2 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MARÇO 2008
EDIÇÃO 92 • MARÇO de 2008
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atuação dos 14 JUíZes Em prol do MEIO ambientE
servir à nação
Foto de capa: Maiesse Gramacho/AMB ORPHEU SANTOS SALLES EDITOR TIAGO SANTOS SALLES DIRETOR EXECUTIVO DAVID RIBEIRO SANTOS SALLES Diretor jurídico
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IGUALDADE EM CONSTRUÇÃO
ERIkA BRANCO SECRETÁRIA DE REDAÇÃO TAÍS CAVALCANTI REVISÃO DIOGO TOMAZ DIAGRAMAÇÃO CLEONICE DE MELO ASSISTENTE DE EXPEDIÇÃO EDITORA JUSTIÇA & CIDADANIA AV. NILO PEÇANHA, 50/GR.501, ED. DE PAOLI CEP: 20020-100. RIO DE JANEIRO TEL/FAX (21) 2240-0429 SUCURSAIS SÃO PAULO RAPHAEL SANTOS SALLES AV. PAULISTA, 1765/13°ANDAR CEP: 01311-200. SÃO PAULO TEL.(11) 3266-6611 PORTO ALEGRE DARCI NORTE REBELO RUA RIACHUELO N°1038, SL.1102 ED. PLAZA FREITAS DE CASTRO. CENTRO. CEP: 90010-272 TEL.(51) 3211 5344 SALVADOR FREDERICO DINIZ GONÇALVES RUA BARÃO DE ITAPUÃ, 60 CONJ. 301 CENTRO EMPRESARIAL PORTO CENTER CEP: 40140-060 TEL.(71) 3264 3754
BRASÍLIA ARNALDO GOMES SCN - Q.1 – Bl. E – Sala. 715 EDIFÍCIO CENTRAL PARK CEP: 70711-903 - BRASÍLIA - DF FONES: (61) 3327-1228 / 29 CORRESPONDENTE ARMANDO CARDOSO TEL (61) 9674-7569 revistajc@revistajc.com.br www.revistajc.com.br CTP, IMPRESSÃO E ACABAMENTO ZIT GRÁFICA E EDITORA LTDA ISSN 1807-779X
CONSELHO EDITORIAL Alvaro Mairink da Costa ANDRÉ FONTES Antonio Carlos Martins Soares Antônio souza prudente Arnaldo Esteves Lima aurélio wander bastos Bernardo Cabral carlos antônio navega carlos ayres britTo Carlos mário Velloso CESAR ASFOR ROCHA DALMO DE ABREU DALLARI darci norte rebelo denise frossard Edson CARVALHO Vidigal eLLIS hermydio FIGUEIRA Enrique ricardo lewandowski Eros Roberto Grau fernando neves Francisco Viana Francisco Peçanha Martins Frederico José Gueiros GILMAR FERREIRA mENDES Humberto Gomes de Barros Ives Gandra martins Jerson Kelman josé augusto delgado JOSÉ CARLOS MURTA RIBEIRO José Eduardo carreira Alvim luis felipe Salomão Manoel CarpeNa Amorim Marco Aurélio Mello Massami Uyeda MAURICIO DINEPI maximino gonçalves fontes nEY PRADO Paulo Freitas Barata Sergio Cavalieri filho Sylvio Capanema de Souza thiago ribas filho
44 repensar o brasil SUMÁRIO A LIBERDADE DE EXPRESSÃO É ABSOLUTA!
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em defesa das prerrogativas dos magistrados
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Homenagem a Bernardo Cabral
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A ÉTICA PÓS-MORAL: UMA VISÃO ESCATOLÓGICA DA NORMA TRADICIONAL
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TÉCNICA DE SENTENÇA – LíNGUA E LINGUAGEM
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um juiz exemplar
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Segurança em transporte é um problema nacional
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Federação e Jurisprudência
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desmonte
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A Reforma do Poder Judiciário, suas causas e as propostas para enfrentá-la
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A Teoria Autonomista Da arbitragem
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Os tóxicos na realidade jurídico-social
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Juiz Ideal
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2008 MARÇO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 3
EDITORIAL
A LIBERDADE DE EXPRESSÃO É ABSOLUTA!
“As declarações do ministro são respaldadas pela condição de presidente da mais alta Corte Eleitoral...”
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uando os constituintes de 1988 instituíram na Carta Magna, no artigo 5o, inciso IV, e artigo 220, que a manifestação do pensamento fosse livre e não sofreria qualquer restrição, deu a todos os cidadãos o direito de expressar com plena e geral liberdade a sua opinião sobre qualquer assunto público e de interesse da Nação. Assim, a opinião divulgada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal e presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Marco Aurélio Mello, advertindo sobre ilegalidades eleitorais, é inteiramente válida, manifesta, impossibilitada de violação ou impedida de ser censurada. Estas considerações vêm a propósito do entrevero verbal do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, com o citado ministro, face o inconformismo do primeiro sobre as manifestações do presidente do TSE alertando sobre a ilegalidade eleitoral do programa “Territórios da Cidadania”, que viola as disposições da Lei no 9.504. As declarações do ministro são respaldadas pela condição de presidente da mais alta Corte Eleitoral – cujas funções são executar o planejamento das eleições, ditar as normas e resoluções disciplinadoras da fiscalização, a realização dos pleitos e, além da obrigação de ser órgão consultivo dos partidos e candidatos, tem ainda o dever de proceder preventivamente, formulando publicamente através da 4 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MARÇO 2008
imprensa, rádio e televisão, normas que visem evitar a transgressão nas eleições e o conseqüente uso de recursos eleitorais que poderiam advir de vantagens patrocinadas por entidades privadas ou pelo poder público. Assim, há de se considerar a validade e procedência da afirmação de S. Exa, o ministro, já que suas declarações sobre o programa do governo “Territórios da Cidadania” foram feitas no âmbito do TSE, no qual ele tem “total espaço para se manifestar sobre processos eleitorais”. Declarou ainda: “Se a lei não permite sequer o elastecimento [de programas], ela também não permite a criação, que é algo de envergadura maior”, acrescentando que a lei proíbe, em ano eleitoral, “a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública”. E mais: “O que se obstaculiza é o aumento desse programa e a criação de novos programas”, apensando que “as regras dos certames eleitorais” têm de ser cumpridas. “Absolutamente ninguém, num Estado Democrático de Direito, pode tudo, nem mesmo o presidente.” Portanto, as palavras do presidente Lula, na condição de chefe do Poder Executivo, buscam desacreditar a autoridade e legitimidade do fiscal maior do processo eleitoral – que diagnosticou e preveniu a violação do artigo 37 da Constituição Federal e das leis eleitorais reguladoras, em especial a Lei no 9.504, que veta a criação e a ampliação de
Foto: STF
O ministro Marco Aurélio Mello esclareceu sobre as prerrogativas e obrigações legais de sua fala como presidente da mais alta Corte da Justiça Eleitoral
programas em ano eleitoral –, tendo proferido equivocado e intempestivo revide ao presidente do TSE: “É preciso perguntar a quem falou essa sandice se ele quer ser ministro da Suprema Corte ou político. Se quer ser político, renuncie lá e se candidate a um cargo para falar as bobagens que quiser, mas não fique se metendo nas políticas do governo. Seria tão bom se o Judiciário metesse o nariz apenas nas coisas dele, o Legislativo nas coisas dele e o Executivo nas coisas dele. É preciso que a gente reordene as instituições para que elas funcionem cada vez mais de forma harmônica.” Em resposta ao dito pelo Presidente, declarou o ministro Marco Aurélio: “Sou uma pessoa que preconiza a liberdade de expressão e homenageia a espontaneidade. Só que a espontaneidade deve se fazer em ambiente sadio, em um ambiente de equilíbrio, em alto nível, sem agressões e menos agressões pessoais. Conhecemos o estilo do presidente. Às vezes, quando deixa o script e parte para o improviso, ele nos surpreende, ele nos estarrece, como nos estarreceu agora por último.” Ocorre que no confronto entre o presidente da República e o presidente do Superior Tribunal Eleitoral sobram razões de fato e de direito em prol da legitimidade da manifestação do magistrado que preside a fiscalização do processo eleitoral. É seu dever informar e esclarecer violações da Lei e da Constituição Federal! O presidente da República ofendeu o magistrado no exercício das prerrogativas e
atribuições de competência do Poder Judiciário ao procurar desautorizar e desacreditar sua função de guardião da Lei e da Constituição. A fala do ministro Marco Aurélio é uma exigência do cargo que exerce. Sequer possui este magistrado a liberdade de se calar diante da virulência com que o chefe do Executivo recebeu uma crítica necessária à defesa dos interesses públicos da democracia brasileira. Felizmente vivenciamos o Estado de Direito, com plena liberdade de expressão, onde a manifestação de opinião e a controvérsia são absolutamente livres, valendo o ditado: “QUEM FALA O QUE QUER, OUVE O QUE NÃO QUER.” P.S. – O presente editorial reflete e reitera os princípios maiores da Revista, a defesa e o respeito ao Poder Judiciário e à Magistratura.
Orpheu Santos Salles Editor 2008 MARÇO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 5
em defesa das prerrogativas dos magistrados
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ntrevista do presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), Mozart Valadares Pires, à revista Justiça & Cidadania.
Justiça & Cidadania – Por que a AMB é contrária à manutenção do Quinto Constitucional? Mozart Valadares – A posição da AMB reflete o sentimento da maioria esmagadora da magistratura brasileira. Enxergamos que o mecanismo do Quinto não cumpriu a sua missão, que foi oxigenar o poder, emprestar mais impessoalidade, democracia e aproximar mais o Judiciário da população. Nenhum desses avanços foi verificado em virtude do Quinto Constitucional. O Quinto representa uma ingerência do Executivo dentro do Poder Judiciário. O componente político hoje é quem determina a escolha dos magistrados que ingressam através do Quinto. Além disso, temos hoje o Conselho Nacional de Justiça com representantes da advocacia, do Ministério Público e da sociedade, este último com um representante escolhido pela Câmara e outro pelo Senado Federal. Aí, sim, se verifica a oxigenação, porque é mandato, ou seja, há uma renovação. Há uma vinculação com a sua categoria de origem. Por isso a magistratura se manifesta contra o Quinto. JC – Há muito tempo o senhor prega que o acesso aos tribunais superiores é um tema que merece ser discutido de forma mais criteriosa, principalmente no que tange ao Supremo Tribunal Federal. O senhor concorda com os termos da PEC no 128/2007, que altera os requisitos de investidura nos tribunais superiores? MV – A PEC no 128/07 significa grandes avanços. Ela 6 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MARÇO 2008
retira da vontade única e exclusivamente do presidente da República a escolha dos ministros do Supremo Tribunal Federal. Pela proposta 128/07, o Supremo escolheria uma lista tríplice, o Senado aprovaria, e o presidente escolheria um dos três nomes. Isso já é um avanço, porque diminuiria substancialmente a influência político-partidária da indicação. A questão é mais ampla. O acesso aos demais tribunais superiores deve observar a origem da carreira. Em relação ao STJ, por exemplo, precisa analisar a origem da carreira. O magistrado de carreira que prestou concurso, onde o mérito foi analisado por critérios objetivos, está em total desprestígio porque está em minoria no STJ. Precisamos analisar mais o mérito e criar mais critérios de impessoalidade no acesso aos tribunais superiores e diminuir substancialmente a questão da indicação política. JC – O senhor já manifestou interesse em iniciar um trabalho em conjunto com o CNJ para reduzir os problemas nas áreas de orçamento, planejamento e gestão do Poder Judiciário. Os problemas já foram identificados? De que forma a AMB pretende contribuir na solução desses problemas? MV – A AMB quer despertar, principalmente nos juízes do Brasil, a importância de se discutir a gestão e as prioridades do Poder Judiciário, assim como a aplicação correta do orçamento nas reais necessidades do poder. É preciso investir nas condições de trabalho dos juízes e servidores. Somente assim podemos melhorar a nossa prestação jurisdicional, dar uma melhor produtividade, tanto em quantidade quanto em qualidade, do serviço que prestamos à sociedade. É um tema que vamos levar para
discussão da magistratura nacional. Vou inclusive sugerir que o tema do próximo congresso nacional de magistrados seja a gestão, planejamento e orçamento do Poder Judiciário. Que cada magistrado se sinta co-responsável pela gestão do Poder Judiciário. E isso passa pela participação dos juízes na escolha dos presidentes dos tribunais, obrigando àquelas pessoas que pretendem dirigir os tribunais que apresentem um plano de gestão e suas prioridades. Só assim a magistratura poderá ter presidentes de tribunais que atendam aos anseios da maioria da magistratura, fazendo com que o Judiciário se torne um Poder mais próximo da sociedade e preste um melhor serviço ao usuário. JC – O Estudo ‘Justiça em Números’ demonstra que o número de julgados começa a superar o de novos processos. O senhor acha que tal resultado deve-se a que fatores? Isso pode implicar em diminuição da qualidade dos julgados? MV – Já vemos no ‘Justiça em Números’ um reflexo da necessidade de se discutir a gestão do Judiciário. Vemos, em fase embrionária, a preocupação de alguns magistrados e tribunais em discutir a gestão e as prioridades do Poder Judiciário. Isso se reflete obrigatoriamente na qualidade do serviço que prestamos à sociedade e nas condições de trabalho dos servidores. O relatório reflete essa preocupação, e a tendência é que cada vez mais a gente possa melhorar o nosso desempenho em relação ao número de processos que são distribuídos. JC – Em seu discurso de posse como Presidente da AMB o senhor afirma que “a manutenção até a presente data, da aposentadoria compulsória aos 70 anos de idade, também pode ser creditada à luta da AMB e de suas entidades
filiadas”. Tendo em vista o aumento da expectativa de vida do brasileiro, não seria desperdício a aposentadoria como se dá atualmente? MV – O discurso não comporta a questão da expectativa de vida. É que os tribunais de Justiça são um espaço de poder importante para permanecer muito tempo sem renovação, sem oxigenação. É inadmissível, não é bom para o Estado Democrático de Direito, para a democracia brasileira, um colegiado tão importante passar vinte anos ou mais sem uma renovação. Isso vai envelhecer a base, vai tirar a expectativa da carreira e vai engessar os tribunais. Você já imaginou um Congresso Nacional vinte anos sem renovação? Um Executivo vinte anos sem passar pelo crivo popular? É uma questão de renovação, de oxigenação – o que se verifica nos países mais desenvolvidos que estipulam mandatos para os ocupantes de cargos na cúpula do Judiciário. Países mais desenvolvidos que dão exemplo de que é essencial para a vida pública a constante renovação desses colegiados. JC – O fato do STF editar súmulas com poder vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública, no seu ponto de vista, atenderá ao fim a que se destina, ou seja, a celeridade na prestação jurisdicional e uma melhoria na qualidade dos julgamentos, já que hoje estes restam prejudicados pela massa de processos aguardando decisão superior? MV – A súmula vinculante tem suas virtudes. Ela tem como objetivo diminuir substancialmente a quantidade de processos que chegam aos tribunais superiores, então impediria que vários processos subissem aos tribunais porque aquela matéria já foi, reiteradas vezes, julgada pelo 2008 MARÇO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 7
STF e transformada em súmula vinculante. Também tem o objetivo de vincular a administração pública àquelas decisões. Essas são as duas vantagens que se espera da súmula vinculante. O ponto negativo, que a magistratura não aceita, é que tira o poder crítico do juiz de interpretação e criação de jurisprudência na base da magistratura. Com isso, muitos juízes se tornariam carimbadores de decisões já proferidas pelo STF, inibindo a criação de uma nova jurisprudência pela base da magistratura.
JC – Mudanças significativas já foram realizadas em âmbito constitucional e cível no decorrer dos últimos anos. A reforma processual penal, no entanto, vem sendo articulada de forma bem mais discreta. Diante das condições sociais e políticas que vivemos hoje, considerando o aumento da violência e da sensação de impunidade que choca e revolta a população, o que o senhor considera imprescindível na abordagem da nova legislação? MV – Precisamos adequar os nossos códigos, especialmente o de Processo Penal, à realidade brasileira, diminuindo o tempo de vida do processo, diminuindo a quantidade excessiva de recursos judiciais e o formalismo da legislação, isso sem jamais prejudicar o devido processo legal, sem jamais prejudicar a ampla defesa e o princípio do contraditório. Podemos dar à legislação maior agilidade, que é a rapidez que a sociedade espera, sem prejudicar a defesa daquele que está sendo acusado. JC – Segundo restou apurado na CPI das Escutas Telefônicas, em um único ano foram interceptadas mais de 400 mil ligações por ordem judicial, em todo Brasil. Quais restrições o senhor tem a fazer de forma a resguardar o direito constitucional à privacidade e ainda evitar a banalização desse método de investigação criminal, apesar de extremamente útil? MV – A quebra do sigilo telefônico, o chamado grampo telefônico, exige do juiz muito equilíbrio e serenidade ao analisar o pedido porque fere e invade a privacidade de um cidadão – que é um direito consagrado na Constituição. Então não podemos banalizar, vulgarizar a concessão e a quebra do sigilo telefônico das pessoas. Isso é um meio de 8 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MARÇO 2008
Fotos: Maiesse Gramacho/AMB
JC – O senhor acha que com a tentativa de tornar a prestação jurisdicional mais célere, eficaz e produtiva, grande parte da EC no 45, apesar de discutida por vários anos, foi editada precocemente? MV – Só vamos dar maior celeridade e maior eficácia às decisões judiciais com uma reforma profunda da nossa legislação ordinária, da nossa legislação infraconstitucional, que é o Código de Processo Civil e o Código de Processo Penal, que definem o andamento das ações. Então a reforma do Judiciário, a PEC no 45, que foi denominada Reforma do Judiciário, não deu maior ênfase à questão da celeridade processual. Precisamos diminuir o excesso de formalismo e o número exagerado de recursos. Só assim poderemos efetivamente falar de celeridade processual e melhor prestação jurisdicional. prova, em alguns casos é imprescindível para chegar aos culpados do crime organizado, mas ao juiz cabe muita serenidade e prudência ao conceder a medida que visa quebrar o sigilo telefônico do cidadão. E, principalmente, o juiz precisa acompanhar para que a execução não possa extrapolar os termos da decisão judicial. É como uma liminar, é como uma antecipação de tutela, não é regra, é exceção. Só em casos excepcionais, quando não haja outros meios de prova, é que o juiz deve determinar a quebra do sigilo das pessoas investigadas. JC – O senhor hoje preside uma entidade que congrega cerca de 14 mil magistrados. Além de defender, tão eficazmente, os anseios desta classe, qual é o papel da AMB hoje e o que o senhor espera alcançar ao fim do triênio em que a presidirá? MV – A AMB tem como objetivo primordial a defesa intransigente das prerrogativas dos magistrados brasileiros, das garantias constitucionais para que o Poder Judiciário continue e, a cada dia, se torne mais independente; que nenhum fator externo, que nenhum poder econômico e político possam interferir nos seus julgamentos, na distribuição de justiça de qualquer instância do Poder Judiciário. Também temos o dever de contribuir para a consolidação da democracia brasileira, para a consolidação do Estado Democrático de Direito e levar a magistratura para discutir os grandes temas da sociedade. Queremos contribuir para a formação de uma cidadania mais consciente politicamente, contribuir para que a sociedade possa participar das discussões desses temas melhorando e fortalecendo as instituições e os Poderes da República.
Foto: Arquivo Pessoal
Homenagem a Bernardo Cabral Vicente Limongi Netto Jornalista
“Elogiou determinados presidentes da entidade, mas, a meu ver, injustamente, omitiu a marcante gestão de Bernardo Cabral na presidência da OAB nacional.”
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colunista Élio Gaspari criticou as recentes e dúbias ações da OAB e alguns de seus dirigentes. Elogiou determinados presidentes da entidade, mas, a meu ver, injustamente, omitiu a marcante gestão de Bernardo Cabral na presidência da OAB nacional. Foi na época de Cabral, por exemplo, que se obteve a tese da Justiça Social, na 9a Conferência Nacional dos Advogados, realizada em Florianópolis, em 1982, com a presença de mais de 5 mil advogados. Àquela altura, um verdadeiro fenômeno de participação e presença, porque ainda estávamos no governo militar. Bernardo Cabral também fez vigorosa campanha contra a barbaridade chamada ‘Bomba no Riocentro’. Mandou apurar e não esmoreceu, apesar das ameaças de morte, de um covarde “Comando Delta”, que recebia por cartas e telefonemas. Lembro que também foi Bernardo Cabral quem levantou na OAB a bandeira do ensino jurídico de qualidade, conseguindo que o então ministro da Educação, Rubem Ludwig, fechasse algumas chamadas ‘faculdades de fim de semana’. Ludwig, a propósito, foi a uma reunião na sede da OAB federal, àquela altura, ainda, no Rio, fazendo questão de registrar, em discurso, publicado pela imprensa, seu respeito pela instituição. Concluindo, recordo que Bernardo Cabral foi o
Bernardo Cabral
único convidado brasileiro a participar, em 1982, como presidente da OAB, da Conferência Internacional dos Direitos Humanos, em Washington, [em que estavam] presentes diversos presidentes de Repúblicas, sobretudo dos Estados Unidos e da Costa Rica, sede ainda hoje da Corte Internacional dos Direitos Humanos.
Nota do Editor: O jornalista Vicente Limongi Netto, ao abordar, em artigo publicado na Tribuna da Imprensa de 21 de fevereiro, as críticas do colunista Élio Gaspari às recentes ações da OAB e a alguns dos dirigentes da entidade, fez referência à omissão do nome de Bernardo Cabral, que, quando na presidência do Conselho Federal da OAB, durante a ditadura militar, defendeu com veemência a preservação do ensino de qualidade nas faculdades de Direito, além de um marcante posicionamento contra as arbitrariedades e violências praticadas pelos governos militares. Reiterando os conceitos e as homenagens expendidas pelo colega Limongi ao nosso estimado conselheiro editorial, nos associamos com real satisfação e apreço às lembranças dos marcantes e corajosos feitos do prezado e admirado companheiro Bernardo Cabral. 2008 MARÇO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 9
SERVIR À NAÇÃO Ives Gandra Martins Professor Emérito das Universidades Mackenzie, UNIFMU, UNIFIEO e UNIP Membro do Conselho Editorial
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ste artigo não é saudosista. Em todos os tempos, o poder e a corrupção andaram de mãos dadas. Um verdadeiro e indissolúvel casamento. E em todos os espaços geográficos. Ocorre, todavia, que nem todo o detentor do poder é corrupto. Seja político ou burocrata, tenha feito o teste das urnas, prestado concurso público ou se enquistado no governo por ser amigo do rei. Que há corruptos em todas as esferas públicas e em todos os poderes é uma realidade que as corregedorias e os Tribunais de Contas não conseguem extirpar, quando entre eles também o mal não vem a vicejar. É que quem deseja o poder o quer, em primeiro lugar, para mandar, para ser o que comanda e isto ocorre em todas as áreas – públicas e privadas. O servir à sociedade é uma decorrência, quando possível. Se não sobram tempo ou recursos para fazê-lo – por terem, os recursos, destino menos louvável e o tempo estar dedicado apenas a conservar o comando, a demagogia e a perseguição aos inimigos –, procuram, os detentores do poder, camuflar o “não serviço público”, ficando em último plano a mais sublime das funções laicas, que é a de servir à pátria e à sociedade. Sou obrigado, todavia, a considerar – repito, sem ser saudosista – que o nível de corrupção e do cinismo das autoridades públicas em justificá-la era incomensuravelmente menor, na distante década de 50, quando comecei a escrever artigos. Quando se descobria a corrupção, o corrupto se sentia humilhado e – como nos países sérios – pedia desculpas à 10 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MARÇO 2008
nação, chegando, muitas vezes, ao suicídio, ao ver toda a sua família atingida pela conduta anti-social praticada. Tal comportamento tornava os corruptos párias da sociedade, na linha do que acontece na obra de ficção criada por Gene Roddenberry (“Startrek”), em que, entre os Klingons, a corrupção de um político, no poder, contaminava todas as gerações futuras. Por outro lado, naqueles tempos de minha juventude, os homens de bem entravam mais ricos no governo do que saíam, ao contrário de hoje, em que o poder enriquece quase todos. Campos Salles, por exemplo, entrou rico e saiu pobre da presidência da República. E que dizer de Prestes Maia?! Laudo Natel, até hoje, vive na mesma casa e dirige um simples carro popular, depois de ter governado o maior Estado do Brasil. Políbio, ao analisar a decadência dos tempos romanos, mostrava que, entre os fatos que a provocaram, estavam, precisamente, a corrupção e a falta de espírito cívico das autoridades. O que, entretanto, mais surpreende, nos dias atuais, é que aqueles que são apanhados fazendo falcatruas são exatamente os que mais ostentam poder, cinismo e riqueza, fazendo alarde da forma como agem. E o pior é que consideram – e querem convencer a nação – de que nada fizeram de mal. Parafraseando ocupante de cargo ministerial: afinal o poder é para “gozar e relaxar”. É possível que eu esteja sendo saudosista, mas que havia mais compostura e responsabilidade públicas, no passado, lá isso havia.
Nota do Editor:
“Políbio, ao analisar a decadência dos tempos romanos, mostrava que, entre os fatos que a provocaram, estavam, precisamente, a corrupção e a falta de espírito cívico das autoridades.”
Tive o privilégio de trabalhar com o maior estadista que o Brasil produziu, além das marcas e provas de honestidade, moralidade administrativa e dignidade com as quais administrou o país, deixou sementado em todos os auxiliares que colaboraram diretamente no seu governo o exemplo e a marca da probidade e honorabilidade nos exercícios dos cargos ocupados. Assim como o Presidente Getúlio Vargas – que, ao deixar o governo, saiu mais pobre e desprovido de alguns bens recebidos em herança –, também seus colaboradores diretos no gabinete da presidência saíram de mãos limpas, e alguns poderiam até reivindicar do governo, devido aos gastos pessoais que a função exigia, indenização por empobrecimento ilícito. Infelizmente os tempos mudaram. As prédicas do grande e ilustre baiano, e as preocupações do tributarista Ives Gandra Martins são muito oportunas, principalmente considerando o que acontece comumente na política e na administração pública. 2008 MARÇO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 11
A ÉTICA PÓS-MORAL: UMA VISÃO ESCATOLÓGICA DA NORMA TRADICIONAL Edvaldo Pereira de Moura
Desembargador do TJ/PI
“A responsabilidade moral com o ecossistema, o Estado e o indivíduo, continua com sua importância, até mesmo por imperativos de sobrevivência em grupo. ”
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illes Lipovetsky, em seu “Crepúsculo do Dever”, parodiando, obviamente, o “Crepúsculo dos Ídolos”, de Friedrich Nietzsche, propõe-se a analisar, com rigor pós-moralista, o atual estágio da sociedade dita pós-moral. Este estágio decorreria de uma drástica ruptura da ética tradicional, regida pelo acendrado culto ao dever, tendo como paradigma, dogma e postulado, a exaltação do desapego benemérito em relação à sua vontade pessoal, com a ética hedonística e libertária, que privilegia o individualismo em todas as instâncias valorativas possíveis. Lipovetsky, com a frieza de um legista, disseca o cadáver da moral estabelecida, gestora de duzentos anos do arcabouço democrático no mundo ocidental, segundo a qual o indivíduo é obrigado a manter, perenes e sacralizadas, virtudes cingidas pelos laços heterônimos ditados por exigências de padrões costumeiros engessados, para os quais o conceito de dever é relativo e nunca, absolutamente, uma conduta de escolha própria ou uma conquista eclodida na necessidade de prover um projeto axiológico estritamente pessoal. A sociedade pós-moralista não é, para Lipovetsky, como pode parecer, uma ruptura sem onerosidade nem complicações. O bem-estar consumista e hedonista não se deslinda das obrigações de responsabilidade coletiva, apenas deixa o indivíduo livre para fazer o bem, sem remorso e sem compromissos com qualquer ordem preestabelecida, tendente a anular a liberdade de fruir do prazer e das satisfações pessoais. 12 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MARÇO 2008
A época pós-moral é uma ruptura sem retorno, mas a ruptura é com o tradicionalismo dos interditos morais preestabelecidos pelos oráculos que ditam o que se deve fazer para merecer o acolhimento e a estima dos seus coaldeados. Com efeito, o que há não é uma negação radical do bem em si, como costuma se entender, mas a liberdade de tratar esse mesmo bem a nosso modo, sem que o nosso direito de gozar a existência seja controlado por vontade que não a nossa. A responsabilidade moral com o ecossistema, o Estado e o indivíduo, continua com sua importância, até mesmo por imperativos de sobrevivência em grupo. É claro que as regras são mais deontológicas e mais lógicas do que éticas, porque visam, sobremodo, ao dever de coexistir do que ao de parecer bom. O paradoxo, ou a aparente negação da sociedade pósmoralista em si mesma, é o espectro virtual de graves chamamentos à eticidade no estado consumista, materialista e amoral em que vivemos, onde a relação homem-homem é superada pela relação homem-coisa. As massivas campanhas em favor da bioética, do ecossistema e da saúde pública, não significam a negação do egotismo ou a exaltação humanística da fraternidade, mas a necessidade de manter boas regras no interior da nave-mãe Terra, em que todos se aboletam. Tem que ser levado em conta que, em qualquer relação entre pessoas, deve existir um mínimo ético. Este minimalismo tem, em geral, duas vertentes: uma localizável no indivíduo e outra na sociedade ou no mundo onde ele
Foto: TJ/PI
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estiver inserido. Na primeira acepção, esse minimalismo é a menor existência possível de imposição heterônoma – da sociedade para o indivíduo. Na segunda, é o reconhecimento de imposições estritamente necessárias à coexistência dos indivíduos, de maneira que nenhuma delas penetre o âmago da liberdade, do querer e do fazer do indivíduo, quando isso condisser com o seu gosto pessoal, sem prejuízo de outrem. O autor de “Crepúsculo do Dever” explicita, ainda, o chamado imperativo narcísico, em contraposição ao imperativo categórico kantiano, o bem teleológico visado pelo indivíduo, que se afirma com os ideais do pósmoralismo. Para ele, a ética da felicidade própria para satisfazer seus gozos pessoais não expira no consumismo ou na exacerbação da libido sem culpa. O corpo também deve ser cultuado com tudo aquilo que possa satisfazê-lo no conforto, na higiene, no culturalismo físico das academias, nos cuidados estéticos e dietéticos, e nas preconizações da longevidade. Sendo o culto de si mesmo, o narcisismo supera as instâncias valorativas do imperativo categórico e aí estaria simbolizada a contestação adversativa da moral tradicional e da ética a ela pertinente. Mas há uma alça falsa no caixão bem construído de Gilles Lipovetsky. A inefabilidade das leis naturais das quais somos presas contingentes. É que a sociedade não existe em espaço de vontades difusas ou aleatórias, nem sobrevive em anomia absoluta. Em grupo, o individualismo tem um limite; nele, quem não se harmoniza com o corpo é anticorpo, é partícula estranha, fatalmente sujeita à fagocitose social de que é agente natural o Direito. Ao cabo dessas considerações, somos levados a pensar que a palavra “pós-moderno” é um desses neologismos nascidos in vitro nos laboratórios semânticos dos nossos dias, ou que o processo de “desconstrução” seja coisa unicamente associada ao negaceio brutal do anticristo Friedrich Nietzsche. A partir dos meados do século XIX, já se chamava de “pós-moralista” o pensador crítico revisionista da filosofia do humanismo moderno, isto sem nenhuma concessão aos respeitáveis devotos do iluminismo. Talvez até com mais rigor, a filosofia das luzes da Era Moderna (séculos XVIII e XIX) – que erigira o antropocentrismo (no centro de tudo todos os interesses do homem) e estabelecera a escala axiológica humanística, que ainda nos orienta –, concomitante ao império da razão, seria objeto dessa devastação, dessa nova maneira de pensar. O próprio Nietzsche costumava deixar bem claro que o seu “martelo”, com o qual filosofava, só sabia destruir “ídolos”, jamais construí-los. Ora, se os “desconstrutores” que “mataram” Deus, “desmentiram” as verdades, “avacalharam” a metafísica e “implodiram” os “ídolos” somatizados nos ideais superiores, como os direitos do homem, a ciência, a razão, a democracia, o socialismo, a igualdade de oportunidades, lembrados por Luc Ferrry, em seu “Aprender a Viver – Filosofia para os
Novos Tempos”, quais são, pois, os entes substitutos capazes de controlar essa massa humana descomunal, de vários bilhões de pessoas distribuídas pela superfície da Terra, muitos vivendo em miséria absoluta, outros em guerra fratricida, embora lutando por causas respaldadas por teologias radicais, sem esperança nenhuma de armistício, remissão ou fim? Qualquer que seja o motivo do devaneio desses pensadores, dessa pirotecnia de construção, o melhor objetivo a ser colimado, ainda é, indiscutivelmente, a paz. O melhor alentador da harmonia ainda é a Justiça, voltada aos direitos e garantias fundamentais do homem, para que este não regrida à Idade da Pedra. Destruir essas conquistas do homem, sem substituí-las por algo semelhante ou melhor, seria voltar tudo ao caos, e nesse precipício escatológico e apocalíptico, nem os “desconstrutivistas” nem os “pós-moralistas” teriam condições de sobreviver. 2008 MARÇO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 13
atuação dos JUíZes Em prol do MEIO ambientE Vera Lucia R. S. Jucovsky Desembargadora Federal do TRF 3a Região
“...o direito ao ambiente ecologicamente equilibrado configura cláusula pétrea da Lei Suprema, a respeito da qual não se admite qualquer deliberação de proposta de emenda constitucional com o objetivo de a suprimir.”
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direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado foi elevado a nível constitucional (art. 225, caput, da CF), isto é, como direito fundamental do homem, com natureza de bem de uso comum do povo, indispensável à sadia qualidade de vida, incumbida a obrigação de promover sua defesa e preservação em benefício das gerações atuais e das supervenientes ao Poder Público e à coletividade. Trata-se de direito inserido no âmbito dos direitos sociais de terceira geração, com caráter de direito intergeracional. De outro vórtice, o texto constitucional garante o direito de acesso à Justiça, sendo vedado à lei retirar do Judiciário a apreciação de lesão ou ameaça de lesão a direito (art. 5o, XXXV, da CF), a dizer, assim, que qualquer dano ambiental já ocorrido, ou perigo de dano desse jaez, não pode ser subtraído da apreciação judicial. Ressalte-se que os direitos fundamentais do homem, dentre os quais o direito ao ambiente em harmonia do ponto de vista ecológico, estão assentados em diversos princípios, afora o fato de a República Federativa do Brasil caracterizarse como Estado de Direito Democrático, que, de seu turno, possui como fundamentos, dentre outros, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art. 1o, III e IV, da CF), e como um de seus objetivos assegurar o desenvolvimento nacional de forma sustentável (art. 170, VI, da CF), tanto que, nas relações jurídicas internacionais, comprometeu-se a dar primazia aos direitos humanos (art. 4o, II, da CF). Outrossim, tendo natureza jurídica de direito fundamental, o direito ao ambiente ecologicamente equilibrado configura 14 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MARÇO 2008
cláusula pétrea da Lei Suprema, a respeito da qual não se admite qualquer deliberação de proposta de emenda constitucional com o objetivo de a suprimir (art. 60, § 4o, IV, da CF). Nosso arcabouço jurídico está conformado de sorte a impor a todas as pessoas, tanto físicas quanto jurídicas – e, portanto, também a todas as funções de Estado, v. g., aos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário –, a tutela ao meio ambiente. Ao poder público recai a relevante missão de garantir, efetivamente, o direito ao ambiente ecologicamente adequado, mediante determinadas tarefas, que – desnecessário dizer – necessitam ser bem desempenhadas (art. 225, § 1o, incisos I a VII, da CF), em prol do entorno e dos seres humanos. No que diz respeito ao Judiciário, avulta o seu papel na proteção do meio ambiente, em especial nas demandas aforadas com tal finalidade, para realização da postulada Justiça, em cada caso concreto. Na verdade, busca-se nessas causas a concretização da tão almejada Justiça Ambiental. É certo que os magistrados, no exercício da judicatura, devem estar imbuídos da necessária imparcialidade – um de seus traços mais marcantes – na aplicação da norma jurídica às hipóteses do mundo fenomênico para a solução das controvérsias. A ação judicial é proposta pelas partes e, a partir disso, o impulso passa a ser oficial (art. 2o do CPC), até final julgamento, segundo a livre convicção do juiz (art. 131 do CPC). Entretanto, anteriormente pensava-se que a realização da Justiça operava-se mecanicamente, i. e., simplesmente fazendo recair as regras jurídicas sobre os fatos por meio das
assevera que, para a defesa dos direitos, liberdades e garantias, a lei oferece procedimentos judiciais marcados pela celeridade e prioridade, de sorte a se alcançar tutela caracterizada pela efetividade e expedida em tempo útil contra ameaça ou lesão a direitos (art. 20, no5, da CRP). J. J. Gomes Canotilho preleciona a respeito do “tempo justo” ou “duração justa” dos procedimentos administrativos ambientalmente relevantes – o que se aplica, mutatis mutandis também aos judiciais –, que é tormentosa a questão da “temporalidade procedimental” no direito público do ambiente, hodiernamente. A agilização dos procedimentos ambientais enfrenta obstáculos, a exemplo dos aspectos financeiros dos empreendedores, a necessidade de observância das regras constitucionais e infraconstitucionais, etc. Assim, é necessária a análise da problemática sob várias perspectivas, a saber: econômica, i. e., o ambiente não pode obstar uma eficiente ordem econômica; ecológica, com vistas à autosustentabilidade do sistema ecológico, e sociológica, uma vez que a ponderação dos interesses nos procedimentos ambientais deve atentar para a paz social e a solução das controvérsias. Estes e outros temas de igual relevo levam à consideração de que a demora na solução da controvérsia pode ter influência no ritmo das atividades econômicas. Para além disso, refletindo sobre o tempo justo do procedimento ambiental, não convém desprezar o fato de que a lentidão em excesso pode conduzir a danos e riscos ambientais.
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decisões judiciais, sem se importar com o resultado justo ou injusto para as partes envolvidas e para a comunidade. Diversamente, nos dias que correm, para que a tutela ambiental realmente atinja sua efetividade, o juiz deve envidar todos os esforços possíveis para o desiderato para o qual é vocacionado, sem que possa, jamais, escusar-se de tal encargo, qual seja, o de estabelecer o acertamento das relações jurídicas ambientais conflituosas, quanto ao entorno e às pessoas, de forma célere e com menores custos, adotadas, para tanto, medidas de cunho preferencialmente preventivo, a fim de se evitarem danos; e, se isso não for possível, valendo-se de medidas repressivas e/ou reparatórias, estas últimas, no rumo de recompor o meio ambiente da maneira mais próxima ao status quo ante. O Judiciário, não raramente, é chamado a resolver situações de perigo de dano ambiental ou de dano já ocorrido, que não foram previstas de forma específica na legislação de regência, podendo exsurgir hipóteses de lacuna ou de obscuridade. Ante essas situações, compete-lhe decidir as questões, utilizados os diversos instrumentos existentes, para lograr a completa integração do ordenamento jurídico, sempre com o escopo de aplicar a Justiça ambientalmente mais adequada às suas finalidades. Não se há de olvidar que o Judiciário não se pode escusar de entregar a prestação jurisdicional, quando instado a fazê-lo, ainda que o Legislativo não tenha editado a norma cabível na espécie. Deverá o magistrado, então, fazer uso dos mecanismos de integração do ordenamento jurídico como a analogia, os bons costumes e os princípios gerais de direito (art. 4o da Lei de Introdução ao Código Civil e art. 126 do CPC). Cuidará, ademais, para que sejam atingidos os fins sociais e o bem-estar social (art. 5o da LICC). No que concerne à sociedade, para que o meio ambiente seja tutelado por todos, é necessário também o aprimoramento da educação ambiental que propicie resultados concretos, mediante profunda alteração da conduta das pessoas, considerada a problemática em comento. Semelhantemente, o Judiciário precisa ter às mãos instrumentos processuais modernos para a composição das questões ambientais que lhes são postas, de forma a dar rapidez e efetividade às providências reclamadas. Nesse diapasão, impende que seja dada estrita observância ao inciso LXXVIII, inserto no art. 5o da Constituição Federal pela Emenda Constitucional 45, de 08/12/2004, que instituiu o princípio da razoabilidade da duração do processo ao conferir a todos os meios que assegurem a celeridade de sua tramitação, judicial e administrativamente. A prerrogativa de “acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva” e o princípio supramencionado constam, às expressas, do art. 20 da Constituição da República Portuguesa, de 1976, que confere a todas as pessoas acesso ao Direito e aos Tribunais, para a defesa de seus interesses legalmente protegidos, e possibilita que sejam suas causas decididas em prazo razoável, por meio de processo eqüitativo. Ademais,
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“Os membros do Judiciário também são cidadãos que podem e devem ter uma significativa participação nas decisões das políticas públicas ambientais de seu país.”
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Por isso, os princípios da prevenção e da precaução, em se tratando de meio ambiente, devem, sempre, nortear o julgador (assim como o administrador público) nos procedimentos judiciais e administrativos. E, para que tal se dê, as medidas necessárias devem ser tomadas e executadas em um tempo que possa ser tido como ambientalmente justo. De se aludir, ainda, ao art. 8o, I, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, firmada em San José, Costa Rica, em 22/11/1969, em vigor desde 1978 – à qual aderiu o Brasil –, que reza que todos têm direito de ser ouvidos, com garantias necessárias e em prazo razoável, por um magistrado ou tribunal competente, independente e imparcial, criado por lei, para se defender de acusação criminal, ou para fixação de seus direitos e obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de outra ordem. Registre-se que a Corte Interamericana de Direitos Humanos é o órgão jurisdicional do sistema regional dos Estados americanos signatários. Nas ações judiciais ambientais, os magistrados devem ser mais atuantes, mormente no que se refere à instrução processual e à determinação de realização de provas e sua respectiva análise, inclusive com a inversão do ônus da prova, se cabível (art. 6o do CDC), proferindo medidas de urgência específicas para cada situação concretizada, via efetiva execução. Tomem-se como exemplos as medidas liminares, as tutelas antecipadas, as tutelas específicas das obrigações, com providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do cumprimento das respectivas obrigações, nos termos do Código de Processo Civil (arts. 273 e 461), da Lei da Ação Civil Pública (arts. 4o e 12) e do Código de Defesa do Consumidor (arts. 83 e 84). Os membros do Judiciário também são cidadãos que podem e devem ter uma significativa participação nas decisões das políticas públicas ambientais de seu país. É imperioso, ademais, que os magistrados não só componham o litígio ambiental, muitas vezes em confronto com outros direitos fundamentais, como também atuem no sentido de propiciar a melhoria do ordenamento jurídico pátrio, de maneira a prevenir o surgimento de novos conflitos de igual ou maior magnitude. E para bem cumprir essa tarefa, os juízes necessitam adequada formação jurídica, relativamente à problemática ambiental, a ser haurida por todos os meios ao seu alcance. Como exemplo, mencione-se o papel sobremaneira importante que as Escolas de Magistrados podem desempenhar para a capacitação dos julgadores e dos servidores públicos, por meio de seminários, debates, aulas ministradas por professores de Direito Ambiental (e de outros ramos do Direito e de matérias interdisciplinares), divulgação de legislação, doutrina e jurisprudência, etc. Cabe assinalar que a orientação perfilhada pelos juízes nas ações ambientais está lastreada no seu poder cautelar, mas isto requer bom senso, observado o devido processo legal. Ademais, o julgamento deve ter, ainda, uma função
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pedagógica, de modo que as decisões judiciais contenham ensinamentos sobre a necessidade da defesa e da preservação ambiental. No que toca à interpretação e aplicação das regras jurídicas ambientais, há a possibilidade de se perquirir, em determinadas situações, se não haveria um certo viés político no exercício da função jurisdicional, especialmente quanto ao princípio do desenvolvimento econômico e social sustentável. Independentemente desse aspecto, no processo decisório, o juiz não pode, jamais, esquecer-se de que o manejo dos recursos naturais renováveis deve-se dar com a preservação do meio ambiente, em benefício da presente e das gerações porvindouras. Outros princípios constitucionais têm pertinência na interpretação das regras ambientais, vale dizer, aqueles que embasam o Estado de Direito Democrático (da dignidade da pessoa humana, art. 1o, III, da CF), assim como os que cuidam dos fins do Estado, como o da promoção do bem comum (art. 3o, IV, da CF). Já para o bem comum, têm vez os princípios gerais da atividade econômica, com o fito de assegurar a todas as pessoas vida digna, consoante normas da justiça social. Desse modo, a propriedade há de cumprir sua função socioambiental, ou seja, com a defesa do meio ambiente (art. 170, incisos II, III e VI, da CF). De conseguinte, o direito de propriedade, tanto o inerente à urbana quanto o relativo à rural, deve ser exercido em conformidade com as regras ambientais (arts. 182, 184 e 186, II, da CF). Sublinhem-se, ainda, outros princípios importantes que precisam ser levados em consideração pelos juízes nas decisões judiciais: o da variável ambiental nos processos de decisão de políticas públicas desenvolvimentistas; o do poluidorpagador; os da prevenção e precaução; o da participação da comunidade; o da solidariedade e o da cooperação entre os povos; o da informação, etc. A sociedade faz do Judiciário o grande depositário de suas angústias e anseios no que tange à solução dos conflitos ambientais. Este é um dos motivos pelos quais vêm sendo ampliados os instrumentos processuais que dão maior acessibilidade à mencionada função de Estado para se obter a postulada tutela ambiental, que necessita ocorrer em tempo razoável, a fim de que tenha utilidade e, em síntese, efetividade. Pode-se afirmar, portanto, que não só a sociedade, de forma geral, mas também, pontualmente, todos os operadores do Direito, mormente os juízes – atuando de forma mais ativa –, devem empenhar os seus melhores esforços para que a tutela do meio ambiente seja plenamente concretizada, de forma a propiciar que os seres humanos, atuais e futuros, vivam, e com sadia qualidade de vida, em um meio ambiente equilibrado, onde possam se desenvolver individual e coletivamente, com a dignidade que merecem, no âmbito do Estado de Direito Democrático, logrando, diante disto, alcançar a verdadeira Justiça Ambiental.
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TÉCNICA DE SENTENÇA – LíNGUA E LINGUAGEM Antônio Carlos Esteves Torres Desembargador do TJ/RJ
“Em linhas prévias e gerais, apesar das últimas alterações vindas a lume através de diplomas legislativos, como as da Lei n o 11.232/05, há consenso ainda quanto a se considerar a sentença o ato mais importante da função jurisdicional.”
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I – A Sentença: Técnica m ocasiões de estudo, revisitar conceitos é comportamento inevitável, imprescindível, para propósitos da permanente troca de experiência de que vive qualquer ramo científico. Em linhas prévias e gerais, apesar das últimas alterações vindas a lume através de diplomas legislativos, como as da Lei no 11.232/05, há consenso ainda quanto a se considerar a sentença o ato mais importante da função jurisdicional. Para o sempre atual Moacyr Amaral Santos: “É este o ato culminante do processo. Proferindo-a, o juiz dá cumprimento à obrigação jurisdicional do Estado. Por ela se esgota a função.” Ainda não está completamente assimilado o abandono da analogia entre sentença e silogismo, para a definição estrutural do mais significativo momento do processo. Para Moacyr Amaral Santos, ainda na década de 1960, este cotejo era de inegável serventia: “Na formação da sentença, terá assim o juiz de estabelecer duas premissas: uma referente aos fatos, outra referente ao direito. São as premissas do silogismo.” Eduardo J. Couture, embora reconhecendo que durante muito tempo a doutrina tenha concebido a sentença como um resultado das mesmas operações realizadas com premissas, na seqüência do pensamento de Calamandrei, em edição da década de 1990 de seu precioso “Fundamentos Del 18 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MARÇO 2008
Derecho Procesal Civil”, assevera que esta concepção perde diariamente terreno frente à da doutrina mais recente, que resiste a ver na sentença uma pura operação lógica e no juiz um ser inanimado que não pode moderar nem a força nem o rigor da lei, segundo o apotegma de Montesquieu. Esta forma de pensar do grande autor uruguaio não o dispensava de conceber que a sentença tem, por sem dúvida, uma lógica que lhe é particular e que dela não pode ficar ausente. Aliás, para as nossas finalidades, vale repetir que Couture, após chamar a atenção para o fato de que, na busca da verdade, o juiz atua como um verdadeiro historiador, investigador dos fatos históricos, admite que a legislação processual de muitos países das Américas descreve tão minuciosamente a forma da sentença, impondo aos juízes uma ordem tão presa ao formulismo, segundo modelos clássicos, que acaba por dar às decisões um estilo arcaico que não contribui para a compreensão do povo. Diante dessas circunstâncias, era de se prever que, ao longo da evolução do processo, como ciência (matéria) autônoma, os teóricos emprestassem a este fator o conjunto de regras que o tornasse padronizado, disciplinado, organizado, limitado, dentro de critérios que os especialistas identificam como emanações de princípios, pressupostos e requisitos, que, como ensinou o mestre uruguaio, eleva-o ao resultado que se origina da operação a “que la doctrina llama formación o génesis lógica de la sentencia”. Vale, a esta altura, recordar que a história do processo
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não dispensa a presença permanente de princípios e valores cujos contornos freqüentemente se lançam ao terreno da intangibilidade material. Assim, desde épocas não muito bem definidas no passado, para que razões filosóficas, religiosas, sociais, não tornassem o processo uma imensa biblioteca de largos e cansativos volumes, pedidos, respostas e decisões, passaram a ser parametrizados, com regras rígidas de elaboração, que, em resultado moderno, no caso da sentença penal, por exemplo, exigem até a indicação dos artigos de lei aplicados (art. 381, IV, do CPP). Embora este não seja o momento oportuno, apenas para auxílio da exposição, rememoram-se as dificuldades pelas quais passaram os teóricos da processualística na tentativa de definir o real papel da sentença no tecido social. Liebman, em prefácio à segunda edição de seu “Eficácia e Autoridade da Sentença”, deixa bem claro que “a sentença é o ato pelo qual o Estado, titular do poder jurisdicional, cumpre sua função, distribuindo justiça entre os consociados”. Em complemento, revela, como corolário desta “descoberta” (a palavra é do cientista), que a sentença não pode ser equiparada a contrato, circunstância a que o mestre destina o epíteto de relíquia histórica, mas sim, como ato jurisdicional, ao lado do ato legislativo, ou administrativo. A frase inicial deste parágrafo é “os tempos mudaram...”, e, ousando embarcar no mesmo estilo, continuam a mudar – agora com mais velocidade do que nunca e com violência raramente observada antes. A configuração dos interesses
muda a face do Direito. Coletivos, difusos, individuais, homogêneos, dessa ou daquela geração, lançam o juiz ao torvelinho da prática e à angústia da teoria. O juiz, como se apreendia da redação anterior do art. 463, do CPC, ao proferir a sentença, dava por cumprido o seu ofício. A despeito de não haver mudança dogmática, o magistrado, resolvendo o conflito, remanesce pondo fim a uma etapa de seu mister, mas, agora, dá prosseguimento, não mais com um novo processo de execução, mas perseguindo a realidade eficaz de seu trabalho, continuando seu ofício em direção ao cumprimento do que fora decidido, como o impõem os artigos 475-I e 475-R, do CPC. Com este instrumental, fixa-se o propósito de estimular o raciocínio sobre o significado social de uma sentença como elemento que garante as relações e o equilíbrio da coletividade. Para o desavisado ou para o leigo, torna-se dificultoso entender que não se trata de uma determinada sentença, mas de milhares, milhares e milhares, em todo o território nacional, diariamente, elevando a função jurisdicional ao patamar de arcabouço, suporte para a segurança da existência jurídica de uma nação. Há momentos em que esta missão se agiganta no desempenho de seu papel, corporificando a peça aglutinadora de atos e fatos jurídicos de tão amplo significado que a tornam um êmbolo dinamizador das funções sociais, alterando não apenas situações comportamentais particulares, mas impondo correção de rumo da própria história. Ficam neste patamar, 2008 MARÇO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 19
por exemplo, as sentenças confirmadoras das condições humanas dos escravos; as que impuseram penalidades aos poderosos; as que, como a da condenação pelo assassínio de Vladimir Herzog, mudaram regimes e destinos. II – Linguagem Que nos seja permitido transitar a reboque do último pensamento de Liebman, centralizado no poder das palavras e na força da linguagem. Também este vetor, a exemplo do ar que se respira, em termos técnicos e dogmáticos, desempenha papel de importância solar no amálgama social. Língua não é exatamente linguagem. Esta, em muitas circunstâncias, dispensa palavras. Talvez seja até mais útil e importante do que a língua no caminho do objetivo da comunicação. Em elogiada conferência proferida na Emerj – Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro –, há dois anos, o ilustre Prof. Evanildo Bechara, falando sobre língua e linguagem, definiu esta última como o instrumento que se serve de qualquer sinal de comunicação para uma comunidade, nos termos do dicionário “Houaiss”: “Linguagem. 1. Rubrica: lingüística. qualquer meio sistemático de comunicar idéias ou sentimentos através de signos convencionais, sonoros, gráficos, gestuais, etc. Idioma. 1. a língua própria de um povo, de uma nação, com o léxico e as formas gramaticais e fonológicas que lhe são peculiares. Ex.: o belo i. dos filósofos gregos. Língua. 5. Rubrica: lingüística. sistema de representação constituído por palavras e regras que as combinam em frases que os indivíduos de uma comunidade lingüística usam como principal meio de comunicação e de expressão, falado ou escrito.” Criticando o deplorável estado das coisas, Palmer argumenta que poucas áreas de nossas experiências são tão próximas de nós ou estão mais freqüentemente conosco do que a nossa linguagem. Resumindo a importância de estudar gramática, o especialista assevera que a “parte central da nossa linguagem (sua mecânica, seu cálculo – qualquer outra metáfora serve) é a sua gramática. E este deve ser de interesse vital para qualquer pessoa inteligente educada. Se não houver este interesse, a culpa deve recair na forma como a matéria terá sido apresentada, ou no fracasso no reconhecimento da sua importância nesta atividade humana essencial, a linguagem.” Estes conceitos devem ser considerados suficientes para o objetivo deste trabalho, porque, nem de longe, há a pretensão de se solver o problema científico que se aloja na definição entre língua e linguagem, o que, aliás, não nos impede de transitar pelos caminhos da correlação entre a sentença, sua técnica e os instrumentos vernaculares obrigatórios, através dos quais as decisões se materializam. Em recente palestra apresentada na Emerj, Ives Gandra da Silva Martins, para assegurar o aspecto de perenidade que 20 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MARÇO 2008
“em sociedade, somos, natural e inevitavelmente, ao menos, bilíngües. Usamos um vocabulário para o ambiente de trabalho e outro na intimidade do lar. São reconhecidas outras modalidades de comunicação, dependentes da ambiência em que os interlocutores se encontram.” cerca o direito à vida, exaltou o uso do modo indicativo na expressão reproduzida da obra do Direito Fundamental à Vida, fazendo recordar o conceito deste modo para Napoleão de Almeida. Assim, a própria ontologia da mecânica gramatical possibilita o esclarecimento de textos importantíssimos e lhes garante os resultados. Dificilmente se poderia conjecturar sobre melhor oportunidade para retratar o papel gramático intrínseca e extrinsecamente na peça da comunicação. Em artigo sobre o idioma, colhe-se do “Jornal do Commercio”: “A partir da Internet, houve uma revolução nos meios de comunicação. O uso do computador exige bom senso no ambiente de trabalho. Não é nada profissional receber uma mensagem de alguém que você nunca viu na vida com saudações do tipo “oi fofa” ou “oi gato”. Gafe maior é fazer gracinha, escrevendo como um teenager, por exemplo: “o evento foi tudooooo de bom”, e por aí afora. Escrever de forma abreviada, como trocar você por vc, quando por qdo e hoje por hj, só se a pessoa tiver 15 anos.” O episódio é ilustrativo de uma verdade lingüística inafastável: em sociedade, somos, natural e inevitavelmente, ao menos, bilíngües. Usamos um vocabulário para o ambiente de trabalho e outro na intimidade do lar. São reconhecidas outras modalidades de comunicação, dependentes da ambiência em que os interlocutores se encontram. De acordo com a sistemática exposta por Bechara, a estruturação lingüística se estende através de três planos: universal, histórico e individual.
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“O primeiro é o plano universal. Chama-se universal porque é o plano que está acessível a todas as pessoas que nascem com todas as suas faculdades psicofísicas e, portanto, estão devidamente preparadas para entrar neste domínio da universalidade da linguagem (...) é o plano do pensar, é o plano de trabalhar com as regras elementares do pensar. O segundo plano da linguagem é o plano histórico, é o plano das línguas (...). Porque uma língua não é nada mais, nada menos, que o mergulho do homem na sua historicidade. O terceiro plano é o plano individual e se chama individual porque falamos sempre com alguém. Falamos sempre em uma determinada circunstância. Falamos sempre a respeito de um tema. Este entorno do discurso nos leva sempre a adequar a nossa linguagem à pessoa que nos ouve, ou à pessoa que nos lê (...) é uma característica da linguagem que se chama alteridade.” Seja qual for o enfoque oferecido à matéria, um ponto comum aproxima os fatos que parecem tão dispersos na linha científica: a necessidade de comunicação. Para este particular, cumpre trazer à tona diferenças inarredáveis da evolução lingüística: mesmo que não haja palavra adequada, através de sinais ou sons, alguém pode se comunicar com alguém, não raro criando termos e expressões populares, que, dependendo da aceitação, acabam por integrar o vocabulário oficial e até logrando promoção para os escalões superiores do falar culto. Este fenômeno tem sido descrito com a expressão do inglês upgrade. A força da linguagem, que evolui velozmente, é de tal ordem que, em pouco tempo – não superior ao espaço de uma década
–, muitos desses comentários deixarão de fazer sentido, porque, de forma gradual e lenta, expressões que nascem da necessidade de comunicação popular incrustam-se no idioma padronizado, abandonando o estado de gíria, passando a gozar de qualidade aceita no cabedal do linguajar comum, se impondo, como termos e vocábulos inevitáveis do falar cotidiano, a ponto de se tornarem indispensáveis à compreensão. Numa leitura ocasional do Código de Trânsito Brasileiro, Lei no 9.503/97 – diploma de amplo espectro de interesse geral, atingindo a todas as camadas e níveis sociais –, em muitas passagens, o legislador foi obrigado a esclarecer, com tradução simultânea, o significado, por exemplo, de “guia de calçada”, lembrando tratar-se do comuníssimo “meio-fio”, art. 48; da mesma forma que, nas definições e conceitos do Anexo I, explica que catadióptrico quer simplesmente dizer “olho-de-gato”. O uso de expressões específicas de um determinado momento em determinado local, nem sempre pode obedecer a controles rígidos de adequação. Embora fosse inimaginável, como lembra Bechara, num deslize lingüístico em condolências pela morte do pai de alguém, se pudesse ouvir: “Meus pêsames por seu pai ter ‘batido as botas’”, o fato é que, descontado o exagero de tendência pedagógica, em alguma situação, os falantes podem adiantar o caso restrito de um determinado falar, empregando a linguagem coloquial em circunstâncias ainda não receptivas da modernidade. Tudo estruturalmente correto, mas lingüisticamente inadequado. Navegar nesses mares não muito serenos da comunicação é apenas uma das dificuldades que tornam o exercício profissional do Direito, em qualquer de suas facetas, mais 2008 MARÇO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 21
tormentoso e desafiante. A dependência direta da comunicação e do fiel resultado de seu recebimento, ou transmissão, impõe ao operador das mecânicas procedimentais, embora cingido aos termos dos instrumentos processuais, o redobro do poder criativo, para, sem desertar das exigências vetustas das regras e normas acumuladas ao correr dos tempos e sob domínio de fórmulas estruturais seculares – todas voltadas para os objetivos de clareza e segurança a que aludia o rei D. José, ao editar a Lei da Boa Razão –, cumprir o seu relevante papel no desenvolvimento social. Como pensam os juízes que pensam Este título, na verdade, é o subtítulo de uma obra que tenho utilizado exaustivamente em atividades intelectuais desta natureza: o senhor Herrendorf, professor de Direito, para abordar o difícil tema da fragilidade judicial no México, faz um trabalho de retrospectiva histórica e de comparação entre sistemas judiciais, examinando a ontologia da existência do cargo de magistrado, traçando um minucioso mapa da atividade – o que não dispensou a análise do estilo de pensamento dos juristas e da fenomenologia da sentença, com surpresa não investigado suficientemente. Apesar disso, não há como se negar que a ciência jurídica se desenvolve através de um modo próprio, diverso do das outras ciências – o que é percebido pelas expressões que os juristas empregam para dar a conhecer suas idéias. As sentenças são as fórmulas mais peculiares de que se utilizam os juristas para expor sua maneira de pensar – nunca deixou de haver alguém, um sábio, um conselho de decanos ilustres, um príncipe, um oráculo, que fizesse o papel de julgador. Pode não ter havido doutrina, mas Direito e julgador jamais deixaram de se encontrar. O juiz não deixa de ostentar sua condição humana para exercer suas funções. Como já se deixou lavrado, ser pensante que é, não pode se afastar de preceitos ideológicos, ainda mais que a axiologia – um dos pilares da filosofia jurídica, ao lado da ontologia, da lógica jurídica formal e da lógica jurídica transcendental – dirige as condutas que se desdobram em direção a valores, questão que se tornou o centro das atenções atuais do Direito. De como não abandonar a técnica e ao mesmo tempo não desertar da criatividade. As fontes do Direito e os julgados A despeito de conhecidas diatribes filosóficas sobre o que se considera fonte do Direito, a teoria que divide a matéria em dois significados parece ter aceitação genérica: fontes de criação e produção, e fontes de cognição. Para estas últimas, segundo a doutrina italiana, a tarefa está em reconhecer nos textos a norma jurídica. Já para as demais, o núcleo é a dinâmica que leva ao ordenamento, ressaltando-se o seu surgimento e dos preceitos jurídicos. O nosso sempre lembrado Caio Mário da Silva Pereira, com a visão de lince futurista, opta por considerar a jurisprudência como fonte informativa ou intelectual do Direito, descrevendo o papel 22 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MARÇO 2008
dos tribunais na sua vivificação e adaptação às transformações sociais. Aqui está o ponto mais importante para a reunião das três componentes do título do trabalho. As razões históricas, geográficas, temporais, sociológicas, filosóficas e doutrinárias conduzem o julgador a um tipo de linguagem característica da profissão. Ainda assim, a inevitabilidade da arte de escrever, muitas vezes, se anuncia impingindo ao magistrado fórmulas pouco usuais de manifestação, mas justificáveis diante deste fenômeno técnico da produção científica humana. Assim como a técnica jurídica prevista para a redação de sentenças é rígida, por outro lado, também a mecânica vernacular (verna – escravo nascido na casa do senhor, no original) exigiu sempre propriedade de termos (palavras), respeito à gramática (do contrário, sem um padrão gramatical, em muito pouco tempo, a comunicação estaria prejudicada, a necessitar de um novo Champollion) e a acertada disposição da frase (uma bela professora pode não ser uma professora bela). O conselho de Freire aos estudiosos da língua ainda prevalece: “O difícil do escrever está em observar a pureza vernácula, que compreende não só, como entende Castilho Antônio, as palavras genuínas, tomadas na verdadeira acepção, e a correção gramatical no uso delas, mas ainda a disposição dos vocábulos e frases segundo os costumes, gosto e índole do idioma.” A evolução científica e a lingüística – de como atuar diante destes dois vetores que se desenvolvem em progresso de âmbito comum. De como contornar o formalismo, sem trair o idioma ou fracionar a função judiciária A língua mantém um padrão que resiste ao tempo... “To be or not to be” já se aproxima de quatrocentos anos e mesmo quem não fala inglês (e até quem fala) não deixa de perceber o significado deste símbolo da dúvida existencial hamletiana. Nem se há de censurar o juiz que se expressa em poesia ou se utiliza de expressões modernas de aceitação genérica. Há pouco tempo, um magistrado empregou “vou direto ao assunto” de forma a deixar bem claro que não ia perder tempo com circunlóquios. Entendi muito bem e todos que leram também. Pode não estar de acordo com o padrão mais ortodoxo da linguagem jurídica, mas dentro de uma década será expressão considerada erudita. Aí vai a colaboração — intento único deste lembrete expositivo — para os que escrevem e para os que lêem, com a mensagem de otimismo no sentido de que a comunicação não será prejudicada pelas alterações evolutivas do linguajar, nem o universo dos operadores do Direito diminuído com a técnica da manutenção das regras mínimas da gramática, da retórica ou da dialética, exigindo apenas dos profissionais um pouco de atenção a estes parâmetros que protegem a clareza do que se diz ou se escreve. Para um término de trabalho, não se pode deixar de trazer
a exame o fato inegável de que o próprio Direito passa por transformações dogmáticas que, no dizer de Sanchís, se alojam entre crises de positivismo legalista e do descrédito da jurisprudência conceptual, com o perigo de prevalência do irracionalismo, que ameaçava apoderar-se de todo o processo de interpretação ou aplicação jurídica do Direito, em última instância. Para a empresa de resgate do controle sobre o reacionarismo jurídico e sobre a argumentação judicial, era necessário assumir o ensino da crítica antiformalista e reformular os termos da exegese para explicar a atuação dos tribunais na solução dos conflitos. Tratava-se de um postulado fundamental do sistema de legitimidade do Estado de Direito. O que se propunha era formar o processo de decisão judicial de acordo com certos critérios objetivos e ideologicamente plausíveis, de modo a não ceder passo à pura arbitrariedade subjetiva, inaugurando um novo horizonte completamente novo e aberto à ação transformadora e ideológica da judicatura. A parte central da interpretação, ao menos a que se mostra como mais relevante na análise jurídica, consiste na atribuição de um significado ao enunciado normativo previamente selecionado, o que não é uma mera questão de fato, visto que as leis estão formuladas com uma linguagem natural e, obviamente, todo enunciado de uma língua natural se acha, em certa medida, contaminado de indeterminação semântica. O juiz, que não forma parte de uma comunidade lingüística perfeita e homogênea, é chamado a eleger dentro do universo da determinação, sem praticar atos de asserção, mas sim, diretivos, não justificáveis com referência a fatos, e sim, a valores. Neste exercício nada simples, os magistrados se deparam com fórmulas de comunicação variadas, não podendo se afastar da inevitabilidade de características próprias de todas — todas, vejam bem — as áreas de atuação (artes, ciência, filosofia, política), sendo que, a propósito de política, como alguém já disse com uma surpreendente franqueza, “a moral política não corresponde à moral jurídica”. Para ficar bem marcada a imensa dificuldade interpretativa da linguagem, ao menos no tocante a este último segmento, sirvo-me de uma assertiva que pode muito bem atuar como advertência conclusiva com respeito a tudo que quisemos expor no atinente à delicadeza do tema, visto que o juiz há de transpor os umbrais das vontades subjacentes no âmago psicológico para extrair, em muitas e muitas circunstâncias, o lírio do lodo: em nosso tempo, o discurso político e os textos são largamente a defesa do indefensável, porque, como incisivamente expõe Orwell, “a linguagem política é estruturada para fazer mentiras parecerem verdade; assassinatos, respeitáveis, e dar aparência sólida ao vento”. Conjurar mentiras, condenar homicídios, revelar a realidade da vida trazendo a verdade ao proscênio, reduzindo os atentados contra a vida ao reles patamar de crime e concretizar as genuínas aspirações dos homens de bem, custe o que custar, através do uso desta maravilhosa ferramenta, a sua língua, é a missão ideológica com que o verdadeiro juiz materializa seu sacerdócio.
“Conjurar mentiras, condenar homicídios, revelar a realidade da vida trazendo a verdade ao proscênio, reduzindo os atentados contra a vida ao reles patamar de crime e concretizar as genuínas aspirações dos homens de bem, custe o que custar, através do uso desta maravilhosa ferramenta, a sua língua, é a missão ideológica com que o verdadeiro juiz materializa seu Sacerdócio.”
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UM JUIZ EXEMPLAR Luiz de Pinho Pedreira Professor Emérito da UFBA Desembargador aposentado do TRT 5a Região
“Dignidade evidenciada, sobretudo, no exercício intimorato da judicatura por um juiz a quem jamais atingiria a objurgatória de Rui Barbosa: ‘O bom ladrão salvou-se, mas não há perdão para o juiz covarde`.”
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data do nascimento possui para todo ser humano grande significação, sendo cada ano motivo de maior ou menor comemoração. Mas na existência de Francisco Peçanha Martins, o seu aniversário, em 14 de fevereiro de 2008, tem máxima importância porque, completando ele setenta anos de vida, vê encerrada, de fato involuntariamente, a sua luminosa carreira de magistrado. A alegria dos seus colegas, amigos e admiradores, por assistirem completar ele essa idade com plena higidez física e intelectual, é toldada por saberem que perde a magistratura brasileira uma das suas melhores figuras, e que ficará ele impossibilitado de ascender à presidência do Superior Tribunal de Justiça, que por força da antigüidade agora lhe caberia, como coube a vice-presidência, e em que seria um dos sucessores de seu pai – o saudoso ministro Álvaro Peçanha Martins, juiz exemplar como foi o filho. A trajetória jurídica de Francisco Peçanha Martins tem sido pontuada pela competência, pela operosidade e pela dignidade. Dignidade evidenciada, sobretudo, no exercício intimorato da judicatura por um juiz a quem jamais atingiria a objurgatória de Rui Barbosa: “O bom ladrão salvou-se, mas não há perdão para o juiz covarde”. Se necessário fosse comprovar com um exemplo o destemor de Francisco Peçanha Martins no desempenho do cargo de ministro do Superior Tribunal de Justiça bastaria evocar a sua decisão no caso do cancelamento do visto de permanência no país de um correspondente do grande jornal norte-americano “New York Times”, porque mandou para publicação notícia de que o presidente da República seria dado ao uso de bebidas alcoólicas. Impetrado habeas corpus em favor do jornalista pelo senador Sérgio Cabral contra o ato expulsório do ministro da Justiça, Peçanha Martins, sorteado relator, concedeu a Willliam Larry Rohter, o paciente, salvo-conduto até decisão do feito, argumentando: “O ato de concessão ou 24 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MARÇO 2008
revogação de visto de permanência no país de estrangeiros, em tese, está subordinado aos interesses nacionais (art. 3o da Lei no 6.815/80). O visto é ato de soberania. Perguntome, porém, se uma vez concedido poderá ser revogado pelo fato do estrangeiro ter exercido um direito assegurado pela Constituição, qual o de externar a sua opinião no exercício de atividade jornalística, livre de quaisquer peias? Estaria tal ato administrativo a salvo do exame pelo Judiciário? Neste caso penso que não. É que no Estado Democrático de Direito não se pode submeter a liberdade às razões de conveniências ou oportunidade da administração. E aos estrangeiros, como aos brasileiros, a Constituição assegura direitos e garantias fundamentais descritos no art. 5o e seus incisos, dentre eles avultando a liberdade de expressão. E dúvidas não pode haver quanto ao direito de livre manifestação do pensamento (inciso IV) e da liberdade de expressão da atividade de comunicação, “independentemente de censura ou licença” (inciso IX)”. O ministro da Justiça tornou insubsistente o seu ato. O espírito democrático e o respeito ao primado da Constituição, aí transparentes, demonstraria também Peçanha Martins no julgamento, entre tantos outros, da medida cautelar intentada pelo prefeito da cidade de São Paulo, Celso Pitta, com o objetivo de ser atribuído efeito suspensivo a recurso especial requerido contra acórdão prolatado em agravo de instrumento interposto contra a decisão liminar que o afastou do cargo, proferida pelo juiz da 13a Vara da Fazenda Pública Central nos autos de “ação de responsabilidade civil por ato de improbidade administrativa com pedido de liminar” promovida pelo Ministério Público do Estado de São Paulo. Desempatou Peçanha o julgamento concedendo a liminar requerida pelo prefeito, sustentando que: “A República democrática brasileira repousa na célebre teoria de Montesquieu, não sendo possível admitir a interferência ou invasão de um poder na esfera de
Foto: EMERJ
competência de outro. A lei é clara quando diz que ocorrerá a suspensão dos direitos políticos após o trânsito em julgado da sentença condenatória. Ora, enquanto não transitada em julgado a sentença, a aplicação da regra do parágrafo único representaria a interrupção do mandato eletivo conferido pelo povo. E na democracia, somente o povo, pelo seu órgão representativo, no caso a Câmara de Vereadores, é que pode, a seu tempo e modo, determinar o afastamento dentro do processo de impeachment. Um breve mas exato perfil de Francisco Peçanha foi traçado pelo famoso advogado Saulo Ramos no seu recente livro de memórias “Código da Vida”. Conta que foi patrono da NEC em causa contra empresa que alegava não ter ela o recurso de roaming, vital para a comunicação entre os telefones celulares de regiões diferentes. Cassada a liminar concedida aos concorrentes no Tribunal Regional Federal de São Paulo, recorreram eles ao Superior Tribunal de Justiça e foi sorteado relator o ministro Peçanha Martins. Saulo Ramos dirigiuse ao gabinete e assim descreve o encontro: “Ao entrar na sala dele, ouvi logo de início: ‘Seus adversários estiveram aqui e fizeram uma longa sustentação oral antes da hora. Vou lhe assegurar o mesmo direito. Comece’. Peçanha Martins é um excelente jurista. Baiano de talento, gozador, bem humorado, muita gente se engana com ele. Por trás da simplicidade e da enorme barriga, tem uma vasta cultura geral além de uma perspicácia invejável para questões de direito. - O senhor sabe o que é roaming? Perguntei. - Não tenho a menor idéia – disfarçou ele, já esboçando um sorriso inteligente. Sei apenas tratar-se de uma tecnologia que sua cliente não tem. - É o que afirmam os impetrantes. Vocês vão decidir isso em mandado de segurança? Vão fazer perícia em processo que apenas examina direito líquido e certo?” A cassação da liminar foi mantida e a segurança, mais tarde, negada. O memorialista não tornou expresso o que está implícito em seu relato: o tratamento absolutamente eqüitativo dispensado às partes. Mas fez bem em destacar, entre as qualidades de Peçanha, a simplicidade; realmente uma das características mais acentuadas da personalidade desse gastrônomo soteropolitano que, nas suas vindas a Salvador, freqüenta assiduamente os restaurantes populares, notadamente o Porto da Moreira, e joga dominó no Club Inglês em total igualdade com os parceiros, inclusive quanto ao linguajar usado no jogo. Recordou ele do inesquecível Roberto Casali, em ocasião oportuna, a companhia afável, as observações pontuais, os comentários dos fatos do dia-a-dia, praticados nos ambientes alegres dos restaurantes e bares, de que é apreciador quando em companhia de amigos, pois a fidelidade a estes é uma das suas marcas.
Ministro Peçanha Martins
Não guarda avaramente para si os seus conhecimentos nem se limitou jamais a utilizá-los nas decisões, tendo sempre aceito convites partidos de todos os quadrantes do país para proferir conferências em que são temas recorrentes a crítica ao processo civil brasileiro e às suas reformas, que para ele só fazem piorá-lo, assim como a súmula vinculante, que entende ineficiente para a solução do problema da morosidade da justiça, para o qual o remédio seria a avocatória, e o seu mestre e amigo Josaphat Marinho. A ascensão de Peçanha Martins ao Superior Tribunal de Justiça não se deu aos saltos, mas ao cabo de um considerável percurso, iniciado como acadêmico de Direito, militante na polícia estudantil, inclusive da UNE, sempre em posições de liderança, estagiário da Procuradoria Regional do Trabalho, Oficial de Gabinete do Secretário do Interior e Justiça, diretor do Fórum Ruy Barbosa, advogado, integrante do Conselho Seccional da respectiva Ordem, chefe de um dos setores jurídicos da Petrobras, professor da Faculdade de Direito da UFBA. Podendo, em gozo da aposentadoria, recolher-se ao ócio com dignidade, porém, certamente pensando como William Cowper que ausência de ocupação não significa repouso, vai continuar na liça, em outro ângulo da arena judiciária. Despe a toga imaculada do juiz e recobre-se com a beca do advogado bravo e impoluto. 2008 MARÇO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 25
Segurança em transporte é um problema nacional Diogo de Figueiredo Moreira Neto Jurista
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irataria, segurança, preços das passagens, gratuidades, licitações, são assuntos que não escapam aos comentários do professor Diogo de Figueiredo Moreira Neto, atento observador da situação do transporte urbano, como, de resto, de toda administração pública no país. Referência no chamado Direito Administrativo, Moreira Neto é também um cientista político que procura mostrar por que a delegação da prestação de serviços públicos à iniciativa privada, prevista na Constituição, deve ser analisada à luz das mudanças no papel do Estado, que, refletindo uma maior presença da sociedade e o fortalecimento da cidadania, está transformando a fisionomia do Direito e tornando mais difícil a distinção entre as esferas pública e privada. É dentro deste contexto que ele se propõe a analisar o quadro atual do transporte urbano, cujas dificuldades, ele reconhece, não advêm apenas de problemas de interpretação, mas da conturbada situação social. Justiça & Cidadania – Já foram listados contra o transporte pirata mais de 20 regulamentos nacionais, federais, estaduais e municipais, sendo o mais notório a resolução 811 do Conselho Nacional de Trânsito (Contran), que estabelece que apenas ônibus e microônibus podem
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operar no transporte urbano. Qual é a sua opinião sobre os processos de legalização deste tipo de transporte conduzido no país, uma vez que kombis e vans não se enquadram na resolução 811? Diogo Figueiredo – Esse é um campo cuja competência é, sem dúvida, da União: segurança em transporte é um problema nacional, que está acima da competência de estados e municípios. De acordo com a Constituição, as leis federais, estaduais e municipais não são hierarquizáveis. Isso só acontece no caso do Sistema Único de Saúde (SUS). No entanto, cabe apenas à União legislar sobre normas gerais. Estados e municípios podem legislar sobre transporte, mas, no máximo, sendo mais restritivos, e não derrogar uma norma nacional. Imagine se estados e municípios fossem derrogar uma restrição da União quanto ao uso de remédios. Da mesma forma, derrogar uma norma da União, como neste caso, é o mesmo que dizer que a segurança dos passageiros não é uma questão importante. Trata-se, então, de uma ilegalidade. Há uma colidência com uma norma que tem seu assento definido pela União. JC – Há casos de legalização do “transporte alternativo” em curso, na cidade e no estado do Rio de Janeiro, assim como em outros estados e municípios brasileiros, de acordo
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com os quais não apenas estão previstas licitações para a operação de linhas de kombis e vans, como também é vedada a participação de empresas legalmente constituídas. Não há aí uma outra ilegalidade? DF – São duas as ilegalidades. A primeira é instituir um sistema de permissão que, por não ser objeto de contrato e não estando, portanto, subordinado à licitação, viola o artigo 175 da Constituição. Este artigo diz: “Incumbe ao poder público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos”. A União contratualizou a permissão exatamente para isso, ou seja, para sujeitá-la às suas regras, senão não teria sentido. Dessa forma, se existe permissão, tem de ser feita licitação, obedecendo às normas gerais da União. JC – Não é incomum vermos os governos municipais e estaduais se abstendo da responsabilidade por acidentes provocados por ônibus piratas. Afinal, de quem é a responsabilidade pelos acidentes? DF – A partilha do serviço de transporte feita pela União é a base para responder a isso. Pertence aos municípios o transporte urbano, considerado pela própria Constituição um serviço essencial. Pertence aos estados o transporte intraestadual. E pertence à União o transporte interestadual e
“A partilha do serviço de transporte feita pela União é a base para responder a isso. Pertence aos municípios o transporte urbano, considerado pela própria Constituição um serviço essencial.”
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O ônibus é um espaço aberto ao público e todo espaço aberto ao público está sujeito à ordem pública. Quem deve ser responsável pela ordem pública é o Estado.
internacional. A responsabilidade pelo acidente, então, é daquele que deixou, irregularmente, que o mesmo ocorresse por falta de vigilância ao seu campo de atuação. JC – Centenas de ônibus foram queimados e outros tantos depredados no Rio de Janeiro nos últimos anos. Nem os passageiros estão sendo poupados. Uma passageira morreu depois que atearam fogo em seu corpo durante o incêndio criminoso de um ônibus. De quem é a responsabilidade neste caso? Existe alguma maneira de tratar estes crimes como crimes hediondos? DF – A segurança pública é competência e responsabilidade do Estado. A União só entra na segurança pública quando os meios do estado se esgotam ou quando há uma intervenção federal. A única maneira do estado se eximir de culpa é provar que não teve condições materiais de cumprir seu papel, colocando o problema como uma excludente. A responsabilidade do estado, como a da União e do município, deve sempre ser considerada dentro de suas possibilidades de atendimento. Caso tivesse um helicóptero, o estado poderia ter chegado na hora, mas ele não tinha um helicóptero, por exemplo. Ele passa a ser responsável quando, tendo condições de prestar um serviço, não o faz. JC – Existem casos de empresas condenadas a pagar indenizações a passageiros por assaltos sofridos dentro dos ônibus. DF – O ônibus é um espaço aberto ao público e todo espaço aberto ao público está sujeito à ordem pública. Quem deve ser responsável pela ordem pública é o Estado. JC – O juiz responsável alegou a previsibilidade deste tipo de ocorrência... 28 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MARÇO 2008
DF – Muito bem, o Estado deve ter esta previsibilidade em um grau muito maior do que a empresa privada, pois é ele quem tem todos os elementos necessários para prevenir e reprimir a criminalidade. JC – ... sobre crimes hediondos. DF – A classificação sobre crimes hediondos é privativa da lei federal. O legislador federal é quem tem, diante de cada caso, que tipificar um crime como hediondo. Trata-se de uma escolha política que pode estar certa ou errada. Fixar um imposto de 5% sobre importações é certo ou errado? É uma decisão política. Não compete ao homem do Direito criticar o problema político. Ele só pode saber se uma tipificação é constitucional ou não. JC – O artigo 175 da Constituição Federal dispõe sobre política tarifária e a manutenção de um serviço adequado. Ou seja, todo serviço público tem de ser remunerado para que possa cobrir os custos que lhe são inerentes. No entanto, no transporte urbano, existe uma defasagem crônica entre as tarifas e os preços das passagens definidos pelos governos municipais e estaduais. Como não existe subsídio neste setor no Brasil, não é o caso de se perguntar pela inconstitucionalidade das decisões municipais e estaduais? DF – Claro. Trata-se de uma desapropriação, pois o particular tem direito a uma tarifa e não a recebe. O poder público o está confiscando. É a mesma coisa que pegar os vencimentos de uma pessoa e dizer que vai ficar com uma parte. Não há nenhum suporte constitucional para o confisco. Ninguém entra em um negócio para perder. Se o Estado, que é o fiador de todos, não presta um serviço, ele não pode obrigar ninguém a entrar no serviço público para fazer caridade.
Foto: Arquivo JC
JC – A gratuidade no transporte coletivo urbano é um direito estabelecido na Constituição e nas leis estadual e municipal. No entanto, não se diz em nenhum lugar que a concessão desse direito seja um dever das empresas de ônibus. Como o senhor vê essa questão? DF – Ao contrário, a Constituição diz que cabe ao poder concedente, porque ele tem de manter o equilíbrio econômico-financeiro das empresas prestadoras de serviço. A tarifa tem de servir à sua finalidade. O Estado não pode descuidar do equilíbrio econômico-financeiro das empresas de transporte, pois vai estar arriscando, em última análise, a segurança do cidadão. A tarifa no transporte é uma questão de segurança. Quanto à gratuidade, é preciso que haja uma outra fonte de custeio como compensação. O poder público pode criar o que quiser, mas tem de recompor a tarifa. JC – Em relação à licitação dos serviços públicos, a Lei no 8.987 dá margem à interpretação de que as linhas de empresas permissionárias, como no caso das empresas de ônibus do Rio de Janeiro, não teriam por que ser licitadas, uma vez que não há um plano setorial de transportes a ser obedecido. Qual é a sua opinião sobre esta questão? DF – A licitação é um princípio relativo. A Constituição, em momento algum, fala sobre licitações no transporte público. Prudentemente, no artigo 175, fala sobre licitação em geral nos serviços públicos. As legislações é que, diferentemente da regra geral de licitação, que não poderia considerar a contingência de cada caso, vão ter de responder aos aspectos específicos. Um município não pode tratar o seu caso de modo igual ao de outro município. Um tem 50 linhas de ônibus, o outro tem 500. É preciso que a lei municipal, diante de sua situação concreta, saiba qual
é o tratamento mais adequado. A decisão penderá de um planejamento, que é obrigatório para municípios com população superior a 50 mil habitantes, conforme prevê a Constituição. Da mesma forma, um município não deve tratar a todos os prestadores de serviço por igual, pois estaria sendo injusto. O que é a injustiça? É tratar igualmente situações desiguais ou tratar desigualmente situações iguais. Esse é o princípio de justiça aristotélico. JC – Existe, então, um argumento jurídico? DF – O argumento jurídico é a existência de uma lei prévia para decidir uma situação dada. O município tem de buscar o interesse do usuário e distinguir quem presta um bom serviço de quem presta um mau serviço. O que tem de haver é efetividade, caso contrário, pode-se sacrificar o que está bom para cumprir uma determinação legal que não tem nenhum sentido prático, que não vai levar a nenhuma melhoria do sistema. JC – Cada vez mais a opinião pública influencia as avaliações. DF – É a opinião pública, em última análise, a grande fonte para que o governo local ou estadual saiba o que deve fazer, de acordo com os dados estatísticos que possui. Não se pode, considerando uma região metropolitana como a nossa, onde os engarrafamentos são imensos, simplesmente acusar de mau serviço uma empresa de ônibus. É preciso que o poder público decida racionalmente e razoavelmente. A racionalidade e a razoabilidade são diferentes, mas precisam coexistir. Há alguns anos, o Direito positivo levava a essas conclusões absurdas. Hoje, temos de temperar a idéia do Direito pela idéia da finalidade. Se não se atinge a virtude de uma finalidade, não se tem um bom Direito. 2008 MARÇO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 29
Igualdade em construção Andréa Pachá Juíza de Direito do TJ/RJ Membro do CNJ
É
preciso entender a crescente inserção feminina nos mais diversos aspectos da vida social como um elemento fundamental do avanço da cidadania. Compreendida assim a presença ativa da mulher na sociedade, a violência contra a mulher, principalmente a violência doméstica, assume características de aberração social e de fenômeno que, ao ferir a cidadania, exige das instituições respostas à altura. A violência contra a mulher é a múmia que resiste ao dia e se conserva na escuridão. Foi longo o caminho para a conquista do espaço hoje ocupado pelas mulheres. Há pouco mais de setenta anos nem sequer havia participação feminina no processo eleitoral. Sem voto e sem voz, até mesmo no campo mais pródigo e generoso das artes e da cultura, a presença feminina era tímida e restrita a umas poucas exceções que confirmavam a regra do confinamento a um segundo plano social. Vista pelo retrovisor hoje, a luta pelo reconhecimento da mulher como agente social pleno parece ter se esgotado na ampliação da presença feminina no mercado de trabalho. Em diversas profissões, de fato, as mulheres já são maioria – ainda que a remuneração que recebam, generalizadamente inferior a dos homens, mantenha acesa a luz de advertência quanto à necessidade de prosseguir no combate pela igualdade. Na própria magistratura há um processo crescente de feminilização. Já são duas ministras na Suprema Corte do País e as mulheres estão em praticamente todos os tribunais e nas jurisdições de primeiro grau. Muitas trazendo inovações importantíssimas para a prestação de serviços à sociedade. Também na política, embora em proporção ainda relativamente pequena, as mulheres têm ocupado mais e mais importantes espaços, desempenhando com eficiência as tarefas a que se propuseram. 30 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MARÇO 2008
Mas, a despeito de tudo isso, a violência de gênero se mantém. Ela não discrimina classe social, grau de escolaridade, renda ou idade. É uma violência silenciosa, que afronta a dignidade individual e corrói os valores e a estrutura das famílias. Superar esse tumor social, que envergonha a cidadania, depende de transformações culturais e sociais de amplo espectro. Mas é evidente que nenhum esforço no sentido de eliminar a violência contra a mulher chegará a bom termo sem o suporte e a atuação firme do Poder Judiciário. A Lei Maria da Penha, que tipifica e pune os atos de violência contra a mulher, promulgada em 2006, significou uma profunda alteração na forma com que o Judiciário vinha enfrentando a matéria. Após marchas e contramarchas, finalmente com a Lei no 11.340, uma série de direitos, antes esparsos, que tutelam especificamente o gênero feminino, foram afirmados. Até então, a violência contra a mulher e a afirmação constitucional da igualdade de gênero era assimilada como parte integrante dos demais direitos e garantias previstos na Constituição, sem qualquer especificidade de atenção pontual por parte do legislador. Deve-se, por isso mesmo, entender a Lei Maria da Penha como um dispositivo legal afirmativo dos direitos das mulheres. Sua aplicação é de grande importância no avanço da cidadania. Acima de todas as determinações legislativas, o texto vale pelo seu simbolismo. Sua existência colabora para alterar a percepção cultural e social da violência de gênero. Evidentemente que não se muda a cultura pela promulgação de uma lei, mas ela tem importância fundamental nesse processo. Em alguns momentos, a edição de um texto legal funciona como aparato didático.
Foto: STF
“Sua existência colabora para alterar a percepção cultural e social da violência de gênero. Evidentemente que não se muda a cultura pela promulgação de uma lei, mas ela tem importância fundamental nesse processo.” No Judiciário, a lei foi recebida com sede. Em alguns estados, bastou sua promulgação para que fossem imediatamente instalados os juizados especiais dedicados, exclusivamente, ao julgamento dos atos de violência doméstica contra a mulher. Rapidamente, os tribunais de todo o país começaram a trabalhar para tornar a lei efetiva. Dando um passo concreto na consolidação desse processo, há um ano, em março de 2007, o Conselho Nacional de Justiça aprovou recomendação aos tribunais para a instalação dos juizados. O CNJ assumiu a implementação da Lei como prioridade. Hoje, todos os estados estão mobilizados na criação, ampliação e consolidação de unidades jurisdicionais para tratar, especificamente, da violência de gênero. Ainda é pouco e por isso é fundamental continuar a construção dessa rede. Para isso, o Poder Judiciário conta com a parceria do Executivo, por meio da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, e do Ministério da Justiça. Em conjunto, promoveram, no último dia 10 de março, uma jornada de trabalho com a presença da presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, ministra Ellen Gracie, e com magistrados e magistradas de todo o País, buscando meios de capilarizar a presença dos juizados, para que eles estejam acessíveis a cada mulher que sofre uma agressão. Juízes e juízas desempenham papel fundamental nesse processo. Eles são os protagonistas da efetivação da lei. Entendem que a Lei Maria da Penha é boa não apenas para as mulheres. É boa para toda a sociedade porque gera igualdade, condição fundamental para o avanço da democracia e da cidadania. Enquanto prevalecer o desequilíbrio de gênero, não teremos justiça social. 2008 MARÇO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 31
Federação e Jurisprudência Aurélio Wander Bastos Advogado Doutor em Ciências Políticas Membro do Conselho Editorial
“Na estrutura federativa é significativamente inconveniente que órbitas geopolíticas, inclusive no âmbito dos poderes judiciários, as decisões superiores sejam reavaliadas em instâncias inferiores antes da apreciação definitiva dos tribunais hierárquicos.”
A
Federação define-se em função do conceito de divisão geopolítica do território (União, Estados e Municípios), cuja funcionalidade depende da organização dos seus respectivos Poderes políticos (Executivo, Legislativo e Judiciário, excetuados, neste último, os municípios) que, por sua vez, unitariamente, se estruturam hierarquicamente. A Federação, enquanto tal, não decide. As suas políticas são políticas do conjunto dos Poderes, mas, os Poderes decidem através de leis (atos do Executivo articuladamente com o Legislativo), decretos (atos do Executivo, dominantemente), e sentenças e acórdãos (atos terminativos de cases do Judiciário). Esta especialíssima estrutura de organização do Estado permite que a organização federativa seja permeada pelos Poderes através de suas decisões no limite de suas competências, mas, nos casos de lacuna ou inexplicitude legal, ou vazios legislativos, muitas vezes, entrecruzamentos das órbitas de decisão podem desequilibrar o princípio da hierarquia interna dos Poderes, com significativos efeitos na apuração ou na produção da verdade jurídica (ou dos fatos). Este fenômeno tem contribuído decisivamente para dificultar a compreensão do papel do Poder Judiciário na órbita da estrutura geopolítica da Federação, assim como na estrutura geral dos Poderes, tumultuando a compreensão das funções sistêmicas dos procedimentos técnicos judiciários. Neste sentido, a própria estrutura do Poder Judiciário, altamente complexa na estruturação de suas instâncias, de vocação monocrática na forma do seu poder decisório, nem sempre contribui para a compreensão de sua funcionalidade 32 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MARÇO 2008
– diferenciada da lógica decisória dos demais Poderes, quase sempre –, de qualquer forma, permeada pelos entrecruzamentos de competências, principalmente porque, historicamente, herdou as resistências ao racionalismo hierárquico linear. Estas práticas, quase sempre traduzidas na força monocrática das decisões organizadamente dispersas, não apenas desviam a percepção do papel do Judiciário nas garantias democráticas – efetivamente decisivas no Brasil moderno –, mas, também, a compreensão hermenêutica das decisões dos próprios Poderes, quando não das instâncias judiciárias, principalmente na sua convivência federativa. Por estas razões, diversamente da moderna expectativa constitucional, as competências do Supremo Tribunal Federal – STF –, principalmente o seu papel como Corte Constitucional, e do Superior Tribunal de Justiça – STJ –, principalmente na sua função de órgão uniformizador da jurisprudência de direito comum, não foram ainda compreendidas, senão pela consciência de seus próprios integrantes, as funções do Poder Judiciário na estrutura federativa onde focou imprescindível, depois da Constituição de 1988, a subsunção de decisões superiores a órgãos judiciários de instância intermediária, o que muitas vezes se agrava devido à própria consciência política militante (muitas vezes, inclusive, parlamentar). Na estrutura federativa é significativamente inconveniente que em órbitas geopolíticas, inclusive no âmbito dos poderes judiciários, as decisões superiores sejam reavaliadas em instâncias inferiores antes da apreciação definitiva dos tribunais hierárquicos. Rui Barbosa, quando pensou o STF como Tribunal
Foto: Arquivo JC
Superior de terceira instância, imaginou-o como órgão que exercesse com eficiência o papel transformativo das decisões das antigas províncias na expectativa, não apenas de fortalecer a hierarquia judiciária, mas também, de encontrar caminhos comuns para o direito comum. A frustração daquele ilustre jurista repercutiu na historia do judiciário brasileiro de várias formas, inclusive porque o Recurso Extraordinário, como hoje ainda ocorre, subtrai da Corte a sua força constitucional rotineira. Por outro lado, mesmo com a nova Constituição, que contribuiu para se criar o STJ, não se formataram os mecanismos necessários de força legislativa ou mesmo de força sumular que reforçassem o poder e a competência para transformar as suas decisões em decisões impositivas, mediante as decisões de efeito suspensivo nos tribunais estaduais. Na verdade, estas posições traduzem as expectativas republicanas de reconhecer, historicamente, no STF a terceira instância competente para enfrentar, em nível federal, as dispersões dos tribunais marcados pela herança das Relações (no Império), assim como, por outro lado, o STJ – como instância de articulação dos âmbitos judiciários do poder e das instâncias inferiores –, precisa desenvolver mecanismos de competência que lhe permitam enfrentar as práticas herdadas, não apenas dos períodos constitucionais anteriores, mas também, da força descentralizadora das Relações na produção do mérito nos diferentes cases. Este quadro de dificuldades tem um segredo nem sempre perscrutável pela consciência política rotineira ou pelo cidadão comum, porque ele foge do raciocínio linear (culpa/efeito) do
conhecimento jurídico para se explicar, senão propriamente em função da questão política, da herança dogmática do romanismo ou da questão do papel do Judiciário tradicional na federação – resistente, e, muitas vezes, infenso, devido à sua estrutura organizativa cartorial, à repartição não propriamente geográfica do poder, mas à reversão dos efeitos hierárquicos da descentralização geográfica sobre a própria estrutura dos Poderes e produção do direito, muitas vezes, privilegiando as instâncias judiciárias segmentadas em detrimento dos órgãos centralizados competentes para a uniformização jurisprudencial. Em 1978, quando elaboramos o livro “A Criação e Organização do Supremo Tribunal de Justiça no Brasil” (Câmara dos Deputados/Casa Rui Barbosa) – hoje, o Supremo Tribunal Federal –, em comemoração aos 150 anos de sua criação, agora comemorando 180 anos, mas que na sua primeira etapa trabalhou com os antigos ministros do STJ do Império, da mesma forma que os tribunais estaduais absorveram os desembargadores das Relações, verificamos que o passado histórico de nossas instituições judiciárias, especialmente a força histórica das Relações, projetaria para o futuro dificuldades – não quero dizer intransponíveis, mas que resistiriam à formatação de instâncias judiciárias superiores (o STJ imperial nunca fora uma terceira instância) – de força uniformizadora, devido aos seus fundamentos de decisão apoiados nas ordenações, exatamente o referencial de poder das províncias diante das competências do poder imperial historicamente representado pelo poder real. O poder real preferia descentralizar as questões de direito comum para centralizar as decisões de direito comum (e especial) de relevância política, senão absolutamente, por estas razões, as presumíveis competências do moderno poder central, sejam executivas ou judiciárias, dada a especificidade legislativa dos estados-membros, historicamente, nas políticas de centralização jurisprudencial do direito comum sempre sofreram grande resistência. Na verdade, o projeto federalista de 1891, mesmo com a especial força que transformou o STJ imperial em STF (terceira instância) republicano, não desarticulou a estrutura do Poder Judiciário imperial, senão em procedimentos isolados, mesmo porque, não se criou um código de Processo Civil, permitindo que as decisões judiciárias rompessem com o praxismo (aberto) do processo decisório filipino, apoiado nos arrestos que nasceram das ordenações. Estava evidente que as Relações, na antecedência dos tribunais, profundamente resistentes à centralização judiciária, assim como o combalido STJ imperial (que não era terceira instância), para deixar em aberto o poder imperial como especial forma de se evitar a submissão do direito comum estadual à incipiente jurisprudência que evoluía no STF. Neste sentido, o STF, mesmo com o grande avanço provocado pela Constituição de 1988, funcionando como uma instância formal superior de apreciação de direito comum produzido pelos Tribunais, não propriamente como fora, fica constrangido na sua autonomia constitucional e o 2008 MARÇO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 33
“A força do Poder Judiciário estadual não pode e não deve prevalecer sob a força do Poder Judiciário central sob pena de ruptura da federação pelo poder territorial local.” STJ, na sua forma readaptativa do antigo TFR (BASTOS, A. W. STJ 16 anos. Revista Justiça & Cidadania, n. 58, p. 16-17), como tribunal central, com força de centralização do processo decisório, fica limitado, à medida que a proposta de centralização federativa do próprio Código de Processo de 1973, fortalecidas judiciariamente pela Constituição de 1988, vê-se, de uma forma ou de outra, cerceado pela autonomia das decisões estaduais, asseguradas, não apenas pela independência dos seus tradicionais regimentos, que produzem verdadeiros direitos judiciários estaduais, mas, também, pela força com que este direito tem enfrentado o Código Processual, não apenas através de (novas) leis, mas, também, de emendas constitucionais. Da mesma forma que as emendas da ordem econômica têm privatizado a economia, emendas e leis processuais têm fortalecido o papel decisório dos tribunais estaduais, numa visível movimentação parlamentar que não traduz a consciência dos tribunais, mas o praticismo de interesses, tornando incontrolável o circuito de uma ação judicial. Neste sentido, ao contrário do que se esperava dos recursos especiais e dos recursos extraordinários, após 1988, eles não adquiriram a força imprescindível para transferir aos tribunais superiores ou para nova órbita de apreciação a matéria decidida em instância inferior, permitindose reconhecer que os tribunais estaduais admitem, para apreciação dos tribunais superiores, frações insignificantes dos recursos, evitando apreciações divergentes de mérito, obrigando as partes sempre a buscarem nos agravos de instrumentos (que multiplicam o congestionamento), e nos movimentos internos regimentais superiores, manifestações não propriamente comprometidas com reformas de decisão, mas apenas, inclinadas, num conjunto percentual insignificante, a determinar a subida do recurso para apreciação de mérito nos tribunais superiores. Na verdade, como estes agravos são peças avulsas com documentos conexos produzidos para as instâncias inferiores, não oferecem coesão e coerência para o conhecimento integral do feito, mais viabilizando a transformação de mérito em 34 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MARÇO 2008
avaliações processuais documentais, onde um simples papel pode destruir o direito reconhecido. Este fenômeno não é uma manifestação de dificuldades teóricas do julgador, mas a sujeição que lhe é imposta senão pela lei, pelas súmulas, produzidas numa concepção processual segmentada resistente ao projeto de federalização do Poder Judiciário, deixando remanescer a força dos acórdãos estaduais ou, quando não, da sentença que influiu na produção do acórdão. É sempre preciso e necessário que decisões de tribunais superiores que divirjam de orientação do Tribunal de direito comum não remanesçam como decisões de efeito suspensivo, permitindo que, apesar da orientação superior, enfraquecendo o princípio federativo, fiquem suscetíveis de execuções provisórias, com base em decisões estaduais, aguardando os desdobramentos superiores ou estaduais, que, no tempo, podem desconstruir o direito criado ou produzido. Os tribunais superiores quando determinam a subida de recursos na forma legal não podem ficar suscetíveis a sentenças de segunda instância ou mesmo de primeira instância, provisoriamente executadas, fragilizando o direito material expectado numa efetiva demonstração que remanesce nos tribunais superiores a força do poder intermediário (ad hoc) de difícil reversão. A força do Poder Judiciário estadual não pode e não deve prevalecer sobre a força do Poder Judiciário central sob pena de ruptura da federação pelo poder territorial local. Por outro lado, mesmo quando as partes buscam os tribunais superiores, em recursos próprios, para proteger os seus direitos defendidos no tribunal superior, como ocorre em medida cautelar, ficam sensíveis a riscos judiciais em decisões que já determinaram a subida do recurso especial ou extraordinário devido à ausência de súmula ou jurisprudência explícita que evitem que a medida cautelar venha a ser encaminhada ao Tribunal, mesmo em decisões divergentes no STJ ou no STF, ampliando-se os riscos de se contrariar ou embargar o fluxo linear da decisão superior. Outros tantos exemplos poderiam ser apreciados, mas, evidentemente, demonstram que esta dificuldade de sintonização entre decisões de direito comum dos tribunais estaduais e superiores não apenas desestabilizam o princípio da hierarquia federativa como pressuposto do devido processo legal, que, se não é o principal problema do congestionamento judiciário, é um problema que contribui para desarticular o ritmo normal da produção judiciária e torna o Poder Judiciário, na sua complexidade, incompressível ao cidadão comum, permeando o objetivo de suas funções na modernização e uniformização jurisprudencial. A federalização da estrutura judiciária brasileira precisa ser enfrentada da mesma forma que se enfrenta os atavismos de Estado, muito embora, paradoxalmente, o fortalecimento das políticas de estadualização processual estejam sendo realizadas através de recentíssimas leis, em confronto evidente com as expectativas inauguradas em 1973 e fortalecida com a Constituição de 1988.
Darci Norte Rebelo
Foto: Arquivo Pessoal
DESMONTE Consultor Jurídico da FETERGS Membro do Colégio de Advogados da NTU
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ealizou-se, em Brasília, no mês de janeiro, o primeiro ato do cerimonial da “morte anunciada” do transporte interestadual de passageiros. O desenlace foi decretado pelo presidente Fernando Henrique através do Decreto no 2.521/98, cujo art. 98 prescreveu que todas as permissões desse setor passavam a ser improrrogáveis e teriam seu termo em 7 de outubro de 2008. O presidente Itamar Franco, anteriormente (autorizado pela regra do art. 175, parágrafo único, inciso I, da Constituição, por meio do Decreto no 952, de 7/10/93, art. 94), mantivera as permissões interestaduais e internacionais pelo prazo de quinze anos prorrogáveis por mais quinze, podendo as permissionárias que prestassem serviços de boa qualidade prorrogar a permissão até 7 de outubro de 2023. Mais de 300 contratos foram firmados com essa regra. Um dos pilares do Estado Democrático de Direito reside na segurança jurídica. O Decreto do presidente Itamar Franco ampliou direitos das permissionárias e gerou justificada confiança na legitimidade do seu ato. O rompimento da palavra estatal, por outro chefe do Executivo, oscila entre a violação da boa-fé e uma espécie de estelionato administrativo. A licitação geral, conseqüência do Decreto henriquino, é de inconveniência e inoportunidade óbvias, mas está acontecendo no governo Lula como uma espécie de coisa julgada política. O primeiro ato do desmonte do sistema interestadual e internacional de ônibus, com reflexos em cascata pelo resto do país, já foi praticado. Tudo está
encaminhado para o réquiem do maior e mais barato sistema de transporte coletivo rodoviário do mundo, que, se ocorrer, ficará na História do país como um ato fronteiriço entre a insanidade política e a insensatez econômica. Acredito que o presidente da República não está informado do papel que lhe caberá nessa operação licitatória que pretende desmontar todo o atual sistema (14.000 ônibus; 2.700 linhas de serviços) para permitir o ingresso de empresas sem qualificação técnica que venham a ofertar maior desconto sobre a tarifa e, em razão disso, operar um sistema de baixa qualidade e segurança. Na área social, o desmonte do sistema atual provocará milhares de avisos prévios, sem garantia de reemprego, angústias de muitas famílias e desprestígio do governo federal. O presidente, que tem diploma honoris causa de bom senso, poderá, porém, com um leve deslizar da caneta do poder, revogar o art. 98 do Decreto no 2.121/98 e repristinar o anterior de Itamar Franco, honrando a palavra estatal por esta manifestada. Foi essa a proposta que fizemos à audiência pública e, agora, renovamos publicamente. As permissionárias, em nome de setenta mil trabalhadores e milhões de usuários (140 milhões de deslocamentos anuais), agradecerão ao presidente por evitar que ocorra a “morte anunciada” de sua atividade, impedindo, simultaneamente, que sobre seu governo, mas por ordem de um governo anterior, recaia a responsabilidade da maior operação de deseconomia de escala provocada por uma intervenção pública no país. 2008 MARÇO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 35
A Reforma do Poder Judiciário, suas causas e as propostas para enfrentá-la Valter Alexandre Mena Juiz de Direito Titular da 3a Vara da Fazenda Pública da Capital TJ/SP
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inguém discorda: o Judiciário está em crise, fazendo-se desacreditado pela sua exagerada morosidade, cujo sinônimo é a sensação de impunidade, que estimula a transgressão das leis, a violência, o descumprimento das obrigações, o que faz aumentar a quantidade de litígios e produz mais morosidade. É um círculo vicioso perverso, aparentemente sem solução. Aliado a isso, aponta-se também a imprevisibilidade das decisões, tudo a produzir o descrédito na justiça oficial e inibir investimentos estrangeiros. Com o declarado objetivo de abrir a “caixa-preta” (expressão cunhada pelo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva), o Ministério da Justiça, através da Fundação Getulio Vargas/São Paulo, elaborou e publicou em agosto de 2004 o “Diagnóstico do Judiciário”, apontando a baixa produtividade e a pouca eficiência desse Poder. Para resolver tudo isso, aprovou-se a chamada Reforma do Judiciário, iniciada com a PEC no 96/1992, depois PEC no 29/2000, transformada na E.C. no 45, de 08/12/2004. Na verdade, dezenas de análises feitas por renomados estudiosos do Direito repetem o que se tornou um chavão: a causa da morosidade é o excesso de recursos processuais, pondo-se necessária a reforma da legislação processual; secundariamente, fala-se na necessidade de aumentar a quantidade de juízes e implantar/melhorar a informatização (mas não se fala em aumentar o insuficiente limite de despesas fixado pela Lei de Responsabilidade Fiscal). Ou seja: atribui-se a outrem (ao Legislativo e ao Executivo) a responsabilidade exclusiva pela solução dos problemas – a elaboração de novas leis. A Emenda Constitucional no 45 trouxe algumas novidades, 36 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MARÇO 2008
destacando-se: a criação do Conselho Nacional de Justiça, órgão de controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e censório dos deveres funcionais dos juízes (art. 103-B); a ampliação da competência da Justiça do Trabalho e da Justiça Militar (art. 114 e 125), reduzindo a competência da Justiça Estadual; a possibilidade de descentralização dos Tribunais Regionais Federais, Tribunais Regionais do Trabalho e dos Tribunais de Justiça em câmaras regionais (art. 107, § 3o, 114, § 2o e 125, § 6o); alçou à categoria de direito e garantia fundamental a “razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação” (art. 5o, LXXVIII), e dentre esses meios a proibição de férias coletivas (art. 93, XII) e “número de juízes na unidade jurisdicional proporcional à efetiva demanda judicial e à respectiva população” (art. 93, XIII); finalmente, determinou “alterações na legislação federal objetivando tornar mais amplo o acesso à Justiça e mais célere a prestação jurisdicional” (art. 7o da Emenda). Também instituiu a Súmula Vinculante, objeto de exame apartado. A reforma processual é realmente necessária, especialmente no que se refere aos recursos (o Poder Público é um dos maiores recorrentes); ao complexo processo de execução; à desjudicialização do inventário, partilha, separação/divórcio consensual (inexiste lide), racionalização do julgamento de questões repetitivas – tanto que vários Projetos de Lei já foram encaminhados ao Legislativo. O aumento da quantidade de juízes (e dos recursos materiais) também é necessário, em face do crescimento da população (e dos litígios), se comparada com a de outros países, apesar da absoluta inconfiabilidade dos dados. Mas não é correto comparar nosso país com outros do Primeiro Mundo, nem com países de cultura totalmente diversa, assim
como é impossível comparar São Paulo (4.541.332 processos julgados na primeira instância da Justiça Comum em 2003) com o Piauí (dados ignorados); ou 367.005 processos distribuídos em primeira instância da Justiça Federal, contra apenas 8.069 no Piauí (fonte: Diagnóstico citado). Demais disso, não é apenas no Judiciário que essa relação população/ juiz é desproporcional: também a quantidade de médicos é insuficiente para atender a toda a gente, assim como a de professores, dentistas, ônibus, trens, hospitais, penitenciárias, áreas verdes, água potável e até energia elétrica... Faltam vagas para o estacionamento de veículos nas residências e nas lojas, que por isso ficam nas ruas, ocupando o espaço destinado ao “trânsito” (sinônimo de movimento), ocasionando os conhecidos congestionamentos (um dia os urbanistas se darão conta disso, ignorado pelo Plano Diretor da Cidade). Mas como não é possível aumentar a quantidade de tudo o que falta (e sempre falta mais, porque a demanda é sempre crescente), a saída é otimizar os recursos disponíveis e distribuí-los de forma mais eqüitativa; é se voltar para as “pequenas coisas”, sem desprezo das “grandes soluções” e sem nunca esquecer que, paralelamente ou independentemente do aumento de cargos de juiz, sobreleva o aumento, em quantidade e qualidade, de vagas nos serviços auxiliares. Nada disso, entretanto, frutificará sem a necessária ‘reforma gerencial’. É certo que o chamado Controle Externo do Judiciário, representado pelo Conselho Nacional de Justiça, constituído por elementos estranhos à estrutura do Judiciário, traz embutido inquestionável risco para a independência do juiz na exata medida em que pode determinar sua remoção, disponibilidade ou aposentadoria, além de outras sanções administrativas (art. 103-B, § 4o, III), com usurpação do poder das Corregedorias Gerais da Justiça Estadual, dada a sua composição majoritariamente federal. Isso é fonte de fundada preocupação. Não é menos certo, entretanto, que também lhe compete “VI - elaborar semestralmente ‘relatório estatístico’ sobre processos e sentenças prolatadas, por unidade da Federação, nos diferentes órgãos do Poder Judiciário; VII - elaborar ‘relatório anual’ – propondo as providências que julgar necessárias, sobre a situação do Poder Judiciário no País e as atividades do Conselho, o qual deve integrar mensagem do Presidente do STF a ser remetida ao Congresso Nacional, por ocasião da abertura da sessão legislativa”. Qual a razão dessa “indevida interferência” na autonomia dos Judiciários Federais e Estaduais? Certamente o fato de que, em vários Estados, simplesmente não se elaboram estatísticas gerenciais, como foi constatado no referido e tão combatido Diagnóstico e já o tinha sido pelo promotor de justiça Carlos Otávio Bandeira Lins no excelente artigo “Justiça de São Paulo: ⅓ dos processos, 1/6 dos juízes” publicado na “Revista Diálogos e Debates”, Escola Paulista da Magistratura, Ano 2, no 4, ed. 8, junho de 2002. Sob tal aspecto, portanto, o Conselho
“O aumento da quantidade de juízes (e dos recursos materiais) também é necessário, em face do crescimento da população (e dos litígios), se comparada com a de outros países, apesar da absoluta inconfiabilidade dos dados.”
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“É necessário acabar com a “justiça lotérica”: dentro do mesmo Tribunal, Câmaras ou Turmas decidem de forma antagônica, como se cada uma delas não representasse o próprio Tribunal, mas cada qual um tribunal distinto.” é bem-vindo: não é possível administrar sem dados confiáveis, como não basta dispor de dados sem saber lê-los e interpretálos e sem ter vontade política de alterar as distorções que eles anunciam. A outra grande e repudiada inovação trazida pela Reforma do Judiciário é a possibilidade de o Supremo Tribunal Federal, “após ‘reiteradas’ decisões”, editar Súmula Vinculante sobre matéria constitucional (CF, art. 103-A), submetendo todo o Poder Judiciário e toda a Administração Pública (a símile do efeito vinculante das decisões de constitucionalidade ou inconstitucionalidade, CF, art. 102, § 2o). A PEC no 29-A (renumeração da PEC no 29, a ser votada em segundo turno) prevê a edição pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Tribunal Superior do Trabalho de súmula impeditiva de recurso. Não se justifica o repúdio a tais inovações, sob pretexto de amordaçamento dos juízes de primeiro grau. Abrindo parêntese: falou-se, de início, que uma das causas da crise do Judiciário seria a ‘imprevisibilidade das decisões’, a acarretar a falta de confiança de investidores estrangeiros, que cada vez mais celebram contratos com cláusula de juízo arbitral para não submetê-los ao Judiciário. Ora, essa imprevisibilidade e a divergência de decisões decorrem da péssima redação das leis e da excessiva quantidade delas (especialmente Medidas Provisórias, que têm força de lei e são editadas diariamente como se fossem receitas de bolo). Em entrevista à “Folha de São Paulo” (14/04/97), o ministro do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim, que já foi ministro da Justiça e antes deputado federal, confessou, ex cathedra: “Eu tive uma atividade muito intensa no Congresso e cheguei à seguinte conclusão: a lei, quanto mais clara, menos maioria consegue (...). Então, quando não há uma hegemonia de pensamento dentro do Congresso, a ‘ambigüidade da lei’ é condição para sua aprovação”. Natural e previsível, portanto, mas exclusivamente em primeiro grau – do que decorre a divergência entre os mais variados juízes, cada qual interpretando a lei de modo diverso –, a ausência de perfeita “previsibilidade” das decisões judiciais. O que não se admite, porém, é a persistência dessa divergência nos Tribunais estaduais, cuja missão é justamente a de uniformizar a jurisprudência no âmbito estadual, nem 38 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MARÇO 2008
a divergência dentro dos Tribunais Superiores, que têm a missão de uniformizá-la em âmbito nacional. Ora, essa uniformização, prevista nos artigos 476/479 do Código de Processo Civil, se exterioriza em Súmulas ou Enunciados da jurisprudência predominante, que ‘vinculam o próprio Tribunal’ que as expediu (e não apenas os juízes de primeiro grau). É necessário acabar com a “justiça lotérica”: dentro do mesmo Tribunal, Câmaras ou Turmas decidem de forma antagônica, como se cada uma delas não representasse o próprio Tribunal, mas cada qual um tribunal distinto. Como explicar que dois funcionários em idêntica situação dentro da mesma repartição, demandando o mesmo direito, recebam decisões em sentido oposto? Na sessão plenária de 09/03/2005, apreciando o RE no 438.639, o Supremo Tribunal Federal enfrentou a seguinte questão: a quem compete apreciar ação indenizatória de dano material e moral decorrente de acidente do trabalho movida pelo empregado contra o empregador com fundamento no direito comum (CF, art. 109 e 114, com a EC no 45/2004)? Os ministros Carlos Ayres Britto e Marco Aurélio votaram pela competência da Justiça do Trabalho. Após mais de uma hora de acalorados debates, prevaleceu a tese inaugurada pelo voto divergente do ministro Cezar Peluso: compete à Justiça Comum estadual. E isso com fundamento em expressão nova cunhada pelo ex-desembargador Peluso, a necessidade de “unidade de convicção”, assim explicada: a ação acidentária, movida contra o órgão previdenciário, poderia ser julgada improcedente pela não-comprovação da ocorrência do fato lesivo; se a ação contra o empregador fosse julgada pela justiça obreira, poderia ocorrer contradição, reconhecida a ocorrência daquele mesmo fato histórico – o que não aconteceria se a decisão fosse da justiça comum (“ainda mais agora com a extinção dos tribunais de alçada”), porque, em grau de recurso, o Tribunal de Justiça não proferiria duas decisões antagônicas... A tese da “unidade de convicção”, triste dizer, é justamente o que não tem ocorrido na prática, sobre inúmeras questões, variando o desfecho de acordo com o órgão fracionário (Câmaras) do Tribunal, como se não fosse o mesmo Tribunal. A extinção da jurisprudência lotérica atende não apenas ao princípio da segurança jurídica, mas também ao ‘princípio da economicidade’. Diariamente são ajuizadas centenas de ações repetitivas, especialmente as dirigidas contra o poder público, abordando a mesma tese jurídica já apreciada e decidida várias vezes; sobrevêm contestações já conhecidas, sentenças repetitivas, razões e contra-razões estereotipadas e acórdãos previamente esperados, num ou noutro sentido. Inexistindo súmula a apoiar a posição do autor ou a posição do réu, tem-se petição inicial extensa, contestação extensa, sentença extensa, acórdão extenso – puro trabalho braçal e sem qualquer utilidade. Existindo súmula, a sentença seria proferida em poucas linhas, assim também o acórdão do (improvável) recurso, e tudo rapidamente, diminuindo ou eliminando a morosidade e o desprestígio do Judiciário.
Em memorável voto no RE no 104.898-1–RS – STF, Primeira Turma, em 26/03/85, o ministro Oscar Corrêa observou: “O Regimento Interno da Corte, expressamente, estabelece que ‘a citação da súmula, pelo número correspondente, dispensará, perante o Tribunal, a referência a julgados no mesmo sentido’” (art. 102, § 4o); e isto, disse-o a “Explicação Preliminar” da publicação das súmulas, não somente “para proporcionar maior estabilidade à jurisprudência, mas também facilitar o trabalho dos advogados e do Tribunal, simplificando o julgamento das questões mais freqüentes. (...) Prado Kelly lembra palavras de Victor Nunes Leal, ‘o principal responsável pela iniciativa e por sua execução’, em conferência em Belo Horizonte (12/8/1964), ao justificar a nova organização de nossos trabalhos, evitando os escolhos de uma jurisprudência impositiva: ‘Firmar a jurisprudência de modo rígido não seria um bem, nem mesmo seria viável. A vida não pára, nem cessa a criação legislativa e doutrinária do Direito. Mas vai uma enorme diferença entre a mudança, que é freqüentemente necessária, e a anarquia jurisprudencial, que é descalabro e tormento. Razoável e possível é o meio termo, para que o Supremo Tribunal possa cumprir o seu mister de definir o Direito federal, eliminando ou diminuindo os dissídios de jurisprudência’” (RTJ 113/454-459). Colhe-se em Notícias do STJ, 24/04/2003 (propostas do ministro Ruy Rosado de alteração no sistema recursal civil para agilizar e facilitar o processo de julgamento dos processos): “uma das medidas sugeridas é a uniformização da jurisprudência em matéria infraconstitucional; todo julgamento de recurso especial por divergência deve resultar na elaboração de um enunciado. Esse será aplicado a todos os casos em que for renovada a mesma questão. Ainda nesse sentido, a súmula deve ter efeito impeditivo do recurso, ajudando no combate à morosidade na Justiça. Sendo assim, decisão conforme súmula de jurisprudência do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal Justiça não admitirá recurso”. Injustificável a resistência do Tribunal de Justiça, cujo Regimento Interno disciplina a Uniformização da Jurisprudência como “processo incidente”, desde que suscitado pelo juiz, pela parte ou pelo terceiro interessado (artigos 644/656) em sumular sua jurisprudência, sob fundamento de se tratar de “corte de passagem”, sujeito à revisão por Tribunais Superiores. Ora, então também é inútil decidir os recursos, porque são igualmente revisíveis pelo Terceiro Grau. O fenômeno não impediu o extinto Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, nem os Tribunais de Justiça do Rio de Janeiro, do Rio Grande do Sul, do Distrito Federal, de Minas Gerais, da Paraíba, os Tribunais Regionais Federais e a Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais de editar súmulas. Firmada a jurisprudência no Estado, isso se presta para “facilitar o trabalho dos advogados e do Tribunal, simplificando o julgamento das questões mais freqüentes”, mas também para facilitar o trabalho dos juízes de primeiro grau, defrontados com hipóteses sumuladas, com inexorável agilidade processual e redução do custo “invisível” da máquina judiciária.
Na verdade, não há distinção entre as atuais súmulas e as futuras, ditas com efeito vinculante: discordando de umas e outras, declarará o juiz sua convicção, mas não deverá, isto sim, contrariá-las, dando ao vencido a falsa ilusão de vitória e procrastinando o desfecho da demanda, que será revisto em sentido contrário em grau de recurso. Afinal, não se pode ignorar que “The law is what the Supreme Court says it is”, nas palavras de Hart. O papel fundamental do juiz, em tal hipótese, é o de verificar se o enunciado é adequado para o caso concreto, se este se enquadra perfeitamente na proposição. Aliás, não há, aqui, nenhuma novidade: isso o juiz já faz em relação ao texto legal, igualmente abstrato, através dos processos de ‘subsunção’ (ato de subordinar o caso concreto à norma jurídica geral e abstrata) e de ‘imputação’ (laço que une a conseqüência jurídica à hipótese normativa). O cuidado que se exigirá, mas que é exigível também hoje, é com a não aceitação pura e simples do enunciado (texto gramatical), mas com a análise dos precedentes que desaguaram na súmula, para verificar “se a decisão vinculante foi tomada em demanda em que os fatos são substancialmente iguais aos que foram postos na nova ação” (ministro Carlos Velloso). Convencido de que o caso concreto não se subsume à descrição sumular, não a aplicará da mesma forma quando não se subsumir o fato à descrição legal. Conclusão Cândido Rangel Dinamarco, após assinalar que a Comissão de Reforma do Código de Processo Civil, avessa a conceitualismos acadêmicos, objetivava uma justiça mais rápida e mais efetiva, observou: “Não tem acesso à justiça aquele que sequer consegue fazer-se ouvir em juízo, como também todos os que, pelas mazelas do processo, recebem uma justiça tarda ou alguma injustiça de qualquer ordem”. José Roberto dos Santos Bedaque lembra que “o sistema perfeito, que ofereça segurança e tempestividade quanto ao resultado, não existe em país algum do mundo. A eliminação da distância entre os objetivos contidos no modelo e a realidade dos processos constitui o grande desafio do processualista (...)”. A elite jurídica tem oferecido propostas científicas para enfrentar a questão. Sem embargo, e humildemente, formulo propostas mais simples, mas não menos sérias, com o mesmo objetivo, sem receio de que seriam repudiadas por administradores de grandes empresas. E sem pretensão comparativa, recordo a figura do ministro Victor Nunes Leal, relator da comissão que instituiu a Súmula de Jurisprudência Predominante, aprovada na plenária de 13/12/63, no perfil traçado pelo ministro Sepúlveda Pertence: “Victor Nunes possuía um talento multiforme, mas também um absoluto despojamento de pompas e vaidades, que lhe permitia, embora ministro, entregar-se a tarefas aparentemente humildes de implementação de rotinas burocráticas”. Sem a Reforma Gerencial, não há solução para reduzir a morosidade e otimizar a prestação jurisdicional. 2008 MARÇO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 39
A Teoria Autonomista Da arbitragem Ana Tereza Palhares Basílio Membro da Comissão Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional
André R. C. Fontes Desembargador do TRF 2a Região
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presentam-se sob a forma de discussão polarizada as opiniões doutrinárias sobre a natureza jurídica da arbitragem. Entendem os estudiosos que seu enquadramento nas diversas classes de idéias que preponderam no Direito resumir-se-ia ao dualismo públicoprivado, ou mais especificamente às noções de jurisdição e contrato. A jurisdição seria, para muitos autores, o paradigma que melhor explicaria a natureza jurídica da arbitragem, especialmente porque ela, a arbitragem, seria um modo de resolução de conflitos, no qual incumbiria a um terceiro dar a palavra final. Por outro lado, aqueles que se orientam pela noção de contrato exprimem-se de modo a retomar a clássica visão contratual como um meio de duas partes atenderem aos seus interesses, inicialmente contrapostos. Essa distinção do que seria a arbitragem para o Direito não é, sabidamente, nova e infundada. Tampouco está associada aos efeitos que a jurisdição e o contrato oferecem aos seus defensores e àqueles que acreditam que estejam tratando da mais célere e flexível forma de se resolver conflitos nos tempos atuais. Ela remonta ao fenômeno que se convencionou chamar de divisão dicotômica do Direito: a vetusta problemática do Direito, especialmente o denominado Direito Continental, ou Civil Law, que se contrapõe ao Commom Law, em vigor nos países anglosaxônicos. Esta visão dual ou dicotômica de que, em Direito, ou se está diante do que é público ou do que é privado é a mais afirmada (summa divisio), e também a mais questionada (scientia una) pelos juristas, e consiste no principal alicerce da polêmica arbitral. E se há aporias sobre o que é classificado como público ou privado, igualmente se duvida do critério, ou talvez, critérios de distinção. 40 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MARÇO 2008
Um sem número de teorias finitas, mas incontáveis, são arroladas na maior dimensão que se pretende atribuir ao objeto da explicação. Uma teoria deve ser lembrada, entretanto: a que determina a divisão na presença do Estado, na qualidade de Estado, nas situações jurídicas em que se apresenta. É desta maneira que se entende ser o Direito Processual uma disciplina de Direito Público. A presença do Estado como Estado-juiz atribui a este ramo do conhecimento a marca pública. Por sua vez, os contratos em geral são vistos, normalmente, como uma expressão do Direito Privado, exatamente pela ausência do Estado. A figura do contrato administrativo não seria bom exemplo, primeiro pelas inúmeras controvérsias acerca de sua existência, e segundo pelo fato de que é por força de lei que o contrato administrativo é assim classificado e categorizado. A divisão do Direito em duas partes (público e privado) continua a ser ensinada nos cursos jurídicos como uma premissa aos estudos fundamentais, e é, simultaneamente, a mais combatida, especialmente nos semestres seguintes da graduação. De tudo o que se expôs, extrai-se que a coisa pública, desde os tempos de Roma Antiga, com a figura da res publica, continua a merecer atenção singular dentre os assuntos preferidos dos doutores, seja para afirmá-la, seja para negála. Um distintivo específico da atualidade é a mistura ou identificação entre o que é público e privado. Algo que se assemelha aos movimentos socialistas, que tanto vigor teórico provocaram no século passado, notadamente sob a perspectiva do diferencial da titularidade: no socialismo pretendia-se a titularidade pelo Estado do que era público e privado; hoje, pretende-se a titularidade do particular para o que é público e particular. Não é sem razão, por exemplo, a polêmica sobre se o usuário de serviços públicos seria, também, consumidor,
Foto: Arquivo JC
pois é a fronteira cinzenta do público e do privado que impede a exata visão dos limites da norma regulatória no confronto com o Código de Defesa do Consumidor. A arbitragem sofre os efeitos mais imediatos desse debate geral. É por isso que prospera o dissenso sobre a arbitragem ser jurisdição ou contrato, ou, em outras palavras, instituto de natureza pública ou privada. O debate está longe de se circunscrever ao que é público ou privado. O argumento mais decisivo é o de que a arbitragem inicia-se por um negócio (ou contrato simplesmente para alguns) e é exercida e realizada com poderes que muito se assemelham aos da jurisdição. Desta constatação se poderia suscitar, em uma primeira provocação, se o caráter negocial deve ser ignorado para se utilizar a tese da jurisdição; ou, talvez, desconsiderar a tese da jurisdição, em virtude do papel da vontade na arbitragem. É certo que nem a classificação de jurisdição, nem a de natureza contratual pura da arbitragem, resolve, de forma imediata, as questões suscitadas. É que, à primeira vista, somos conduzidos a uma posição intermediária. A Teoria Intermediária da arbitragem adota como elementos conceituais aspectos da Teoria da Jurisdição e da Teoria do Contrato, simultaneamente. Por associar elementos de duas outras teorias, nós a denominamos também de Teoria Mista, exatamente por tratar dessas posições intermediárias, que tantas dúvidas provocam. Esta concepção, que é conhecida ainda como Teoria Sincrética, à primeira vista, solucionaria o problema, pois em uma simples assertiva poderia se afirmar que a conjugação das teorias melhor exprimiria a natureza jurídica da arbitragem. Este raciocínio é de cunho reducionista e não enfrenta o problema central da categorização, natureza e realidade da arbitragem. Suscita-se, ademais, outra indagação: se a arbitragem não é uma categoria própria ou autônoma, e, sim, um contrato ou jurisdição, por que não se aplicam a ela os regimes destes institutos? A resposta é simples: porque o árbitro não é dotado de todos os poderes do juiz e porque a arbitragem não se subordina apenas à autonomia da vontade. Demais disto, a arbitragem não se limita à aplicação do Direito, pois, sabidamente, pode se realizar por eqüidade, ou ainda pela praxe, como, por exemplo, as práticas comerciais. A sistemática da arbitragem pode obedecer às cláusulas convencionadas pelos litigantes em formas totalmente distintas do Direito em vigor. Então, neste caso, a arbitragem não seria jurisdição, contrato ou os dois amalgamados. A arbitragem seria o quê, então? A melhor resposta é uma só: arbitragem é arbitragem. A teoria que melhor explica a arbitragem, por conseguinte, será aquela lastreada na afirmação de que arbitragem é arbitragem, e não jurisdição ou contrato, ou ainda um misto de jurisdição e contrato. O significado do debate aqui desenvolvido é de pura natureza e não se limita a um mero enquadramento enciclopédico. Como qualquer tipo ou espécie de instituto conhecido, não
se justifica retirar da arbitragem a pretensão de ser objeto de um tratamento autônomo, de ela ser, ela mesma, um específico campo de estudo, sem muletas do Direito Processual ou do Direito Civil. A arbitragem não pode ser uma exceção à idéia de que também ela deveria passar pelo debate de ter uma explicação científica autônoma, de constituir objeto de um estudo próprio e específico, e não ser classificada como um saber científico ancilar, caudatário de um outro. Não se justifica que nenhuma especulação científica, divorciada das cartilhas dos estudiosos do Direito Processual e do Civil, possa existir. As importantes contribuições do pensamento jurídico no terreno arbitral, longe de serem relegadas ao esquecimento, devem ser altamente valorizadas, porque conservam a riqueza e a vitalidade do interminável debate. Serão os contrastes entre arbitragem e jurisdição, assim como arbitragem e contrato, que nos permitirão concluir pela necessidade e importância de uma autonomia própria e científica da arbitragem e de seus estudos. Pressuposto de qualquer análise deve ser a assertiva de que nenhuma contribuição dos estudos jurídicos no terreno da arbitragem nos brindou com uma explicação satisfatória do problema e que seja capaz de apreendê-lo com um caráter universal. A isto se agrega o fato de que, em grande medida, a natureza da arbitragem dependerá do sistema legal sob o qual se analisa a questão. A principal crítica à Teoria Jurisdicional é a falta de imperium no poder dos árbitros. A impossibilidade de exercer a coerção sobre os particulares, para obter o cumprimento forçado de um determinado pronunciamento do árbitro, robustece a concepção de que não se exerce uma verdadeira jurisdição, porquanto esta última leva implícita a força coercitiva emanada do Estado-juiz. 2008 MARÇO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 41
Foto: Arquivo JC
De outra parte, se a concepção segundo a qual a noção de jurisdição compreende a atividade de julgar e de impor condutas – a cognição e a execução – aos árbitros, faltaria a segunda e alguns outros poderes da primeira. Sem esse poder coercitivo, o chamado elemento coertio, que integra a jurisdição, a arbitragem nunca poderia revestir natureza jurisdicional. O árbitro não tem poder de coerção, seja sobre as partes, seja sobre terceiro. Falta-lhe também um característico marcante, que é o elemento executio, que dá ao juiz o poder de tornar concreta a solução encontrada pela sentença (o elemento juditium). A jurisdição não se limita aos elementos notio, vocatio e juditium, e, se todas as suas propriedades não alcançam a arbitragem, é de se considerar que de outro instituto se trata. O árbitro é, acima de tudo, um agente das partes, a quem elas autorizam emitir um pronunciamento que solucione a disputa pendente. Nem se diga que não seria só a vontade das partes que atribui jurisdição aos árbitros, pois é o Estado que proporcionaria tais condições. O Estado possibilita, justamente por meio da jurisdição, que a arbitragem tenha proteção e exeqüibilidade. A analogia com o trabalho do juiz de formar comandos para a solução de conflitos está longe de ser critério definidor, porque também a Administração Pública lança mão de comandos resultantes de julgados, na órbita das suas atividades e nas relações com os jurisdicionados, e nem por isso se atribui à tal atividade administrativa o caráter de jurisdicional. Por outro lado, a vontade determinante dos sujeitos do litígio na formação da arbitragem não lhe atribui caráter negocial ou contratual, porque as partes assumem também o compromisso de se submeter ao laudo arbitral, que é uma característica mais próxima de um poder de julgar do que simplesmente dar cumprimento a um contrato. A celeuma é antiga e não passou despercebida dos antigos romanos. No texto “Pro Roscio”, Marco Túlio Cícero destacava que o árbitro (arbiter) atuava com maior extensão e ampla liberdade, e suas funções se diferenciavam das do juiz (judex). Dizia, em passagens do texto com a perspectiva da época, que 42 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MARÇO 2008
o juízo era de dinheiro certo ou versando a lide sobre uma soma fixa, enquanto a arbitragem dizia respeito à questão de soma não determinada. Segundo o autor, se recorria ao judex para ganhar ou perder tudo; já ao árbitro, a despeito de querer ganhar tudo, ao menos para perder somente pouco, pois a fórmula do juízo seria direta, rude e simples, ao passo que a do árbitro, moderada e suave. E acrescenta que para uma causa havia apenas um só juiz, mas na arbitragem, vários são os árbitros. Na arbitragem, segundo Cícero, concede-se o que for melhor e mais eqüitativo; nela, o demandante confessa que exige mais do que lhe é devido, mas que lhe basta e sobra o que concede o árbitro. Vista como um tema processual, a arbitragem continuará a ser analisada em alguns de seus aspectos. De igual modo, o mesmo resultado será obtido pelo estudo da arbitragem pautado pela visão contratual. A dupla perspectiva processual e contratual não afasta a persistência de que o enfoque deve ser ampliado de forma global, como um todo. A sua consistência privada complexa, de conteúdo aparentemente público, não pode ser fragmentada segundo a origem dos seus estudos. Só se poderá alcançar o objetivo de conhecer a arbitragem a partir da própria arbitragem. Um estudo no qual a arbitragem seja tomada dos ângulos mais variados que uma análise convencionalmente depurada da sua gênese e livre das proposições tradicionais estará fadado a atentar contra a sua natureza e realidade. Nestas breves considerações, um assunto de tanta relevância foi aludido de maneira geral e abrangente. O conteúdo do texto está muito longe de corresponder ao conjunto de perspectivas múltiplas e das questões suscitadas em torno da arbitragem. A natureza jurídica da arbitragem é tema clássico e capital no destino que se quer dar a este dinâmico instrumento de solução de litígios. Marcada por novas e apaixonadas reflexões, a delimitação da natureza jurídica da arbitragem sempre será medular na elaboração teórica desse instituto, que está, sem dúvida, em permanente construção.
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REPENSAR O BRASIL Luiz Gil Siuffo Pereira Vice-Presidente Financeiro da CNC Presidente da FECOMBUSTÍVEIS
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chegada de Lula e do PT ao poder em 2002 ensejou reações, declarações e especulações, quase sempre na linha da catástrofe, em boa parte do meio empresarial. Comum era ouvir naquele momento que o dólar iria disparar, simbolizando tudo de ruim que estava para ocorrer. Recordo, quando a relação cambial subiu de R$ 2,10 para R$ 2,60, de profecias acaloradas de que a relação cambial iria chegar a R$ 5,00. Outra “verdade” dava conta de que o câmbio a menos de R$ 3,00 paralisaria a exportação, com fechamento de empresas, quebradeiras, déficits comerciais crescentes e outros efeitos perversos. Falava-se, também, em calote do governo central, sugerindo o conforto das ações da Vale e da Petrobras ante o “iminente” calote financeiro. O caos era vendido como coisa certa. Neste início de 2008, a relação cambial caiu pela primeira vez abaixo de R$ 1,70, e essa valorização do Real se deu no exato momento de uma crise financeira nos EUA. A ocorrência de crise financeira externa com valorização cambial interna também deve ter sido a primeira da história econômica do Brasil. Antes, dizia-se, “quando os EUA espirram, o Brasil tem uma pneumonia”. Essas lembranças vieram à tona enquanto, como representante da CNC, assistia o ministro Guido Mantega, no Palácio do Planalto, apresentar o projeto de Reforma Tributária – não pelo projeto em si, que merece análise 44 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MARÇO 2008
mais cuidadosa e profunda, mas pela seqüência de números da economia brasileira que antecedeu a apresentação do projeto. Divido alguns desses números com os prezados companheiros da CNC, destacando: • Nossas reservas internacionais em fevereiro de 2003 eram próximas a US$ 40 bilhões; hoje, são de US$ 188,7 bilhões, e o Brasil nada deve ao FMI e a outros organismos internacionais de crédito, como devia em 2003; • O PIB cresce há 23 trimestres consecutivos; • O consumo interno cresce há 17 trimestres consecutivos; • O investimento cresce há 15 semestres consecutivos; • Entre 2004 e 2007 o PIB cresceu em média 4,5% e se estima crescer 5% em média de 2008 a 2010; • A indústria cresceu 6% em 2007, na média. 20 segmentos cresceram em 2007, sendo 6 deles acima de 10%, com destaque para “máquinas e equipamentos” e “veículos automotores”, que cresceram 17,7% e 15,2%, respectivamente. Apenas 6 segmentos apresentaram resultado negativo, pequenos; • Enquanto o PIB cresceu 5,2% em 2007, a demanda interna cresceu 5,7%; • Desde 2004, novos 1.500.000 empregos/ano são criados; • A massa salarial, o rendimento médio do trabalhador
Foto: Arquivo Pessoal
e o número de pessoas ocupadas apresentam índices ótimos desde 2004; • O volume do crédito bancário cresceu de 22,1% do PIB em dezembro de 2002, para 34,8% do PIB em janeiro de 2008 (R$ 944,2 bilhões); • A inflação continua baixa e estável: 3,14% em 2006; 4,46% em 2007; com previsão de 4,39% em 2008; • O Superávit Comercial foi de US$ 40 bilhões em 2007, o maior da história; • O superávit primário do setor público consolidado (receita menos despesa) está em 3,98% do PIB; • O déficit nominal foi de 2,27% em dezembro de 2007 (acumulado de 12 meses), e o governo atua rumo ao déficit nominal zero; • A dívida líquida em relação ao PIB, em dezembro de 2007, estava em 42,8% do PIB e a meta é chegar em 2010 a 36%. Os números são expressivos e mostram uma atuação governamental responsável, ao contrário do que muitos temiam em 2002. Repensar o Brasil significaria olhar os números e orgulhar-se do País com olhar isento de ideologia, e não só torcer, mas igualmente atuar – independente de quem comanda o Poder Executivo – para que o Brasil – um país condenado ao sucesso –, alcance-o no mais curto espaço de tempo, consolide seu mercado interno – cujo corolário é a ampliação das atividades comerciais e de serviços – e reparta socialmente seus ganhos.
“A ocorrência de crise financeira externa com valorização cambial interna também deve ter sido a primeira da história econômica do Brasil. Antes, diziase, ‘quando os EUA espirram, o Brasil tem uma pneumonia’.”
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Os tóxicos na realidade jurídico-social João de Deus Lacerda Menna Barreto Advogado Desembargador aposentado do TJ/RJ
“De sorte que a solução não está, evidentemente, na proscrição de sua cultura ou na erradicação de sua industrialização, pois, além de simplista, qualquer medida nesse sentido seria anticientífica.”
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á no mundo contemporâneo um sentimento generalizado de perplexidade. A aceleração do curso da história insuflada pelos meios hodiernos de comunicação, aperfeiçoamento tecnológico e novas descobertas científicas, gerou um paradoxo: à medida que desenvolvem e atingem índices maiores de progresso e realizações materiais, os homens recebem a contracarga de uma defasagem estrutural de natureza ética. As repercussões dos procedimentos disrítmicos apresentam-se polimorfas, na medida em que se coadunam com a diversidade das estratificações sociais, porque, aceitando-se ou não as teorias cíclicas da história, a moral dos povos evolui ou involui ao sabor dos fluxos político-jurídicos e psicossociais. Neste contexto e como forma de comportamento desviado, deparamos com a problemática dos tóxicos. Conhecidos desde a Antigüidade pelos gregos, romanos, egípcios e chineses, sempre foram utilizados tanto como panacéia quanto como afrodisíaco ou com finalidades místicas e religiosas. Assim, o ópio entre os asiáticos, os derivados da coca entre os incas, a cannabis sativa entre os hindus e maometanos desde um milênio a.C., para não incluirmos as libações alcoólicas de Noé ou as bacanais das procissões de Dionísio e os festins dos Césares, fizeram presença durante o perpassar dos séculos de evolução da humanidade. Estiveram sempre, porém, localizados; jamais eclodiram ou se alastraram de maneira violenta como hoje, a provocar e contribuir, em 46 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MARÇO 2008
todo o mundo, para a degradação dos costumes, tormento à eugenia e corrosão dos alicerces da própria nacionalidade. Daí a percuciente observação de T. B. Bottmore, renomado professor da Universidade Inglesa de Sussex, de que, talvez agora, já se possa inverter a conhecida frase de Marx e dizer que “o ópio é a religião do povo”. Entretanto, em que pese essa realidade, não é possível abolir a pesquisa, a industrialização e os estudos para a descoberta das drogas. O professor A. C. Pacheco e Silva, em seu livro “Desajustes Psicossociais”, afirma que “grande número de pesquisadores – bioquímicos, fisiologistas, eletroencefalografistas, farmacologistas, anatomopatologistas, neurologistas, neurocirurgiões e psiquiatras – trabalha em vários centros científicos do mundo no propósito de aprofundar os seus conhecimentos dos efeitos das drogas recém-descobertas, já estando na posse de dados positivos que permitem prever, num futuro não longínquo, grandes surpresas nesses domínios”. De sorte que a solução não está, evidentemente, na proscrição de sua cultura ou na erradicação de sua industrialização, pois, além de simplista, qualquer medida nesse sentido seria anticientífica. Surge, assim, grande indagação: como responder à problemática que atormenta as sociedades modernas? A experiência de muitos anos de judicatura criminal, aliada aos estudos, leituras e viagens de intercâmbio cultural, permite-nos asseverar que só lograremos fazê-lo na medida
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em que compreendermos toda a fenomenologia das drogas, mas, principalmente, suas causas. Ora, o uso da droga, que a Organização Mundial de Saúde define como “qualquer substância, natural ou sintética, que, introduzida num organismo vivo, pode modificar uma ou mais de suas funções”, tem etiologia diversificada. Distribuídas em três grandes grupos, denominamos psicolépticos, psicoanalépticos e psicodislépticos, e atuando diretamente sobre o sistema nervoso central, sejam deprimindo, estimulando ou despersonalizando o usuário, as drogas vêm sendo utilizadas por imposição de fatores de ordem econômico-cultural, político-psicológica e jurídicosocial. É, pois, com fulcro na análise das causas, dos fatores e da função do Direito nas sociedades, e, portanto, no estudo da heurística, de que nos fala Orlando Gomes em “Introdução ao Direito Civil”, que devemos enfrentar a poluição dos tóxicos, que está a exigir não mais apenas a atenção, como dizíamos no douto recinto da Escola Superior de Guerra, mas a ação efetiva de todos aqueles que detêm uma parcela de autoridade no grupamento societário. As dissimetrias das relações grupais e familiares conduzem o jovem imaturo à indiferença pelos anseios comunitários, ao afrouxamento de suas reservas morais em proteção às experiências e sensações desconhecidas, ao vício e ao crime. A estatística de Quetelet, que desbravou os atalhos quantitativos dos fenômenos sociais, tem desempenhado importante tarefa no fornecimento de dados elucidativos acerca das diversas causas econômicas da criminalidade, apesar de elas existirem, na maioria das vezes, em concomitância com outras, tais como imoralidade, incultura e irreligiosidade. O problema da moradia, verbia gratia, assevera J. M. M. Riocerezo, “no es ni español, ni francés, ni italiano, ni inglês. El problema de la vivienda es universal. Incluso norteamericano, país de materias primas rápidas y fuertes finanzas y muy eficaz productividad. En todo el mundo hay una realidad: La escasez de locales para constituir hogar. Comenzó a señalarse al término de la primera guerra europea, y se ha agudizado en la segunda. En todas las grandes ciudades y en muchas de las pequeñas hay miles de seres humanos que carecen de un hogar habitable, cuando no de un simple techo. Es natural que estos hombres sean presa de la angustia”. Ora, essa dramática realidade dá bem a idéia de como pode medrar nos guetos e nas favelas, principalmente, toda a sorte de violações, sejam de natureza moral, como de ordem legal. A inevitável promiscuidade e o conseqüente estado de espírito dos que se vêm violentados em sua mais sagrada intimidade contribuem, pelo afrouxamento de suas já enfraquecidas reservas éticas, para o incremento das transgressões legais, não se devendo esquecer, à vista dos dados estatísticos antes referidos, o êxodo dos trabalhadores do campo, atraídos pela miragem das cidades grandes como razão efetiva de agravamento do problema. Acrescente-se a isso a praga do analfabetismo, cujo índice assustador nos leva a diagnosticar parte do que podemos denominar como estímulos espontâneos de desregramento. Dizia Sócrates que “o homem pratica o mal porque
desconhece o bem” e, realmente, a ignorância dos comezinhos princípios éticos, religiosos, culturais e até higiênicos, impede a justa seleção dos valores, impossibilita a racionalização de sua problemática vital, provoca-lhe a impotência da conscientização, deixa-o, enfim, psicologicamente inerme. Por outro lado, são muitas as indicações sociológicas acerca dos motivos da desagregação da família. Sejam, porém, o progresso científico e tecnológico em todos os ramos de atividades a impedir a secular concentração de seus membros, a necessidade econômica de que todos trabalhem fora de casa e a conseqüente dificuldade de conciliação de horário para o diálogo, as rusgas e os atritos dos pais diante dos filhos – oriundos dos desajustamentos conjugais –, a concessão à pornografia como forma de afirmação, enfim, quaisquer desses, um fato é inconteste: “A célula máter da sociedade” sofre um processo de erosão. Não é difícil, assim, identificar o tráfico e uso de 2008 MARÇO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 47
substâncias entorpecentes ou que provoquem dependência física e psicológica, ainda que esta realidade possa constituirse também como causa dos desequilíbrios comunitários na medida em que se estabelece a ruptura entre a estrutura cultural e a estrutura social. As teorias sociológicas da delinqüência já abordaram o fenômeno da anomia, procurando explicá-lo como “sintoma de dissociação entre as aspirações culturalmente prescritas e as vias socialmente estruturadas para realizar essas aspirações”, segundo Robert Merton, ou como aprendizagem decorrente de um excesso de associação de modos de conduta delinqüente em relação com os modos não delinqüentes, consoante a teoria da associação diferencial do professor Edwin Sutherland. Mas, aceitando-se ou não as conclusões das doutrinas estruturais ou as das subculturais – incluindo-se nestas as que enfocam os microcosmos subculturais da sociedade para justificar os desvios como resultado de problemas de adaptação, conforme apregoa Albert Cohen –, inegável será reconhecer o esforço desenvolvido pelos teóricos, no sentido de uma explicação sociológica para questões que se ramificam também nas paragens da psicologia. Daí a pretendida conciliação de Cloward e Ohlin, com sua teoria de oportunidade diferencial, em que indigitam a subcultura de abandono como principal conduto para o uso das drogas. Entretanto, estariam esgotadas aqui as vias de acesso aos patamares da realidade social para analisá-la e contê-la nos parâmetros da tranqüilidade global? A resposta há de ser, forçosamente, negativa, na medida em que a elite se conscientize de sua responsabilidade no aproveitamento da potencialidade social, revele maturidade e suficiente percepção histórica, compreendendo que nem as ciências teleológicas nem as causal-explicativas, tomadas separadamente, estarão em condições de resolver a problemática das toxicomanias, que se agrava quantitativa e qualitativamente, interessando já camadas ponderáveis da sociedade que, pelo maior poder aquisitivo, passam a sofisticar o uso, os meios e a própria natureza das drogas, disseminandoas ameaçadoramente. E, talvez por excessiva preocupação com a ciência econômica, as sociedades modernas tenham subestimado conflitos de importância vital, ainda que, muita vez, subjacentes. Entretanto, a união e o congraçamento de todas as ciências, numa espécie de ecumenismo jurídico-científico, abrangendo tanto os estudos psicológicos de introspecção como as experiências comportamentistas, aliados à força do Direito, estarão em condições de esquematizar as linhas de defesa. Diante desta realidade objetivamente constatável, cumpre examinar a situação jurídica abrangente da lei como expressão formal do direito e que constitui, afinal, o estatuário natural do que Vierkandt, segundo Pinto Ferreira, em “Teoria Geral do Estado”, chamou de ordenamento existencial do grupo, e “cujo fundamento e origem se encontram na vontade coletiva ou convivência grupal, pois a sua finalidade é a realização dos impulsos vitais da comunidade, o seu escopo é o bem comum da sociedade”. 48 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MARÇO 2008
Como ressalta o renomado professor, procede-se, hodiernamente, a uma síntese dialética do Direito, geradora, por seu turno, de uma teoria unitária lastrada numa análise socioeconômica e moral. Assim, para compreensão técnicopositiva do Direito como norma, urgem o reconhecimento e o exame de três compartimentos distintos: a infra-estrutura sociológica, a superestrutura ideológica e a normatividade jurídica. O primeiro exige a adesão do grupo societário para que o Direito se converta em norma de conduta; o segundo tem por objetivo a idéia de justiça, ou seja, aquela consciência jurídica pura que, segundo Rousseau, raciocina no silêncio das paixões – vale dizer, aquele sentimento imanente no homem, radicado em seu eu puro –; finalmente, o terceiro impõe a obediência coletiva e tem como raiz a consciência grupal de que o ordenamento existencial é válido. Destarte, se não se apresentar ética ou economicamente plausível e não estiver lastreado no jurídico-social, estará paradoxalmente propiciando e até incentivando a criminalidade em geral. Por isso a importância de uma legislação coerente, capaz de prevenir e reprimir sem a iniqüidade de um autoritarismo ingênuo ou inconseqüente a liberalidade comprometedora do verdadeiro princípio de autoridade, sob pena de violentação de sua natureza, como forma de atuação no Direito, resolvendo conflitos ou pontificando como norma de conduta. Em sua clássica monografia, “O Motivo e o Dolo”, afirma Souza Neto, com inegável procedência, que “a norma penal não é finalista; ao contrário do Direito que é dinâmico, a lei é estável, parada, mas, a despeito desse caráter, ela representa uma quantidade e uma qualidade do Direito e, conseqüentemente, da vida, recolhida num determinado momento histórico”. E, realmente, na medida em que o Direito se divorcia do sentimento social coletivo, ignorando os anelos comunitários, surge como causa e fator de incidência indireta dos problemas criminais. A norma jurídica, cujo continente estratifica-a típica e atipicamente – desde as formas primárias, como a Constituição, e secundárias, como as leis ordinárias, decretos e regulamentos, o costume e a jurisprudência –, possui um conteúdo dogmático abrangente das idéias religiosas, filosóficas, científicas, artísticas e políticas, mas não pode descaracterizar seu conteúdo corpóreo identificável nos anseios da utilidade, do interesse, do desejo e da necessidade. Destarte, sem pretender incursões na órbita das especulações jurídico-filosóficas ou discutir os postulados essencialistas ou existencialistas das diversas escolas, na verdade, só a compreensão do Direito e da sua relevância na sociedade atual poderá conduzir à solução dos entrechoques das paixões e dos problemas comunitários. A ameaça explosiva dos tóxicos que se encarta nos ônus que a comunidade vem pagando pelo progresso precisa ser contida porque já se insere na área de segurança nacional, e só o Direito, em sua realização plenária, com a adesão do grupo social conscientizado, terá condições de fazê-lo.
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Juiz Ideal Humberto Gomes de Barros
O juiz ideal Há de ser humanista Gostará de cinema Jogará futebol Amará o Direito E a literatura Será por igual Um bom cientista Jamais maniqueísta Sem perder a candura Fará empatia Sofrendo as agruras Do autor e do réu Falará a linguagem Que se usa na rua Com os pés na terra E o olhar lá na lua Pode até ser doutor Mas entenderá Muito mais de amor Manterá o bom-humor Pensará livremente Punirá o culpado Livrando o inocente Prezará sobretudo O bem da liberdade Guardará com carinho Sua boa imagem Mas acima de tudo O juiz ideal Terá muita coragem
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Vice-Presidente do STJ
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