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2 • JUSTIÇA & CIDADANIA • FEVEREIRO 2008
EDIÇÃO 91 • fEvErEIrO DE 2008
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nUVEnS cinZEntAS
A rESPonSABiLiDA Do ADVoGADo
Foto de capa: Sandra Fado / STJ
orPHEU SAntoS SALLES
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EDITOR tiAGo SAntoS SALLES DIRETOR EXECUTIVO
PrEViDÊnciA SociAL PArA toDoS
32 o MiniStro LUPi tEM rAZÃo
DAViD riBEiro SAntoS SALLES SECRETÁRIO DE REDAÇÃO EricA BrAnco SECRETÁRIA DE REDAÇÃO
conSELHo EDitoriAL ALVAro MAirink DA coStA AnDrÉ fontES Antonio cArLoS MArtinS SoArES
tAÍS cAVALcAnti
Antônio SoUZA PrUDEntE
REVISÃO
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DioGo toMAZ E MAUrÍcio frEDErico DIAGRAMAÇÃO
AUrÉLio wAnDEr BAStoS BErnArDo cABrAL cArLoS Antônio nAVEGA
VinÍciUS GonÇALVES
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SUMário DESPrEZo E DESPErDÍcio DA cULtUrA JUrÍDicA APoSEntADoriA Do MiniStro frAnciSco PEÇAnHA MArtinS
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DiScUrSo DE DESPEDiDA
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APoSEntADoriA Do MiniStro frAnciSco PEÇAnHA MArtinS
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JUDiciário E criME orGAniZADo: SEqÜEStro
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A SúMULA iMPEDitiVA DE rEcUrSoS coMo SoLUÇÃo PArA A cELEriDADE E EfEtiViDADE Do ProcESSo
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coMEntárioS à LEi nº 8.987/95
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o MiniStro LUPi tEM rAZÃo
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o ASSASSinAto DE JAnGo E A conSPirAÇÃo iMPUnE
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EnSino JUrÍDico no BrASiL: AnáLiSE à LUZ DA fiLoSofiA EDUcAcionAL DE PAULo frEirE
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ProBLEMAS DA MoDErniDADE: o Lixo ELEtrônico DA intErnEt – spam
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fAMÍLiA, SociEDADE E JUStiÇA
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A rEDUÇÃo DAS PEnAS nA noVA LEi DE DroGAS
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ESPErA, ESPErAnÇA
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SErGio cAVALiEri fiLHo SyLVio cAPAnEMA DE SoUZA tHiAGo riBAS fiLHo
SALVADor frEDErico DiniZ GonÇALVES RUA BARÃO DE ITAPUÃ, 60 CONJ. 301
2008 FEVEREIRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 3
EDITORIAL
Foto: STJ
4 • JUSTIÇA & CIDADANIA • FEVEREIRO 2008
DESPREZO E DESPERDÍCIO DA CULTURA JURÍDICA
APOSENTADORIA DO MINISTRO frAnciSco PEÇAnHA MArtinS
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uando se discutia no Congresso Nacional a Emenda da Reforma do Judiciário, em 2002, a qual emprestamos efetivo apoio, divulgação e proselitismo pessoal aos membros das Casas Legislativas, em certa ocasião, após o encerramento da Sessão do Senado, abordei o então Presidente Senador Antonio Carlos Magalhães pedindo o seu apoio para o dispositivo que prorrogava a idade da aposentadoria compulsória dos magistrados para 75 anos. Olhando nos meus olhos, fez-me a pergunta: “Dême apenas uma razão para que eu apóie essa Emenda”. Incontinente, respondi: “A melhor razão que posso dar é o senhor próprio, que tendo ultrapassado os 70 anos continua liderando com grande capacidade, talento e perspicácia o Congresso Nacional”, ao que respondeu: “É uma boa razão para apoiar, mas quero lhe dizer que será difícil passar essa Emenda porque o lobby que os juízes estão fazendo junto aos deputados e senadores é muito grande”. O Senador tinha razão: a Emenda foi recusada na Câmara dos Deputados e no Senado, e a ceifa das grandes culturas jurídicas continua até hoje. É uma lástima e um lamentável desserviço como os legisladores trataram do assunto, o que tem motivado o afastamento de grandes juristas dos tribunais, com reais prejuízos para a Justiça, os jurisdicionados e o erário – que continua arcando com o pagamento dos salários dos magistrados aposentados, que recebem os seus proventos sem trabalhar. Quando se pensa que eméritos juristas, reconhecidamente capazes, lúcidos e em pleno vigor físico, são afastados da magistratura e também da cátedra por terem atingido a idade de 70 anos, chega-se a reconhecer, infelizmente, que o General de Gaulle estava pleno de razão quando proferiu a frase infamante e contundente que mexeu com os nossos brios patrióticos: “O Brasil não é um país sério.” As perdas sofridas em todos os juízos e tribunais constituem um absurdo e um crime contra a cultura jurídica
do país, que vem assistindo atônita à expulsão do Judiciário de grandes vultos de renome, inclusive internacional, como, apenas para exemplificar, José Carlos Moreira Alves, José Nery da Silveira, Sidney Sanches, Ilmar Galvão, Carlos Mário Velloso, José Sepúlveda Pertence, que dignificavam com suas inteligências e culturas a nossa Corte maior. O prejuízo irreparável ocorrido em todos os tribunais do país, com a aposentadoria de magistrados durante o ano de 2007, é de assustar devido ao desperdício de inteligência, cultura e experiência adquirida na longa e produtiva judicatura exercida. Agora, neste mês de fevereiro, despedese do Superior Tribunal de Justiça, compulsoriamente, mais um dos grandes e consagrados vultos do Judiciário brasileiro, seja pela aprimorada cultura ou pelo conceito e dedicação que o Ministro Peçanha Martins dedicou à causa pública. A homenagem que prestamos ao insigne Magistrado que se afasta da alta Corte do Superior Tribunal de Justiça, publicando sua foto na capa e seu discurso de despedida – com respaldo absoluto dos membros do Conselho Editorial ao seu ilustre e digno companheiro, que tem enriquecido a Revista com seus magníficos artigos e matérias –, reflete a estima e admiração granjeada pela afável convivência demonstrativa da amizade com que cumulou seus cativos admiradores. O Ministro FRANCISCO PEÇANHA MARTINS honrou e dignificou a Magistratura e o Superior Tribunal de Justiça. Sai engalanado pelos trabalhos realizados e com MISSÃO CUMPRIDA!
orpheu Santos Salles Editor 2008 FEVEREIRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 5
DiScUrSo DE DESPEDIDA Ministro Francisco Peçanha Martins Vice-Presidente do STJ
E
ncerra-se mais uma etapa na trajetória de vida escolhida por vocação despertada desde a infância, influenciada pelo exemplo de vida de meu pai. Nascido em 14 de fevereiro de 1938, vigente a Ditadura Vargas e quando se iniciava a 2a Grande Guerra, entusiasmava-me a defesa da democracia feita pelo então jovem e brilhante advogado e político Álvaro Peçanha Martins, ruísta devotado e apreciador da poesia, sobretudo da libertária do grande vate Castro Alves, cujos poemas recitava com dotes de declamador. Muito próximo de mim, cultor da boa literatura, o meu avô materno, o único que conheci, Edilberto Augusto de Castro, cujo carinho e dedicação ao então primeiro e único neto estabeleceu convivência amorosa e sumamente proveitosa ao infante, que se deliciava com as histórias do Tico-Tico, revista infantil mensalmente presenteada – base para conversas educativas mantidas nos bancos de jardim do Largo Dois de Julho, em Salvador onde morávamos. Recordo, com saudade, o aprendizado, com ele, do poema “Pássaro Cativo”, de Olavo Bilac, que recitei no aniversário de meu pai. Tendo aprendido cedo a ler, habituei-me à leitura do jornal “A Tarde”, cujos temas principais eram a guerra contra o cruel nazi-facismo e a constante defesa da democracia em oposição às ditaduras. Nesse ambiente familiar, adoçado por minha mãe, fui conduzido à Escola das Mercês, célebre colégio mantido pelas freiras ursulinas que, em regime de exceção, mantinham escola primária para meninos. Tive como professora a inesquecível madre Sacré Coeur, gorda, bonachona, que nos ensinava tudo, desde religião à matemática. Ditado, todo dia e toda semana, narração, descrição e dissertação. Aprendi bastante com ela, inclusive civismo e patriotismo, pois éramos cantores dos hinos e das marchas militares, e aprendíamos sobre grandes vultos da história. 6 • JUSTIÇA & CIDADANIA • FEVEREIRO 2008
“NESSE AMBIENTE FAMILIAR, ADOÇADO POR MINHA MÃE, FUI CONDUZIDO à ESCOLA DAS MERCêS, CéLEBRE COLéGIO MANTIDO PELAS FREIRAS URSULINAS QUE, EM REGIME DE EXCEÇÃO, MANTINHAM ESCOLA PRIMÁRIA PARA MENINOS.” Tais circunstâncias forjaram a vocação para o Direito e a Política. Não tive dúvida ao transferir-me dos Maristas, onde cursei o ginásio, para o Colégio Sophia Costa Pinto, só e só porque, neste, havia o curso clássico que aquele não mantinha. Ingressando na Faculdade de Direito da Bahia, passei a militar na política universitária, no grupo da esquerda democrática, defensora intransigente dos interesses nacionais. As campanhas do “Petróleo é nosso”, criação da Eletrobrás, apoio à indústria nacional, reforma universitária e, sobretudo, a defesa das liberdades públicas, empolgavam. Fiz, então, muitos amigos que mantenho, cujas amizades guardo como a riqueza conquistada. Abraçando a advocacia, continuei servindo à Democracia, participando intensamente da defesa das liberdades públicas no Conselho Seccional da OAB/BA e, por último, no Conselho Federal.
Foto: xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx
Foto: Luis Antonio / SCO/STJ 2008 FEVEREIRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 7
“O FIZ SEM RECEIOS, CONFIANTE NA ATENÇÃO DOS COLEGAS PARA CORRIGIR EVENTUAIS EQUÍVOCOS NA APLICAÇÃO DO DIREITO AOS RECURSOS JULGADOS. POLEMIZEI, DEFENDI OPINIÃO, SEMPRE MOVIDO PELO IDEAL DE FAZER JUSTIÇA.”
O fato é que, após mais de trinta anos de exercício ininterrupto da advocacia, por instância da eminente magistrada Cristina Peduzzi, inscrevi-me para disputar a indicação de meu nome na lista sêxtupla da OAB destinada a preencher a primeira vaga do quinto reservado à nobre classe neste STJ, nos termos da Constituição Cidadã. Indicado, em lista tríplice por este colendo Tribunal, fui escolhido pelo Executivo e tomei posse no cargo de Ministro do STJ em 5.02.1991. Nos primeiros meses de exercício, procurei observar como procediam os meus colegas da 2a Turma – Américo Luz, Pádua Ribeiro, Ilmar Galvão, Hélio Mossiman –, todos magistrados experientes, aos quais pedi que tivessem tolerância com a veemência na defesa de opiniões pelo velho advogado, socorrido, em algumas oportunidades de ousadia divergente, com a solidariedade do jovem sub-procurador da República, Antônio Fernando Barros e Silva de Souza. Mas não foi difícil a adaptação à nova função. É que o advogado, no seu ministério, é o primeiro juiz da causa. E sábia é a Constituição quando impõe a sua presença na composição dos Tribunais para oxigenar a jurisprudência, por natureza conservadora. E este Tribunal vem inovando a jurisprudência infraconstitucional e me orgulho de dele participar. Foi agradável e proveitoso julgar nesta augusta Casa da Justiça. Aprendi julgando. Aprimorei o senso crítico, estudei com afinco, aplicando, como julgador, as lições de Ruy Barbosa e de meu pai, Ministro aposentado do TFR, também oriundo da advocacia – “Não tenha medo de si mesmo. Decida de acordo com a sua consciência e com coragem cívica, atendendo aos juramentos feitos na OAB e na sua posse”. Com tais lições, procurei desempenhar a nobre, e hoje estafante, missão de julgar. O fiz sem receios, confiante na atenção dos colegas para corrigir eventuais equívocos 8 • JUSTIÇA & CIDADANIA • FEVEREIRO 2008
na aplicação do Direito aos recursos julgados. Polemizei, defendi opinião, sempre movido pelo ideal de fazer justiça. Foi agradável discutir e o fizemos, dentro dos limites da boa educação, calcada no respeito e na confiança. Tenho por melhor o julgamento colegiado. Conquista relevante da humanidade, o princípio da colegialidade do juízo ad quem é regra consagrada no Direito das nações civilizadas. “A prioridade do exame múltiplo, ao mesmo tempo em relação ao exame de um só, se transforma em superioridade sempre que desejamos maior certeza”, como leciona Pontes de Miranda (Comentários ao CPC, Tomo VII, pág. 11, 1a ed. Forense). A colegialidade das decisões aguça e amplia a reflexão. Continuo defendendo o princípio, e o faço com o amparo do exemplo italiano que, como me alertou o saudoso Franciulli, alterou o art. 350 do “Códice di Procedura Civile”, que atribuía uma série de atividades ao instrutor em grau de apelação e foi revogado pela Reforma de 1990 (Lei nº 353, de 26.11.90, vigente a partir de 1º de maio de 1994), para adotar-se a opção pela “rigorosa colegialitá del processo d’appello in ogni sua fose”, suprimindo a figura “ del giudice istruttore”, como leciona Giuseppe Forzin, in “Lincamenti del nuovo processo civile de cognizione” (Milão. Griffrê, 1966, n. 63, p. 249). Julgamento pessoal, só nas decisões liminares. Discutindo com os meus pares – aos quais agradeço pelas lições recebidas e tolerância com as opiniões discordantes –, aprimoramos, juntos, as decisões. Tenho-os a todos como amigos e ficarei com as minhas saudades, nas quais se incluirão as sessões de julgamento. Gostava delas, sobretudo aquelas em que se manifestava a polêmica, a que nunca me furtei. Servi à causa da Justiça com alegria, gostando do exercício da nobilitante função de julgar. Procurei fazê-lo da melhor
forma, sempre com independência e coragem cívica. Encerro, pois, esta jornada com a tranqüilidade de ter feito o que podia, com as forças do saber adquirido com os meus professores, autores, advogados e com Vossas Excelências, nos dias vividos nesta augusta Casa, crendo que possa me apresentar à minha querida mãe com a certeza do dever cumprido. Tudo o que fiz, assinalo, contou com a ajuda inestimável do funcionalismo, sobretudo dos homens e mulheres que trabalham nos meus gabinetes, excepcionais colaboradores na tarefa estafante de julgar os milhares de recursos requeridos pelos cidadãos e pelo Estado, sequiosos de justiça. A eles procurei servir participando do Conselho do Pró-Ser. Pena que não tenha sido possível construir e instalar a creche e a escola primária para os filhos dos funcionários e estender o exitoso sistema de saúde à toda Justiça Federal. A todos agradeço, e aos assessores e auxiliares dos gabinetes, estendo um abraço amigo, confiante de que poderei desfrutar da amizade de todos ao longo da vida.
Aos senhores Ministros, agradeço o convívio, as lições recebidas, e peço que relevem alguma possível falha cometida nestes longos e agradáveis anos de permanência sob a toga negra. Vestindo-a, continuei defendendo o tema acalentado na juventude – Justiça para todos. Despeço-me hoje, com saudades, dos julgamentos nesta colenda Corte. Mas continuarei servindo à causa da Justiça, na advocacia, esperando poder visitar os seus gabinetes para postular legítimos interesses dos clientes que me outorgarem mandatos tão logo se encerre a injustificável quarentena. Preservarei, contudo, a amizade, estando a todos abertas as portas de minha casa, como estará sempre aberto o meu coração quando puder estreitá-los num abraço. Naveguei e tenho sido feliz graças a Deus e ao apoio de uma família amorável constituída com Clara e os nossos filhos, Luciana, Álvaro, e Lívia, minha nora, acrescida dos queridos netos – Pedro, Lucas e Júlia, que adoçam o existir. Muito obrigado.
Foto: Luis Antonio / SCO/STJ Ministro Peçanha Martins ao fundo 2008 FEVEREIRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 9
APoSEntADoriA Do MiniStro FRANCISCO PEÇANHA MARTINS Foto: Luis Antonio / SCO/STJ
Nilson Naves Ministro do STJ
Da esquerda: Ministro Humberto Gomes de Barros e Ministro Nilson Naves
P
ediram-me palavras; não me escusei, jamais me escusaria tratando-se de Peçanha Martins: que colega de trabalho diário entre livros e processos (fadiga de afazeres sob o sol)! Que amigo de todas as horas! Amigo não é coisa que se despreze, escreveu Machado, acolhese como presente dos deuses. Tempo, ó! tempo, aquele que foi, aquele que é: o tempo de antes, o tempo de após. Foi o Federal de Recursos, é o Superior Tribunal, sem que este tenha sucedido aquele, mas daquele recebeu a inicial composição, e os aposentados do Federal tornaram-se aposentados do Superior. Houve e há, entre os dois Tribunais, união: “Geração-que-vai e geraçãoque-vem / e a terra durando para sempre”. De eternidade à eternidade, esse tem sido o destino de todos os homens, foi sempre assim, e foi assim que, um dia – vão-se alguns anos – o grande José Cândido (também baiano, ainda que por adoção), falando sobre Peçanha, o velho, escreveu: “O Tribunal Federal de Recursos passou a ser motivo da sua própria existência. Enamorou-se perdidamente pela nova Capital. Quem o ouvia nas suas repetidas
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manifestações de estima por Brasília, e até em seus protestos contra a sua volta à terra natal, haveria de pensar que ele perdera o amor pelas coisas da Bahia. Não chegava a tanto... (...) Ruy Barbosa foi a outra grande fonte de inspiração de liberdade. (...) É, assim, nosso homenageado: um homem em luta permanente pela reafirmação de suas origens de democrata e liberal.” Creio, e foi nisso que me pus a pensar quando escrevia estas palavras, que muito se regozijaria o Peçanha pai, que tanta história fez, em assistir a este momento, a meu ver, de missão cumprida. Do pai havendo herdado o nome, o caráter e os prodígios, o filho seguiria a mesma trajetória. Fiquei até a imaginar se essa paixão pela Justiça e pelo Direito, também pelo excelso Ruy e por aquela plantinha tenra que se denomina Democracia, estaria no sangue ou, usando eu palavras cheias de religiosidade, teria sido transferida como
se sacerdócio fosse. Seja lá o que for, um coisa é certa: filho de pai que foi poderoso juiz, não poderia ser diferente − tal pai, tal filho. Senhoras e Senhores, hoje quem nos deixa, deixando amanhã o Superior Tribunal, é o Peçanha filho, e, nesta despedida, não é intento meu referir as obras pretéritas do amigo nem de sua carreira as etapas. Haverá oportunidade para isso brevemente. Quero apenas expressar − o que entendo seja por unanimidade (vejam o semblante dos colegas e dos amigos) − o reconhecimento de todos nós pelo trabalho sério e profícuo que, ao longo dos últimos dezessete anos, desenvolveu no Superior Tribunal – valioso serviço prestado à Justiça e em defesa do jurisdicionado, a quem gostaria de dar voz em meu texto. Que diria o jurisdicionado? Não foi Peçanha um eterno inconformado com as alterações do Código de Processo Civil, entre elas, a que transformou o ato judicial, aquele coletivo, em ato unipessoal? Reforma inconstitucional, no seu dizer, da qual resultou mudança − tal sempre foi a sua convicção − que, ao invés de beneficiar os litigantes, poderia prejudicarlhes o direito. Sua, também, a preocupação com o crime de hermenêutica − seria o juiz responsável penalmente, à conta das rebeldias da sua consciência? Questões tais e tantas e tantas outras sempre lhe instigaram o zelo pela proteção das liberdades individuais. Todos bem conhecemos a seriedade com que, de maneira intangível, Peçanha, dia após dia, interpretou a lei e, aqui no Superior Tribunal, aplicou o Direito. Agora vai a outras jornadas, e a outros afazeres, e a outros combates; ficamos com sua judicatura, com suas idéias e reflexões, tudo de um magistrado – perdoem-me o modo de dizer – fora de série, de um juiz perfeito, por que não dizer mais que perfeito? Pensando fico eu com meus botões e logo me surgem algumas perguntas: se pudesse voltar aos tempos de infância − àqueles em que brincava nas ruas, de sonhos, de descobertas − e viver outra vez os anos de sua vida até aqui, que escolhas Peçanha faria? Tentaria ser menos perfeito? Trataria de cometer erros que nele desconhecemos? Será que levaria menos coisas a sério? Viajaria mais? Tomaria mais sorvete? Começaria a andar descalço no começo da primavera e assim continuaria até o fim do outono? E, aí, Peçanha, o que você faria? Nem precisa responder: conhecendo bem sua coerência interior, seu senso de justiça e expressivo amor pelo trabalho, sei que algumas coisas não seriam diferentes, sobretudo porque o que sempre o empolgou foi a tranqüilidade de consciência. A mim me parece, pois, que distância alguma haveria entre o Peçanha que é e aquele que poderia ser. Sei que a vida vai, ela não volta, porque vivemos para adiante... E nossa história vai tomando contornos outros em papéis novos, mas a verdade é uma só: nunca deixaremos de ser quem realmente fomos e somos, ainda que tendo mais tempo para sorvetes, e para aquele peixe naquele restaurante simples à beira-mar, e caminhadas, e primaveras, e outonos... Porque, se não sabem, disso também é feita a vida! Seja, como sempre o foi, feliz, muito feliz, Peçanha!
“CREIO, E FOI NISSO QUE ME PUS A PENSAR QUANDO ESCREVIA ESTAS PALAVRAS, QUE MUITO SE REGOZIJARIA O PEÇANHA PAI, QUE TANTA HISTóRIA FEZ, EM ASSISTIR A ESTE MOMENTO, A MEU VER, DE MISSÃO CUMPRIDA.”
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nUVEnS cinZEntAS Antonio Oliveira Santos Presidente da Confederação Nacional do Comércio
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uem acompanha, na imprensa diária, os comentários dos especialistas, cada vez mais se convence que o longo ciclo de prosperidade econômica mundial, iniciado há 15 anos, após a Crise Asiática, está sinalizando uma perda de dinamismo e, possivelmente, caminhando para uma recessão. A partir de 1990 e, mais fortemente, a partir de 2000, a espetacular entrada da China no mercado mundial evitou uma recessão generalizada. Cresceu acentuadamente o comércio internacional, subiram os preços do petróleo, das matérias primas (celulose, minério de ferro, metais) e das commodities de alimentação (soja, milho, trigo), gerando riquezas inesperadas nos países emergentes da Ásia, do Oriente Médio e da América Latina. A recessão nos Estados Unidos foi adiada, viabilizando o financiamento externo dos mega-déficits orçamentário e do balanço de pagamentos. O Brasil foi muito beneficiado por esse boom econômico, embora não tenha aproveitado integralmente todas as oportunidades, crescendo a taxas que representam apenas metade das que alcançaram outros países. O ano de 2007 vai coroar, no Brasil, os efeitos dessa expansão e o PIB nacional deverá registrar um crescimento superior a 5%, encerrando o longo período de recessão e de crescimento médio abaixo de 2,5% nos últimos 25 anos. Três forças ajudaram essa expansão: o notável crescimento de nossas exportações – mais em valor do que em volume 12 • JUSTIÇA & CIDADANIA • FEVEREIRO 2008
–, a retomada do ingresso de investimentos estrangeiros e a expansão do crédito interno, seja no setor bancário, seja no setor comercial. De outro lado, não houve um aproveitamento total das oportunidades, face aos equívocos cometidos na política monetária e cambial, ao mesmo tempo em que a política fiscal perdeu o rumo e enveredou por um crescimento continuado dos gastos públicos, acompanhado de uma crônica escalada da carga tributária. O Estado arrebanha, hoje, mais de 36% do PIB nacional, contra 27% há dez anos, exibindo uma expansão preocupante de cerca de 1% anualmente, assim empurrando a taxa de juros, o déficit orçamentário e a dívida pública interna para níveis de difícil administração. Talvez uma boa sugestão ao Governo, que tanto deseja a prosperidade do Brasil, seria lembrar-lhe o sucesso do republicano Presidente Ronald Reagan, que salvou a economia dos Estados Unidos na crise dos anos 80, com a campanha “O Estado não é a solução, é o problema”, e venceu a Guerra Fria com uma política de corte de gastos e redução de impostos para incentivar a produção e os investimentos. A economia brasileira está caminhando ao sabor dos bons ventos que sopram do exterior. Quousque tandem? Até quando, ninguém sabe. Oxalá o ano de 2007 tenha sido o marco inicial de um processo sustentado de crescimento econômico e geração de emprego.
Foto: Arquivo JC
Nota do Editor O excelente artigo do engenheiro Antonio Oliveira Santos, líder do empresariado nacional e dirigente maior da Confederação Nacional do Comércio, transcende pela oportunidade do tema enfocado, demonstrando numericamente o escorchamento que o Estado impõe à sociedade, com risco iminente da elevação do déficit orçamentário, em um previsível e galopante crescimento da dívida pública interna, elevando-a a um patamar de resgate impagável. Entretanto, e apesar das críticas que faz, o texto é um otimista do amanhã, baseado nos resultados que apresenta de crescimento econômico e geração de empregos, colhidos pelo Brasil no ano de 2007. O articulista, cuja formação profissional remonta a 1948, após ter sido diplomado engenheiro civil e elétrico pela Escola Nacional de Engenharia, passou a colaborar na instalação da Cia. Siderúrgica Nacional, em Volta Redonda, tendo, posteriormente, ocupado cargos de engenheiro e diretor da Cia. Ferro e Aço de Vitória, e superintendente da Estrada de Ferro Vitória-Minas, da Cia. Vale do Rio Doce. Foi também Professor Titular de Física da Universidade Federal do Espírito Santo e membro do Conselho Monetário Nacional. Desde 1974, acumula atividades no ramo do comércio atacadista e varejista de materiais de construção, exercendo, a partir de 1980, a Presidência da Confederação Nacional do Comércio e dos Conselhos Nacionais do SESC e SENAC, sendo considerado um dos mais importantes e conceituados empresários, constantemente ouvido pelos órgãos da administração pública sobre problemas e questões de interesse nacional.
2008 FEVEREIRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 13
Foto: Arquivo JC
A rESPonSABiLiDADE rESPonSABiLiDADE Do ADVoGADo Sérgio Cavalieri Filho Desembargador do TJ/RJ
O duplo aspecto da responsabilidade do advogado Advocacia, dada a relevância do seu papel social, foi colocada na Constituição entre as funções essenciais da Justiça, ao lado do Ministério Público e da Defensoria Pública. Para proporcionar ao advogado as condições necessárias ao pleno exercício de sua profissão, com liberdade, independência e sem receio de desagradar a quem quer que seja, a Constituição (art. 133) lhe assegura inviolabilidade por seus atos e manifestações, nos limites da lei. Mas, em contrapartida, deve responder pelos seus atos quando violadores de deveres profissionais. A responsabilidade do advogado deve ser examinada sob duplo aspecto: em relação ao cliente e em relação a terceiros.
A
Responsabilidade em relação ao cliente No primeiro caso, a responsabilidade do advogado é contratual, salvo quando atua com vínculo empregatício (advogado de empresa) ou como Defensor Público e Procurador de entidades públicas (Estado, Município, autarquia, advogado da União, etc.) – casos em que, pelos danos causados, responderá à pessoa jurídica de Direito Público ou Privado em nome da qual atua. Não é obrigado o advogado aceitar o patrocínio de uma causa, mas, se firmar contrato com o cliente, assume obrigação de meio e não de resultado, já que não se compromete a ganhá-la nem a absolver o acusado. A obrigação é defendê-lo com o máximo de atenção, diligência e técnica, sem qualquer responsabilidade pelo sucesso ou insucesso da causa. 14 • JUSTIÇA & CIDADANIA • FEVEREIRO 2008
No exercício do seu mister, o advogado, não há dúvida, é um prestador de serviços aos seus clientes, pelo que se submete também aos princípios do Código do Consumidor, principalmente o da boa-fé (objetiva), da informação, da transparência e do sigilo profissional. O dever de informar Na verdade, o direito à informação está no elenco dos direitos básicos do consumidor: “Informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, bem como sobre os riscos que apresentam” (art. 6o, III, do CDC). A informação tem por finalidade dotar o cliente de elementos objetivos de realidade que lhe permitam dar, ou não, o consentimento. É o chamado consentimento informado, considerado, hoje, pedra angular no relacionamento do advogado com o seu cliente. Se o direito à informação é direito básico do consumidor (cliente), em contrapartida, o dever de informar é também um dos principais deveres do prestador de serviços – dever este, corolário do princípio da boa-fé objetiva, que se traduz na cooperação, na lealdade, na transparência, na correção, na probidade e na confiança que devem existir nas relações advogado/cliente. A informação deve ser completa, verdadeira e adequada, pois somente esta permite o consentimento informado. Deve, por isso, o advogado prestar ao cliente aconselhamento jurídico cuidadoso, informá-lo dos riscos da causa e de tudo mais que for necessário para o seu bom andamento e guardar segredo sobre fatos de que tenha tomado conhecimento no exercício de sua atividade profissional.
“SABE-SE QUE O ADVOGADO DEVE SE EMPENHAR NA DEFESA DOS DIREITOS E INTERESSES DO CLIENTE. TODAVIA, ESSA ATUAÇÃO DEVE SER éTICA E RESPONSÁVEL, PAUTADA E LIMITADA PELOS VALORES CONSAGRADOS EM NOSSO ORDENAMENTO JURÍDICO.”
Responsabilidade subjetiva do advogado Quando atua com autonomia e sem subordinação (por contra própria), o advogado é um profissional liberal e, como tal, tem responsabilidade subjetiva. Em seu sistema de responsabilidade objetiva, o Código do Consumidor abriu exceção em favor dos profissionais liberais em seu art. 14, § 4o: “A responsabilidade em favor dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa”. Vale dizer que, os profissionais liberais, embora prestadores de serviço, respondem subjetivamente. No mais, como já ressaltado, submetem-se aos princípios do CDC. Embora contratual, não há presunção de culpa nessa espécie de responsabilidade, o que importa dizer que a culpa do advogado terá que ser provada. O cliente só poderá responsabilizá-lo pelo insucesso da demanda provando ter ele obrado com dolo ou culpa. A Lei no 8.906, de 04 de julho de 1994 (Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil), em seu art. 32, é também expressa nesse sentido. Via de regra, a responsabilização do advogado tem lugar quando a sua atuação provoca sanção para o cliente por litigância de má-fé, tal como previsto nos arts. 16-18 do CPC – “deduz pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso; altera a verdade dos fatos; opõe resistência injustificada ao andamento do processo; provoca incidente manifestamente protelatório”. É sabido que a imunidade profissional do advogado não é absoluta. Também ela se sujeita a freios ético-jurídicos encontrados em nosso ordenamento positivo. Sobre o ponto, mister a transcrição da primorosa observação do eminente
Desembargador e Professor Cândido Rangel Dinamarco, in litteris: “Seria indecente imunizar os advogados não só às sanções referentes aos atos desleais e ilícitos, como também aos próprios deveres éticos inerentes ao processo; se todos têm o dever de proceder no processo com lealdade e boa-fé, de expor fatos em juízo conforme a verdade, (...) chegaria a ser inconstitucional dispensálos de toda essa carga ética, ou de parte dela, somente em nome de uma independência funcional.” (in “A Reforma da Reforma”, 3a ed., São Paulo: Malheiros, 2002, p. 68) Com efeito, a observância dos deveres ético-processuais por todos os sujeitos participantes do processo é um imperativo do devido processo legal e do acesso à ordem jurídica justa (CF, art. 5o, XXXV, LIV, LV, LXXVIII), consectários necessários de um Estado Democrático de Direito (CF, art. 1o, caput). Sabe-se que o advogado deve se empenhar na defesa dos direitos e interesses do cliente. Todavia, essa atuação deve ser ética e responsável, pautada e limitada pelos valores consagrados em nosso ordenamento jurídico. Sua conduta funcional estriba-se na Lei e na Moral. O desvio desse parâmetro valorativo implicará abuso da conduta. O dever de lealdade excede o âmbito processual, alcançando as relações da vida em sociedade. Não se trata de mera exortação moral, mas verdadeira norma jurídica, dotada, pois, de coercitividade. É regra de observância obrigatória por todos – Estado e indivíduos, cuja violação enseja a respectiva sanção. 2008 FEVEREIRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 15
“O ADVOGADO, PRINCIPALMENTE QUANDO ZELOSO DO SEU BOM NOME, NÃO PODE SER OBRIGADO A INTERPOR UM RECURSO MANIFESTAMENTE INCABÍVEL.”
A perda de uma chance Mais comuns, tal como em relação aos médicos, são os casos de responsabilização do advogado por culpa grave decorrente de erros grosseiros – de fato ou de direito – e omissão negligente no desempenho do mandato, como, por exemplo, perder o prazo para contestar, para recorrer, para fazer o preparo do recurso ou pleitear alguma diligência importante. Aplica-se aqui, com justeza, a teoria da “perda de uma chance”, desenvolvida pela doutrina francesa para aquelas situações em que o ato ilícito tira da vítima a oportunidade de obter uma situação futura melhor. Caracteriza-se essa perda de uma chance quando, em virtude da conduta de outrem, desaparece a probabilidade de um evento que possibilita um benefício futuro para a vítima, como deixar de obter uma sentença favorável pela omissão do advogado. O Direito Pátrio, onde a teoria vem encontrando ampla aceitação, enfatiza que a “reparação da perda de uma chance repousa em uma probabilidade e uma certeza; que a chance seria realizada e que a vantagem perdida resultaria em prejuízo” (Caio Mário, “Responsabilidade Civil”, 9a ed.Forense, p.42). É preciso, portanto, que se trate de uma chance séria e real, que proporcione ao lesado efetivas condições pessoais de concorrer à situação futura favorável. Tudo deverá ser pautado pelo princípio da razoabilidade. Em suma, a chance perdida reparável deverá caracterizar um prejuízo material ou imaterial resultante de fato consumado, não hipotético. A indenização, por sua vez, deverá ser pela chance perdida, pela perda da possibilidade de auferir alguma vantagem, e não pela perda da própria vantagem; não será pelo fato de ter perdido a disputa, mas pelo fato de não ter podido disputar. A chance de vitória terá sempre valor menor que a própria vitória, o que deve refletir no valor da indenização. No caso do advogado que perde o prazo para recorrer de uma sentença, por exemplo, a indenização não será pelo benefício que o cliente do advogado teria auferido com a vitória da causa, mas pelo fato de ter perdido essa chance; não será pelo fato de ter perdido a disputa, mas pelo fato de não ter podido disputar. O que deve ser objeto da indenização, repita-se, é a perda da possibilidade de ver o recurso apreciado e julgado pelo Tribunal. 16 • JUSTIÇA & CIDADANIA • FEVEREIRO 2008
No que respeita à conveniência ou não de recorrer, entendemos que, sendo o advogado o primeiro juiz da conveniência de se ajuizar ou não a ação, deve sê-lo, também, da conveniência de recorrer, mormente tratandose de recurso especial ou extraordinário, sujeitos a requisitos rigorosos e específicos. O advogado, principalmente quando zeloso do seu bom nome, não pode ser obrigado a interpor um recurso manifestamente incabível. Não deve, entretanto, deixar de recorrer no caso de indiscutível necessidade, ou contrariando a vontade do cliente. Neste último caso, se tem convicção jurídica contrária, o caminho será a renúncia. O parágrafo único do citado art. 32 responsabiliza o advogado solidariamente com o seu cliente no caso de lide temerária, desde que coligado com este para lesar a parte contrária (dolo), o que deverá ser apurado em ação própria. Assim como não está obrigado a aceitar a causa, pode o advogado renunciar ao mandato sempre que, no curso do processo, surgir impedimento pessoal ou qualquer outro motivo de convicção íntima. Não importa isso em quebra do contrato, desde que o advogado dê ciência da renúncia ao cliente, para que este o substitua. Deverá, contudo, continuar praticando os atos processuais urgentes durante o prazo previsto em lei (Código de Processo Civil, art. 45, e Lei no 8.906/1994, art. 34, XI). Responsabilidade do advogado com relação a terceiros Com relação a terceiros, a responsabilidade extracontratual do advogado é também subjetiva; só responde por dolo ou culpa. Os casos mais recorrentes são de ofensa irrogada em juízo contra a outra parte, testemunha ou o juiz da causa. Tal conduta não se encontra ao amparo da inviolabilidade profissional conferida pelo art. 133 da Constituição Federal. E assim é porque, se por um lado a Lei Maior confere ao advogado inviolabilidade por seus atos e manifestações no exercício da profissão, por outro garante a todos a inviolabilidade da honra, da imagem, da intimidade e da vida privada, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação (art. 5o, X). E como a Constituição não pode estar em conflito consigo
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mesma, não obstante a diversidade de normas e princípios que contém, forçoso é concluir que sempre que direitos constitucionais são colocados em confronto, um condiciona o outro, atuando como limites estabelecidos pela própria Lei Maior para impedir excessos e arbítrios. Assim, se à imunidade do advogado contrapõe-se o direito à inviolabilidade da honra do juiz, segue-se como conseqüência lógica não constituir prerrogativa do advogado atingir a honra do magistrado, ainda que o faça no exercício do seu edificante mister. Resulta daí uma verdade elementar que nunca é demais relembrar: todo direito tem limite, mesmo os direitos chamados de absolutos, qual seja o direito alheio; e quando esse limite é ultrapassado, configura-se o abuso do direito – ato ilícito gerador da responsabilidade. O abuso do direito é o outro lado de uma mesma moeda: se o exercício regular de um direito é ato lícito, a contrário senso o exercício anormal é ilícito, repelido pela ordem jurídica. Ressalte-se que a própria Constituição, no já citado art. 133, condicionou a inviolabilidade do advogado aos limites da lei. Esta, por sua vez, a Lei no 8.906/1994, em seu art. 7o, § 2o, restringiu essa inviolabilidade, como não poderia deixar de ser, à imunidade penal para os crimes de injúria e difamação, suspensa a eficácia da expressão “desacato” pelo Supremo Tribunal Federal, em virtude de liminar concedida na ADIn 1.127-8-DF. Ora, é de todos sabido que a responsabilidade civil é independente da criminal, conforme proclamado pelo art. 935 do Código Civil (art. 1.515 do Código revogado), de sorte que, ainda que não existissem os limites constitucionais já examinados no que diz respeito à inviolabilidade do advogado, a imunidade penal prevista no Estatuto da OAB não tem nenhuma repercussão sobre a sua responsabilidade civil pela eventual prática de ato ilícito no exercício de sua atividade profissional. Neste sentido a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: “Direito Civil – Dano moral – Indenização – Advogado – Excesso – Inaplicabilidade da imunidade profissional deferida pelo Estatuto da Advocacia e da OAB – Precedentes – Recurso desacolhido. A imunidade profissional, garantida ao advogado pelo novo Estatuto da Advocacia e da OAB, não alberga os excessos cometidos pelo profissional em afronta à honra de qualquer das pessoas envolvidas no processo, seja o magistrado, a parte, o membro do Ministério Público, o serventuário ou o advogado da parte contrária. Segundo firme jurisprudência da Corte, a imunidade conferida ao advogado no exercício da sua bela e árdua profissão não constitui um bill of indemnity. A indenização por dano moral dispensa a prática de crime, bastando a aferição da ocorrência do dano pela atuação do réu. (4a T., REsp 151.840-MG, rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, RSTJ 124/361; REsp 163.221; RSTJ 162/331).” 2008 FEVEREIRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 17
JUDICIÁRIO E CRIME ORGANIZADO: SEqÜEStro Bernardo Cabral Consultor da Presidência do CNC Membro do Conselho Editorial
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ntre atônita e indignada, a população brasileira em geral, e a dos grandes centros urbanos em particular, assiste à escalada do crime organizado, mais precisamente da indústria do seqüestro, sem que a Sociedade Civil e o Estado, aparentemente, demonstrem possuir meios capazes de enfrentar, com eficácia, esta nova forma de terrorismo. Em sua modalidade mais simples, como todos sabemos, o seqüestro é tratado, em termos jurídico-penais, como um delito comum, tipificado, entre outros, no capítulo dos crimes contra a liberdade individual, tendo como conduta realizadora do tipo o privar alguém de sua liberdade, mediante seqüestro ou cárcere privado. Na modalidade mais grave, já agora no título dos crimes contra o patrimônio e, mais precisamente, no capítulo do roubo e da extorsão, aparece esse ilícito associado à prática da extorsão, à qual serve de meio de execução, já que, nesta modalidade, ele é praticado com o fim de proporcionar para o agente, ou para outrem, qualquer vantagem, como condição ou preço do resgate. Em passado não muito remoto, na fase dura da repressão política, muitos seqüestros se fizeram com propósitos exclusivamente ideológicos – como o seqüestro de agentes diplomáticos acreditados perante o Governo brasileiro –, na medida em que o encarceramento violento, arbitrário e desumano, daquelas personalidades era apresentado como resposta à repressão política, então existente no País. Sem termos chegado ao limite – na verdade ao nãolimite – a que chegaram, entre outros grupos terroristas, as famigeradas brigadas vermelhas italianas – que se permitiram a prática de atentados em locais públicos para acuar a sociedade e paralisar o Estado–, sem termos chegado 18 • JUSTIÇA & CIDADANIA • FEVEREIRO 2008
a esse ponto extremo, mercê da abertura política – imposta pelas oposições reunidas ou concedidas pelo Governo, pouco importa –, vimos declinarem os seqüestros, e a criminalidade reduzir-se aos tipos comumente encontrados em sociedades como a brasileira. Agora, infelizmente, vemos recrudescerem aquelas práticas delituosas, em escala de repetição e violência tão elevadas, inclusive com os chamados seqüestros relâmpagos, que toda a sociedade, novamente acuada, e, por isso, justamente indignada, passa a cobrar do estado ações enérgicas que lhe devolvam a paz e a segurança – repentinamente perdidas, e sem as quais perde sentido a própria existência da criatura humana, numa comunidade civilizada. Neste contexto, como é natural, dada a instabilidade que a todos afeta, inúmeras têm sido as soluções apontadas para o problema, desde as fórmulas comuns, de exacerbação pura e simples das penas – inclusive com a introdução da pena de morte, que a consciência nacional parece não admitir –, até as soluções de nítido caráter político, do tipo decretação do estado de defesa, no qual se combate o crime de uns poucos, representado pela conduta delituosa dos marginais, individualmente considerados, como mal generalizado, e certamente maior, das restrições, ainda que temporárias e localizadas, de direitos constitucionais básicos, como o direito de reunião e o de preservação do sigilo de correspondência e de comunicação telegráfica e telefônica. Diante desse quadro de patologia social, cumpre ao Governo – como já vem fazendo, aliás –, procurar auscultar e sensibilizar a sociedade para receber desta o respaldo necessário à legitimação das soluções que porventura se veja obrigado a adotar, sob pena de, não o fazendo, acabar por comprometer todo o seu esforço, respondendo ao terror do
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crime com o terror do Estado, que, num primeiro momento, parece justo e eficaz, mas que, ao termo do processo, sempre sem controle, acaba por sufocar o cidadão, criando um clima de insegurança generalizada, que a todos assusta. Faço essa ressalva porque enquanto o que se observa em outros países é a diminuição e o controle da escalada da criminalidade e da violência, através da implementação oportuna de políticas públicas integradas, aqui, o que de fato acontece, é o aumento vertiginoso das ocorrências criminais, ao ponto de, conforme pesquisa publicada recentemente, as altas taxas de homicídio provocarem a redução da expectativa de vida em 2,5 anos para os homens, com o agravamento da situação na região Sudeste, aonde a redução chega a 3,5 anos. Na América do Sul, o Brasil só era ultrapassado pela Colômbia – que se encontrava envolta em um verdadeiro banho de sangue na luta travada contra narcotraficantes, guerrilheiros e grupos paramilitares –, o que agora, parece, se vai modificando. Na mesma pesquisa, observa-se que a alteração de assassinatos entre jovens do sexo masculino de 15 a 29 anos é alarmante e já não é mais privilégio dos grandes centros urbanos. Para cada grupo de 100.000 habitantes, são mortos anualmente 184 jovens em São Paulo, 265 no Rio de Janeiro, 188 no Amapá, 164 em Roraima e 189 em Pernambuco, contra uma média nacional na Irlanda de 0,7; no Japão de 1,0 e na Espanha de 1,6. O que se verifica dos números parciais extraídos da pesquisa é uma brutal carnificina contra a juventude desse País. É a explosão da violência em suas mais diversas manifestações, tomando foros de epidemia nacional, principalmente pela incontida aceleração do uso e do tráfico de drogas ilícitas.
A violência tornou-se uma velha companheira do cotidiano da população brasileira. Hoje, sua visibilidade torna-se maior em função de diferentes aspectos, tais como conscientização de cidadania, a liberdade de imprensa, a melhoria das facilidades de telecomunicações, a urbanização acelerada e outros fatores. Banalizada, a violência passa a integrar o dia-a-dia da comunidade brasileira, que reage freqüentemente através do isolamento – como os guetos formados pelos condomínios fechados e pelos shopping centers– ou através de meios ilegais, inadequados, equivocados e, em alguns casos, contrários aos seus objetivos maiores, através da criação de grupos de extermínio, vigilantes, gangues de adolescentes e outras formas. Observa-se, mais uma vez, a nefasta atuação da burocracia de plantão instalada na Esplanada dos Ministérios, disposta a levantar e apresentar, a todo momento e lugar, obstáculos ao desenvolvimento e implantação das políticas públicas de grande anseio da sociedade brasileira. Trata-se da mesma burocracia insensível e irracional, fixada apenas no cumprimento das metas econômicas e das regras estabelecidas de forma implacável. 2008 FEVEREIRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 19
“POR ACASO, SERÁ QUE ESTA MESMA ‘TECNOBUROCRACIA’ IRÁ LANÇAR UM APELO AO NARCOTRÁFICO E àS OUTRAS INSTITUIÇõES CRIMINOSAS QUE TANTOS PREJUÍZOS ESTÃO CAUSANDO à NAÇÃO, A PONTO DE JÁ AMEAÇAR O SEU FUTURO E SOBERANIA SOBRE A REGIÃO AMAZôNICA, PARA QUE ENCONTREM POR SEUS MEIOS UMA SOLUÇÃO? ERA Só O QUE FALTAVA!”
Por acaso, será que esta mesma ‘tecnoburocracia’ irá lançar um apelo ao narcotráfico e às outras instituições criminosas que tantos prejuízos estão causando à Nação, a ponto de já ameaçar o seu futuro e soberania sobre a região amazônica, para que encontrem por seus meios uma solução? Era só o que faltava! O Direito Penal Dentre o espectro mais amplo constituído pelos valores de cunho ético, as sociedades organizadas selecionam uma parcela, estendida como mais relevante, e a erigem à categoria de valores de cunho jurídico, cuja violação deverá implicar não apenas a reprovação moral, mas também alguma sanção de ordem legal. Dentre esse espectro mais reduzido dos valores muito especiais, cuja infração merece a mais severa das sanções legais, que é a sanção penal. Apenas quando todos os demais ramos do Direito são insuficientes para proteger determinado valor, institui-se a proteção do Direito Penal, com função repressiva e preventiva em relação aos comportamentos que o sistema jurídico repudia de forma mais veemente. Considerada, portanto, a relevância dos direitos e interesses tutelados pela legislação penal, a eventual nãoaplicação das punições previstas nessa legislação, em relação a casos que nela se enquadram, provoca, evidentemente, preocupação e até revolta no corpo social. Esse é o sentimento generalizado do povo brasileiro no que se refere ao seu sistema penal, percebido como ineficaz e, consequentemente, injusto. E aqui, por sistema penal, queremos referir-nos a toda a sistemática de responsa20 • JUSTIÇA & CIDADANIA • FEVEREIRO 2008
bilização penal, incluídos o direito material, os instrumentos processuais e o sistema de execução de penas. É verdade, por seu lado, que sinais alvissareiros, muito claros, indicam que, também nesse aspecto, o País está mudando – a impunidade está cedendo e responsabilidades começam a ser cobradas. Em alguns episódios essas mudanças já têm conseqüências concretas; em outras áreas, discussões já foram iniciadas visando à superação das causas da impunidade. Não se pode negar, contudo, que a percepção popular de que a impunidade ainda grassa tem sua razão de ser. Tampouco se pode deixar de reconhecer razão à preocupação manifestada em relação ao fenômeno, eis que a impunidade se constitui em importante vetor para a multiplicação dos ilícitos penais. Mas a questão da impunidade no Brasil de hoje pode ser enfocada de vários ângulos. Podemos tomar, primeiramente, a faceta, evidentemente desde muito tempo, da impunidade das elites, expressa na assertiva popular de que “rico não vai para a cadeia”. Quando assume este caráter, a impunidade sintetiza a negação da cidadania. No momento em que se constitui em privilégio dos abastados, ela nega à maioria do povo brasileiro o status que garante a igualdade de direitos. Enquanto as elites ficam, quase sempre, imunes à ação punitiva da lei, esta é, muitas vezes, severamente aplicada às classes mais pobres, normalmente desassistidas de instrumentos que permitam fazer valer seus direitos constitucionalmente assegurados. Este tipo de impunidade – a impunidade que beneficia os ricos e poderosos – é, como afirmamos anteriormente, a mais antiga, a mais “tradicional”, um vício que caracteriza nosso
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sistema penal desde seus primórdios. Mais recentemente, contudo, o fenômeno da impunidade ganhou maior abrangência, favorecendo também, inúmeras vezes, réus pobres. Isto passou a ocorrer em razão de inovações introduzidas na legislação substantiva e de execução penal, principalmente por ocasião da reforma de 1984. A criação de um exagerado número de benefícios incidentes sobre a execução da pena, a frouxidão dos critérios para sua concessão e a possibilidade de combinação entre eles, servem para desnaturar a pena aplicada na sentença condenatória. Além disso, a crise financeira do Poder Público, redundando no sucateamento dos serviços públicos em geral, causou prejuízos também aos órgãos de segurança. Este fato, associado ao momento da criminalidade, fenômeno comum a todos os países nos dias que correm, tem concorrido também para o aumento da impunidade, neste caso assegurada desde o cometimento do delito e não apenas na fase da persecução criminal ou da execução da pena. Por isso mesmo, parece-me oportuno que se deva cogitar – é minha opinião – o alongamento dos prazos prescricionais, e, possivelmente, a extinção da prescrição retroativa. Um advogado criminalista, mesmo de mediana experiência, pode, com requerimentos e incidentes, fazer protelar o andamento dos processos de modo a tornar quase certa e prescrição de dois anos. Conclusão De qualquer maneira, algo deve ser feito, e imediatamente, pois a omissão e a tibieza, em momentos graves como o em
que estamos vivendo, ou as autoridades assumem a direção do processo, ou a sociedade, em autêntica legítima defesa, legitima-se a si mesma para combater o crime, dando ensejo à proliferação de grupos de extermínio e ao surgimento de organizações paramilitares, que a pretexto de defenderem os cidadãos, acabam por enfraquecer o Estado num primeiro momento, e, logo a seguir, contaminar o próprio organismo social, generalizando o crime que pretendem combater e eliminar. Como a ninguém interessa esse estado de coisas –, verdadeiro retorno à barbárie –, cumpre ter presente a sábia advertência de Norberto Bobbio, adversário ferrenho e insuspeito do uso da força como forma de combater à criminalidade, mesmo quando, pela sua virulência, ela parece pôr em risco os valores da democracia: a prova de fogo do Estado democrático – que não pode nunca considerarse em guerra com seus cidadãos – não está em se deixar envolver num estado de guerra, reafirmando, mais uma vez, solenemente, as tábuas de lei, que são a nossa Constituição. Em suma, ainda citando esse exemplar defensor do Estado de Direito, urge que a sociedade brasileira tenha plena consciência de que, neste momento como talvez em nenhum outro de sua história, provavelmente terá que pautar sua reação contra o crime organizado redefinindo as regras que estabelecem ‘quando’, ‘de que modo’, ‘em que medida’ e ‘contra quem’ pode e deve ser usada a força. Com a palavra, portanto, a própria sociedade, instância primeira e última de legitimação de todos os atos governamentais, num regime que se pretenda verdadeiramente democrático. 2008 FEVEREIRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 21
PREVIDêNCIA SOCIAL PArA toDoS Luiz Marinho Ministro da Previdência Social
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O exame jurídico seguiu a orientação constitucional em matéria previdenciária (Constituição Federal, art. 194, parágrafo único). Ou seja, promover atendimento universal e igualitário a todos os trabalhadores. A Constituição é clara: 22 • JUSTIÇA & CIDADANIA • FEVEREIRO 2008
Foto: Victor Soares ASC/MPS
o País das grandes e acaloradas paixões, onde muitos se autodenominam especialistas em todas as áreas do conhecimento humano, a recente divulgação de um parecer técnico, elaborado pela Consultoria Jurídica do Ministério da Previdência Social, provocou uma exacerbada e equivocada polêmica. O referido parecer, que foi por mim aprovado, se limita a reconhecer o que determina a legislação brasileira quanto à concessão de benefícios previdenciários. O que a lei impõe como condição para enquadramento como segurado especial é que o trabalhador efetivamente comprove o exercício da atividade de produção rural. Nós apenas cumprimos as nossas atribuições e nos respaldamos na legislação vigente, sobretudo na Constituição Federal. Um grave erro de interpretação, no entanto, levou a ilações e a comparações impensáveis e descabidas. Não é verdadeira a alegação, por exemplo, de que qualquer pessoa, seja invasora, posseira ou grileiro de terras, tem o direito à aposentadoria. a Previdência não pode tratar de forma discriminatória os trabalhadores, sejam urbanos ou rurais. A nossa tarefa é verificar, de maneira isenta, se o cidadão atende aos critérios estabelecidos na lei. Longe de se estimular a ocupação de terras – como afirmaram os desavisados –, isso garante o direito de todos, seja do pequeno produtor rural, meeiro, arrendatário, posseiro ou pescador artesanal, caracterizado pelo modo de produção rudimentar, os que trabalham a terra ou se valem do extrativismo para a própria sobrevivência, a partir de técnicas simples, sozinho ou ao lado de sua família. Muitos se apressaram em fazer uma condenação rápida e fácil da Previdência Social, que não teve direito à defesa, na maioria dos casos. Poucos críticos se dispuseram a compreender, minimamente, a realidade dos fatos. Nunca existiu o objetivo de amparar qualquer tipo de ilicitude por parte da Consultoria Jurídica desta Pasta, o que de maneira alguma seria respaldado por mim. Por fim, é preciso acabar de uma vez por todas no Brasil com o ranço ideológico que leva à cegueira. Os constituintes de 88 tiveram uma grande visão quando garantiram, há 20 anos, a aposentadoria dos rurais, contribuindo significativamente para a manutenção do homem no campo e a segurança alimentar da população brasileira.
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A SÚMULA IMPEDITIVA DE RECURSOS COMO SOLUÇÃO PARA A cELEriDADE E EfEtiViDADE Do ProcESSo Manoel Maia Jovita Chefe da Assessoria de Recursos Especiais e Extraordinários da Presidência do TRF – 1a Região
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celeridade processual tem sido uma das grandes metas dos estudiosos do Direito. Para isso, várias reformas têm sido feitas, como, a título exemplificativo, a que foi trazida pela EC no 45/2004, pelas Leis no 11.232/05, 11.276/06, 11.277/06, 11.280/06, 11.417/06, 11.418/06 e 11.419/06. A brevidade na lide é anseio de todos, principalmente daqueles que já tiveram a angústia da dependência de um processo judicial para resolver seus conflitos. E é nesse aspecto, ou seja, pela preocupante e exaustiva peregrinação em busca de uma solução definitiva para o caso posto em juízo, que o legislador busca, a cada dia, um processo rápido e eficaz, que é um verdadeiro desejo de consumo dos usuários do sistema judiciário nacional. Com a introdução do § 1o ao art. 518 do CPC, por força da Lei no 11.276/2006, extrai-se mais uma forma de o legislador procurar atribuir força vinculativa aos precedentes dos Tribunais Superiores, notadamente daqueles já consagrados em enunciados de súmulas das suas jurisprudências dominantes, com a finalidade precípua de tornar mais célere e efetiva a prestação jurisdicional. Trata-se da denominada ‘súmula impeditiva de recursos’. No tocante à constitucionalidade da novel regra insculpida neste artigo, entendo que não há que se falar em sua inconstitucionalidade se, antes da fixação dos enunciados das súmulas que impedirão o normal seguimento dos recursos, houver um contraditório “difuso”, no âmbito dos Tribunais 24 • JUSTIÇA & CIDADANIA • FEVEREIRO 2008
Superiores, com a participação efetiva da comunidade jurídica e de seus órgãos, a fim de que, quando editado um enunciado de súmula, possa vir a ser aplicado com segurança. Cássio Scarpinella Bueno defende que o amicus curiae seria o sujeito mais indicado para realizar um adequado, necessário e suficiente “contraditório presumido” ou “institucional”, como prefere o citado jurista, o que garantiria a legítima definição dos paradigmas jurisprudenciais que definirão a sorte dos recursos interpostos das sentenças que os apliquem corretamente. A nova redação do art. 518, § 1o do CPC, antecipou, para o primeiro grau de jurisdição, a regra já prevista no art. 557, caput, do mesmo diploma processual, em que “o relator negará seguimento a recurso manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior”. O enfoque de tais reformas processuais, embora relevante, não é auto-suficiente, necessitando, também, para se alcançar uma forma ideal de celeridade processual, não apenas criar dispositivos legais com essa função, mas sim, torná-los efetivos, não se devendo permitir métodos processuais alternativos, que, em verdade, acabam por manter a tramitação do processo na forma antiga, ou seja, menos célere e mais burocrática. Em verdade, o legislador pretendeu, com a introdução do § 1o ao art. 518 do CPC, impedir o prosseguimento do recurso interposto contra sentença que esteja em conformidade com
Foto: Luiz C. B. Xavier TRF 1a Região
enunciado de súmula do STJ ou do STF. De acordo com tal dispositivo legal, deverá o juiz, diante da interposição de uma apelação, exercer sobre ela juízo de admissibilidade negativo, quando a sentença por ele proferida tiver se assentado em jurisprudência do STJ ou do STF, de vez que, quando a redação da norma diz “o juiz não receberá”, está-se diante de um imperativo negativo, impondo ao juiz a negativa de seguimento ao recurso interposto. Penso que se for para mantermos a regra do art. 518, § 1o no CPC – frise-se que seu objetivo é tornar mais célere o processo –, a decisão do Juiz deverá ser irrecorrível, não se permitindo a interposição de agravo de instrumento, nos termos do art. 522 do mesmo diploma legal. Caso contrário, melhor seria revogar essa regra e manter, tão-somente, aquela já prevista no art. 557 do CPC, pois estamos falando de celeridade processual, de ‘súmula impeditiva de recursos’, e noto que, na prática, o processo não atingiu, ainda, aquela celeridade tão almejada pelo legislador. Se o recurso de agravo de instrumento é cabível, melhor, então, que o trabalho do Tribunal seja facilitado, permitindo-lhe julgar diretamente, se for o caso, a apelação, sempre inspirado nos princípios de economia e celeridade processuais. Afirmo isso, pois, com a possibilidade de interposição de agravo de instrumento – que gerará dispêndio de tempo e trabalho similar ao que se expenderia com a análise da apelação –, não se pode falar em melhoria da celeridade
processual, tornando-se injustificável a manutenção da regra do § 1o do art. 518 do CPC, a não ser que se cogite a hipótese remota (quase inexistente) da parte sucumbente não interpor o agravo de instrumento ou do relator do recurso se valer do disposto no art. 557, o que, a meu ver, já seria suficiente. De que adianta criar uma norma expressa, no sentido de que o magistrado não receberá o recurso, quando for contra sentença em conformidade com enunciado de súmula do STJ ou do STF, e, por via oblíqua, facultar à parte prejudicada com a decisão o direito de dela recorrer mediante a utilização do agravo de instrumento? Ora, o Tribunal receberá o recurso da mesma forma, só que, ao invés de vir intitulado “apelação”, virá com o nome de “agravo de instrumento”. A idéia da ‘súmula impeditiva de recursos’ é bastante louvável, pois visa a resguardar e acatar preceitos normativos legitimamente postos na ordem jurídica nacional, assim como desafogar os Tribunais Superiores, evitando a apresentação de recursos meramente protelatórios, idéia esta que se fazia necessária para uma tentativa de melhor presteza na oferta do acesso à Justiça. Todavia, conforme já mencionado, para atingirmos um ideal de Justiça não basta apenas criar mecanismos com essa função, mas sim, torná-los efetivos. O acesso à Justiça, célere, eficiente e útil, implica no atendimento a alguns aspectos básicos, tais como: melhor estruturação do Poder Judiciário; que os enunciados de súmulas editados sejam suficientemente debatidos, definindo-se os paradigmas jurisprudenciais após consciente estudo com a participação, sempre que possível, da comunidade jurídica; e que haja conscientização no momento de se interpor um recurso com caráter meramente protelatório, o que é inaceitável sob a ótica daqueles que almejam uma justiça célere e eficiente. Vê-se, portanto, que a criação da ‘súmula impeditiva de recursos’, embora respeitável, não resolve, por ora, o problema da celeridade processual, nem mesmo para esvaziar as “estantes e os corredores” dos Tribunais, pois os juízes poderão continuar decidindo como vinham anteriormente fazendo, e, caso decidam pelo não recebimento da apelação, aplicando-se o art. 518, § 1o do CPC, as partes prejudicadas poderão interpor agravo de instrumento. Conclui-se, pois, que somente o tempo e o amadurecimento das reformas processuais é que darão a resposta se a criação da súmula impeditiva de recursos resolverá o problema da morosidade no Poder Judiciário. Não ouso em opinar, com todas as ressalvas em caráter processual, que não me parece insustentável a tese de que a decisão calcada no art. 518, § 1o do CPC, deveria ser irrecorrível, até para se justificar a manutenção de tal dispositivo legal no Código. Caso contrário, é melhor revogálo e manter, tão-somente, a regra do art. 557. 2008 FEVEREIRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 25
ProrroGAÇÃo DE PErMiSSÕES DE SErViÇoS PúBLicoS: SERIA UMA NORMA DE EFEITO CONCRETO? Darci Norte Rebelo Consultor Jurídico da FETERGS Membro do Colégio de Advogados da NTU
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tema atinente à chamada “prorrogação” de permissões de serviços públicos de transporte coletivo de passageiros tem despertado atenção, ante o número de representações por inconstitucionalidade de leis (municipais e uma no plano estadual), ajuizadas pelo Ministério Público perante o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Em duas delas (uma por unanimidade, outra por maioria), houve a declaração de inconstitucionalidade de dispositivos de leis municipais que mantiveram permissões, enquanto que, em três outros controles concentrados e abstratos de constitucionalidade, estes não foram conhecidos (uma por unanimidade, duas por maioria) por se reconhecer que, em tais hipóteses, se tratava de norma de efeito concreto, a tornar essa via inadequada, na linha do entendimento do STF. Percebe-se, aqui, que, somente no plano processual, esse tema já desperta, por si só, grande interesse para os operadores do Direito, sendo que as últimas decisões do Órgão Especial são as três últimas mencionadas, levando a crer que houve mudança de orientação do mais alto Órgão Colegiado do Tribunal de Justiça deste Estado. A seguir, vai-se, através de ligeiras considerações, abordálo apenas sob essa perspectiva, deixando-se para outra oportunidade o debate da denominada prorrogação (rectius: 26 • JUSTIÇA & CIDADANIA • FEVEREIRO 2008
manutenção) de permissões preexistentes à Lei nº 8.987/95. Como se sabe, o controle abstrato de inconstitucionalidade é um ato político, conforme acentuou o ministro Moreira Alves, exercido pelo STF, tendo por objeto a lei ou ato normativo federal, distrital ou estadual (art. 102, I, “a”, primeira parte, da Lei Fundamental). Aos Estados está, por seu turno, cometida a instituição de representação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais em face da Constituição Estadual (art. 125, § 2º, da Carta Magna). O controle abstrato de normas somente é cabível para os atos do Poder Público (excluídos os atos normativos privados: acordos, pactos, compromissos, estatutos de associações, convenções, etc., que, se ofenderem a Constituição, poderão ser declarados inválidos, observa Zeno Veloso (1), através da via ordinária), com atributos de generalidade, abstratividade e impessoalidade, poderão ser submetidos à fiscalização de constitucionalidade, através de ação direta, ou, no caso dos Estados, de representação. Mas qual será o significado desses atributos? Na doutrina, observa Marcelo Caetano (2), em relação ao atributo ‘abstração’, que “enquanto nas normas se formula abstratamente a previsão de circunstâncias que poderão vir a dar-se e que servem de pressuposto de conduta a seguir em geral por todos quantos venham a encontrar-se nessas
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circunstâncias; no caso concreto está-se perante circunstâncias já verificadas e relativamente às quais se individualiza a conduta de pessoas determinadas”. Para o referido e saudoso autor, a generalidade “está na sua abstração, isto é, em ser formulada de tal modo que não se saiba quantas pessoas, nem quais virão a ser abrangidas pelos seus comandos”. E dá exemplos: “Podem estes abranger apenas uma categoria restrita (os professores de uma Faculdade de Direito, os combatentes da guerra de 1914-18, ou como sucede freqüentemente nas disposições transitórias, aqueles que no momento da publicação da lei se encontrem em determinada situação), ou até apenas o titular de um órgão singular que se sabe, portanto, ser um único indivíduo: desde que a norma seja decretada para vigorar sucessivamente por tempo indefinido ou por período tal que se torne aplicável a todos quantos, durante a sua vigência, possam achar-se nas circunstâncias previstas para caírem sob a respectiva alçada, a generalidade existe”. Na hipótese de o comando dirigir-se a uma categoria perfeitamente determinada de pessoas, conforme o exemplo do ilustre administrativista, os atuais funcionários da Direção28 • JUSTIÇA & CIDADANIA • FEVEREIRO 2008
Geral “X”; os antigos combatentes da guerra tal, neste caso o critério para distinguir o ato da norma será o da permanência ou instantaneidade da execução. Se todos os atuais 2º oficiais do serviço “X” são promovidos a 1º oficiais, sendo a execução instantânea, há ato e não norma. Porém, se aos atuais 2º oficiais do serviço “X”, ao contrário do que por hipótese sucederia, é facultada a promoção por antigüidade até Diretor-Geral, é norma e não ato, visto que a indeterminação das circunstâncias em que, a cada um, corresponde o aproveitamento de tal faculdade, incerteza do tempo e da pessoa a quem será aplicável o preceito, isto é, o que se pode chamar de vigência sucessiva mantém-lhe o caráter de regra abstrata. Mas tal qual concebeu Hans Kelsen, mestre da Escola de Viena, há exemplo por ele formulado que continua irrespondível, conforme frisou o ministro Sepúlveda Pertence, no voto por ele proferido na ADIn 2.057, relator ministro Maurício Correa, in verbis: “Não é o número de destinatários que decide entre ser a norma abstrata ou concreta: dizer o pai ao seu filho que ele está obrigado a ir à missa todos os domingos é estabelecer
norma geral; agora dizer que todos os filhos têm de ir, um determinado dia, visitar o avô, é uma norma concreta, ainda que com vários destinatários” (in RTJ, v. 173, p. 490). Na doutrina, pode-se, ainda, referir à posição de Celso Antonio Bandeira de Mello (3). Ao se deter no exame dos atos abstratos, considera-os atos normativos, que se adequam, se amoldam ao conceito de lei em tese. Para esse autor, tais atos são os que prevêem reiteradas e infindas aplicações, as quais se repetem cada vez que ocorra a reprodução da hipótese nele prevista, alcançando um número indeterminado e indeterminável de destinatários. Dá, como exemplo, o regulamento cujas disposições colherão sempre novos casos tipificáveis em seu modelo abstrato. Por seu turno, Sergio Ferraz (4) destaca que “é da essência de lei de efeitos concretos que a produção dos efeitos lesivos ao impetrante ocorra independentemente de qualquer ato que seja necessário para que a norma se torne concretamente eficaz ... (omissis)...” (MS 20.993-3, rel. min. Moreira Alves, DJU 2.10.92, p. 16.843). Na jurisprudência do STF não se considera possível o controle abstrato de normas sobre leis de efeito concreto, sem caráter de generalidade. Leis, apenas no sentido formal, cujo conteúdo encerre preceito que tem objeto determinado e destinatários certos (leis casuísticas), não se prestam ao referido controle. Emblemático é o julgamento da ADIn nº 647-DF – Medida Liminar, relator ministro Moreira Alves, que expôs a doutrina que tem sido seguida pela Excelso Pretório: “A ação direta de inconstitucionalidade é o meio pelo qual se procede, por intermédio do Poder Judiciário, ao controle da constitucionalidade das normas jurídicas in abstracto. Não se presta ela, portanto, ao controle da constitucionalidade de atos administrativos que têm objeto determinado e destinatários certos, ainda que esses atos sejam editados sob a forma de lei – leis meramente formais, porque têm forma de lei, mas seu conteúdo não encerra normas que disciplinem relações jurídicas em abstrato” (RTJ 140/41). Portanto, ante a sintonia a respeito do conceito de lei de efeito concreto entre a doutrina e a jurisprudência, pode-se passar a examinar, apenas no plano do cabimento ou não do controle concentrado e abstrato de inconstitucionalidade, a hipótese tipificada no art. 6º, in fine, da Lei nº 972/99, do Município de Araruama, que manteve as atuais permissões e autorizações delegadas a uma única empresa transportadora daquela localidade. Esse dispositivo tem o seguinte texto, verbis: “Art. 6º. A permissão de serviço público de transporte coletivo será formalizada mediante contrato de adesão, sem prejuízo de seu caráter precário, mantidas, automaticamente, pelo prazo de quinze anos, prorrogável uma única vez, as atuais permissões e autorizações”. Desde logo, observa-se nesse texto que há, claramente, duas disposições: a) a permissão de serviço público de transporte coletivo de passageiros será formalizada mediante contrato de adesão, sem prejuízo de seu caráter precário; e b) mantidas automaticamente, pelo prazo de quinze anos, prorrogável uma única vez, as atuais permissões e autorizações.
“A AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE é O MEIO PELO QUAL SE PROCEDE, POR INTERMéDIO DO PODER JUDICIÁRIO, AO CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE DAS NORMAS JURÍDICAS in abstracto. NÃO SE PRESTA ELA, PORTANTO, AO CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE DE ATOS ADMINISTRATIVOS QUE TêM OBJETO DETERMINADO E DESTINATÁRIOS CERTOS, AINDA QUE ESSES ATOS SEJAM EDITADOS SOB A FORMA DE LEI”
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Como observa Humberto Ávila (5), as normas não são textos, nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos. Daí se afirmar que os dispositivos se constituem no objeto da interpretação; e as normas, no seu resultado. Os dois comandos, então, extraídos são: a) No primeiro caso, em toda e qualquer permissão, uma das modalidades de delegação de execução indireta de serviços, deve haver um contrato administrativo, com prazo determinado (art. 57, § 3º, da Lei nº 8.666/93), com a observância de elementos essenciais (art. 23, da Lei nº 8.987/95, possivelmente repetida na referida lei municipal); precedida de licitação (art. 175, caput, e 37, XXI, ambos da Constituição da República); b) No segundo, extrai-se norma no sentido de que as permissões delegadas (sim, pois são permissões por linha e não por área) a única empresa, que executa indiretamente os serviços públicos de transporte coletivo de passageiros por ônibus do Município de Araruama e que continuava a executar os serviços no momento da publicação da Lei municipal nº 972/99, foram mantidas pelo prazo de quinze anos, havendo possibilidade de final desse prazo ser prorrogada (aqui sim, se cogita da figura da prorrogação, pois se as permissões ostentadas por essa única empresa haviam sido firmadas por prazo indeterminado, não se podia cogitar de prorrogação, porém de se conferir um prazo para que eventualmente pudesse amortizar os seus investimentos). Há, entre elas, diferença marcante. No primeiro caso (a), nota-se, à evidência, a presença do atributo abstração, pois a norma impõe condições para quaisquer pessoas que se desconhecem para que não somente deverá haver escolha prévia, através de licitação, do futuro permissionário, como também se lhes impõe o atendimento de circunstâncias ou exigências na formalização do título que o vencedor do certame ostentará. Trata-se, com rigor, de norma jurídica com os atributos de abstração e de generalidade. No segundo caso (b), tal inocorre, pois no momento da publicação da Lei municipal nº 972/99, já se encontrava na situação de titular de permissões de serviços de transporte coletivo, naquele momento, a única empresa transportadora de Araruama. Por isso, o emprego do termo “atuais”. O significado desse termo revela que se trata de algo
presente, que ocorre no momento em que se está falando. Há, conforme observa Humberto Ávila, determinados termos que apresentam significados intersubjetivados, tais como “vida”, “morte”, “antes”, “depois”, que não precisam a toda nova situação ser fundamentados. Portanto, “atuais”, no contexto da Lei nº 972/99, eram as permissões existentes ou preexistentes à publicação desse diploma legal, cuja titular, repita-se, era a única empresa operadora dos serviços públicos de transporte coletivo daquela comuna. Aqui, evidencia-se tratar-se de norma de efeito concreto, que alcançou especificamente pessoa determinada. É uma norma concreta. Aliás, no primeiro caso (a), o número de pessoas que poderão estar interessadas na permissão é indeterminado e indeterminável, não se sabe hoje quem e quais são essas pessoas e quem e quais poderão ser no futuro, a revelar a abstração. Já, no segundo (b), é perfeitamente determinada e determinável a empresa titular das permissões de Araruama, a rigor a única transportadora nas condições previstas na parte final do art. 6º, da referida Lei nº 972/99, o que evidencia ato e não norma jurídica com atributo de abstração. Por outro lado, dúvida não subsiste, no segundo caso (b), de que a incidência da norma de efeito concreto sobre a situação fática da única empresa transportadora operante do serviço público de transporte coletivo de passageiros ocorreu de modo instantâneo e numa única vez. Não mais ocorrerá pela simples circunstância de estarem completamente exauridos os efeitos da parte final do referido art. 6º, da Lei nº 972/99. O mesmo não se dá com a incidência da norma, no plano abstrato, como norma em tese, no primeiro caso (a), pois sua incidência ocorrerá de modo permanente, desde que, naturalmente, presentes estejam os elementos fáticos do tipo do art. 6º, primeira parte, ora em pauta. Estas breves considerações são oportunas, em face do julgamento, no dia 11 de abril de 2005, da Representação por Inconstitucionalidade nº 19/2001 de três dispositivos da Lei nº 972/99, dentre os quais a segunda parte do seu art. 6º, cuja constitucionalidade foi questionada pelo Ministério Público deste Estado, através desse controle concentrado e abstrato perante o E. Órgão Especial do Tribunal de Justiça também deste Estado, não sendo conhecida por maioria de votos, em que se entendeu tratar-se, na espécie, de norma de efeito concreto, na linha do entendimento do Supremo Tribunal Federal.
Autores Referidos 1) Zeno Veloso (in “Controle de Constitucionalidade”, 2000, Belo Horizonte: Del Rey, pág. 109); 2) Marcelo Caetano (in “Manual de Direito Administrativo”, 1997, Coimbra: Almedina, pág. 436; 3) Celso Antônio Bandeira de Mello (in “Curso de Direito Administrativo”, 17ª ed., 2004, São Paulo: Malheiros, pág. 388) 4) Sérgio Ferraz (in “Mandado de Segurança (individual e coletivo) aspectos polêmicos”, 2ª ed., 1993, São Paulo: Malheiros, pág. 76) 5) Humberto Ávila (in “Teoria dos Princípios”, 4ª ed., 2004, São Paulo: Malheiros, pág. 22) 30 • JUSTIÇA & CIDADANIA • FEVEREIRO 2008
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O MINISTRO LUPI tEM rAZÃo Carlos Roberto Siqueira Castro Professor Titular de Direito Constitucional da UERJ Conselheiro Federal da OAB
“CABE, ENTÃO, INDAGAR: COM QUE AUTORIDADE A COMISSÃO DE éTICA PÚBLICA EDITOU E DIFUNDIU TÃO ERRôNEO ENTENDIMENTO EM QUESTÃO SOBREMODO SENSÍVEL E QUE POR CERTO REPERCUTE NA IMAGEM E NA HONORABILIDADE DO MINISTRO ATINGIDO?”
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em sido debatida na imprensa a questão da cumulação do cargo de Ministro do Trabalho e das funções de Presidente de Partido Político por parte do Ministro Carlos Lupi, em face da orientação em sentido proibitivo que a Comissão de Ética Pública vem divulgando com insistência. Registre-se que o Ministro não é acusado de qualquer prática de desvio ou improbidade de conduta no exercício do importante cargo que ocupa. Diz-se apenas, mediante pré-conceito de ordem exegética, que tal cumulação estaria a violar o princípio da moralidade administrativa e o marco legal da ética pública, centrado no art. 37 da Constituição Federal. Convém ilustrar, desde logo, que essa Comissão foi instituída pelo Decreto de 26.05.1999 (alterado pelo Decreto 6.029, de 1o.02.2007), cabendo-lhe, dentre outras atribuições, dar aplicação ao Código de Conduta da Alta Administração Federal, objeto do Decreto 4.081/02. A questão não é nova e coleciona vários precedentes. Assim é, que o atual Senador Francisco Dornelles ocupou o mesmo cargo de Ministro do Trabalho ao tempo em que exercia a presidência do Partido Popular (PP). O então Ministro das Comunicações, Sérgio Motta, cumulou as funções ministeriais com a Secretaria-Geral do PSDB. De igual modo, parlamentares como Jorge Bornhausen, Ricardo Fiúza e o Senador Marco Maciel foram titulares de ministérios enquanto presidiam suas agremiações partidárias. A esse tempo já vigia o apontado Código de Ética da Administração Pública Federal, sem que fosse impediente à acumulação de funções hoje questionada. Assim, a convicção da inexistência de proibição legal acha-se corroborada pelos costumes. Como diria o gênio de Maquiavel, na “História Florentina”, “os costumes precisam de boas leis e as boas leis precisam dos costumes”. Trata-se de outros tempos – se dirá – ou de outra Comissão com outros membros, ou 32 • JUSTIÇA & CIDADANIA • FEVEREIRO 2008
outras motivações, se preferir. Mas, vamos aos fatos e ao direito de regência. Em primeiro lugar, inexiste qualquer proibição legal quanto à cumulação do cargo e das funções em apreço, a exemplo das que vigoram para os juízes, para os membros do Ministério Público e para os militares da ativa, por força dos arts. 95, III, 128, II, “c”, e 142, § 3o, V, da Constituição Federal, aos quais é interditada a filiação e a militância partidária a qualquer título. E bem se sabe que as restrições ao exercício de direitos individuais, para serem lícitas, hão de estar expressas na Constituição e nas leis. Quanto a estas, porém, apenas quando em face de inocorrência de reserva constitucional exauriente da matéria. Vale lembrar que a antiga Lei Orgânica dos Partidos Políticos (Lei no 5.862/71), editada nos idos do regime autoritário, impusera a proibição ora cogitada (art. 26, I). Contudo, além de não ter sido recepcionada pela nova Constituição democrática, restou revogada pelo atual diploma partidário (Lei no 9.096/95). Por outro lado, o Código de Ética Pública (art. 8o) em categórico permite “à autoridade pública o exercício não remunerado de encargo de mandatário, desde que não implique a prática de atos de comércio ou quaisquer outros incompatíveis com o exercício do seu cargo ou função, nos termos da lei”. E não pode ignorar a Comissão de Ética Pública que as funções de dirigente partidário, ao menos no partido (PDT) ao qual se acha filiado o Ministro Carlos Lupi, são exercidas a título honorífico e sem qualquer remuneração. A par disso, o projeto de lei do Poder Executivo em tramitação no Congresso Nacional (PL 7.528/06), com o objetivo de definir outros atos e práticas que possam ser eticamente inconciliáveis com o exercício de cargo público, sequer cogita da incompatibilidade vislumbrada pela aludida Comissão. Cumpre advertir, por fim, que tal Comissão carece
Foto: Selmy Yassuda, Fotógrafa da Editora Análise
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Foto: Valter Campanato/ABr
Ministro do Trabalho e Emprego, Carlos Lupi
de competência normativa para editar restrições a direitos individuais, sejam eles públicos ou privados, tampouco para julgar quem quer que seja – o que de resto seria afrontoso às competências primárias do Poder Legislativo e do Judiciário. Ora, até o poder normativo das agências reguladoras, que são autarquias especiais instituídas por lei, se sujeita a limites e contestações. Tanto assim é que suas atribuições, aliás conferidas por simples decreto executivo, cingem-se hoje a “atuar como instância consultiva do Presidente da República e Ministros de Estado em matéria de ética pública, bem como a submeter ao Presidente da República medidas para seu aprimoramento” (Decreto 6.029/07, art. 4o, I e II, “a”). Cabe, então, indagar: com que autoridade a Comissão de Ética Pública editou e difundiu tão errôneo entendimento em questão sobremodo sensível e que por certo repercute na imagem e na honorabilidade do Ministro atingido? Com que critério hermenêutico, diante da ostensiva falta de respaldo legal para a ampliação do objeto e alcance de sua própria e minúscula competência, ousou descurar de princípios e regras constitucionais que sacramentam entre nós o pluralismo político, a liberdade de criação de partido político e autonomia dos mesmos para definir sua estrutura e funcionamento, a liberdade de filiação ao lado da obrigatoriedade de registro partidário de candidatura para a disputa dos mandatos eletivos, a fidelidade ao estatuto e programa dos partidos, a utilização dos recursos do fundo partidário e do acesso gratuito ao rádio e à televisão, na forma da lei (arts. 1o, V, e 17 da CF)? Os partidos políticos, conquanto no regime da Constituição de 1988 passassem a ostentar a natureza de instituição privada, são agentes de promoção do interesse público e veículos de expressão da soberania popular. Como placitou o Supremo Tribunal Federal, são “entidades revestidas de caráter insti34 • JUSTIÇA & CIDADANIA • FEVEREIRO 2008
tucional, absolutamente indispensável à dinâmica do processo governamental, na medida em que concorrem para a formação da vontade política do povo” (ADIn 1.396-3/ SC, Relator Ministro Celso de Mello). Nessa ótica, o conflito entre interesses público e privado, que caracteriza a ruptura da ética de governo, na hipótese aventada é nenhum. Por isso, tanto no sistema parlamentarista quanto no presidencialista multipartidário, é comum a formação do gabinete de ministros ser recrutada no seio dos partidos que formam a base de apoio ao governo, inclusive em seus quadros de direção. Ninguém ignora que o PMDB detém a maior fatia de cargos de primeiro escalão no governo e os maiores orçamentos da República, como os Ministérios da Agricultura, Integração Nacional, Saúde, Comunicações, Minas e Energia e Defesa, que gastaram em 2007 a soma de R$ 84,6 bilhões. Por certo, esse processo de arregimentação de um arco de alianças para a sustentação congressual do governo não raro exibe os condenáveis vícios da vida política brasileira. Todos se lembram da melancólica afirmação do então Deputado Severino Cavalcanti, do PP: “Quero a Diretoria da Petrobras que fura poço”! Essas deformações corrigem-se com a educação cívica da cidadania e a efetivação rigorosa das leis moralizadoras e punitivas. Mas, o que é aqui relevante é a percepção inequívoca de que, ao estabelecer distinção arbitrária e criar restrição a direito em situação em que não o fez o legislador habilitado, o ato da Comissão de Ética Pública apresenta-se abusivo e ilegal, além de infringente do princípio da razoabilidade e destoante das basilares regras de interpretação sistemática da Constituição e das leis. O que mais surpreende em todo o episódio é que a indigitada Comissão fez editar, primeiramente, a Resolução Interpretativa no 7/2002, destinada a regular a participação de autoridades públicas em atividades político-eleitorais, a fim de permitir que essas pudessem participar, na condição de cidadãoeleitor, de eventos de natureza político-eleitoral, convenções e reuniões de partidos políticos, comícios e manifestações públicas. Abstraindo-se, por ora, a questão preliminar sobre se uma Comissão inorgânica criada por decreto executivo poderia editar regras jurídicas de tal teor e inovar o sistema normativo, é certo que, naquela oportunidade, nada aduziu (nem poderia!) quanto à restrição somente anos após perpetrada. Eis que apenas em 25.06.2007, portanto com constrangedores efeitos retroativos (uma vez que o Ministro Lupi já havia sido nomeado em 26.03.2007), a Comissão resolveu ditar orientação para fins de interpretar (ou reinterpretar) sua resolução de quatro anos antes, com o inopinado e casuístico entendimento de que o exercício do cargo de Ministro de Estado cumulado com a função de dirigente partidário estaria a ferir o Código de Ética Pública. A intemperança é notória. Chega-se a pensar, com Shakespeare, em “Hamlet”, que “há muita coisa mais no céu e na terra do que sonha a nossa vã filosofia”. Se houver, voltarei ao assunto. De todo modo, é assinalável que o comportamento incongruente da Comissão já merece reações de porte, como o pronunciamento do Senador Francisco Dornelles na tribuna do Senado, em 30.11.07, e a recente nota oficial das Executivas Nacionais do PSB, PRB, PC do B, PMN e PDT.
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O ASSASSINATO DE JAnGo E A CONSPIRAÇÃO IMPUNE Pedro Porfírio Tribuna da Imprensa
“AQUELE QUE PRETENDER SEPULTAR A SETE PALMOS FATOS QUE PESARAM NO DESTINO DE UMA NAÇÃO ESTARÁ COMETENDO UM CRIME DE LESA-PÁTRIA CONTRA SUA HISTóRIA E, PRINCIPALMENTE, CONTRA AS FUTURAS GERAÇõES.”
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Não me lembro se colocamos no Isordil, no Adelpan ou no Nifodin. Conseguimos colocar um comprimido nos remédios importados da França. Ele não poderia ser examinado por 48 horas, senão aquela substância poderia ser detectada.” (Mário Neira Barreiro, um dos assassinos confessos de Jango, em entrevista gravada por João Vicente Goulart) Ainda que tardia, a verdade tem de ser resgatada para o bem das civilizações, atinja a quem atingir. Aquele que pretender sepultar a sete palmos fatos que pesaram no destino de uma nação estará cometendo um crime de lesa-pátria contra sua história e, principalmente, contra as futuras gerações. Por isso, todos os homens de bem deste País, independente de simpatias ou antipatias pessoais e políticas, devem apoio total, amplo e irrestrito à família do expresidente João Goulart, em sua jornada insone para provar dois fatos que hoje são absolutamente inegáveis: o Golpe de 64 foi financiado, monitorado, acompanhado de perto diretamente pelo governo dos Estados Unidos, e o expresidente João Goulart foi assassinado (6 de dezembro de 1976), num espaço de 9 meses, em que também morreram o presidente Juscelino Kubitschek (22 de agosto de 1976) e o ex-governador Carlos Lacerda (21 de maio de 1977). 36 • JUSTIÇA & CIDADANIA • FEVEREIRO 2008
Em relação ao Golpe, é farta a documentação oficial disponibilizada pelo governo dos Estados Unidos, mostrando que o próprio presidente Lyndon Jonhson monitorou os acontecimentos passo a passo, em linha direta com altos funcionários envolvidos na trama, como mostra uma gravação de uma conversa entre ele e o subsecretário de Estado George Ball, disponível no sítio YouTube. Assassinatos em série Essa ligação revela com todos os detalhes a movimentação de navios de guerra e petroleiros, bem como a disponibilização de munição para os golpistas em caso de alguma resistência. Outros documentos já divulgados no Brasil apontam o permanente envolvimento da embaixada norte-americana nos nossos assuntos internos, inclusive durante o AI-5, quando o neodemocrata José Sarney foi encarregado pelos autores do segundo golpe de explicar o AI-5 à embaixada norte-americana. O assassinato de Jango fazia parte de um sofisticado plano internacional, que incluía outras vítimas, como o ex-embaixador chileno Orlando Letelier, “explodido nos EUA”, o ex-general chileno Carlos Prates, o ex-presidente boliviano Juan José Torres e dois parlamentares uruguaios – senador Zelmar Michelini e o deputado Héctor Gutiérrez
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Ruiz – ocorridos na Argentina, após a deposição de Isabelita Perón, em 24 de março de 1976, e a ascensão do mais sangrento bando golpista comandada pelo general Jorge Rafael Videla, que disputou com o colega chileno Augusto Pinochet a comenda de grão-mestre da tortura e do extermínio de opositores. Em nome do Instituto João Goulart, seu filho João Vicente requereu à Procuradoria Geral da República que se abra uma investigação sobre a morte do seu pai, aos 58 anos. Para balizar seu pedido, João Vicente anexou a gravação de uma conversa que manteve com o ex-agente de segurança do Uruguai Mário Neira Barreiro, juntamente com uma equipe da TV Senado, em 2006, no presídio de segurança máxima de Charqueados, zona metropolitana de Porto Alegre. Jango morreu em sua fazenda do município argentino de Mercedes, mas sua morte foi resultado de uma operação que ganhou o nome de “Escorpião” e estava entrelaçada com a famosa “Operação Condor”, a grande articulação assassina que fez centenas de vítimas no Cone Sul da América Latina. Pela detalhada narrativa de Barreiro, que fora jovem militante da extrema direita uruguaia, Jango foi morto por envenenamento. As cápsulas envenenadas foram postas em frascos de remédios enviados da França para serem entregues no Hotel Liberty, onde o ex-presidente e a família
se hospedavam em Buenos Aires. “Para envenenar Jango, um agente foi infiltrado como funcionário do hotel” – contou Barreiro. O veneno – um cloreto desidratado num esterilizador – foi preparado pelo legista uruguaio Carlos Miles. Segundo Barreiro, o médico foi morto como queima de arquivo após ter ameaçado contar o que sabia se não fosse nomeado para um cargo público. O depoimento integra o pedido de abertura de inquérito, protocolado pela família de Jango no Ministério Público Federal em 8 de novembro do ano passado. É bom que você saiba de um procedimento totalmente atípico. O corpo de Jango não foi submetido à autópsia. Foi direto para São Borja, em meio a uma série de ordens e contra-ordens que provocaram o sepultamento rápido, ante a pressão do comandante do III Exército, que chegou a demitir o delegado da Polícia Federal que autorizou o traslado do corpo. Uma figura extraordinária Tive o privilégio de conhecer Jango pessoalmente, quando, em 25 de março de 1958, como vice-presidente da República, foi à posse do primeiro governador trabalhista do Ceará, Parsifal Barroso, juntamente com os governadores do PTB já empossados: Roberto da Silveira, do Estado do Rio; Gilberto Mestrinho, do Amazonas, e Chagas Rodrigues, do Piauí. Dessa safra, o único governador trabalhista que não pôde ir à festa no antigo Palácio da Luz (e depois ao almoço na casa do deputado e empresário Raul Carneiro, cunhado de Carlos Jereissati) foi Brizola, eleito governador do Rio Grande do Sul, aos 36 anos. Como na campanha, me pediram para falar e eu não me fiz de rogado. Foi o suficiente para que Jango me convidasse para conhecer a antiga Capital Federal. Recebido e “adotado” pelo ex-deputado Waldemar Rodrigues da Silva, um trabalhista gaúcho que presidia o Iapfesp, tive a oportunidade de conversar várias vezes com Jango, apesar de meninote. Ele, que era uma figura singularmente doce, trocava idéias comigo como se eu já fosse gente grande. Isso me deu liberdade para dizer a ele, no seu apartamento da Atlântica, esquina da Belfort Roxo: “Seu temperamento conciliador ainda vai lhe custar caro. Desde a morte de Getúlio, o senhor está na mira” – disse-lhe uma noite. No entanto, foi graças a seu jeito que evitou o banho de sangue programado pela CIA e pelos altos funcionários norte-americanos caso houvesse resistência. Na conversa de George Ball com o presidente Johnson, eles imaginavam uma guerra civil que “obrigaria” o desembarque de marines norte-americanos em nosso território. Mas essa é outra conversa, sobre a qual contarei tudo, oportunamente. Publicado no jornal Tribuna da Imprensa de 14/01/2008. 2008 FEVEREIRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 37
ENSINO JURÍDICO NO BRASIL: AnáLiSE à LUZ DA fiLoSofiA EDUcAcionAL DE PAULo frEirE Rommel Madeiro de Macedo Carneiro Advogado da União
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Educação e valores humanos á na Antigüidade, encontram-se no pensamento de Platão idéias basilares para a formação de uma sociedade calcada na democracia e no ideal de Justiça. Daí o destaque conferido à educação em sua obra “A República”, na qual se destaca que: “(...) a educação não é o que alguns apregoam que ela é. Dizem eles que arranjam a introduzir ciência numa alma em que ela não existe, como se introduzissem a vista em olhos cegos. (...) A presente discussão indica a existência dessa faculdade na alma e de um órgão pelo qual aprende; como um olho que não fosse possível voltar das trevas para a luz, senão juntamente com todo o corpo, do mesmo modo esse órgão deve ser desviado, juntamente com a alma toda, das coisas que se alteram, até ser capaz de suportar a contemplação do Ser e da parte mais brilhante do Ser. A isso chamamos bem. (...) A educação seria, por conseguinte, a arte desse desejo, a maneira mais fácil e mais eficaz de fazer dar volta a esse órgão, não a de o fazer obter visão, pois já a tem, mas, uma vez que ele está na posição correta e não olha para onde deve, dar-lhe os meios para isso.” Para Platão, a justiça só seria realmente alcançada se houvesse uma organização educativa em busca da harmonia social. Tal filósofo se contrapôs à política legalista, que classificava como algo inferior, consoante observa Judith Shklar. No estudo voltado à formação de uma sociedade justa e democrática, partindo-se do desenvolvimento da educação, 38 • JUSTIÇA & CIDADANIA • FEVEREIRO 2008
observa-se também a importante contribuição promovida por Aristóteles. Veja-se o que afirma Roland Corbisier, comentando o Livro III da obra “Política”, do filósofo grego: “O legislador, antes de mais nada, deve ocupar-se com a educação da juventude, adaptando-a à forma particular de Constituição, pois costumes democráticos geram uma democracia, e costumes oligárquicos, uma oligarquia”. Além de Platão e Aristóteles, filósofos como Locke e Rousseau aliaram conceitos jurídico-filosóficos ao desenvolvimento de idéias pedagógicas. Neste sentido, cumpre trazer a lume o apanhado histórico-filosófico efetuado por Leif e Rustin, os quais ressaltam a visão que Locke possuía acerca da ação poderosa da educação para fazer homens virtuosos, bem como apontam a confiança de Rousseau no desenvolvimento humano a partir do contato com a realidade e com os problemas da vida. Outra relevante concepção educacional se encontra na obra de Kant, seguida por filósofos como Fitche e Hegel. Enxergando-se a educação como instrumento fundamental na formação do ser humano, chega-se à clara percepção de sua influência no processo de construção e difusão de valores. Outros relevantes estudos acerca da educação são encontrados na doutrina de Karl Marx. Como bem assinala Moacir Gadotti, a referida doutrina prega que “a transformação educativa deverá ocorrer paralelamente à revolução social. Para o desenvolvimento total do homem e a mudança das relações sociais, a educação deveria acompanhar e acelerar esse movimento, mas não encarregar-se exclusivamente de desencadeá-lo, nem de fazê-lo triunfar”.
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Pestalozzi, por sua vez, defendia a reforma da sociedade através da educação das classes populares, consoante demonstra Frederick Eby: “(...) após a revolução suíça (1799), que liberou a classe desprotegida, Pestalozzi passou a sentir, mais profundamente que nunca, que uma educação melhor para cada indivíduo era o único meio de conservar os privilégios obtidos com a mudança política. A obtenção de direitos políticos, sociais e econômicos pouco significava, a menos que fosse acompanhada do desenvolvimento de suas capacidades de usufruir e utilizar suas liberdades. O direito ao desenvolvimento individual deve preceder qualquer outro direito, seja qual for. Sem o desenvolvimento das capacidades de uma criança, todos os outros direitos são inúteis e ridículos.” No Brasil, propugnando por uma educação de caráter transformador e democrático, Ruy Barbosa reservou especial atenção ao desenvolvimento das doutrinas pedagógicas, como essência do próprio aprimoramento dos valores humanos. Tal jurista abraçou o princípio da liberdade de ensino, consagrado pela Revolução Francesa. Para ele, o desenvolvimento social só se alcançará pela renovação dos métodos de ensino, de modo que “cumpre renovar o método, orgânica, substancial, absolutamente nas nossas escolas. Ou antes, cumpre criar o método, porquanto o que existe entre nós usurpou um nome, que só por antífrase lhe assentaria: não é o método de ensinar; é, pelo contrário, o método de inabilitar para aprender”. Traçado este breve apanhado de algumas relevantes
idéias pedagógicas, cumpre adentrar ao pensamento de Paulo Freire, que tanto influxo exerceu sobre uma série de doutrinadores nacionais e estrangeiros. A filosofia educacional de Paulo Freire A busca pela formulação de princípios e métodos educacionais de natureza democrática representa uma constante no desenvolvimento da filosofia educacional de Paulo Freire, para quem a educação se deve embasar no diálogo e não numa visão unilateral do conhecimento. Partindo da premissa de que tanto o professor como o aluno são detentores, cada qual, de conhecimentos que precisam ser compartilhados, o referido doutrinador conferiu uma relevante contribuição à teoria dialética do conhecimento. Tal autor prega que: “(...) a educação ou a ação cultural para a libertação, em lugar de ser aquela alienante transferência de conhecimento, é o autêntico ato de conhecer, em que os educandos – também educadores – como consciências intencionadas ao mundo ou como corpos conscientes, inserem-se com os educadores – educandos também – na busca de novos conhecimentos, como conseqüência do ato de reconhecer o conhecimento existente.” Segundo o mencionado doutrinador, a formação da autonomia intelectual do cidadão para intervir sobre a realidade deriva da educação. Neste sentido, deve-se observar que: “(...) duplamente importante se nos apresenta o esforço de reformulação de nosso agir educativo, 2008 FEVEREIRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 39
no sentido da autêntica democracia. Agir educativo que, não esquecendo ou desconhecendo as condições ‘culturalógicas’ de nossa formação paternalista, vertical, por tudo isso antidemocrática, não esquecesse também, sobretudo, as condições novas da atualidade. De resto, condições propícias ao desenvolvimento de nossa mentalidade democrática, se não fossem distorcidas pelos irracionalismos.” Ainda de acordo com tal filósofo e educador, “falar, por exemplo, em democracia e silenciar o povo é uma farsa. Falar em humanismo e negar os homens é uma mentira”. A autonomia do educando é, com efeito, um dos pilares dessa democrática visão educacional. Comentando a ação cultural para a libertação apregoada por Paulo Freire, Carlos Alberto Torres demonstra a complexidade filosófica de seu pensamento: “A filosofia subjacente ao pensamento freireano se configura a partir de vertentes filosóficas distintas, em um amálgama de envergadura, reunindo, em confluência, o pensamento existencial (o homem como ser em construção), o pensamento da fenomenologia (o homem constrói sua consciência enquanto intencionalidade), o pensamento marxista (o homem vive no condicionamento econômico da infra-estrutura e do condicionamento ideológico da superestrutura) e a dialética hegeliana (o homem como autoconsciência, parte da experiência comum para elevar-se à ciência e, através do movimento do devir dialético, o que é em si passa a ser em para si). No marco desta confluência, a dialética hegeliana apresenta maior peso.” O caráter holístico da obra de Paulo Freire, que não apenas contribuiu para o aprimoramento das idéias pedagógicas como também das ciências sociais como um todo, é ressaltado pelo filósofo Moacir Gadotti, a partir de uma compreensão da educação como um momento de transformação do homem pela transformação do mundo. Decerto que Paulo Freire acentuou o papel político do ser humano como agente histórico, possuindo uma ampla visão das ciências sociais. Para Paulo Freire, a formação de uma sociedade guiada pelo ideal democrático apenas se alcançará por meio da implementação de métodos educacionais embasados no princípio democrático, que levem à formação cidadã. Prega ele, assim, uma educação libertária, calcada no diálogo, vez que “a própria essência da democracia envolve uma nota fundamental que lhe é intrínseca – a mudança. Os regimes democráticos se nutrem, na verdade, de termos em mudança constante. São flexíveis, inquietos, devido a isso mesmo, deve corresponder ao homem desses regimes maior flexibilidade de consciência”. A visão existencial de Paulo Freire, de homem como ser em construção, é compartilhada por Álvaro Vieira Pinto, que exara, em artigo compilado por Moacir Gadotti: “A educação é um processo, portanto é o decorrer de um 40 • JUSTIÇA & CIDADANIA • FEVEREIRO 2008
fenômeno (a formação do homem) no tempo, ou seja, é um fato histórico. Porém, é histórico em duplo sentido: primeiro no sentido de que representa a própria história individual de cada ser humano; segundo, no sentido de que está vinculada à fase vivida pela comunidade em sua contínua evolução”. As idéias de Paulo Freire se encontram, inclusive, em consonância com a concepção adotada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), segundo a qual a educação deve ser: “(...) um processo formativo de valores e atitudes em favor da paz, da compreensão internacional, da cooperação, dos direitos humanos e das liberdades fundamentais (...). Em suma, seu conteúdo estabeleceu: (...) as instituições educacionais devem se tornar locais de exercício de tolerância, respeito pelos direitos humanos, prática da democracia e aprendizagem sobre a diversidade e a riqueza das identidades culturais.”
“PARA PAULO FREIRE, A FORMAÇÃO DE UMA SOCIEDADE GUIADA PELO IDEAL DEMOCRÁTICO APENAS SE ALCANÇARÁ POR MEIO DA IMPLEMENTAÇÃO DE MéTODOS EDUCACIONAIS EMBASADOS NO PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO, QUE LEVEM à FORMAÇÃO CIDADÃ.” Ensino jurídico no Brasil à luz da filosofia de Paulo Freire Apesar do advento da filosofia educacional de Paulo Freire, antecedida por todo um avanço da doutrina pedagógica, a atual conjuntura educacional brasileira se encontra permeada por métodos unilaterais de ensino, mediante os quais o aluno é enxergado como mero sujeito passivo. Tal realidade também é observada, especificamente, no ensino jurídico hodiernamente praticado no Brasil, tendo por agravantes o excessivo aumento do número de cursos jurídicos nas duas últimas décadas, bem como a ausência das correspondentes políticas públicas necessárias ao aprimoramento dos métodos educacionais. O ensino jurídico brasileiro atualmente apresenta, comumente, os seguintes traços característicos: a) educação calcada no mero estudo das leis, fenômeno designado por Getúlio do Espírito Santo Maciel como “codigomania”; b) carência de uma visão interdisciplinar
do Direito, correlacionando seu estudo ao de outras áreas do conhecimento; e c) ausência de fomento ao trinômio ensino, pesquisa e extensão. Todos estes aspectos são corolários de uma concepção educacional na qual o aluno não é encarado como um sujeito ativo, apto a inovar na interpretação dos diplomas normativos e dos entendimentos jurisprudenciais; apto a conciliar o estudo do Direito com estudo sociológico, político, pedagógico, dentre outras vertentes; apto a elaborar pesquisas que inovem as concepções jurídicas existentes e a desenvolver projetos de extensão que contribuam para o desenvolvimento social. Não basta aos cursos superiores de Direito o desenvolvimento de novas doutrinas jurídicas, sendo necessário que os mesmos atendam à sua função transformadora, de construção de uma nova realidade social, de inspiração democrática, atenta ao atual estágio evolutivo em que se encontram os direitos fundamentais. Leiam-se, neste sentido, as palavras de Fernando Catury Scaff: “(...) a escola é um dos principais aparelhos ideológicos do Estado, sendo que as escolas de Direito são, dentre todos, o principal deles, em razão de sua destacada importância na formação de um dos Poderes do Estado. Se não for transmitido nas Escolas de Direito que, quando faltar saúde, escola e pão, deverá haver justiça para corrigir esta distorção, de nada adiantará o discurso inflamado e a retórica vazia de nossos mestres, sempre tão ciosos de seu bem-falar, e nem sempre preocupados com o conteúdo e a ideologia subjacentes a seus ensinamentos.” Foi justamente partindo de uma visão transformadora para a época que se criaram os primeiros cursos de Direito no Brasil, consoante assinala Nilo Pereira, ao afirmar que “a disciplinação jurídica iria ser a grande fonte geradora dos grandes princípios que passaram a informar a nacionalidade”. Não é outra a opinião de Luís Delgado, ao explicitar as idéias que nortearam a criação dos cursos jurídicos no Brasil, exaltando o papel fundamental de tais cursos na própria formação do povo brasileiro. Tal visão é corroborada pelo magistral estudo da história do ensino jurídico no Brasil promovido por Clóvis Beviláqua. Hodiernamente, mostra-se clara a necessidade de se adotar uma concepção libertária e transformadora do ensino jurídico, dotando-o de métodos democráticos, a partir de uma relação de colaboração e diálogo entre professores e alunos na construção (e não na transmissão unilateral) do conhecimento. No atendimento de tais demandas, vê-se, pelo acima exposto, a enorme contribuição a ser dada pelo pensamento de Paulo Freire. No que tange ao excessivo normativismo que tem caracterizado o ensino jurídico no Brasil, necessárias se mostram duas mudanças: uma no que se refere ao objeto de estudo das disciplinas jurídicas, compreendendo-se o Direito não apenas no plano normativo, mas também fático e axiológico, nos termos bem expostos por Miguel Reale em sua teoria tridimensional do Direito (que apresenta
grande afinidade com o pensamento de Recaséns Siches e de Roger Bonnard); e outra no que tange à necessidade de se conceder um caráter interdisciplinar ao ensino do Direito, buscando sua correlação com outros ramos do conhecimento, nos termos expostos por Falcão Neto, para quem é imperioso “o desenvolvimento das ciências humanas e sociais através do conhecimento empíricocientífico, e a necessária interpenetração que faz progredir as disciplinas”. Destarte, mostra-se necessário conciliar ensino, pesquisa e extensão nos cursos jurídicos brasileiros, de modo que professores e alunos, num processo conjunto, tenham uma efetiva participação na construção doutrinária do Direito e no próprio desenvolvimento social. Consoante aduz Leonardo Greco, deve-se “também, através das atividades de pesquisa e extensão e da produção científica dos professores e alunos, contribuir para o aprimoramento das instituições jurídico-políticas e promover o progresso científico e dogmático do Direito”. Por fim, mister adotar métodos de ensino que fomentem o senso crítico dos estudantes de Direito, incentivando “a sua participação dentro e fora da sala de aula (...), tornando as demais áreas do desenvolvimento acadêmico – pesquisa e extensão universitária – muito mais ágeis e exigidas por seus agentes”, nos termos do que defende Sérgio Coutinho. Conclusão Analisando a concepção freireana de educação, resta claro que o ensino jurídico não pode ser meramente legalista, devendo, outrossim, preocupar-se com os valores subjacentes às normas estudadas, enxergando o aluno como um ser dotado de capacidade crítica e com relevante papel na inovação das normas e princípios jurídicos. A educação como prática de liberdade, as escolas como “centros democráticos”, a visão dialogal da educação, a concepção dialética do conhecimento, a visão pragmática do saber e outras idéias de Paulo Freire têm nítida aplicabilidade ao ensino jurídico. À luz das idéias de Paulo Freire, vê-se que o desenvolvimento do ensino jurídico no Brasil demanda: a) a superação da visão unilateral do ensino, na qual o aluno é encarado como um sujeito passivo no processo de transmissão do conhecimento; b) um estudo do Direito não apenas calcado nas normas, mas também nos fatos e nos valores; e c) a necessidade de efetiva aplicação, nos cursos jurídicos, do trinômio ensino, pesquisa e extensão, levando o aluno a desenvolver projetos que contribuam para o desenvolvimento social. A filosofia educacional de Paulo Freire muito tem a contribuir para as políticas públicas voltadas ao ensino jurídico, vindo a dotá-lo de caráter crítico, transformador, dialogal e, portanto, democrático. Isto, ademais, revelase fundamental para o alcance das diretrizes pedagógicas formuladas pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). 2008 FEVEREIRO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 41
ProBLEMAS DA MoDErniDADE: O LIXO ELETRôNICO DA INTERNET – spam Walter Aranha Capanema Advogado
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em sombra de dúvida, a Internet revolucionou todos os setores da sociedade, permitindo uma interação entre pessoas do mundo todo, em uma troca contínua de informações, dados e sentimentos, através de uma importante ferramenta de comunicação: o correio eletrônico – e-mail. Essa possibilidade de contato direto, permanente e rápido também trouxe efeitos negativos para esse novo mundo conectado. Indivíduos inescrupulosos passaram a utilizar o correio eletrônico como forma de distribuição de suas mensagens publicitárias, que não foram solicitadas pelos respectivos destinatários, originando o fenômeno do spam. O spam, em uma análise superficial, poderia parecer uma versão eletrônica daqueles panfletos de publicidade que são distribuídos nas ruas das grandes cidades e, assim, se constituir num mero aborrecimento do destinatário que, para se livrar de tal incômodo, bastaria apagar a mensagem. Todavia, os danos causados pelo spam são muito maiores do que se pode imaginar, causando prejuízos tanto à Internet, quanto aos provedores e aos usuários. No que tange à Internet, essa praga digital é responsável por cerca de 95% de todo o tráfego de e-mails no mundo, equivalente a mais de 150 bilhões de mensagens, o que provoca um imenso congestionamento de dados, além de que, em um futuro, poderá contribuir para um colapso sem proporções. Quanto aos provedores, há grandes despesas com armazenamento dessas mensagens, o que os transforma em verdadeiros “depósitos de lixo eletrônico”. E, em relação aos usuários, há a possibilidade real de suas caixas-postais ficarem lotadas dessas mensagens,
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de sorte a impossibilitar o recebimento de outras mais importantes. Os danos causados pelo spam despertaram a atenção das nações do mundo, surgindo leis em países como os Estados Unidos (2003), Espanha (2002), Finlândia (2004), Portugal (2004), Itália (2003), Coréia do Sul (2001), Austrália (2003) e, mais recentemente, Nova Zelândia (2007). O spam também foi combatido pela Diretriz 2002/58/EC da União Européia, estabelecendo regras de observância obrigatória pelos Estados-membros. As leis dos Estados Unidos e da Coréia do Sul adotam o entendimento no qual é lícito ao remetente enviar ao destinatário publicidade não solicitada, mas desde que permita a este último a faculdade de não mais receber tais mensagens, o que se convencionou chamar de sistema opt-out, que já nasceu falho, pois transfere ao indefeso usuário o ônus de ter de se descadastrar em todas as listas de e-mails em que ele foi indevidamente inserido. O outro sistema, adotado por países como Austrália, é denominado de opt-in, ao estipular que a mensagem publicitária só poderá ser enviada ao destinatário se for previamente solicitada por ele, o que protege a privacidade e os direitos do consumidor. Não foi por acaso que a lei australiana foi considerada uma das mais rigorosas do mundo, de sorte a diminuir consideravelmente o envio de spam no país. O Brasil, por sua vez, não possui nenhuma lei que trate especificamente sobre o tema. Todavia, existem diversos projetos de leis municipais, estaduais e federais anti-spam, sendo que a maioria deles, infelizmente, procura adotar o sistema
opt-out, que já se mostrou falho e inofensivo ao combate do spam. No entanto, o spam deve ser configurado como publicidade enganosa e abusiva, conforme determina o art. 37 e §§ 1o e 2o, do Código de Defesa do Consumidor. Na esfera criminal, há entendimento isolado no sentido de que tipifica o crime do art. 265 do Código Penal. Enquanto permanece a lacuna legislativa, o spam cresce no Brasil, que se tornou o 6o país que mais envia spam no mundo, e é um dos líderes mundiais no envio de fraudes através de mensagens não solicitadas, o denominado phishing scam. Surgem também novas formas de spam, sejam permitindo o seu recebimento por outros dispositivos, como telefones celulares e palmtops, sejam ampliando seu espectro de lesividade, de sorte a estimular a compra de ações negociáveis em bolsas de valores. Portanto, o legislador brasileiro deveria aproveitar a inaceitável demora legislativa para aprender com as falhas cometidas pelas outras nações, de sorte a adotar os posicionamentos que sejam mais eficazes no combate ao spam. A experiência comprova que o sistema opt-in, que exige a prévia autorização do remetente para enviar uma mensagem publicitária, é o mais correto e o que valoriza a privacidade e a liberdade do consumidor-destinatário. Precisamos evitar que a Internet, que é uma ferramenta tão importante para a disseminação de cultura e informação, fique inviabilizada pelo “engarrafamento” decorrente do envio de spam.
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fAMÍLiA, SOCIEDADE E JUStiÇA Eduardo Garcia Ribeiro Lopes Domingues Advogado
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m 5 de outubro de 2008 completam-se 20 anos da promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil. Em reflexão sobre os impactos da nova ordem constitucional no campo das relações familiares, observamos uma relevante questão sobre as interconexões entre as alterações da estrutura familiar, a sociedade e a proteção conferida pelo Estado à família. A sociedade brasileira se organiza por meio da atribuição de direitos e deveres entre os cidadãos, constituindo relações interpessoais que formam a ordem social. Tal ordem foi, inclusive, objeto de disciplina legal pela Constituição (Título VIII – Da Ordem Social) que a divide em oito capítulos, dentre os quais se destaca aquele destinado à Família, Criança, Adolescente e Idoso (Capítulo VII). A ordem social, segundo dicção constitucional, “tem por base o primado do trabalho, e por objetivo o bem-estar e justiça sociais” (art. 193). Neste contexto, o artigo 226 expõe que “a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”. O legislador constituinte reconheceu, portanto, ser a família a base da sociedade e determinou ao Estado que lhe dê especial proteção, tudo no intuito de cumprir o objetivo de bem-estar e de justiça social, que, segundo José Afonso da Silva, constituem a efetivação dos direitos sociais do artigo 6o da própria Constituição, que não se cumprem, todavia, sem a observância de um dos princípios fundamentais da República – o da dignidade da pessoa humana (art. 1o, III). 44 • JUSTIÇA & CIDADANIA • FEVEREIRO 2008
Daí o próprio artigo 226 estabelecer que, com fundamento “nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e técnicos para o exercício deste direito” (§ 7o). Em seu parágrafo 8o, o mesmo artigo determina ao Estado a prestação de assistência à família na pessoa de cada um dos que a integra, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito familiar. Como se vê, o legislador constituinte estabeleceu dois conceitos distintos e complementares: a família como base da sociedade e a proteção de cada indivíduo enquanto membro da família. A melhor interpretação aponta no sentido de que se extirpou do Direito brasileiro o entendimento segundo o qual a família era entidade exclusivamente privada e que o Estado não poderia se imiscuir nas relações familiares, senão para disciplinar a forma de criação e extinção da família. Por outro lado, reafirma-se a importância da família que, como núcleo interpessoal, é uma instituição que serve de base para a ordem social e obedece a regras próprias, algumas ditadas pelas práticas sociais, outras pela lei e ainda outras derivadas da autonomia da vontade. Este entendimento não foi criação do texto constitucional de 1988, que apenas positivou conceitos derivados da realidade social e da prática judiciária experimentadas ao longo de todo o século XX. Não se pode negar que a família é o primeiro núcleo pelo qual a pessoa recebe informações e
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formação para aprender a conviver no universo social. A família serve, também, como instância de proteção do indivíduo, dando-lhe apoio moral, espiritual e material. Daí as alterações no meio familiar provocarem alterações na sociedade, como também e com maior impacto, as alterações sociais acarretarem mudanças na estrutura familiar, por reclamar funções diferentes da família e de seus integrantes. Por isso, o artigo 226 da Carta Constitucional reconhece a família como base da sociedade e garante ao núcleo familiar a autonomia para decidir sobre seu planejamento familiar e para criar e educar os filhos de acordo com suas próprias convicções políticas, religiosas e culturais. O conceito de família como instituição social que obedece a regras sociais quanto à sua estruturação, mas que goza de liberdade em suas relações internas, está arraigado na tradição do Direito brasileiro. Esta é uma prática social que, embora assuma facetas específicas adequadas a cada momento histórico, tem raízes fincadas na origem latina de nosso Direito. Não há regra expressa na Constituição que diretamente impeça o Estado de interferir nas relações familiares e na educação que os pais dão a seus filhos, com exceção da regra que proíbe instituições oficiais e privadas de imporem planejamento familiar ao casal (art. 226, § 7o). O impedimento de interferência do Estado na família decorre indiretamente do princípio previsto no art. 5o, II, segundo o qual “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Esta regra somente pode ser excepcionada de forma expressa, como ocorre com o já citado parágrafo 8o do artigo 226, que impõe ao Estado a assistência à família na pessoa de cada um dos seus integrantes. Nesta esteira, foi editado o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei no 8.069/90, que pune os pais por abuso de seu dever de criar e educar os filhos, advertindo-os, suspendendo o exercício do poder familiar ou retirando-o, podendo a criança, até mesmo, ser colocada em família substituta. A rigidez com que as regras sociais e, assim, a lei, disciplinavam a formação da família veio diminuindo ao longo dos anos, ao passo em que também diminuiu a autonomia do exercício do Pátrio Poder (atual poder familiar), condicionando-se ao interesse público em ver atendido o princípio da dignidade da pessoa humana no seio familiar. Em 1934, o legislador, pela primeira vez, inseriu a proteção do Estado à família no texto constitucional, talvez movido pela constatação das alterações que o recente processo de urbanização provocava na estrutura da família, talvez apenas para dar resposta aos anseios do movimento constitucionalista de 1932. A Constituição do Império, de 1824, assim como a primeira Constituição da República, de 1891, eram cartas eminentemente políticas, tratando da organização do Estado e de algumas garantias civis, consideradas fundamentais à proteção do indivíduo enquanto cidadão, não fazendo menção à família. A Constituição de 1891 não tratou da família, mas reconheceu o casamento como sendo apenas civil (art. 72, § 4o), marcando a disso-
“COMO SE Vê, O LEGISLADOR CONSTITUINTE ESTABELECEU DOIS CONCEITOS DISTINTOS E COMPLEMENTARES: A FAMÍLIA COMO BASE DA SOCIEDADE E A PROTEÇÃO DE CADA INDIVÍDUO ENQUANTO MEMBRO DA FAMÍLIA.”
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ciação entre Estado e Igreja. O Código Beviláqua, do início do século XX (1916), reconhecia a família legítima unicamente como aquela derivada do casamento, o que excluía todos aqueles que, por algum motivo, não se submetessem ao procedimento da habilitação civil para o casamento. A lei civil não contemplava a prática social vigente nas cidades brasileiras, ainda dominadas pela oligarquia rural. Oliveira Vianna descreve essas famílias oligárquicas, entremeadas por parentescos civis e religiosos, como cunhadismos e compadrinhamentos, que adotavam conceitos de parentesco e relações familiares características de clãs. O então Código Civil tinha a característica de ser moderno, pois, embora estruturado nas figuras tradicionais do pai de família, do proprietário e do contratante, disciplinava um modelo de família nuclear reduzida e um modelo de segurança para as relações contratuais fincado na autonomia da vontade, que facilitariam a opção política do Governo Central por uma economia capitalista de consumo. Desta forma, a urbanização reduziu o núcleo familiar, fenômeno que permeou todo o século XX, como bem apresentou Fachin, admitindo-se socialmente novas formas de estruturação de famílias, com o concubinato e a família monoparental, composta por apenas um ascendente e seu descendente. A disciplina legal de proteção da família acompanhou as mudanças sociais. Nos anos 40 do século XX, o Decreto-Lei 3.200/41 autorizava empréstimos a pessoas que pretendiam casar, assim como a pessoas casadas, como forma de incentivo à formação da família; proteção que denotava, segundo Silvio Rodrigues, preocupação em melhoria do padrão racial e melhores condições de vida para as gerações novas em razão do exacerbado nacionalismo da época. O Decreto tratava, ainda, do reconhecimento de filhos naturais havidos de pessoas não casadas à época do nascimento, como também do bem de família, da redução da cobrança por serviço de ensino para as famílias que tivessem dois ou mais filhos matriculados no mesmo estabelecimento, do abono familiar para os funcionários públicos e, entre outras disposições, acrescia de 15%
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e 10% o imposto de renda de solteiros e viúvos sem filhos, e de casados sem filhos, respectivamente (o que hoje é inconstitucional). A partir da necessidade econômica de as mulheres de classe média urbana ingressarem no mercado formal de trabalho, o Estatuto da Mulher Casada, Lei no 4.121 de 1962, alterou diversas disposições do Código Beviláqua, reconhecendo que essas mulheres não eram relativamente incapazes, concedendo-lhes capacidade para os atos da vida civil. Apesar da proibição legal de dissolução do casamento, os casais se separavam e davam fim à sociedade conjugal, assumindo novas relações que se assemelhavam ao casamento. Embora a legislação não contemplasse o concubinato, a jurisprudência foi se adaptando à realidade social, atribuindo direitos aos concubinos, invocando um juízo de distribuição de direitos e deveres à luz dos princípios da eqüidade e da proibição do enriquecimento sem causa, antes mesmo dos princípios de igualdade e dignidade da pessoa humana da atual Constituição. Em 1977, a Lei do Divórcio, no 6.515, veio permitir a dissolução do casamento e a criação de novas famílias, retirando da ilegalidade os inúmeros concubinatos que aquelas pessoas com menores posses não podiam legalizar no estrangeiro. Assim, a jurisprudência foi transformada em lei e reconheceu direito de divórcio, possibilitou inúmeros novos casamentos e legalizou a situação de filhos naturais e adulterinos, o que veio, mais tarde, a ser preconizado pela Constituição de 1988. A Constituição reconheceu as mudanças sociais já enfrentadas pelo Judiciário, abrindo ao legislador ordinário a possibilidade de pacificar entendimentos e trazer segurança jurídica para as pessoas. Fachin analisa esta história sob a ótica do papel do Estado, entendendo que o projeto de Estado mínimo causa a privatização da família. Nossa análise parte de ponto diverso, pois a família, apesar de exercer um papel enquanto instituição social e, assim, público, é tradicionalmente privada, domínio do homem, no qual o Estado não interfere, ou melhor, não interferia. Sob esta ótica, a família vem se “publicizando”, na
medida em que assume obrigações do Estado, como assistência social – que passou para as famílias que cuidam dos seus idosos –, além do já tradicional dever de assistência moral e material. Da mesma forma, as relações familiares já não são mais de interesse privativo da família, tornando-se públicas e de interesse público, na medida em que possam ocorrer violações a direitos individuais no seio da família e na medida em que outras instituições como a escola e a mídia são em grande parte responsáveis pela formação dos cidadãos. Esta tensão entre rigidez da formação da família e autonomia do exercício do poder familiar permeia a história da sociedade brasileira e do Direito de Família. Atualmente, a criação de família não é mais faculdade do indivíduo, cujo relacionamento com outra pessoa pode ser tachado de família a despeito da intenção declarada das partes. O Estado presume a intenção das pessoas por seus atos, na tentativa de impedir o locupletamento moral e material de uma pessoa às custas de outra. Visto desta maneira, embora as formas de constituição de família sejam várias, permanece a rigidez sobre o que caracteriza ou não família, o que independe da vontade de cada um, que pode apenas decidir se adere ao modelo formal de família – casamento –, ou se ao modelo informal – união estável. Sabemos que a legislação, ao conceder alguns direitos, deixa de contemplar outros, que ainda não são socialmente aceitos, ou de grupos que não estejam suficientemente organizados a ponto de influenciarem a atividade legislativa. Foi assim que, em 1824, reconhecia-se apenas o casamento entre cristãos. Mais tarde reconheceu o casamento civil, mas não contemplava a celebração de casamentos para outras religiões. O Estatuto da Mulher Casada foi elaborado para as mulheres de classe média urbana, muito tardiamente para as mulheres negras e para as operárias, que desde o fim do século XIX já trabalhavam despidas de qualquer proteção jurídica pelo Estado. O Código Civil de 2002 foi bastante criticado na parte de Direito de Família por não ter disciplinado as relações civis entre homossexuais e, apesar de tratar da inseminação artificial homóloga e da heteróloga, foi criticado por não ter avançado sobre outras formas de reprodução.
Atualmente a lei reconhece a união estável e alguns Tribunais do país conferem os mesmos direitos a casais homossexuais. É possível que no futuro sejam reconhecidos por lei a união estável e o casamento entre homossexuais, mas tais leis, com certeza, deixarão de fora outros direitos. Haverá limites para que os entendimentos da jurisprudência sejam transformados em lei? No afã de atribuir maior discricionariedade e efetividade às atividades jurisdicionais, o legislador acaba por engessar o magistrado, na medida em que consolida em lei o entendimento de alguns tribunais do país e impõe ao órgão julgador a observância de alguns requisitos que estão na lei de maneira uniforme sobre todo o Brasil. Desta forma, os juízes de todo o país estão obrigados a reconhecer união estável, se preenchidos os requisitos da lei, independentemente dos valores da sociedade local, independentemente da vontade das partes. Neste aspecto, o legislador presume que as mulheres sejam hipossuficientes e que não possam por si mesmas, sem auxílio do judiciário, cobrar atitudes de seus companheiros. Historicamente esta atuação do Estado, através do Judiciário, se justificou quando as mulheres dependiam economicamente dos homens e aceitavam situações de amasia e concubinato também para garantirem sua sobrevivência. Atualmente, com as mulheres ganhando mais espaço no mercado de trabalho, justifica-se a proteção que a lei impõe aos companheiros, independentemente de suas vontades? Por outro lado, será que as mulheres de todo o Brasil já estão em pé de igualdade com os homens? Em que momento poderemos andar pelas próprias pernas, errando, mas também acertando, sem que o Estado presuma a real intenção de nossas ações? Até quando o Estado substituirá a educação que tem dever de prestar por imposições normativas que o legislador julga conhecer melhor que seus eleitores? Em razão do multiculturalismo brasileiro e das características regionais dos entes da Federação, não andaria melhor a União se delegasse aos Estados a competência para legislar sobre algumas questões de Direito de Família, como lhe faculta o parágrafo único do artigo 22 da Constituição?
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Antonio José Ferreira Carvalho Desembargador efetivo da 2a Câmara Criminal do TJ/RJ
A
o ser promulgada, a Lei no 11.343, de 23 de agosto de 2006, a princípio causou perplexidade. Em uma lei que visava aumentar as penas pela prática de delitos envolvendo drogas, houve a inclusão de um parágrafo no artigo que pune condutas múltiplas em relação aos entorpecentes que possibilita a redução das penas de 1/6 (um sexto) a 2/3 (dois terços), em sendo o criminoso primário e de bons antecedentes. Com a sua leitura, uma certa corrente de juristas passou a entender de aplicá-lo de forma indiscriminada, esquecendo-se de que, no citado parágrafo, também está explicitado que, para ser beneficiado, o agente não pode se dedicar a atividades criminosas nem integrar organização criminosa, ao tempo em que veda a conversão das sanções em restritivas de direitos. Vê-se, assim, que a mens legis, lamentavelmente – diga-se –, foi de proteger, tão-somente, aqueles, em geral pessoas de classe média ou de mais posses, que adquirem as drogas para usar em festas e distribuir aos “amigos”, e não para beneficiar aqueles conhecidos como “vapores”, “mulas”, “esticas”, “olheiros”, “gerentes”, ou outros nomes que queiram dar, até porque, ao receberem dinheiro para executar tais “tarefas”, ainda que o façam pela primeira vez, ou pela primeira vez em que são presos, sem dúvida, estão exercendo atividade criminosa, o que faz inadmissível tal redução legal, devendo-se nessas circunstâncias examinar se já assim procediam. Despiciendo que se fale daqueles que, reconhecidamente, integram organizações criminosas. Assim, examinando-se o texto legal “com olhos de quem quer ver”, pode-se verificar que os únicos criminosos que poderiam ser beneficiados com a redução prevista no § 4o do 48 • JUSTIÇA & CIDADANIA • FEVEREIRO 2008
art. 33 da nova Lei de Drogas são aqueles que adquirem os entorpecentes para vender a parceiros de festas e bailes dos tipos rave, funk, etc. – o que, lamentavelmente, é prática muito mais comum do que se imagina. Ressalve-se que o agente que compra as drogas e as vende nesses locais reiteradamente não poderia ser beneficiado com a redução porque está, claramente, a exercer atividade criminosa e, sem dúvidas, o faz com habitualidade. Por outro lado, se, para os casos específicos, o legislador graduou a redução da pena de 1/6 (um sexto) até 2/3 (dois terços), não se pode, só pelo fato de ser o agente primário e sem antecedentes, reduzir a sanção corporal no seu grau máximo. Se apenas o fato de ser primário e sem antecedentes fosse a condição para que se procedesse à redução da reprimenda, não haveria necessidade da graduação efetuada pelo legislador, pelo que, para que a ela se proceda, quando for o caso, o julgador há de fazer acurada análise dos fatos e reduzir a sanção, dentro dos limites legais, e dentro do grau de culpabilidade e das circunstâncias do art. 59 do Código Penal, não sendo obrigatório que se faça a redução máxima. Deve-se atentar que se o legislador optou por apenar mais severamente esse tipo de delito, equiparado aos hediondos, a benesse concedida no parágrafo 4o do art. 33 da Lei no 11.343/06 há de ser considerada como exceção à regra geral e, portanto, restritiva, só podendo ser reconhecida como direito subjetivo do réu dentro das restritas circunstâncias a serem analisadas. Não se olvide que o legislador, em outros artigos da lei, já beneficiou outras condutas com penas mais brandas, como se vê dos §§ 2o e 3o do art. 33 da Lei no 11.343/2006.
Foto: Arquivo Pessoal
A REDUÇÃO DAS PENAS nA noVA LEi DE DroGAS
O Procurador Regional da República José Alves Paulino reúne nesta obra um vasto estudo de pesquisas desenvolvidas por mais de três anos, por ocasião do curso de mestrado em Direito pela Universidade Católica de Brasília – UCB, sobre o direito internacional penal. O tema principal da obra diz respeito à produção e à obtenção da prova externa, quer seja por parte da investigação policial, quer seja em razão das atuações dos órgãos do Ministério Público Federal, com o objetivo claro de tomar essa prova como válida no processo penal contra a criminalidade organizada transnacional. O autor apresenta uma análise acerca da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, conhecida como “Convenção de Palermo”, inclusive as considerações sobre os organismos internacionais que atuam no combate ao crime organizado transnacional, levando em conta o estudo sobre as recomendações, que tratam da prova, do FATF – Financial Action Task Force ou GAFI – Groupe d’Action Financiere. E mais, o autor faz um paralelismo no que toca à produção da prova externa com o Código de Processo Penal e, ainda, critica a legitimação das autoridades centrais designadas ou indicadas como gestoras ou operadoras dos acordos de cooperação internacional. A obra traz ainda uma análise do caso concreto denominado “Dossiê Cayman”, bem como a íntegra de todos os acordos de cooperação judiciária internacional em matéria penal firmados pelo Brasil e em vigor, além das leis especiais e das normas complementares quanto ao tema.
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Foto: Arquivo Pessoal
Espera, Esperança Edson Vidigal
N
ão queremos que, por momento algum, te ausentes de nós. Nem mesmo que te distancies. Não podemos te ver menor. Não deixes que a poeira do tempo arraste as réstias de ti para a memória fatigada do ano velho. Assim, ninguém se perderá de ti, se entregando à morte homeopática no pântano da incerteza ou na insanidade insone da solidão do desalento. Nós todos, por aqui, dependemos de ti. Milhões de crianças, que não pediram para nascer em lugar nenhum, quanto mais por estas bandas de pobreza maior, ainda dependem da nossa dedicação ao trabalho construtivo. Nós todos, por aqui, dependemos de ti. Milhões de pais e mães, como se estivessem sentenciados à pena perpétua de gastar a vida só, no sofrimento por estas paragens, ainda dependem da força da nossa unidade honesta. Nós todos, por aqui, dependemos de ti. Quantos jovens, moças e rapazes, às centenas de milhares, não andam sem horizontes sob estes céus como se acometidos de uma miopia coletiva que não lhes permite sequer imaginar a possibilidade de uma vida melhor? Eles também dependem da nossa capacidade de superar conflitos, de realizar a harmonia, de obter a coesão social. Pensemos nos cegos de saber porque não lhes tiveram abertos os caminhos das escolas – e eles não são poucos, somam-se aos milhões. E sendo também cegos, são surdos porque seus ouvidos não são livres. Só lhes é permitido ouvir uma só informação, um fragmento da verdade manipulada. E nós todos por aqui dependemos de ti. A nossa missão é resgatar os bons princípios, os valores essenciais à convivência humana fraterna.
Ex-Presidente do STJ Professor de Direito na UFMA Queremos uma vida melhor não só para nós, também para os outros. Sabemos que sem igualdade, justiça, progresso e paz, nós, que pela confiança das minorias – agora unidas – , formamos a esplêndida maioria, sabemos o quanto dependemos de ti. Sabemos que não basta que se consagrem apenas os direitos às oportunidades. De nada adiantam estes direitos se as oportunidades, na vida real, não existem. E as oportunidades, aqueles espaços correspondentes àquele lugar ao sol a que todos temos direito, não resultam apenas de uma decisão individual, mas de uma vontade coletiva. De uma duradoura vontade coletiva. E nós todos por aqui dependemos de ti. Temos tudo para ser a tão sonhada terra das oportunidades. O Nosso Deus, o Todo Poderoso da nossa fé, continua, agora mais que nunca, do nosso lado. Mas sem a tua força latente, oh! esperança, bem dentro de cada um de nós, não passamos de andarilhos sem bússola, sem rumo certo. Parados, nos confundimos com estátuas às vezes até bonitas de tão bem esculpidas, mas sem brilho de vida, apenas registros de boas intenções. Temos rios a revitalizar, temos águas marítimas a dessalinizar, temos as florestas a preservar, terras boas para cuidar, a natureza viva a defender e a respeitar. Temos um Povo bom, ainda pobre, mas honrado, trabalhador e criativo. Temos uma história de vitórias a resgatar e alegrias que ainda precisam se espraiar de verdade no sentimento de toda gente. Não te vás, esperança. Nem te distancies. Sem o verde das inspirações das tuas promessas, restamos desanimados para os compromissos de vida, que esse nosso existir por estas bandas da terra nos motiva. Sossega aqui, esperança!
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