociedade empresária não propriamente pelos seus donos, mas por técnicos que detêm um grau de fidúcia extrema que permeia sua relação com a sociedade empresária a ponto de se tornar imperioso lhes emprestar um tratamento jurídico diferenciado, e isso vai além da questão da inexigência do controle de horário, do salário direto e dos fringe benefits, das stock option action, da estabilidade no emprego ou do elevado padrão de vencimentos. Atinge, até mesmo, a questão sindical, como se dá na França com a Féderation des Cadres, ou na Itália, com os Sindacati dei Dirigenti Aziendali, o que é compreensível mesmo para a realidade brasileira porque, para a CLT, e por conta dessa fidúcia especial, esses empregados não mais integrariam a categoria profissional. De fato, o §2º do art. 511 da CLT diz que a categoria profissional é “expressão social elementar” que decorre da similitude de condições de vida oriunda da profissão ou trabalho em comum, em situação de emprego na mesma atividade econômica ou em atividades econômicas similares ou conexas. Ora, se esses empregados passam a deter um tal grau de confiança que os separa da coletividade de empregados e os aproxima do patrão, é claro que romperam a similitude de condições que os punha na mesma “expressão social elementar” que a lei decidiu chamar de “categoria profissional”. Pertencem agora a um outro mundo, e é justo que possam se ajuntar em sindicatos próprios e reivindicar um novo estatuto para os seus direitos, porque nova é a realidade que passam a enfrentar. É certo que há diferenças sutis entre o alto empregado e o empregado eleito diretor da sociedade empresária, mas o tratamento jurídico desejável para ambos é rigorosamente o mesmo. Essa denominação — altos empregados — constou primeiramente na legislação mexicana, mas assim também é na Itália, onde dispõem de estatuto próprio chamado “Legge dell’Impiego Privato”; na França, onde são conhecidos como “employés supérieurs”, e 46 JUSTIÇA & CIDADANIA | MAIO 2010

na Alemanha, onde dispõem de tratamento diferenciado e são conhecidos como “leitende angestellte”20. Para Gomes e Gottschalk, a posição que esses empregados ocupam na corporação, suas aspirações e suas condições especiais de trabalho os empurram mais em direção ao patronato autêntico que propriamente ao trabalhador subordinado, e “formariam na empresa contemporânea uma espécie de ponte ou de amortecedores de choques entre o proletariado e o patronato” 21. A mesma discussão que envolve os ditos altos empregados resvala na questão dos empregados eleitos diretores de sociedades. A doutrina que contesta a existência de contrato de trabalho no caso dos altos empregados também diz que a eleição do empregado a cargo de direção fulmina a subordinação jurídica, núcleo do contrato de emprego, e faz, com isso, desaparecer a figura do empregado. Há nisso uma meia-verdade. É claro que a subordinação jurídica se rarefaz substancialmente quando o empregado é alçado à condição de diretor, mas não desaparece por completo. E se há resquício mínimo que seja de subordinação jurídica, o contrato de trabalho continua existindo, ainda que de modo latente e preso por um fio tênue. Tanto quanto no caso dos altos empregados, há limites éticos, financeiros, corporativos e organizacionais que o empregado eleito diretor não pode desprezar, sob pena de ser desapossado do cargo, ou do mandato, e no fim das contas perder o próprio emprego. Diretor de sociedade anônima Doutrina muito aplaudida sustenta que o empregado eleito diretor ou administrador de uma sociedade anônima — as sociedades anônimas são empresárias por força de lei —, investido de mandato, não pode ser, ao mesmo tempo, empregado, já que como diretor ou administrador passa a ser órgão da administração da sociedade e dentre suas funções está exatamente a de gerir os contratos de emprego, o que o poria na condição de empregado de si mesmo. Para essa corrente, o empregado eleito diretor perde a condição de empregado. Em verdade, um diretor ou administrador de uma sociedade por ações tanto pode ser diretor-órgão quanto diretor-empregado. O que define uma condição ou outra é a forma como seus serviços são prestados. Se, a despeito do rótulo de diretor, trabalhar sob subordinação jurídica e satisfizer os demais pressupostos do art. 3º da CLT, obviamente a relação continuará sendo de emprego. O cargo de diretor, como visto, será apenas um invólucro do contrato de trabalho. No RR nº 412.290/9722, a 3ª Turma do C. TST decidiu que se o empregado eleito diretor se subordina apenas ao conselho administrativo de uma sociedade anônima, é diretor-órgão, e não diretor-empregado23. É um juízo de valor, um critério de aferição, não importa se exato, mas é preciso ponderar que também o diretor contratado originariamente como diretor, e até mesmo os demais sócios de uma sociedade empresária, de uma forma ou de outra também se subordinam aos órgãos da sociedade. O fato de só responder ao conselho administrativo não determina a natureza do seu vínculo com a sociedade empresária. A jurisprudência também já enfrentou a questão sob outro ângulo: se, numa sociedade por ações, o número de ações pertencentes a determinado empregado eleito diretor é determinante da sua condição de diretor-empregado, de


empregado-acionista ou de diretor-órgão. O que se decidiu no caso é que se o sedizente empregado era diretor-superintendente da sociedade empresária, e seu maior acionista, o vínculo de emprego estava definitivamente afastado24. A doutrina correntia aplica ao empregado eleito diretor por assembleia geral de sociedade empresária ora a teoria do mandato ora a teoria de órgão da empresa. Segundo a primeira corrente — teoria do mandato —, o empregado eleito diretor passa a ser mandatário da sociedade. Como o contrato de mandato pode cumular-se com o de emprego, o contrato de trabalho sobrevive à eleição do empregado a cargo de gestão empresarial. A outra corrente — teoria do órgão da empresa —, mais moderna, entende que o empregado eleito diretor passa a ser órgão da sociedade, e não apenas mandatário dela. Neste caso, tendo sido eleito diretor e, pois, órgão da sociedade e responsável pela exteriorização da vontade da sociedade, deixa de ser empregado, deixando de existir o próprio contrato de trabalho porque o empregado eleito diretor não pode ser patrão e empregado ao mesmo tempo. A corrente que admite que o empregado eleito diretor é apenas ocasionalmente investido de um mandato na sociedade também diz, paradoxalmente, que embora o contrato de trabalho sobreviva ao mandato, o trabalhador não terá qualquer direito de empregado, mas apenas as vantagens decorrentes do próprio mandato. É certo, porém, que se o empregado, embora eleito diretor da sociedade, continua subordinado aos dirigentes máximos do empreendimento, não deixa só por isso de ser empregado. Apenas ocupa um cargo de maior relevância. A doutrina e a jurisprudência trabalhistas tratam a questão do empregado eleito diretor sob quatro vertentes. Para alguns, a eleição extingue automaticamente o contrato de trabalho; para outros, suspende-se o contrato de trabalho enquanto o empregado ocupar a função de diretor. Outros dizem que a eleição interrompe o contrato de trabalho enquanto o empregado exercer cargo de diretor. E outros, por fim, dizem que não há qualquer alteração jurídica na vida do empregado eleito diretor de sociedade. Para Mozart Victor Russomano, o contrato de trabalho se extingue por incompatibilidade entre contrato de trabalho e mandato. Ao que diz, o trabalhador que aceita cargo de direção da empresa renuncia à condição de empregado. Terminado o mandato, esse empregado não tem o direito de retomar o cargo de origem porque, ao aceitar o mandato, rescindiu o contrato de trabalho. Délio Maranhão ensinou que o contrato de trabalho estava apenas suspenso, já que durante a gestão da empresa não receberia salário, mas “pro labore”. A única consequência seria que o tempo gasto no exercício do mandato de diretor não se computaria para qualquer fim, mas o empregado podia retomar o cargo de origem tão logo terminasse o mandato. Alice Monteiro de Barros adota a teoria da suspensão do contrato e empresta ao empregado nessas condições o único efeito de contar esse tempo de mandato para cálculo do FGTS, seguindo a orientação do E. 269 do TST e a do art.16 da Lei nº 8.036/9025. Evaristo de Moraes Filho entende haver interrupção do contrato de trabalho, contando-se o tempo gasto como diretor para

todos os fins do contrato de trabalho. Por último, J. Antero de Carvalho entende que a eleição do empregado a cargo de direção da sociedade não tem qualquer reflexo jurídico na sua condição de empregado em sentido estrito. O E. nº 269 do TST diz que a eleição do empregado ao cargo de diretor suspende o contrato de trabalho, não se computando o tempo do mandato para nada, exceto se, mesmo diretor, continuar subordinado a outros diretores, de modo que seja possível aferir a subordinação jurídica que o qualifique como empregado. O art. 16 da Lei nº 8.036/90 (Lei do Fundo de Garantia) permite que a empresa continue depositando FGTS mesmo nos casos do empregado eleito diretor. Terminando o mandato, poderá levantar os depósitos do FGTS. Se abrir mão do mandato antes do tempo, só levantará o FGTS nas hipóteses do art. 4º da Lei nº 6.919/81. NOTAS COELHO, Fábio Ulhoa. “Direito Comercial”. São Paulo: Saraiva, 2002; REQUIÃO, Rubens. “Curso de Direito Comercial”. São Paulo: Saraiva, 2008, 27. ed.; BULGARELLI, Waldirio. “Direito Comercial”. São Paulo: Atlas, 10. ed.; HENTZ, Luiz Antonio Soares. “Direito Comercial Atual — De Acordo com a Teoria da Empresa”. São Paulo: Saraiva. 2000, 3. ed.; CRETELLA JÚNIOR. “Perguntas e Respostas de Direito Comercial”. Rio de Janeiro: Forense, 2. ed. 2 Aristóteles, Lógica. 3 CLT, art. 442 4 GARCIA, Manuel Alonso. “Curso de Derecho del Trabajo”. Barcelona: Ariel, 1987, 10. ed., p. 310 . 5 CLT, art. 2º. 6 TEYSSIÉ, Bernard. “Droit social et modifications des structures de l’entreprise”. Montpellier, Libr. Techniqus, 1978, p. 14. 7 REQUIÃO, Rubens. “Curso de Direito Comercial”. Ed. Saraiva, SP, 2008, 27. ed., 2ª tiragem, p. 59. 8 PERROUX, François. “Capitalisme et communité de travail”. Paris, Sirey, s.d., p. 181. 9 BIENHAYMÉ, A. “La croissance des entreprises”. Paris, Bordas, 1971. 10 NOGARO, Bertrand. “Éléments d’économie politique”. Paris, LGDJ, 1954, p. 14. 11 GALBRAITH, John Keneth. “The New industrial State”. London. Hamish Hamilton, 1968, p. 62/65. 12 MAGANO, Octavio Bueno. “Do Poder Diretivo na Empresa”. Saraiva, SP, 1982, p. 41. 13 DELGADO. Maurício Godinho. “Curso de Direito do Trabalho”. LTr, SP, 4. ed., 2005, p. 390. 14 DURAND, Paul. “Traité de droit du travail”. Paris, Dalloz, 1947, p. 422/423. 15 CATALA, Nicole. “Droit du travail: l’intreprise”. Paris, Dalloz, 1980, p. 148. 16 MAGANO, Octavio Bueno. Op. cit., p. 43. 17 CLT, art. 224. 18 CLT, art. 499. 19 BARROS, Alice Monteiro. “Curso de Direito do Trabalho”. São Paulo: LTr, 2006, p. 250. 20 GOMES, Orlando; GOTTSCHALK, Elson. “Curso de Direito do Trabalho”. Rio de Janeiro: Forense.1995, 4. ed., p. 86/87. 21 Op. cit., p. 87/88. 22 Relatado pelo Ministro José Luiz Vasconcellos e publicado no DJ de 19/5/2000, p. 317. 23 Referido por Alice Monteiro de Barros, op. cit., p. 253 24 Referido por Alice Monteiro de Barros, op. cit., p. 253. 25 Op. cit., p. 254. 1

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Foto: sxc.hu

E m foco

Mudanças à vista na Execução Fiscal

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processo de execução fiscal, um dos mais morosos no País, poderá ganhar nova face caso sejam aprovados quatro projetos de lei em tramitação na Câmara dos Deputados. A expectativa é de que as proposições sejam apreciadas ainda neste ano. No entanto, no que depender da Advocacia, os textos não sairão do papel. Na avaliação da categoria, as propostas ampliam em demasia as atribuições do Fisco no tocante à realização da cobrança tributária. Um dos projetos, que tramita com o número 5.080/09, institui a execução fiscal no âmbito administrativo. As demais proposições dispõem sobre as formas de cobrança da Dívida Ativa (PL 5.081/09), a possibilidade de transação tributária (PL 5.082/09) e a responsabilização de sócios e gestores por eventuais débitos da empresa na qual trabalham (PLP 469/09). Todos os textos são de autoria do Executivo. A posição da Advocacia é endossada pelo jurista Ives Gandra Martins. Em relação ao PL 5.080/09, ele disse à “Revista Justiça & Cidadania” que o texto parte do princípio da legalidade da cobrança prévia. Nesse sentido, institui o Sistema Nacional de Informações Patrimoniais dos Contribuintes — um banco de dados sobre os bens dos devedores, a ser administrado pelo Ministério da Fazenda e atualizado com informações da Secretaria da Receita Federal do Brasil, dentre outros órgãos. 48 JUSTIÇA & CIDADANIA | MAIO 2010

O projeto também prevê a constrição de bens, inclusive de valores depositados em contas bancárias, diretamente pela Fazenda Pública; assim como a realização do ajuizamento da execução fiscal por esse mesmo órgão. Gandra critica a proposta. “Querem fazer tudo no âmbito da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional. Quem pode dizer se determinada cobrança é legal, ou não, é o Judiciário”, afirmou o Jurista, destacando que o projeto não é claro quanto a um eventual ressarcimento ao contribuinte no caso de a cobrança ser declarada ilegal posteriormente. Ele citou como exemplo um imóvel penhorado, cuja avaliação tenha sido de um R$1 milhão, mas vendido por R$300 mil — valor muito abaixo do mercado. Nesse caso, o contribuinte receberá o valor de venda do bem. Já o PL 5.081/99 fixa os mecanismos para a cobrança dos créditos inscritos em Dívida Ativa mediante a regulamentação da prestação de garantias extrajudiciais, da oferta de bens imóveis em pagamento e do parcelamento e pagamento à vista de dívida de pequeno valor. A proposta 5.082/09, por sua vez, visa a estabelecer as regras para a transação tributária. Nesse tocante, o texto prevê quatro hipóteses em que tal medida seria possível: durante o processo judicial; em insolvência civil, recuperação judicial e falência; na


recuperação tributária; ou no âmbito administrativo por adesão. Na avaliação de Gandra, a filosofia da proposta não é ruim, mas a sistemática prevista pode ensejar questionamentos na Justiça. O Jurista explicou que, pelo texto, a transação é conduzida pelo procurador. Acontece que todo ato administrativo deve estar vinculado a uma lei. “Quando cada procurador faz a transação como quiser, isso pode ser contestado no Judiciário”, afirmou. Outro projeto, o de Lei Complementar 469/09, também foi criticado por Gandra. Sob a justificativa de combater a sonegação fiscal, a proposta prevê a responsabilização de sócios e gerentes por débitos de pessoas jurídicas, assim como dos administradores ou gestores, ainda que não sócios, por tributos não pagos pela empresa. Esses dirigentes seriam responsabilizados de maneira subsidiária — ou seja, depois de esgotadas as possibilidades de cobrar o débito das empresas — quando comprovado que não agiram com diligência; autorizaram a venda ou a entrega em garantia de bens da companhia sem as devidas provisões para pagamento de tributos; ou agiram em desacordo com o mandato, o contrato social ou estatuto e em infração à lei. “O PLP aumenta o rol de pessoas que podem ser responsabilizadas, no entanto, algumas delas não têm nada a ver. O projeto leva as pessoas a não quererem gerenciar mais nada”, criticou o Jurista. Os projetos foram elaborados pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, ainda sob o comando de Luís Inácio Lucena Adams — hoje, Advogado-Geral da União. O Ministro buscou trabalhar em conjunto com a Magistratura federal na construção das propostas, ao realizar, à época, audiências públicas sobre as proposições. Ele dialogou com representantes do Conselho da Justiça Federal (CJF) e da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe). Mesmo estando atualmente à frente da Advocacia-Geral da União (AGU), o Ministro continua lutando pela aprovação do projeto. Ele vem participando ativamente de eventos e audiências sobre os projetos de lei, esclarecendo dúvidas e as principais alterações em relação ao sistema atual. Neste ano, Adams voltou ao CJF para explicar os textos já em curso no Legislativo, como também compareceu à reunião no Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, realizada para tratar dessa matéria. Na ocasião, o Presidente nacional da OAB, Ophir Cavalcante, decidiu criar uma comissão para estudar os projetos, depois de vários conselheiros da entidade terem se posicionado totalmente contrários aos textos. A posição inicial dos integrantes da Ordem prevaleceu. No último dia 30 de abril, Cavalcante encaminhou ao Presidente do CJF, Ministro Cesar Asfor Rocha, manifestação no sentido de rejeitar integralmente os quatro projetos de lei. Cavalcante destacou no documento que a entidade tem assento e voz no Conselho, que voltou a apreciar os projetos. E explicou que decidiu rechaçar as proposições porque a entidade as considerou autoritárias e atentatórias aos direitos do cidadão. Atitude parecida já havia tomado a Seção paulista da OAB. Em conjunto com a Confederação Nacional da Indústria, Fecomércio e Associação Comercial de São Paulo, a seccional entregou ao Presidente da Câmara, Michel Temer (PMDB-SP), em fevereiro último, parecer repudiando o conjunto de projetos.

As propostas, de fato, são polêmicas. Adams, no entanto, as justifica. Segundo dados do Ministério da Justiça, as ações de execução fiscal representam 52% do contencioso no Brasil. O número de processos de cobrança em curso no País já teria ultrapassado à casa dos 25 milhões. Além disso, somente os créditos revertidos em dívida ativa em favor do Governo Federal somariam, atualmente, R$890 bilhões. Na justificativa das propostas, o Executivo informa que menos de 20% dos novos processos de execução fiscal distribuídos em cada ano tem a correspondente conclusão nos processos judiciais em curso, o que produz um crescimento geométrico do estoque. Em 2005, a taxa média de encerramento de controvérsias em relação às novas execuções fiscais ajuizadas era inferior a 50% e a taxa de congestionamento médio na primeira instância da Justiça era de 80%. Com essa demanda, a demora não surpreende. No Judiciário, uma ação de cobrança fiscal leva em média 12 anos para ser concluída. Atualmente, os procedimentos estão regulados na Lei 6.830, de 1980. Pela norma, todo processo, desde o seu início, com a citação do contribuinte, até a sua conclusão, com a arrematação dos bens e a satisfação do crédito, tem de ser conduzido por um juiz. “Tal sistemática, pela alta dose de formalidade de que se reveste o processo judicial, apresenta-se como um sistema altamente moroso, caro e de baixa eficiência”, diz a justificativa dos projetos. No âmbito da PGFN, por sua vez, a ação pode levar até quatro anos para ser concluída. Por esse motivo, os quatro projetos de lei visam a fortalecer a cobrança administrativa. Independentemente de serem polêmicos ou mesmo da aprovação deles, no entanto, é consenso entre os próprios membros do Poder Judiciário a necessidade de se retirar da esfera judicial procedimentos de modo a tornar a cobrança mais ágil. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por exemplo, recomendou aos Tribunais de Justiça que editem ato normativo que regulamente a possibilidade de protesto extrajudicial da certidão da Dívida Ativa por parte da Fazenda Pública. A medida foi aprovada em abril, em decorrência de dois pedidos de providência protocolados pelas Corregedorias-Gerais de Justiça do Rio de Janeiro e Goiás que solicitavam alternativas que pudessem “viabilizar a utilização de meios de cobrança que se mostrassem seguros e não dependessem da estrutura do Poder Judiciário”. De certa forma, a medida poderá viabilizar também o cumprimento da Meta 3 do Judiciário, estabelecida pelo Conselho em fevereiro deste ano, que prevê a redução em 20% do acervo de execuções fiscais. Adams destacou a importância de se desburocratizar a execução fiscal, seja com a aprovação dos projetos ou de medidas como a que foi instituída pelo Conselho Nacional de Justiça. “Todos nós somos responsáveis pela dívida pública e sem uma interlocução entre os Poderes, que ainda é difícil, continuaremos repetindo ações que não se interrelacionam e, por consequência, não se efetivam em soluções para esse problema”, disse o Advogado-Geral da União, ao participar de evento recente, promovido pelo CNJ sobre a Meta 3. 2010 MAIO | JUSTIÇA & CIDADANIA 49


A OAB-rj sagra a primeira Mulher advogada no TJERJ Da Redação

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advogada Maria Regina Fonseca Nova Alves tomou posse como desembargadora no último dia 19 de abril, no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, para ocupar a vaga deixada pela aposentadoria de Celso Muniz Guedes Pinto. Ela assumiu o cargo após receber 101 votos no Tribunal de Justiça — enquanto os outros dois indicados, André Melentovytch e Claudia Telles, tiveram 97 e 92 votos, respectivamente —, encabeçando a lista tríplice encaminhada ao Governador do Estado, que ratificou a escolha da Desembargadora para ocupar vaga destinada ao Quinto Constitucional da Advocacia. Em seu discurso de posse, em solenidade realizada no auditório do Órgão Especial, no Fórum Central, a Desem­ bargadora discursou: “Estou aqui, integrando este Tribunal do qual nunca me afastei, ocupando a vaga deixada pelo eminente Desembargador Celso Muniz Guedes Pinto. Neste momento, realizo o meu segundo desejo profissional, surgido há pouco tempo, mas carregado de sentimentos tão intensos quanto aqueles que me levaram a me tornar uma advogada. Inicio o exercício dessa nova e relevante função com o mesmo sentimento e promessa com que iniciei a igualmente respeitável função da Advocacia: com responsabilidade, com suporte nas razões de Direito e com o inafastável sentimento de justiça; e o farei, fiquem certos, com honestidade. Não posso deixar de acrescentar, à natural responsabilidade do exercício dessa nova função, o peso agradável de ser a

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primeira mulher a integrar este Tribunal egressa do Quinto Constitucional designado à Ordem dos Advogados deste Estado, principalmente em relação ao segmento feminino da população”. A Desembargadora Leila Mariano, responsável por dar as boas-vindas à Magistrada, destacou a importância de ser ela a primeira mulher a integrar o TJERJ por meio do instituto do Quinto Constitucional. Segundo a Desembargadora, a participação das mulheres em cargos diretivos na área jurídica ainda é pequena, apesar de elas já representarem 45% das inscrições na Ordem dos Advogados do Brasil e já somarem contingente maior que o dos homens nas diversas faculdades do País. Segundo Leila Mariano, o mesmo problema ocorre nas carreiras públicas, apesar de as mulheres já contarem com amplo acesso por meio do concurso público, chegando até mesmo a ser maioria em algumas delas. Leila Mariano afirmou, ao saudar a nova Desembargadora, que ela terá muito a contribuir no Tribunal de Justiça do Rio. “Tenho a certeza de que Vossa Excelência se sentirá em casa. Isso porque luta, preocupação com o outro e engajamento nas questões sociais fazem parte de seu currículo”. A Desembargadora destacou ainda a carreira da nova colega. “Nossa colega é eclética e atuou em diversos ramos do Direito”, disse. “Vossa Excelência cumprirá, temos certeza, a missão renovadora atribuída ao Quinto Constitucional, injetando em seus julgados sua experiência tão enriquecedora, trazendo para o âmbito das discussões a faticidade; ousando, com sua formação humanista, formular novas propostas. Estamos muito felizes em recebê-la, Desembargadora Maria Regina Nova, e falo em nome do Tribunal e de toda a Magistratura deste Estado”, afirmou. A cerimônia de posse foi presidida pelo Presidente do TJERJ, Desembargador Luiz Zveiter, que destacou a escolha da nova Desembargadora. “Na posse passada, comentei que talvez tenha sido um privilegiado, que Deus talvez esteja me dando mais do que eu mereça. Hoje tenho a certeza de que, efetivamente, Ele o faz. Digo isso porque, como judeu, tive a oportunidade de dar posse a um Procurador negro, o Dr. Paulo Rangel. Hoje, também com esse privilégio, dou posse à primeira mulher indicada pela OAB/RJ. Vossa Excelência tenha certeza de que vem integrar um Tribunal onde os membros são comprometidos com a ética, o humanismo e o exercício da judicatura mais próximo possível de uma realidade que possa atender aos anseios da população”, afirmou.


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