Revista Justiça & Cidadania

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EDIÇÃO 94 • Maio de 2008

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É preciso reafirmar a soberania da Constituição

fatos que antece­deram a mor­te do presi­den­­­te getÚlio vargas

Foto de capa: STF ORPHEU SANTOS SALLES EDITOR TIAGO SANTOS SALLES DIRETOR EXECUTIVO DAVID RIBEIRO SANTOS SALLES Diretor jurídico

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Despedida de um grande magistrado

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o lobo e o cordeiro

ERIkA BRANCO SECRETÁRIA DE REDAÇÃO TAÍS CAVALCANTI REVISÃO DIOGO TOMAZ DIAGRAMAÇÃO CLEONICE DE MELO ASSISTENTE DE EXPEDIÇÃO EDITORA JUSTIÇA & CIDADANIA AV. NILO PEÇANHA, 50/GR.501, ED. DE PAOLI CEP: 20020-906. RIO DE JANEIRO TEL/FAX (21) 2240-0429 SUCURSAIS SÃO PAULO RAPHAEL SANTOS SALLES AV. PAULISTA, 1765/13°ANDAR CEP: 01311-200. SÃO PAULO TEL.(11) 3266-6611 PORTO ALEGRE DARCI NORTE REBELO RUA RIACHUELO N°1038, SL.1102 ED. PLAZA FREITAS DE CASTRO. CENTRO. CEP: 90010-272 TEL.(51) 3211 5344 SALVADOR FREDERICO DINIZ GONÇALVES RUA BARÃO DE ITAPUÃ, 60 CONJ. 301 CENTRO EMPRESARIAL PORTO CENTER CEP: 40140-060 TEL.(71) 3264 3754

BRASÍLIA ARNALDO GOMES SCN - Q.1 – Bl. E – Sala. 715 EDIFÍCIO CENTRAL PARK CEP: 70711-903 - BRASÍLIA - DF FONES: (61) 3327-1228 / 29 CORRESPONDENTE ARMANDO CARDOSO TEL (61) 9674-7569 revistajc@revistajc.com.br www.revistajc.com.br CTP, IMPRESSÃO E ACABAMENTO ZIT GRÁFICA E EDITORA LTDA ISSN 1807-779X

SUMÁRIO

CONSELHO EDITORIAL Alvaro Mairink da Costa ANDRÉ FONTES Antonio Carlos Martins Soares Antônio souza prudente Arnaldo Esteves Lima arnaldo Lopes süssekind aurélio wander bastos Bernardo Cabral carlos antônio navega carlos ayres britTo Carlos mário Velloso CESAR ASFOR ROCHA DALMO DE ABREU DALLARI darci norte rebelo denise frossard Edson CARVALHO Vidigal eLLIS hermydio FIGUEIRA Enrique ricardo lewandowski Eros Roberto Grau fernando neves Francisco Viana Francisco Peçanha Martins Frederico José Gueiros GILMAR FERREIRA mENDES Humberto Gomes de Barros Ives Gandra martins Jerson Kelman Joaquim Alves Brito josé augusto delgado JOSÉ CARLOS MURTA RIBEIRO José Eduardo carreira Alvim luis felipe Salomão Manoel CarpeNa Amorim Marco Aurélio Mello Massami Uyeda MAURICIO DINEPI maximino gonçalves fontes nEY PRADO Paulo Freitas Barata Sergio Cavalieri filho Sylvio Capanema de Souza thiago ribas filho

Dom quixote e o NOSSO EDITOR

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A busca incessante pela melhoria da gestão ADMINISTRATIVA

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A constituição não é mais a mesma

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IMPENHORABILIDADE DE BEM DE FAMÍLIA

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PARCERIAS QUE REDUZEM CONFLITOS

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prorrogação dos contratos de concessão e o interesse público

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reconhecimento ao mérito

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CONTRIBUIÇÕES NO INTERESSE DAS CATEGORIAS ECONÔMICAS

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a importância da justiça federal

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O PRINCÍPIO DA TRANSPARÊNCIA E O USO DE CARTÕES CORPORATIVOS

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a confusão é geral

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ASSINE (21) 2240-0429 assinatura@revistajc.com.br

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EDITORIAL

Dom Quixote e o nosso editor Bernardo Cabral Consultor da Presidência do CNC Membro do Conselho Editorial

“Poderiam perder-se todos os exemplares do Quixote, em castelhano e nas traduções; poderiam perder-se todos, mas a figura de Dom Quixote já é parte da memória da humanidade”.

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ervantes, Miguel de Cervantes (1547-1616), imperecível monumento da hispanidade – um dia voltara a Madri com as feridas da batalha de Lepanto (onde acabou de perder os movimentos da mão esquerda) e as angústias de um mundo tragediado. Ele mesmo, no seu universalmente conhecido “Dom Quixote de La Mancha”, tentara diluir a dúvida pertinaz de Sancho Pança, o amigo fiel, que encontrou um elmo e acreditava ser do rei mouro, Mambrino. E a versão clarividente de Dom Quixote é que o curioso objeto não era o elmo do monarca, mas a bacia de um fígaro. A transcendente intervenção sardônica de Dom Quixote visava tão somente reduzir a uma dimensão exata a figura de um potentado efêmero, tão fugaz como as orgias do Paço. Por outro lado, o seu debate contra os moinhos de vento significou a sua insurreição contra aquilo que, àquela altura, era considerado moderna tecnologia pelos pobres camponeses e, portanto, além da competência desleal, uma forma de opressão contra os seus pequenos recursos de produção. Não foi sem uma longa meditação que San Tiago Dan-

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tas se debruçou no seu magistral ensaio sobre a obra de Cervantes, como também Francisco Campos – conhecido como o jurista autoritário Chico Ciência – a ela dedicou um trabalho de rara sensibilidade. São essas e tantas outras razões que levaram esse grande brasileiro Orpheu Salles - espécie de Quixote redivivo - a idealizar, criar e dar vida à Confraria Dom Quixote e à Revista Justiça e Cidadania. Com que finalidade? Qual é o objetivo maior? Atingir cinco itens: ética, moralidade, dignidade, justiça e direitos da cidadania. A defesa desses postulados é a razão da cúpula de tantos e eminentes agraciados – meus velhos e queridos amigos – se terem juntado à Confraria Dom Quixote, da qual tenho a honra de ser Chanceler. E o fizeram num instante em que o País passa por turbulências políticas, o que indica a necessidade de ser construída uma ponte de harmonia, através do “rio” de certa desunião, de determinados desencontros, uma vez que a situação emergente não mais permite o fanatismo sectário ou as provocações estéreis, ou a prepotência arbitrária.


O momento – permitam-me que a Confraria faça este alerta, a título de colaboração – é o da crítica construtiva, da participação sem adesismo condenável, da contribuição não só em criatividade, mas em solidariedade, a fim de ajudar o Brasil a não cair no poço escuro da apatia, do medo, do desânimo e do descrédito. A Nação precisa continuar empenhada em reencontrar os caminhos de sua grandeza. E para isso se faz necessário que nos voltemos todos para a sua reconstrução política, fincando raízes no subsolo da nossa nacionalidade, alcançando a sua estrutura econômica e política, pois um país só se mantém erguido nos braços da soberania de seu povo. E soberania não tem preço, por mais alto que seja o valor que por ela pretendam oferecer. É evidente que Cervantes – sempre iluminado na sua genialidade –, ao percorrer o século XXI, mostraria a todos nós que é preciso ter em mente de que a essência de uma civilização moderna, numa sociedade moderna, nada mais é do que a existência de pessoas livres, com mentes livres, uma vez que, para se efetuar a desejada mobilização da consciência político-social de um povo, não basta apelar para o seu patriotismo ou então para o seu interesse. Mas, sim – antes de mais nada –, formular um ideário de combate em que ele possa acreditar e, a partir daí, convocá-lo para que interprete, na realidade, por seus próprios meios, aquilo em que crê. Dom Quixote foi tudo isso. Combateu a corrupção, a miséria, apostou na moralidade e na ética. Demonstrava, às escâncaras, que sociedade sem idéias de impulsão nem capacidade de ação e opção é sociedade letárgica, mais vencida do que vencedora, já que a primeira condição de vitória de uma sociedade é a responsabilidade e esta se mede pela dignidade tanto das idéias como das ações. Essa é a razão pela qual quase quatro séculos decorridos de sua publicação merece o Dom Quixote as palavras proféticas do escritor argentino Jorge Luis Borges: “Poderiam perderse todos os exemplares do Quixote, em castelhano e nas traduções; poderiam perder-se todos, mas a figura de Dom Quixote já é parte da memória da humanidade”. Ao me acercar do final desta saudação, ainda trago na memória o que me lembrava, amiúde, o meu saudoso amigo Clidenor de Freitas, médico de profissão e um dos maiores especialistas que conheci da obra de Cervantes, e que guardava na sua Biblioteca, na cidade de Teresina, Piauí, quase todas as edições, à exceção de uma ou outra. Dizia ele, sempre enfático: “Razão tinham Miguel de Unamuno e Rubén Dario quando cunharam a expressão: ‘Nosso Senhor Dom Quixote’.” Volto, pois, às minhas palavras iniciais: ética, moralidade, dignidade, justiça e direitos da cidadania. Com elas, confirmo que as personalidades que se destacaram na defesa desses postulados dispõem de todos os predicados para merecer a significativa honraria de fazer parte da Confraria Dom Quixote. Eu vos saúdo. 2008 MAIO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 5


REGISTRO HISTÓRICO

FATOS QUE ANTECEDERAM A MORTE DO PRESIDENTE GETúLIO VARGAS

Orpheu Santos Salles Editor

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m princípios de agosto de 1953, quando já exercia no Ministério do Trabalho o cargo de Inspetor do Trabalho, passei a exercer a função de Delegado Regional da cidade de Santos – com jurisdição em todo o litoral do Estado de São Paulo. No ano seguinte, ao final de junho, fui chamado pelo secretário particular do Presidente da República, Roberto Alves, para receber, segundo ele, instruções de serviço diretamente de Getúlio Vargas. Estranhando o fato, dado o inusitado da minha função e a subordinação aos hierarcas administrativos intermediários até o Presidente, compareci acompanhado de Roberto à sua presença e, em seguida aos cumprimentos, ele foi logo dizendo o que transcrevo na essência: “Tu vais receber instruções de como agir na jurisdição da tua função e este assunto ficará restrito apenas a ti, Roberto e eu. Tenho recebido informações nada tranqüilas no que se referem aos movimentos trabalhistas, que se mobilizou e agitou com reivindicações salariais difíceis de serem superadas. Os trabalhadores estão cobertos de razão em face do aumento do custo de vida e a inflação, porém, essas questões serão naturalmente resolvidas através da conciliação promovida pelo Ministério do Trabalho ou pela Justiça do Trabalho. Ocorre, entretanto, que no setor da Marinha Mercante, o governo vai enfrentar dificuldades, não devidas aos líderes dos marinheiros – apesar de atuantes e bem organizados com a direção do presidente do Sindicato da Marinha Mercante, 6 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MAIO 2008

comandante Emílio Bonfante Demaria –, mas, sim, devidas à ação premeditada de alguns setores da Marinha de Guerra que, orientados pelo Almirante Pena Boto, estão insuflando com intuitos escusos alguns oficiais das Capitanias dos Portos, principalmente a de Santos, onde, coincidentemente, o Sindicato da Marinha Mercante centrou o comando do movimento reivindicatório. Acontece que a Capitania do Porto de Santos e a Delegacia do Trabalho Marítimo estão sob a direção do Capitão de Mar e Guerra Bertino Dutra da Silva, que atende politicamente à orientação do Almirante Pena Boto e está se desmandando com atitudes reacionárias e descabidas contra os trabalhadores da Marinha Mercante. O fato me preocupa pelas reações e conseqüências que poderão advir de uma greve geral nos portos, que somente será evitada se for obtida uma negociação conciliadora das reivindicações – o que só será possível com o afastamento do Capitão dos Portos das negociações. Administrativamente é perfeitamente viável a sua demissão e substituição por outro oficial da Marinha responsável e confiável, mas no momento não é politicamente conveniente. E aí é que tu entras. Esse Bertino Dutra é um dos tenentes remanescentes da Revolução de 30. Chegou a ser cogitado na ocasião pelo Juarez Távora para assumir a Interventoria no Estado do Rio Grande do Norte, mas foi vetado pelos revolucionários civis locais, e eu pessoalmente não sei como e porque se desentendeu,


Foto: Arquivo JC

durante esse tempo, com os demais companheiros a ponto de ter ficado alijado de qualquer posição. Tens que ter cautela e muito tato, começando por convidá-lo para uma reunião para tratar da possibilidade de tentar a conciliação com os marítimos. Estejas certo de que ele vai encrespar e até proibir a tua participação, alegando que a competência é da Delegacia Marítima e não permitindo a tua ingerência na questão. Bem, tens delegação do Ministro do Trabalho e minha, portanto, mãos à obra e estou certo de que te desincumbirás bem desta tarefa.” De volta a Santos, tomei conhecimento do manifesto que o Capitão dos Portos já havia divulgado anteriormente, que, com demonstração de intolerância reacionária, afirmava que não permitiria e reprimiria de todas as formas a greve da Marinha Mercante nos portos sob a sua jurisdição. Diante da realidade, tentando abrir espaço para um entendimento, enviei um ofício da Delegacia do Trabalho convidando-o para uma reunião no intuito de tratar da questão que envolvia a propalada greve dos marítimos. A reação do Capitão dos Portos não se fez esperar. Incontinente ao recebimento do meu ofício, respondeu também através do ofício no 433, de 04/08/1954, em termos ásperos, intimando-me a não me imiscuir nos assuntos dos marítimos, cuja competência absoluta – conforme suas palavras – era inteiramente sua. Assim, o primeiro intento

“Os trabalhadores estão cobertos de razão em face do aumento do custo de vida e a inflação, porém, essas questões serão naturalmente resolvidas através da conciliação promovida pelo Ministério do Trabalho ou pela Justiça do Trabalho.”

havia dado o resultado esperado. Propositadamente, deixei passar uns dias e solicitei uma audiência para esclarecer o assunto, recebendo resposta, através do tenente-ajudante da Capitania, de que não tinha nada a conversar sobre os problemas dos marítimos, cuja competência era da alçada da sua repartição. Voltei à carga e insisti em falar-lhe ao menos por telefone. Decorridos vários dias, depois de muita insistência, ele mandou dizer que se fosse para falar sobre os marítimos, não teria nada para conversar. Retruquei dizendo que desejava explicar a minha posição e pedi para me receber na sua repartição, a fim de ouvir e deixar esclarecida a situação. Ini­ cialmente opôs obstáculos, mas acabou cedendo marcando encontro para dias depois. O encontro foi tenso. Recebendo-me, não se levantou e sem cumprimentos mandou que eu sentasse, dizendo: “O ofício que lhe enviei é claro, a competência do trato administrativo e as relações trabalhistas com os marítimos são da minha competência, portanto, o senhor está impedido de imiscuir-se nos assuntos relacionados com o propalado movimento grevista, que está sendo fomentado por agitadores comunistas, e eu não vou permitir a baderna e a esculhambação, como pretende esse presidente do Sindicato, o tal de Emílio Bonfante. Portanto, sobre esse assunto não temos nada para conversar” – em seguida se levantou, que­ rendo dar a entrevista por encerrada. 2008 MAIO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 7


Levantei-me, também, e me fixando nos seus olhos, disse: “Comandante, o senhor está esquecendo uma coisa muito importante: eu e o senhor estamos submetidos à hierarquia de duas autoridades superiores – o Ministro do Trabalho e o Presidente da República. O senhor pode tomar a atitude que julgar melhor, mas eu tenho de cumprir as ordens que recebi tanto do Ministro do Trabalho Interino quanto do Presidente. Sei que a situação é difícil mas, antes de descer a Santos, estive em São Paulo com o General comandante da 2a Região que deu instruções ao Comandante do Batalhão aqui em Santos, coronel Boanerges, que se for o caso e necessário, para enfrentar qualquer situação difícil com os marítimos, tenho ordens para requisitar tropa do Exército para garantir a minha atuação e enfrentar a greve, que está na iminência de eclodir. Portanto, se não houver conciliação, teremos a paralisação da Marinha Mercante em todos os portos do país, o que tem de ser evitado a qualquer custo. Informo que já me antecipei e tive um encontro com o presidente do Sindicato Nacional da Marinha Mercante, Comandante Bonfante, e este declarou peremptoriamente que, em virtude do manifesto que o senhor divulgou afirmando que a greve é de agitação e de inspiração comunista, ele recusa participar em reunião com o senhor, e nestas circunstâncias, face as ordens que recebi, não tenho outra alternativa senão a de promover reuniões com o comando da greve para tentar, de qualquer forma, conseguir a conciliação. Lamento muito o que ocorre, tornando necessário o seu afastamento das reuniões, o que é exigência intransponível e absoluta do Comandante Bonfanti, deixando o senhor fora dos entendimentos para a conciliação.” Enquanto apressadamente falava da situação e das exigências dos dirigentes do Sindicato dos Marítimos, as feições do Capitão dos Portos iam se avermelhando, demonstrando uma irritação que poderia se transformar em algo imprevisível, razão que me levou a lhe dizer: “Espero que o senhor compreenda a minha posição”, e sem mais delongas, não dando tempo para qualquer pronunciamento seu, me retirei do seu gabinete. Ao chegar de volta ao gabinete da Delegacia do Trabalho, encontrei à minha espera o presidente do Sindicato dos Operários Portuários, José Gonçalves, e o presidente do Sindicato dos Empregados na Administração dos Serviços Portuários de Santos, Jorge Pacheco, que vinham solicitar a minha intercessão perante a Cia. Docas e o apoio do Governo na conciliação com a direção da empresa para conseguir os pagamentos dos aumentos de salários concedidos em acordos anteriores, a fim de evitar a paralisação dos trabalhos, pois as categorias já haviam decidido pela greve em assembléias, caso não houvesse o imediato apagamento. Depois de ouvi-los e em suas presenças, telefonei para o Palácio do Catete. Falei com o Secretário da Presidência relatando o ocorrido com o Capitão dos Portos, o que por certo atendia, a princípio, a incumbência recebida, ao passo que relatava a nova situação dos portuários, que se encontra­ vam na iminência de greve, motivo que levava a solicitar 8 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MAIO 2008

audiência com o Presidente, a fim de tratar da nova questão que eu julgava relevante pelas conseqüências e semelhanças de greve que envolviam os assuntos em questão. No fim do expediente desse mesmo dia, Roberto Alves retornou com a recomendação do Presidente para que eu fosse ao Rio relatar o que ocorria. Dois dias após, no Catete, Getúlio Vargas me recebeu na companhia de seu secretário. Dei as informações do que importava sobre o Capitão dos Portos e os entendimentos com o Sindicato dos Marítimos, e sugeri, para evitar a deflagração da greve dos portuários, que ele interferisse diretamente com o presidente da Companhia Docas de Santos, o seu particular amigo, Dr. Guilherme Guinle, para que a empresa desse uma solução urgente no acordo feito com os Sindicatos referidos. Em seguida, depois de minha exposição, o Presidente disse estar satisfeito com as démarches feitas, tanto com o Capitão dos Portos, afastando-o das reuniões, quanto nos entendimentos com o comando de greve dos marítimos, o que propiciou o acordo que seria formulado e assinado no Ministério do Trabalho em conjunto com o Ministério de Viação e Obras Públicas e os Sindicatos interessados. Quanto aos portuários, deu-me instruções para que procurasse o Diretor Tesoureiro da Cia. Docas, Dr. Washington de Almeida, que já estava a par do assunto e com instruções para resolver a questão. A seguir despediu-se, cumprimentandome pela atuação e pelos resultados alcançados. Voltei para Santos e nos primeiros dias de agosto de 1954 tive a satisfação de saber do acordo assinado com o Sindicato dos Marítimos que evitou a greve, além de constatar que os portuários estavam recebendo os respectivos pagamentos, tudo graças a benfazeja interferência do Presidente Vargas. Entretanto, enquanto eu me rejubilava com os resultados colhidos com a minha intercessão nos acordos realizados, principalmente pelos agradecimentos recebidos e expressos em correspondências dos presidentes dos sindicatos portuários, datados de 06 e 07 de agosto – cujos originais se encontram em meu poder, e que fazem parte do meu arquivo particular – infeliz e tragicamente, no alvorecer do dia 24 de agosto fui acordado com a lamentável notícia do suicídio do presidente Getúlio Vargas, o maior estadista que o Brasil produziu. Até hoje, decorridos 54 anos daquela data, ainda não me conformo com a forma de sua despedida da vida. Sei do drama que o levou à tragédia, das angústias, sofrimentos, traições, desilusões, dissabores, ingratidões e do desespero por não querer resistir, o que por certo levaria o país a uma guerra sangrenta, face às traições declaradas de alguns generais, almirantes e brigadeiros, inclusive o próprio Ministro do Exército, general Zenóbio da Costa, que às vésperas do fatídico 24 de agosto, já havia se bandeado a favor do também golpista, vice-presidente Café Filho. A revolta popular que eclodiu em seguida à notícia de sua morte – com a depredação das redações dos jornais “O Globo”, “Correio da Manhã” e, em especial, a “Tribuna da Imprensa”, do jornalista Carlos Lacerda – deixou claro o caos


Foto: Arquivo JC

Presidente Getúlio Vargas

que ocorreria caso houvesse resistência da parte do presidente Getúlio Vargas, que inegavelmente preferiu o suicídio ao sacrifício do povo que tanto amou e por quem era também imensamente amado. Com a morte do Presidente, o enraivecido Capitão dos Portos, Bertino Dutra da Silva, iniciou uma solerte e insidiosa campanha contra mim, na qualidade de Delegado do Trabalho, que ousei – segundo suas expressões – desafiálo e excluí-lo das reuniões na feliz conciliação da greve da Marinha Mercante. Assim é que, logo após o enterro do Presidente, nomeado Ministro do Trabalho o adesista senador petebista Alencastro Guimarães, Bertino Dutra iniciou o envio de ofícios – algumas cópias se encontram em meu poder – a diversas autoridades dos Ministérios do Trabalho e da Justiça, em especial ao Departamento Federal de Segurança Pública e ao Departamento de Ordem Política e Social da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, com denúncias maldosas e mentirosas, acusando-me de ter, na direção da repartição, promovido reuniões com comunistas e agitadores, insuflando a deflagração de inúmeras greves nos setores marítimos, na indústria do trigo, da estiva e dos portuários. O resultado das suas malévolas aleivosias não se fez esperar. De nada adiantou a intervenção do saudoso, ilustre e digno senador Alberto Pasqualini perante o seu colega Senador e Ministro do Trabalho em meu abono. Prevaleceram as

infâmias do malfadado Capitão de Mar e Guerra que, com suas mentiras e despautérios, propiciou através dos órgãos de segurança as acusações em meu desfavor. Decorridos 47 dias da morte do presidente Getúlio Vargas, no dia 10 de outubro de 1954, sem acusação formalizada e sem direito de defesa, fui demitido das funções da chefia e do cargo de Inspetor do Trabalho, com a incriminação de agitador e comunista. Passados mais de 50 anos da minha demissão, sou hoje conhecedor das tramas, misérias, mentiras e infâmias que cavilosamente inventaram e arrolaram contra mim. As informações que requeri e que me foram fornecidas, constantes dos relatórios extraídos dos arquivos da Abin – Agência Brasileira de Inteligência –, ex-SNI, e do Dops da Secretaria de Segurança de São Paulo, atestam as atitudes e ações engendradas pelo raivoso Capitão dos Portos em conluio com maldosos agentes de segurança, que propiciaram as injustiças e violências sofridas, que apesar de tudo não conseguiram abater o meu ânimo e caráter. As incontáveis prisões, o exílio, a ausência da família, as humilhações e outras desgraças foram suportadas sempre com a esperança de quem tem fé e acredita em si próprio. Pior aconteceu com o presidente Getúlio Vargas, que deu tudo de si em benefício da Nação e do seu povo, preferindo morrer, sacrificando sua vida, para evitar a desgraça de uma revolução sangrenta entre irmãos. 2008 MAIO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 9


Gilmar Ferreira Mendes Presidente do STF

V

istos sob a perspectiva da História do constitucionalismo, os vinte anos do Estado brasileiro sob a Constituição de 1988 não passam de um instante, brevíssimo piscar de olhos. No entanto, representam o mais longo período de estabilidade democrática e normalidade institucional de nossa vida republicana iniciada em 1889. E não se cuida de experiência vivida sob um clima de absoluta tranqüilidade econômica e política. Ao contrário, o País passou por dificuldades graves nesses campos. Não obstante, nem a inflação descontrolada e os desvarios da desordem econômica por ela causada, nem os sérios casos de corrupção no estamento político deixaram de ser equacionados dentro dos marcos institucionais mais ortodoxos, sem qualquer contestação ou reclamo relevante. Passadas quase duas décadas da promulgação da Constituição Federal – e muitas reformas depois, feitas em quadro de absoluta normalidade –, creio que é chegado o momento oportuno de reflexão e de balanço. A opção do Constituinte de 1988 pelo exercício simultâneo e harmonioso do poder por diversos agentes políticos, em sua complexa tessitura, parece ser o grande responsável por esse equilíbrio institucional. É certo, por outro lado, que, a despeito das mais diversas dificuldades, a Constituição tem mantido a sua capacidade regulatória. Nesse sentido, refira-se não só o papel singular dos Poderes e de instituições como o Ministério Público, a Advocacia, mas também os organismos vitais da Democracia 10 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MAIO 2008

como a imprensa livre, as associações e organizações que formam a base de uma sociedade aberta e plural. Há sempre que se destacar a importância do Judiciário independente neste modelo institucional. Em verdade, no Estado constitucional, a independência judicial é mais rele­ vante do que o próprio catálogo de direitos fundamentais. As conquistas alcançadas com o modelo democrático estabelecido em 1988 estimulam a sua expansão. E o quadro formal da Democracia conta com uma vantagem específica entre nós, que é a inexistência de adversários radicais ao modelo. Não tenho dúvida de que, a partir da Carta de 1988, estão presentes aquelas condições que a ciência política enuncia como pressupostos para que seja atingida a Democracia plena, dentre as quais ressalto a existência de uma cultura política e de convicções democráticas. Há uma crença no modelo democrático, até porque as vias democráticas de conciliação têm-se mostrado mais lucrativas que o conflito e a ruptura. Assim, não resta dúvida de que a Democracia brasileira adquiriu autonomia funcional, uma vez que todas as forças políticas relevantes aceitam submeter – e não há outra alternativa – seus interesses e valores às incertezas do jogo democrático. Efetivamente, até aqui – e isto há de continuar assim – tais forças políticas não colocam em xeque as linhas básicas do Estado de Direito, ainda que alguns movimentos sociais de caráter fortemente reivindicatório atuem, às vezes, na fronteira da legalidade. Nesses casos, é preciso que haja firmeza por parte das

Foto: Luiz Antonio/STJ

A busca incessante pela melhoria da gestão ADMINISTRATIVA


Foto: José Cruz/ABr

Da esquerda: O presidente da Câmara, deputado Arlindo Chinaglia (PT-SP); o presidente Lula; o novo presidente do STF, Gilmar Mendes.

autoridades constituídas. O direito de reunião e de liberdade de opinião devem ser respeitados e assegurados. A agressão aos direitos de terceiros e da comunidade em geral deve ser repelida imediatamente com os instrumentos fornecidos pelo Estado de Direito, sem embaraços, sem tergiversações, sem leniências. O Judiciário tem grande responsabilidade no contexto dessas violações e deve atuar com o rigor que o regime democrático impõe. Não tem sido pequeno o desafio confiado a esta Corte. Dia após dia, o Supremo Tribunal Federal vê-se confrontado com a grande responsabilidade política e econômica de aplicar uma Constituição repleta de direitos e garantias fundamentais de caráter individual e coletivo. À demanda cada vez maior da sociedade, a Corte tem respondido, demonstrando profundo compromisso com a realização dos direitos fundamentais. Temos julgado casos históricos, em que discutidas questões relacionadas ao racismo e ao anti-semitismo, à progressão de regime prisional, à fidelidade partidária, e ao direito da minoria de requerer a instalação de comissões parlamentares de inquéritos, entre outros. Já iniciamos o julgamento de temas relevantes sobre aborto, pesquisas com células-tronco e prisão civil do depositário infiel, no qual estamos a discutir o significado dos tratados de direitos humanos na ordem jurídica brasileira. A propósito, ressalte-se a necessidade de que esta Corte esteja atenta aos avanços do Direito Internacional, especialmente no contexto da integração regional. Urge contribuir para a consolidação da comunidade sul-americana e latino-

americana também no plano jurídico e judicial. Os direitos fundamentais de caráter processual e as garantias objetivas para a proteção da ordem constitucional têm merecido tratamento ímpar por parte desta Corte, a ponto de formarem, nesse aspecto, um dos sistemas constitucionais mais completos do mundo. Ao exigir o respeito às garantias do devido processo legal e das liberdades em geral, o Supremo, além de agir como guardião da Constituição, impede que o Estado Constitucional seja transformado em Estado de Polícia. O cumprimento dessas complexas tarefas, todavia, não tem o condão de interferir negativamente nas atividades do legislador democrático. Não há “judicialização da política”, pelo menos no sentido pejorativo do termo, quando as questões políticas estão configuradas como verdadeiras questões de direitos. Essa tem sido a orientação fixada pelo Supremo, desde os primórdios da República. É certo, por outro lado, que esta Corte tem a real dimensão de que não lhe cabe substituir-se ao legislador, muito menos restringir o exercício da atividade política, de essencial importância ao Estado Constitucional. Democracia se faz com política e mediante a atuação de políticos. Quando se tenta depreciar ou execrar a atividade política está-se a menosprezar a consciente opção de todos os brasileiros pelo regime democrático. De igual forma, qualquer obstáculo erguido em opo­ sição ao poder-dever de legislar – de que é exemplo o já desgastado modelo de edição de medidas provisórias – afeta 2008 MAIO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 11


a construção de um processo democrático livre e dinâmico. Nesse sentido, é necessário que se encontre um modelo de aplicação das medidas provisórias que possibilite o uso racional desse instrumento, viabilizando, assim, tanto a condução ágil e eficiente dos governos quanto a atuação independente dos legisladores. Os Poderes da República encontram-se preparados e maduros para o diálogo político inteligente, suprapartidário, no intuito de solucionar um impasse que, paralisando o Congresso, embaraça o processo democrático. De fato, nos Estados constitucionais contemporâneos, legislador democrático e jurisdição constitucional têm papéis igualmente relevantes. A interpretação e a aplicação da Constituição são tarefas cometidas a todos os Poderes, assim como a toda a sociedade. A imanente e aparente tensão dialética entre Democracia e Constituição, entre direitos fundamentais e soberania popular, entre jurisdição constitucional e legislador democrático é o que alimenta e engrandece o Estado de Direito, tornando-lhe possível o desenvolvimento no contexto de uma sociedade aberta e plural, baseada em princípios e valores fundamentais. A ênfase em uma agenda social, que em muito transcende aspectos meramente formais, está estampada logo no início da Carta Constitucional. A ampla proclamação de direitos pela Constituição serviu de estímulo a que as instituições de representação da sociedade civil se mobilizassem em favor da concretização daquelas promessas constitucionais. Não há dúvida de que, a partir de 1988, a sociedade civil brasileira saiu fortalecida. A verdade é que essa constitucionalização, para muitos de caráter simbólico, engendrou o surgimento de organizações sociais envolvidas criticamente na realização dos valores proclamados solenemente no texto constitucional. Convive-se hoje com uma multiplicação de movimentos sociais voltados à defesa de diversos interesses, como o da igualdade racial, o do meio ambiente, o da reforma agrária, os interesses dos indígenas, o do consumidor, entre outros. Na luta política pela ampliação da cidadania, reivindicase diuturnamente a concretização desses programas, até mesmo mediante a judicialização das mais diversas pretensões. Por certo, em um país como o Brasil, em que o acesso a direitos sociais básicos ainda não é garantido a milhões de pessoas, não surpreende a generosidade do Poder Constituinte a refletir a perspectiva de que o Estado constitucional também é um espaço de síntese e de proclamação de esperanças que, historicamente, foram esquecidas. Nesse contexto também mostra-se relevante o papel da jurisdição constitucional na consolidação desse ambiente democrático. O Brasil tem talvez uma das mais ativas jurisdições constitucionais do mundo, com amplo controle de constitucionalidade, concreto e abstrato. O Supremo está desafiado a buscar o equilíbrio institucional a partir de procedimentos que permitam uma conciliação 12 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MAIO 2008

entre as múltiplas expectativas de efetivação de direitos com uma realidade econômica muitas vezes adversa. Daí invocarem-se, não raramente, o chamado “pensamento do possível” e o próprio limite do financeiramente possível. Nessa perspectiva de análise institucional, o Supremo tem-se mostrado peça-chave na concretização das referidas promessas sociais da Constituição de 1988. Uma das linhas de aperfeiçoamento da Carta referese especificamente à busca de uma ampliação do acesso ao Poder Judiciário pelos setores menos favorecidos da sociedade brasileira. Há no País uma imensa demanda reprimida, que vem a ser a procura daqueles cidadãos que têm consciência de seus direitos, mas que se sentem impotentes para os reivindicar, porque são intimidados quer pela obsoleta burocracia judicial ou pelo hermetismo dos ritos processuais e da linguagem jurídica. Em tempos de responsabilidade social, cabe ao Judiciário assumir também a sua cota-parte, saindo do isolamento, tornando-se social e politicamente relevante ao lutar pela inclusão dessas pessoas, protegendo-as efetivamente em seus direitos fundamentais e, por conseqüência, fortalecendolhes a crença no valor inquestionável da cidadania. Não se há de descuidar, entretanto, do contínuo esforço em vencer, vez por todas, a lendária e secular morosidade atribuída à Justiça, a despeito da notória reformulação de quadros e meios do Poder Judiciário brasileiro, com avanços expressivos no tocante à racionalização máxima de procedimentos, sem qualquer prejuízo às garantias constitucionais dos cidadãos. De fato, são visíveis os acertos representados por medidas como a criação de juizados especiais e a implementação das súmulas vinculantes e, mais recentemente, do instituto da repercussão geral, que hoje representa a grande possibilidade de descompressão no ritmo de atuação do Supremo. Todo o Judiciário está desafiado a contribuir para esse esforço de racionalização, sem que para isso se efetive, necessariamente, a expansão das estruturas existentes. Assim, a ênfase há de ser colocada na otimização dos meios disponíveis. A busca incessante pela melhoria da gestão administra­ tiva, com a diminuição de custos e a maximização dos recursos, resultará seguramente no aperfeiçoamento do serviço público de prestação da justiça. Se, por um lado, a multiplicação de processos em escala exponencial corrobora o forte ‘protagonismo’ do sistema judicial, ou seja, a ampla aceitação, pelos brasileiros, do primado do Direito, da jurisdição como via institucional de resolução de conflitos, por outro é grave indício de que há necessidade de se debelar a cultura “judicialista” que se estabeleceu fortemente no País, segundo a qual todas as questões precisam passar pelo crivo judicial para serem resolvidas, o que faz o Judiciário ser chamado a atuar na solução de questões cotidianas, mais afetas às atribuições de


Foto: Antonio Cruz/ABr

“O Supremo está desafiado a buscar o equilíbrio insti­ tucional a partir de procedimentos que permitam uma con­ciliação entre as múltiplas expectativas de efetivação de direitos com uma realidade econômica muitas vezes adversa.”

competência de setores administrativos. Somente dessa maneira o Judiciário deixará de ser o único escoadouro – como se estivesse entre as próprias funções a de atuar como provedor social – dos reclamos mais iminentes da cidadania, das demandas impulsionadas pelo direito de resistência de comunidades carentes. Sob esse aspecto, é hora de a sociedade civil, as organizações não governamentais, as entidades representativas de classe e órgãos como a Defensoria Pública, por exemplo, mobilizarem-se para combater esse quase hábito nacional de exigir a intermediação judicial para fazer-se cumprir a lei. Na imensa maioria dos casos, a conciliação e a aplicação direta do Direito pelos diversos órgãos e agentes se afiguram alternativas vantajosas para os envolvidos na contenda, dada a minimização dos procedimentos, dos custos e do tempo despendido. Por mais eficiente que se torne, o Judiciário não pode tudo. Não devemos cair na tentação da onipotência e da onipresença em todas as questões de interesse da sociedade. À esfera da política cabe a formulação de políticas pú­ blicas, cumprindo ao Poder Judiciário, nessa seara, o papel

de guardião da Constituição e dos direitos fundamentais. A intervenção judicial assume aqui caráter marcadamente corretivo, até mesmo em face de determinações constitu­ cionais. Juntos, afinados com o fundamental objetivo de aprimorar as instituições, de maneira a ajustá-las às inevitáveis mudanças socioculturais compatíveis com o desenvolvimento tecnológico do mundo pós-moderno, os Poderes da República hão de continuar trabalhando de maneira harmônica para a expansão do modelo democrático estabelecido em 1988, que, apesar de jovem, comprova incontestável e definitiva consolidação. De minha parte, agradeço a oportunidade que me foi dada – e nisso relembro a honrosa indicação, para esta Corte, do presidente Fernando Henrique Cardoso –, para participar mais diretamente desse contínuo processo de construção e aperfeiçoamento da democracia constitucional brasileira. Saúdo a ministra Ellen Gracie pela proficiente gestão à frente desta Corte e a todos os meus pares, a quem agradeço a confiança e com quem continuo contando para bem conduzir o Poder Judiciário brasileiro. 2008 MAIO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 13


É preciso reafirmar a soberania da Constituição

O

“O que se mostra importante reconhecer e reafirmar é que nenhum Poder da República tem legitimidade para desrespeitar a Constituição ou para ferir direitos públicos e privados de seus cidadãos.”

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ministro Celso de Mello, falando como decano e em nome de seus colegas, ressalta o peso jurídico-político da Constituição, dissertando sobre a sua inviolabilidade e a função de guardiã de nossa Lei Fundamental exercida pela alta Corte, conforme trechos destacados de seu discurso proferido na posse de Gilmar Mendes na presidência do Supremo Tribunal Federal: “O espírito deste Supremo Tribunal, que nos envolve a todos, juízes do passado e do presente, confere-nos uma identidade comum, confirmada, a cada momento, pelos desafios, pelas crises e pelos dilemas de gerações de magis­tra­ dos, que, tendo assento nesta Suprema Corte – e agindo com dignidade e notável percepção das exigências éticas impostas pela consciência democrática –, foram sempre capazes de se opor, em instantes cruciais da vida política nacional, a estruturas autoritárias que buscavam mo­ nopolizar, com absoluta arrogância e avidez de poder, o controle institucional do Estado e o domínio político da sociedade civil.” “O exame comparativo da Constituição de 1988 com aquelas que a precederam revela e permite ressaltar a importância, a originalidade e o caráter inovador que qualificam a nossa vigente Lei Fundamental – elaborada e aprovada, em ambiente de plena liberdade, pelos representantes do povo brasileiro reunidos em Assembléia Nacional Constituinte.” “É justo, portanto, que esta Suprema Corte, tornada fiel depositária da preservação da autoridade e da supremacia dessa nova ordem constitucional, por deliberação soberana da própria Assembléia Nacional Constituinte, reafirme, uma vez mais, o seu respeito, o seu apreço e a sua lealdade


Foto: STF

Ministro do STF, Celso de Mello

ao texto sagrado da Constituição democrática do Brasil.” “Nesse contexto, incumbe, aos juízes e tribunais, notadamente a esta Corte Suprema, o desempenho do dever que lhes é inerente: o de velar pela integridade dos direitos fundamentais de todas as pessoas, o de repelir condutas governamentais abusivas, o de conferir prevalência à essencial dignidade da pessoa humana, o de fazer cumprir os pactos internacionais que protegem os grupos vulneráveis expostos a práticas discriminatórias e o de neutralizar qualquer ensaio de opressão estatal.” “Nenhum dos Poderes da República pode submeter a Constituição a seus próprios desígnios ou a manipulações hermenêuticas ou, ainda, a avaliações discricionárias fundadas em razões de conveniência política ou de pragmatismo institucional, eis que a relação de qualquer dos Três Poderes com a Constituição há de ser, necessariamente, uma relação de respeito incondicional, sob pena de juízes, legisladores e administradores converterem o alto significado do Estado Democrático de Direito em uma palavra vã e em um sonho frustrado pela prática autoritária do poder.” “A consciência da alta responsabilidade institucional de que é depositária esta Corte não nos permite desconsiderar o fato de que nada compensa a ruptura da ordem constitucional, porque nada recompõe os gravíssimos efeitos que derivam do gesto de infidelidade ao texto da Lei Fundamental.” “É por isso que posso afirmar, senhor Presidente, que esta Suprema Corte – que não se curva a ninguém, nem tolera a prepotência dos governantes, nem admite os excessos e abusos que emanam de qualquer esfera dos Poderes da República – desempenha as suas funções institucionais e exerce a jurisdição que lhe é inerente de modo compatível com

os estritos limites que lhe traçou a própria Constituição.” “Na realidade, o Supremo Tribunal Federal, ao suprir as omissões inconstitucionais dos órgãos estatais e ao adotar medidas que objetivem restaurar a Constituição violada pela inércia dos Poderes do Estado, nada mais faz senão cumprir a sua missão constitucional e demonstrar, com esse gesto, o respeito incondicional que tem pela autoridade da Lei Fundamental da República.” “A omissão do Estado – que deixa de cumprir, em maior ou em menor extensão, a imposição ditada pelo texto constitucional – qualifica-se como comportamento revestido da maior gravidade político-jurídica, eis que, mediante inércia, o Poder Público também desrespeita a Constituição, também ofende direitos que nela se fundam e também impede, por ausência (ou insuficiência) de medidas concretizadoras, a própria aplicabilidade dos postulados e princípios da Lei Fundamental.” “O fato inquestionável é um só: a inércia estatal em tornar efetivas as imposições constitucionais traduz inaceitável gesto de desprezo pela Constituição e configura comportamento que revela um incompreensível sentimento de desapreço pela autoridade, pelo valor e pelo alto significado de que se reveste a Constituição da República.” “O que se mostra importante reconhecer e reafirmar é que nenhum Possder da República tem legitimidade para desrespeitar a Constituição ou para ferir direitos públicos e privados de seus cidadãos. É preciso, pois, reafirmar a soberania da Constituição, proclamando-lhe a superioridade sobre todos os atos do Poder Público e sobre todas as instituições do Estado.” 2008 MAIO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 15


Foto: Marcello Casal Jr/ABr

A CONSTITUIÇÃO NÃO É MAIS A MESMA Cezar Britto Presidente do Conselho Nacional da OAB

Inicialmente saúdo, em nome da advocacia brasileira, os personagens centrais desta cerimônia: os novos presidente e vice-presidente deste Supremo Tribunal Federal, ministros Gilmar Ferreira Mendes e Antonio Cezar Peluso. Da mesma forma, saúdo a ministra Ellen Gracie Northfleet, pela gestão impecável à frente desta Corte, em que figurou como a primeira mulher a presidi-la no País. Honrou a história do Supremo e, simultaneamente, derrotou aqueles que, teimo­samente, se recusam a acreditar na igualdade entre todos os seres humanos. A Ordem dos Advogados do Brasil sente-se honrada em participar deste ato solene, no papel institucional que lhe cabe de representante da sociedade civil brasileira e da advocacia. É, por isso mesmo, ocasião preciosa e rara, e que favorece o diálogo franco, direto e cortês, que deve e precisa ser a essência do Estado Democrático de Direito. Democracia implica, sobretudo, um Poder Judiciário ati­ vo, altivo e preparado para fazer da Justiça palavra conhecida de todos. Requer um Supremo Tribunal Federal consciente da sua

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importantíssima missão de guardião da Constituição Federal, o responsável pela última palavra na vida de um país. Eis porque não poderia a sociedade brasileira deixar de registrar a sua esperança de que esta Corte, agora renovada em sua direção, conserve o espírito e a força de uma Constituição que é fruto de momento raro na vida da República. Foi concebida quando a cidadania ousou romper com o período obscuro centrado na lógica autoritária de uma ditadura militar. Gerada quando passamos a rejeitar a intromissão externa sobre a nossa política econômica; quando se tornou inaceitável a concentração de terras improdutivas em um país de bóias-frias; quando tenebrosas transações, furando a rígida censura à imprensa, se tornavam conhecidas da Nação; quando nos cansamos de ouvir que era preciso primeiro crescer o bolo para dividi-lo depois. Germinou, enfim, quando fomos à rua pedindo a volta daqueles que partiram no “rabo de foguete”; quando caminhávamos contra o vento, querendo nos reunir em associações e sindicatos e exprimir o nosso pensamento, sem medo de censura, prisões ou perseguições políticas; quando


pleiteávamos, em praça pública, votar livremente para Presidente da República, sem eternização de mandatos e com alternância de poder, jamais cogitando de recorrer a casuísmos. Enfim, uma Constituição que nasceu quando a Nação queria de volta a liberdade roubada, sonhava com a igualdade ainda não conquistada e apostava na fraternidade como melhor forma de solução de conflitos. Duas décadas depois, governo após governo, emendas após emendas, pasmos, percebemos que a Constituição foi sendo modificada, diminuída, esquartejada em seu espírito. O capital financeiro fez substituir o sonho social tão esperançosamente projetado. O Brasil foi privatizado. Estatais vendidas. A educação mercantilizada e a saúde pública condenada à inanição. Até mesmo o trabalho, orgulhosamente exibido como fator de dignidade humana, transformou-se em mero custo de produção. Essa assombrosa mudança de paradigma fez o eminente jurista Celso Antonio Bandeira de Melo registrar, desapontado, que as novas emendas criaram uma Constituição completamente diferente daquela aprovada em 1988. O seu espírito já não é o mesmo. De defensora da soberania, a Constituição de 88 se transformou em espectro do que pretendia ter sido. Rendeu-se ao capital especulativo antes mesmo da sua maioridade. Basta que observemos as históricas taxas de juros praticadas no Brasil para compreendermos que a Constituição foi mutilada em um de seus principais fundamentos. Definitivamente, após 56 (cinqüenta e seis) emendas, esta não é a Constituição que Ulysses Guimarães, no dia 05 de outubro de 1988, batizou de Constituição-Cidadã. E, para agravar, o Congresso Nacional ainda não cumpriu sua obrigação constitucional de realizar a Auditoria da Dívida Externa, que, hoje mais do nunca, se faz urgente porque está sendo paga com o aumento assustador da dívida interna. Se o Parlamento deseja efetivamente uma pauta positiva, deveria cuidar melhor dessa questão, antes mesmo do julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental, ajuizada pela OAB com esta finalidade. Tempo não lhe falta. E, se lhe faltasse, poderia retirar da pauta a famigerada PEC 12 – a PEC do Calote –, proposta que desmoraliza as decisões do Poder Judiciário, legaliza a inadimplência do Estado para com os seus cidadãos e transfere para estes a responsabilidade pela má gestão, descaso ou corrupção na condução da coisa pública. Se a questão é pagar a dívida, que se pague primeiro a dívida para com o cidadão! Descumprir um precatório desrespeita não apenas a cidadania, mas também o Poder Judiciário, já que é uma decisão sua que estará sendo violada. Medida provisória é exceção – não regra. Transformou-se em rotina o que deveria existir apenas em casos de urgência e relevância. Nada mais urgente e relevante, hoje, que rever essa distorção, transmitida (e aceita) como herança de governo para governo, desde o primeiro da redemocratização. Mudar isso é não apenas questão de honra para o Poder Legislativo, mas imperativo constitucional. A banalização das

medidas provisórias é agressão permanente à Constituição a que espantosamente nos acostumamos! A Democracia vive, hoje, em nosso Planeta, o desafio de sobreviver às investidas da “lógica policialesca”. Desde o atentado às Torres Gêmeas, nos Estados Unidos, em 2001, as liberdades civis, a pretexto do combate ao terrorismo, têm sido alvo de ataques preocupantes. O Ministério Público gaba-se dos seus aparelhos, as polícias federal e estaduais da mesma forma. Até mesmo a Abin, que não tem poder de investigação, também quer meter o bedelho neste mundo de controle. Instaurou-se no Brasil um clima de medo e terror entre os cidadãos. Ninguém escapa das garras dos grampeadores de plantão. Investiga-se tudo e a todos. Nem mesmo esta Corte ou qualquer autoridade ou cidadão presente, nem mesmo o Presidente da República está a salvo. O Estado de Bisbilhotagem, subproduto do Estado Policial, rasga a Constituição, sepulta a Democracia, atropela a cidadania e nos remete a tempos obscuros da ditadura. Parece até que estamos a ler uma fotografia do Grande Irmão, criada por George Orwell, com a legenda “O Grande Irmão está a observar-te”. Entretanto, para que se cumpra, sem danos colaterais, é preciso que não se ceda à tentação de obtê-la fora dos limites constitucionais. Quando isso acontece, repito, o triunfo é apenas aparente. Sempre que a lei é violada, o triunfo é do crime e consolidase a nefasta idéia de que o mal é mais poderoso que o bem e só pode ser combatido pela contramão. O Brasil, que viveu duas décadas de ditadura militar, sabe bem o que significa fortalecer os que detêm o poder das armas, o controle da imprensa e as rédeas de julgamentos. Não podemos – repito – restabelecer uma mentalidade revogada pela Carta Constitucional de 1988. Sabemos que nenhum de nós é isoladamente responsável pela crise de identidade que atinge a Constituição Federal, mas cada um de nós fazendo a parte que nos cabe. Desde que não fiquemos calados, pois, como bem ressaltou Martin Luther King Jr.: “O que me preocupa não é o grito dos maus, e sim, o silêncio dos bons...” A advocacia conclui esta saudação reiterando sua esperança e expectativa no aprimoramento das relações entre as instituições. Desse bom relacionamento depende a preservação dos fundamentos da Democracia, cuja reconquista custou suor, sangue e lágrimas ao povo brasileiro. Não podemos trair essa luta. Democracia e cidadania são palavras-chaves nesse processo. Que sejam nossa Guia na construção de um país mais justo e próspero. E que a geração que ousou pensar uma nova Constituição para o seu país, agora ocupando os postos mais relevantes e estratégicos, nunca possa dizer, parodiando Belchior, “que apesar de termos feito tudo que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais”. Afinal, como complementou Bertolt Brecht, “o que devemos aprender com os antigos é como fazer o novo.” 2008 MAIO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 17


IMPENHORABILIDADE DE BEM DE FAMÍLIA Benedicto Abicair Desembargador do TJ/RJ

“Quem só atende à letra da lei não merece o nome de jurisconsulto; é simples pragmático”- dizia Vico.

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ecentemente, prolatei voto em recurso onde se questionava a possibilidade de penhora de imóvel, face alegação de tratar-se de bem de família, visto ser ele o único de propriedade da fiadora, que servia de moradia para si e seus filhos, se rebelando, assim, contra a constrição. A sentença, então atacada à letra fria da lei, julgou improcedente o pedido, por entender que a impenhorabilidade do bem de família não seria oponível em face de dispositivo legal específico, colacionando, ainda, doutrina e jurisprudência. Na apelação, sustentava a fiadora que o bem de família não poderia ser objeto de penhora, por violar o princípio isonômico e o direito à moradia, este garantido constitucionalmente. Naquele processo ressaltei alguns aspectos tais como: 1 – a prolação da sentença ocorrera em maio de 2000 e a Defensoria Pública somente teve acesso aos autos em 2005 para interpor recurso; 2 – a fiança foi prestada em contrato de locação não-residencial, sendo a fiadora primeira garantidora; 3 – a locatária consistia em firma comercial, sendo seus sócios parentes e um deles companheiro da fiadora, figurando como segundo fiador, porém sem bens;

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4 – a fiadora demonstrava-se, inequivocamente por sua qualificação, bem como por sua assinatura, ser pessoa idosa e semi-analfabeta, o que, em confronto com os representantes do locador e com os sócios da locatária, a caracterizava como hipossuficiente; 5 – a confusa cláusula envolvendo o período de locação; 6 – cláusula de caráter leonino, por estipular que a realização das citações, intimações e notificações ocorreriam via postal, através de aviso de recebimento, se levado em conta que o não atendimento teria como conseqüência a perda da propriedade, isto não explicitado no contrato. Aludida penhora se encontra prevista no art. 3o, VII, da Lei no 8.009/1990: “O fiador que oferece o único imóvel de sua propriedade para garantir contrato de locação de terceiro pode ter o bem penhorado em caso de descumprimento da obrigação principal do locatário.” A jurisprudência tem se quedado por esse caminho nos egrégios tribunais do País, como também no STJ e STF, sendo objeto da súmula no 63, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, in verbis: “Cabe a incidência de penhora sobre imóvel único do fiador de contrato de locação, Lei no 8.009/90 (art. 3o, VII) e Lei no 8.245/91.”


Foto: www.sxc.hu

Em relação ao argumento de que a referida penhora é contrária ao disposto na Constituição Federal, sobretudo após a EC 26, principalmente no que tange ao direito de moradia, confira-se o julgado do Pleno do STF, que teve como Relator o ministro Cezar Peluso, cuja ementa é a que se segue: “Fiador. Locação. Ação de despejo. Sentença de procedência. Execução. Responsabilidade solidária pelos débitos do afiançado. Penhora de seu imóvel residencial. Bem de família. Admissibilidade. Inexistência de afronta ao direito de moradia, previsto no art. 6o da CF. Constitucionalidade do art. 3o, inc. VII, da Lei no 8.009/90, com a redação da Lei no 8.245/91. Recurso extraordinário desprovido. Votos vencidos. A penhorabilidade do bem de família do fiador do contrato de locação, objeto do art. 3o, inc. VII, da Lei no 8.009, de 23 de março de 1990, com a redação da Lei no 8.245, de 15 de outubro de 1991, não ofende o art. 6o da Constituição da República (RE 407.688/SP – Recurso Extraordinário. Min. Cezar Peluso. Julgamento em 08/02/06. Órgão Julgador: Tribunal Pleno).” Vale destacar o seguinte trecho no voto do ministro Cezar Peluso: “Daí se vê logo que não repugna à ordem constitucional

que o direito social de moradia – o qual, é bom observar, se não confunde, necessariamente, com direito à propriedade imobiliária ou direito de ser proprietário de imóvel – pode, sem prejuízo doutras alternativas conformadoras, reputarse, em certo sentido, implementado por norma jurídica que estimule ou favoreça o incremento da oferta de imóveis para fins de locação habitacional, mediante previsão de reforço das garantias contratuais dos locadores.” E ainda: “Nem parece, por fim, curial invocar-se de ofício o princípio isonômico, assim, porque se patenteia diversidade de situações factuais e de vocações normativas – a expropriabilidade do bem do fiador tende, posto que por via oblíqua, também a proteger o direito social de moradia, protegendo direito inerente à condição de locador, não um qualquer direito de crédito –, como porque, como bem observou José Eduardo Faria, ‘os direitos sociais não configuram um direito de igualdade, baseado em regras de julgamento que implicam um tratamento uniforme; são, isto sim, um direito das preferências e das desigualdades, ou seja, um direito discriminatório com propósitos compensatórios’.” (“Direitos humanos, direitos sociais e justiça”. SARLET, Ingo Wolfgang. p. 278). 2008 MAIO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 19


Foto: Arquivo Pessoal

Em que pese lei específica e entendimento jurisprudencial e doutrinário que embasaram a sentença, entendi que a matéria não poderia ser considerada pacificada em nossos tribunais, merecendo tratamento mais acurado, posto que, no meu sentir, está sendo aviltado o art. 6o da CF/88, consoante digressão adiante. Porém, antes de iniciar a exposição das minhas convicções sobre a matéria, necessárias se fazem algumas considerações pertinentes. A miserabilidade acentuada e educação precária no país impedem que a população entenda com clareza o que lê e ouve todos os dias, que a confunde, principalmente levando-se em consideração a quantidade excessiva de ditames legais mal redigidos, que motiva o confronto entre os mais operantes profissionais do Direito, sendo, destarte, impossível acatar como absoluta a afirmativa de que a ninguém é permitido alegar o desconhecimento da lei. Relevante, ainda, é o fato de que, a cada dia, os profissionais do Direito recebem formação debilitada e, em muitos casos, são mais danosos aos seus constituintes do que se estes estivessem sozinhos. Desde a promulgação da Constituição da República não se tem conhecimento de desenvolvimento que atenda às necessidades básicas da população destinatária de todo e qualquer dispositivo e/ou dele decorrente. A lei não pode ser aplicada mediante sistema de perguntas e respostas, pois, então, bastaria que fossem alimentados os 20 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MAIO 2008

“Minha afirmativa se consubstancia no fato de ser imprescindível que o imóvel reconhecido como bem de família seja o único de propriedade dos fiadores, bem como nele devem residir.”

computadores para que informassem, friamente, a solução legal para dirimir os conflitos de interesses. Na verdade, o Estado/Juiz tem por finalidade dirimir os litígios decorrentes do relacionamento entre os personagens de qualquer sociedade, interpretando as leis em consonância com os fatos que lhe são apresentados. Na hipótese do mencionado recurso, saltava aos olhos inúmeras razões para se ater aos argumentos da fiadora. Ora, os fatos, aduzidos acima, que reconheci como incontroversos, são bastante relevantes, face se encontrarem flagrantemente presentes, em conjunto ou isoladamente, de forma contumaz, nessa espécie de contrato. Por um lado, tem-se, habitualmente, um locador representado por empresa especializada em operações imobiliárias, sendo certo que elas, via de regra, ou têm sócios advogados, ou pessoas vivenciadas nesse ramo de negócio, mais familiarizados com as leis e dotados de poder de persuasão, principalmente quando contratam com os menos letrados. Do outro lado são os fiadores caracterizadamente hipossuficientes, sem qualquer profissional do Direito a acompanhá-los e que, seguramente, jamais imaginam a hipótese de perda do único imóvel que os acolhe e a seus familiares, em função de um gesto de generosidade, absolutamente gratuito, com outrem. Normalmente, sequer sabem o que estão assinando e as conseqüências de tal ato, seja por não serem afeitos ao mundo empresarial ou por serem semi-analfabetos ou


ignorantes sobre conteúdos legais, por vezes, até mesmo, jamais passaram os olhos em qualquer lei. Permito-me, então, ousar, o que é um dever de qualquer operador do Direito, para dissentir da afirmativa do eminente ministro Peluso: “Não repugna à ordem constitucional que o direito social de moradia – o qual, é bom observar, se não confunde, necessariamente, com direito à propriedade imobiliária ou direito de ser proprietário de imóvel.” Data venia, o debate não é sobre o direito de propriedade do único bem de fiadores, mas, efetiva e exclusivamente, sobre o seu direito de moradia, para preservar sua dignidade humana, pois sendo eles expropriados, diante da crise de habitação do país, estarão sujeitos a compartilhar as ruas das cidades, já em colapso com tamanho problema, aparentemente, insolúvel. Minha afirmativa se consubstancia no fato de ser imprescindível que o imóvel reconhecido como bem de família seja o único de propriedade dos fiadores, bem como nele devem residir. Aliás, convém trazer à baila inovação ainda mais ousada em voto prolatado pela eminente ministra Denise Arruda, no Superior Tribunal de Justiça: “Penhora. Bem de Família. Imóvel locado. Não obstante a Lei no 8.009/90 mencionar “um único imóvel (...) para moradia permanente”, a orientação desta Corte firmou-se no sentido de que a impenhorabilidade prevista na referida Lei estende-se ao único imóvel do devedor, ainda que se encontre locado a terceiros, porquanto a renda auferida pode ser utilizada, para que a família resida em outro imóvel alugado ou, ainda, para a própria manutenção da entidade familiar. Recurso especial desprovido.” (REsp 698.758-SP. Relatora Min. Denise Arruda. 1a Turma – pub. em 10/05/2007). Vê-se, então, que a matéria em comento merece reflexões de maior dimensão. Destaque-se, ainda, afirmativa do ínclito ministro Peluso: “A expropriabilidade do bem do fiador tende, posto que por via oblíqua, também a proteger o direito social de moradia, protegendo direito inerente à condição do locador, não um qualquer direito de crédito.” Também desta feita peço vênia para divergir, afirmando que o direito do locador consiste, exclusivamente, em um direito de crédito, sendo certo que o prejuízo maior que sofrerá consistirá na redução ou extinção do seu lucro no investimento que realizou, sem as cautelas adequadas. E mais. Seu desastroso investimento não o fará perder seu patrimônio, o qual permitirá que recupere o prejuízo mediante nova locação, já, então, com maiores cautelas. Em contrapartida, o fiador que venha a ser expropriado do seu único patrimônio imóvel utilizado para sua moradia ou sustento de sua família, ficará à míngua, sem teto e, conseqüentemente, privado de bens ainda maiores, sua dignidade e auto-estima.

Portanto, após longos trinta anos no exercício da advocacia – quando jamais orientei clientes a aceitarem fiadores com um único bem imóvel, principalmente se nele residisse o candidato à prestação de fiança –, aliado ao período em que me encontro na função judicante, é possível asseverar que os prestadores de fiança, que se constituem maiores vítimas deste instituto, consistem nas pessoas naturais desprovidas de maior cultura, ou seja, mais simples e crentes de estarem realizando um benefício e/ou vinculadas, de alguma forma, emocional ou economicamente, a quem lhes pede o favor, mas jamais supondo estarem correndo o risco de serem alijadas de sua moradia, do que nunca são expressamente cientificadas. Aparenta-se, pois, mais apropriado, em face de uma cruel realidade social que se vive no país, ser priorizado, pelo Judiciário, o ditame constitucional envolvendo o direito de moradia para, enquanto não ocorrer reforma definitiva na legislação ordinária, que difere da norma maior, somente ser passível de penhora o único bem do fiador se no contrato de locação constar, expressamente: 1) que o fiador sabe ler e escrever; 2) que o fiador tem pleno conhecimento de que a falta de pagamento dos alugueres, condomínio e IPTU pelo locatário, o obrigará a fazê-lo, sob pena de perder seu único imóvel; 3) que o fiador deverá ser comunicado, pessoalmente e de forma inequívoca, após o quinto dia da mora do locatário, a cada mês que isto ocorrer; 4) o prazo certo da garantia e a exigência de que a cada prorrogação deverá o fiador ser comunicado, também de forma inequívoca, se concorda em manter a garantia; 5) a comunicação, mais uma vez de forma inequívoca, de cada modificação no valor do aluguel e encargos; 6) esteja ele assistido por advogado, principalmente quando assim estiver o locador. Fundamental, ainda, além dos requisitos acima, avaliar com bastante critério o vínculo de subordinação ou dependência entre locatário e fiador, visto que muitas são as hipóteses onde o primeiro se valha dessa condição para inviabilizar uma recusa por parte do segundo. Por fim, é conveniente consignar, também, que o fiador somente poderá ser responsabilizado pelo débito envolvendo os meses a partir da data em que, inequivocamente, dele tomar ciência, posto que não compete ao fiador fiscalizar a pontualidade do locatário, mas ao locador mantê-lo informado do contrário. Para concluir, afirmo que o locador deve se resguardar, ao máximo, antes de realizar seu investimento, qual seja, alugar seu imóvel, com a cautela, quando fidejussória a garantia, de se certificar sobre a plena condição de poder o fiador solidarizar-se com o locatário, sem que corra o risco de perda de sua moradia, posto que seja o único imóvel do fiador – que somente em condições excepcionalíssimas, depois de atendidos todos os requisitos supra, na minha ótica jurídica, será passível de responder por dívidas locatícias. 2008 MAIO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 21


PARCERIAS QUE REDUZEM CONFLITOS

“Isso é uma coisa inovadora porque nenhuma empresa do Brasil deposita espontaneamente 3% da sua arrecadação bruta – não é líquida.”

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m entrevista à Revista Justiça & Cidadania, o presidente da Cedae, Wagner Victer, e o presidente da Associação dos Procuradores do Estado do Rio de Janeiro e Diretor Jurídico da Cedae, Dr. Leonardo Espíndola, demonstram como pretendem reduzir o passivo jurídico da empresa, evitando a crescente demanda judicial através de uma postura proativa. Chama atenção a atitude da empresa, adotada após firmar convênio com o TJ/RJ e o CNJ, em depositar parte de seu faturamento para pagamento de dívidas, o que reforça a busca pela excelência nos serviços prestados. Justiça & Cidadania – A Cedae, o TJ/RJ e o CNJ firmaram um acordo para a criação de um fundo para pagamento das dívidas da Cedae. Como isso funciona? Wagner Victer – É um sucesso o acordo da Cedae com o TJ/RJ. Celebramos um termo há um tempo atrás com o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, através de seu Presidente, o desembargador Murta Ribeiro e com o CNJ, em que a Cedae deposita 3% da sua arrecadação bruta mensal. Do estabelecimento do fundo até o final de fevereiro deste ano, a Cedae já depositou, espontaneamente, mais de R$ 70 milhões. Isso é uma coisa inovadora porque nenhuma empresa do Brasil deposita espontaneamente 3% da sua arrecadação bruta – não é líquida. O processo está indo bem e temos contado com o apoio do TJ/RJ. Óbvio que a Cedae hoje tem uma nova postura diante

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do Judiciário. Trouxemos procuradores, os escritórios que trabalham hoje na Cedae são escritórios renomados, como o escritório Zveiter que acompanha todas as ações cíveis, Bermudes com todas as ações de esgoto, Veirano nas ações tributárias, Siqueira Castro nas ações trabalhistas e pequenas causas, e na questão societária quem trabalha conosco é o Cantidiano. Hoje nós temos uma banca de escritórios de primeiro time; no passado a Cedae tinha dezenas de escritórios sub-terceirizados. Nós acabamos com a subterceirização, profissionalizamos com novos procuradores e estamos adotando práticas como esse acordo, e outros como o da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, que firmamos objetivando antecipar problemas somente dos consumidores com menor poder aquisitivo. O governador Sérgio Cabral assinou um decreto permitindo à Cedae celebrar acordo direto até 40 salários mínimos, o que não era permitido anteriormente. Denunciamos diversos escritórios ao conselho de ética da OAB, mas infelizmente nada foi feito até agora. No mais é a gestão do dia-a-dia que é feita pelo Dr. Leonardo Espíndola. JC – Como se deu a idéia da Cooperação com a Defensoria Pública? WV – A idéia surgiu em uma reunião do Dr. Leonardo com a Defensoria Pública, através da Dra. Marcela Oliboni, coordenadora do Núcleo de Defesa do Consumidor do Rio de Janeiro – Nudecon. Resolvemos então formalizar a idéia


Foto: Luíss Winter

Presidente da Companhia de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro, Wagner Victer, e o Diretor Jurídico, Leonardo Espíndola

apoiados pelo Dr. José Raimundo Batista Monteiro – Defensor Público Geral do Estado. Com essa iniciativa pretendemos antecipar a solução dos problemas das pessoas de baixo poder aquisitivo. É óbvio que como a Cedae hoje é mais rigorosa do que era no passado, e há um novo marco legal que é a Lei no 11.445/2007, em alguns momentos nossa postura pode até gerar novas ações de maior porte, mas por quê? Porque no passado a Cedae era leniente, o nosso Jurídico era feito pra perder, nunca em prol do interesse da empresa e do público, então eu acho que o Judiciário também compreendeu isso. E um detalhe interessante: hoje o Judiciário vê a Cedae de uma maneira totalmente diferente, porque temos tido um apoio muito grande do Judiciário; o desembargador Murta Ribeiro tem nos ajudado muito. Verificamos que 20% de todo nosso passivo na área cível era decorrente de ações promovidas pela Defensoria Pública, o que é um número significativo, são mais de 1.400 processos e ações de pequena expressão econômica, de diminuto significado para os cofres da empresa, que poderiam e deveriam ser resolvidos de forma mais proativa. Muitas vezes essas ações ficavam anos tramitando na Justiça em prejuízo da própria Companhia, que acabava pagando mais de custo administrativo para gerir essa ação – não só o seu custo interno, mas o pagamento de escritório de advocacia terceirizado – do que pra resolver o problema do cliente, que muitas vezes era o direito correto dele e deveria ser reconhecido. O que deixamos muito claro no entanto, é que essa postura conciliatória e proativa da empresa de buscar a conciliação de interesses em nenhum

momento é de transigir por legalidade. Por menor que seja o pleito sob o ponto de vista econômico, a Cedae não fará acordo à medida em que entender que aquele pleito não se reveste de legalidade e constitucionalidade. Para dar um exemplo, o consumidor que tem sua água cortada por falta de pagamento, e vem questionar esse ato pedindo uma indenização por danos morais; a Cedae não faz acordos desse tipo. O corte é devido e reconhecido pelo marco regulatório 11.445/2007, então nessas hipóteses não há nenhuma possibilidade de acordo. Outra coisa muito importante é que esse acordo com a Defensoria derivou do próprio acordo no Tribunal de Justiça, onde a Cedae se comprometeu a antecipar uma série de problemas. JC – Como funciona a Cooperação? Leonardo Espíndola – Fisicamente isso se dá dentro das Defensorias. Nós assinamos o Termo de Cooperação Técnico e Jurídica com a Defensoria Pública no qual nós acordamos uma série de procedimentos que buscam, justamente, impulsionar e melhorar a prática de acordos. A Cedae destaca dois prepostos, que têm a função exclusiva de toda quarta-feira, durante todo o dia, resolver assuntos dos assistidos pela Defensoria Pública lá no Núcleo de Defesa do Consumidor da Defensoria. A Defensoria encaminha previamente à Cedae quais são os objetos das reclamações sempre com 15 dias de antecedência, então os prepostos da Cedae já comparecem à Defensoria com uma pauta e com uma margem de possibilidade de acordo. Desta 2008 MAIO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 23


“A Cedae hoje dispõe de um núcleo interno do consumidor que tem a função justamente de equacionar as reclamações e os requerimentos que são apresentados à Companhia.”

forma uniformizamos nossos entendimentos coordenados pela nossa diretoria de projetos estratégicos. No meu ponto de vista, o ganho é pra todos, é para o Judiciário – que não fica abarrotado com ações insignificantes e que têm amplas possibilidades de serem resolvidas de forma consensual previamente; para a Defensoria Pública – que pode se concentrar em outras ações, e que pode ser muito mais efetiva quando concilia do que quando propõe uma ação que demora anos pra ser satisfeita; e para a Cedae – que tem diminuído seu custo administrativo e também melhorado sua imagem perante seus consumidores e o Judiciário. No termo assinado existem obrigações para as partes que devem ser cumpridas para o perfeito andamento do Termo de Cooperação, então a Defensoria hoje não propõe mais ação sem antes ouvir a Cedae. Em apenas um mês, tempo que o termo está vigorando, já conseguimos celebrar acordos em 80% das audiências internas. Isso é um número significativo, representa 20% dos nossos processos. A nossa maior litigante é a Defensoria Pública, e por valores baixos, já que por regra, aquele que comparece à Defensoria Pública é juridicamente pobre, sendo a sua demanda também de pequeno potencial econômico. JC – E em relação às reclamações que não são levadas à Defensoria? LE – A Cedae hoje dispõe de um núcleo interno do consumidor que tem a função justamente de equacionar as reclamações e os requerimentos que são apresentados à Companhia. São três empregados da Cedae, aprovados por concurso público, com a função de fazer essa triagem, que buscam de forma muito determinada resolver os problemas antes que se tornem uma ação judicial e acabem prejudicando a empresa. JC – Como tem sido o prazo de resposta às reclamações? Existe um prazo? LE – Não existe prazo porque tudo depende da complexidade do problema que nos é apresentado. Os problemas são de todas as ordens, desde um corte a uma cobrança que foi realizada por estimativa, até um pedido para recálculo de economias, então isso depende muito do problema que nos é apresentado e a gente trabalha de forma muito ligada ao nosso Call Center, que é nossa Ouvidoria. Esses problemas 24 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MAIO 2008

também são repassados ao núcleo interno do consumidor, que tem a função de contatar as demais áreas da empresa. Se há um vazamento de esgoto em uma determinada rua, por exemplo, o consumidor reclama à Cedae e o núcleo interno do consumidor aciona a equipe responsável pela solução do problema. Essa iniciativa da Cedae também é decorrência do acordo firmado com o Tribunal de Justiça e com o CNJ. JC – Qual é o passivo hoje da Cedae? LE – O passivo da Cedae pode chegar à casa do bilhão de reais só na esfera cível. JC – E o passivo judicial? A quantidade de processos? LE – A Cedae tem hoje, só na esfera cível, 7 mil processos. À medida que a empresa começa a adotar uma postura comercial, uma postura proativa de cortar o consumidor inadimplente, de inserir nos cadastros de restrição ao crédito aqueles consumidores que estão em falta com a Companhia, de cobrar os seus devedores contumazes – com as campanhas de gato e de combate às ligações clandestinas –, é claro que a empresa também atrai um número de demandas. Isso é natural à medida em que a empresa atua de forma determinada a restabelecer a sua rentabilidade. É natural que os consumidores também ingressem no Judiciário questionando as atitudes da empresa. Temos sido muito cautelosos e temos baseado a postura da empresa no combate aos inadimplentes sempre no marco regulatório do saneamento básico, mas é natural o aumento no número de demandas, por mais que a gente tenha adotado a postura conciliatória, por mais que a empresa tenha se pautado na legalidade. Conforme a empresa cobra e exerce o seu poder comercial, há um natural sentimento dos consumidores de questionar, até porque a própria visibilidade que a Cedae ganha hoje na mídia como uma empresa que recupera a sua credibilidade financeira, que paga os seus fornecedores em dia, aquela demanda reprimida que acreditava que a Cedae era uma empresa que não pagava também aparece de forma muito clara e vem ao Judiciário às vezes cobrar por danos ocorridos em um passado distante. É isso que percebemos, mas o importante é que vimos cumprindo o nosso compromisso de buscar a conciliação de forma determinada. Não podemos silenciar, ser lenientes e ter uma postura de inércia perante os consumidores que não se comportam de acordo com a legalidade.


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prorrogação dos contratos de concessão e o interesse público

AGRAVO DE INSTRUMENTO No 2003.002.22556

COSTA VERDE TRANSPORTES LTDA. DETRO – DEPARTAMENTO DE TRANSPORTE RODOVIÁRIO DO RIO DE JANEIRO E MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Desembargador MARCO ANTONIO IBRAHIM

Agravante: Agravados: Relator:

A

ção Civil Pública. Tutela antecipada. Concessão de linha de ônibus intermunicipal prorrogada por Lei Estadual. Eficácia ex nunc de liminar deferida pelo e. Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro em Ação Declaratória de Inconstitucionalidade da Lei Estadual no 2.831/97 que, assim, não alcança a prorrogação da concessão efetivada muitos anos antes da sustação dos efeitos da lei. Contratos administrativos que gozam de presunção de legalidade. Liminar em Ação Civil Pública que determina a realização de processo licitatório de linhas de transporte intermunicipal. Medida irreversível que não se legitima através de antecipação da tutela, especialmente em hipótese em que é evidente o risco de dano inverso pelo comprometimento do emprego de milhares de trabalhadores e prejuízos de tormentosa liquidação para a empresa de transporte. Contratos firmados de boa-fé, com base em Lei Estadual plenamente vigente no ato de sua efetivação. O princípio da obrigatoriedade da licitação não é absoluto, dês que submetido ao exclusivo interesse público, tanto que a União Federal é autorizada pela Lei no 9.074, de 07 de julho de 1995, a prorrogar os contratos de concessionárias de energia elétrica por vinte anos, bem assim o tem feito em relação aos serviços de telefonia, aviação e outros. Ausência de risco, sequer 26 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MAIO 2008

imediato, para o erário público ou para os consumidores. Agravo provido. Vistos, relatados e discutidos estes autos de Agravo no Agravo de Instrumento no 2003.002.22556 em que é Agravante: COSTA VERDE TRANSPORTES LTDA. e Agrava­­dos: DETRO – DEPARTAMENTO DE TRANSPORTE RO­ DO­VIÁRIO DO RIO DE JANEIRO E MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, acordam, por unanimidade os Desembargadores da Terceira Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro em dar provimento ao recurso, nos termos do voto do Desembargador Relator. Relatório Trata-se de Agravo de Instrumento oposto contra decisão do r. Juízo da 5a Vara de Fazenda Pública, que, em Ação Civil Pública, deferiu medida antecipatória de tutela determinando que em 180 dias fosse iniciado processo licitatório referentemente às linhas intermunicipais exploradas pela parte agravante. Em síntese, alega a recorrente que o contrato de concessão que envolve a transportadora teve seu prazo prorrogado pela Lei Estadual no 2.831/97, o que, por si só, revela a boa-fé da concessionária. Por outro lado, sustenta que não há trânsito em julgado do acórdão do colendo Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que, liminarmente, cassou os efeitos da parte final do art. 6o da Lei Estadual


no 2.831/97, cuja decisão operou efeitos, meramente, ex autoral do Ministério Público, o retorno ao status quo ante “Inexiste perigo iminente a ser nunc. Diz, ainda, que a lei em comento goza de presunção será impossível ou, pelo menos, de dificílima concretização. de constitucionalidade, sendo incabível antecipação de tutela Quem indenizará a vencedora da licitação pelos investimentos de imediato afastado, se o por inexistir periculum in mora e, além de tudo, haver risco de que fez? Como calcular seus expressivos lucros cessantes e a objeto da Ação Civil Pública se irreversibilidade da medida. perda da expectativa de emprego fixo de seus empregados? O Houve pedido de concessão deprolonga efeito suspensivo aohá mesmo se diga em relação àsem agravante, que experimentaria muitos anos recurso, deferido por decisão do Relator, a qual foi alvo de enorme prejuízo, bem assim, seus empregados, que seriam a Administração tenha se Agravo Regimental desprovido pelaque unanimidade desta demitidos aos milhares. colenda Terceira Câmara Cível. Com isso não se quer dizer que a irreversibilidade sempre manifestado contrariamente.” A parte agravada apresentou resposta, salientando que e sempre há de obstaculizar o deferimento de tutela antecipa­ o dispositivo legal com base no qual foram prorrogadas as da ou mesmo de cautelares, dês que isso, em regra, só deve concessões de linhas intermunicipais teve sua inconstitucioocorrer quando não estão em jogo interesses de expressiva nalidade declarada por liminar em Representação de Inconsmagnitude, tais como direito à vida ou à liberdade. Nestes titucionalidade no 137/2002 do colendo Órgão Especial do casos, se mostra necessário ponderar os respectivos direitos Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Alega que a em conflito, o que se deve fazer através de um critério de eficiência no serviço público se verifica, também, pela opção proporcionalidade por via do qual o Juiz deve sacrificar um de competitividade, que só pode ser atendida com observâninteresse relativo a direito que pareça improvável. Cabe como cia do princípio constitucional da licitação, sendo certo que luva, aliás, a observação feita pelo afamado jusprocessualista o art. 175 da Constituição Federal está regulamentado pelas FERRUCIO TOMMASEO, muito ilustre Professor da Leis Federais no 8.987/95 e 9.074/95, aplicáveis à espécie. Universidade de Trieste, no histórico Colóquio Internacional Entende a parte agravada que a parte final do art. 6o da sobre as Medidas Cautelares em Processo Civil – Milão, Lei Estadual no 2.831/97 ofende o princípio da moralidade 1984: ao autorizar a prorrogação por 15 anos às permissões que Se non vi è altro modo per evitare um pregiudizio estavam vigendo por ocasião da promulgação da referida lei, irreparabile a um diritto soggetivo che appaia probabile, isto é, deixando de submeter a concessionária ao processo si deve ammettere che il giudice possa provocare um licitatório e constitucional, o que implica em afronta ao pregiudizio anche irreparabile al diritto che gli paia princípio da impessoalidade e da moralidade previstos no art. improbabile. 37 da Carta Constitucional. Mas quando aqui se diz direito improvável, está-se a Por fim, sustenta que o princípio da segurança jurídica afirmar que não há – como pretende o Ministério Público não há de servir para engessar a Administração e que estão – verossimilhança do direito alegado na inicial, porque presentes os pressupostos para manutenção da decisão de 1o os contratos administrativos, tornados írritos pela decisão grau. agravada, foram firmados de boa-fé e com base em lei plenamente vigente no ato de suas respectivas efetivações. Por Voto outro lado, parece evidente o risco de dano inverso, porque, Em que pese ter sido, a decisão agravada, prolatada por ocorrendo a licitação e adjudicado seu objeto, milhares de uma das mais brilhantes Magistradas do Estado do Rio de trabalhadores e suas famílias serão diretamente atingidos, sem Janeiro, Dra. MÁRCIA CAPANEMA DE SOUZA, o recurso falar que licitações deste porte não podem ser feitas no exíguo está a merecer provimento. prazo alvitrado na decisão interlocutória. Conforme já exposto na decisão que concedeu efeito Nem parece disfarçável o risco que toda a população suspensivo ao recurso, há, como se sabe, especiais condições corre de ficar de um dia para o outro sem acesso a transporte que legitimam a concessão de tutela antecipada sem as quais coletivo, bastando para isso que algum problema de ordem a providência torna-se dissonante do sistema processual em jurídica, política ou administrativa emperre eventual vigor. A liminar deferida pela exemplar Juíza se ressente, adjudicação do objeto da licitação. São tais situações que a lei data venia, dos requisitos aludidos no art. 273 do Código quis, propositadamente, evitar. A propósito, a doutrina de J. de Processo Civil. Desde logo se percebe que a tutela J. Calmon de Passos, que, em seus comentários ao Código de antecipadamente concedida é de todo modo irreversível, Processo Civil, precisa o sentido que se deve dar a danos de porque, a vingar o conteúdo de tal decisão, promover-se-á difícil reparação, em lapidar ensinamento: licitação de mais de mil linhas de transporte intermunicipal A dificuldade e incerteza da reparação pedem, tam(considerada a totalidade dos processos que envolvem as bém, alguns esclarecimentos. Elas podem dizer resdezenas de empresas de ônibus que operam estas linhas), peito ao tempo, aos meios ou aos agentes. É difícil e o que fatalmente desaguará na concessão de tais linhas incerta a reparação que reclama posterior e demorado intermunicipais a outras empresas que deverão fazer vultosos processo; a que exige meios custosos ou de manipulainvestimentos para poder operar os respectivos transportes ção anormalmente trabalhosa; também difícil e incerta coletivos. a que exige o envolvimento de pessoas especialmente Assim, no caso de eventual decaimento da pretensão qualificadas cujo recrutamento seja problemático ou 2008 MAIO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 27


Foto: www.viaje.curitiba.pr.gov.br

demasiadamente oneroso. O critério mais adequado, a nosso ver, para se aferir a dificuldade e incerteza da reparação é considerar a possibilidade de ressarcimento dos danos no próprio processo a curto prazo ou com meios expeditos. Se isso não ocorrer é válido entender-se a lesão como de difícil ou incerta reparação. (“Comentários ao Código de Processo Civil”, vol. X, tomo I, p. 98, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1978). Nesse passo, cabe destacar que uma atenta leitura da inicial da ação proposta pelo Ministério Público (que se houve, aliás, dentro da grandeza dessa essencial instituição da qual me orgulho de um dia ter pertencido) demonstra que não há, na verdade, risco, sequer mediato, para o erário público, o que, de certa forma, motivou outras decisões deste e. Tribunal, como aquela prolatada pelo Professor e Desembargador SÉRGIO CAVALIERI FILHO (Agravo de Instrumento no 4.190/2004), que deferiu efeito suspensivo em caso idêntico ao dos autos. Tem-se admitido antecipação de tutela contra a administração pública, mas em casos especialíssimos, como no caso de fornecimento de medicamentos para pessoa que sofra de doença grave; para obstaculizar medidas lesivas ao meio ambiente, ao patrimônio cultural, histórico e artístico ou ao erário público. E aqui não se trata de nenhuma destas hipóteses. Tais evidências, por si só, já seriam suficientes para a desconstituição provisória da liminar deferida pelo Juízo a quo, mas há outros motivos que a revelam, de todo, inconveniente – mesmo do ponto de vista do interesse público. Se é verdade que a Lei Estadual no 2.831/97 teve seus efeitos parcialmente suspensos por liminar concedida pelo colendo Órgão Especial Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, não menos verdade é que esta decisão não opera efeitos retroativos, vindo a atingir atos jurídicos perfeitos e situações há muito consolidadas. Decerto que, em caso de decisão passada em julgado declarando a inconstitucionalidade da referida lei, os contratos administrativos que sob sua égide foram firmados poderão ser anulados, mas esta é uma circunstância que, apesar de possível, não se apresenta concreta na atualidade. A mais moderna doutrina constitucional brasileira, na esteira do que vem ocorrendo em diversos países europeus, tem revelado adesão às normas e princípios que vêm de mitigar os efeitos da nulidade das leis inconstitucionais e isto tem sido feito levando em consideração valores constitucionalmente relevantes e, especialmente, o princípio da segurança jurídica. Entre nós já não é mais novidade que a declaração de inconstitucionalidade de uma lei possa ser decretada com efeitos prospectivos, ex nunc, havendo diversos precedentes no âmbito do Supremo Tribunal Federal neste sentido. Aliás, a própria Lei Federal no 9.868/99 prevê que: Art. 27 – ao declarar a inconstitucionalidade de lei do ato normativo, tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá 28 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MAIO 2008

o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tem eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado. Compreende-se o cuidado do legislador na edição da referida norma porque só assim se podem proteger relações jurídicas há muito constituídas, bem assim albergar aqueles que de boa-fé contraíram obrigações e adquiriram direitos com base na legislação, então, vigente. A regra, bem de ver, traz à baila um dos mais importantes princípios da hermenêutica constitucional, qual seja, o da ponderação de interesses a reconhecer que existem princípios de igual relevância (vis a vis o princípio da moralidade) que só poderiam ser preservados mediante a atribuição de eficácia prospectiva à declaração de inconstitucionalidade. Este próprio Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro tem produzido diversos julgados sobre esta questão constitucional com acolhimento – quanto à matéria relativa a IPTU – da tese que defende a eficácia prospectiva da declaração de inconstitucionalidade do art. 67 do Código Tributário do Rio de Janeiro com a redação dada pela Lei Municipal no 2.080/93. Insta observar, outrossim, que há, ainda, um outro argumento invencível em prol da tese sustentada pela agravante. Trata-se da evidência de que, ainda que houvesse trânsito em julgado da decisão declaratória de inconstitucionalidade da Lei Estadual no 2.831/97, sua exclusão do mundo jurídico implicaria em repristinação da legislação anterior, sendo certo que o Decreto Lei no 276/75 concedera permissão para exploração de linhas intermunicipais à agravante por prazo indeterminado. Vale observar, ademais, que são corriqueiros os atos que autorizam a prorrogação de concessões, à míngua de licitação. A União Federal o faz de forma sistemática, estando tais prorrogações condicionadas a um único motivo: o interesse público. Nem se descure de relembrar que os Estados têm competência suplementar para legislar sobre esta específica matéria, transportes, a teor do § 2o do art. 24 e 25 da Constituição Federal, motivo pelo qual parecem inaplicáveis os arts. 42 e 43 da Lei no 8.987/95. A possibilidade de ocorrência de vultosos prejuízos para as empresas que atualmente operam as linhas, como, também, para aquelas que vençam eventual licitação, não são hipotéticos, mas reais. Quem há de negar que a desconstituição da prorrogação das permissões importaria em grave prejuízo para a empresa de transporte que, de boa-fé, e escudada por lei estadual, efetuou investimentos dada a expectativa da prorrogação da permissão longi temporis? Igualmente enormes seriam os prejuízos da empresa que vencesse a licitação porque, para iniciar suas operações, obrigatoriamente teria que fazer grandes investimentos, que poderiam se perder em caso de insucesso do Ministério Público quando do desfecho da respectiva Ação Civil Pública.


Outrossim, não é tão evidente (como parece ao MP) a inconstitucionalidade do dispositivo da lei estadual que autorizou a prorrogação. Em primeiro lugar, a questão da moralidade pertine, efetivamente, ao mérito da causa. Por outro lado, prorrogações idênticas são constantemente autorizadas pelo poder público, muitas das quais por mero Decreto. Assim, a concessão outorgada à VARIG, por exemplo, vem sendo prorrogada há 77 anos, tanto que, pelo Decreto no 78.898 de 09/10/73, sua concessão foi prorrogada por 15 anos e, posteriormente, renovada tal prorrogação por mais 15 anos por força do Decreto no 95.910 de 11/04/88. Já o Decreto no 4.856 de 09/10/03 prorrogou a concessão da VARIG até 31/12/2010. Na mesma toada, a ANATEL prorrogou por 20 anos os contratos de seis concessionárias de telefonia fixa (EMBRATEL, TELEFONICA, BRASIL TELECOM, TELEMAR, SERCONTEL E CTBC TELECOM) e o fez por antecipação, já que os respectivos contratos estavam a viger até 30/12/2005. No mais, a Medida Provisória no 144 de 10/12/03, já convertida em lei, deu nova redação ao art. 4o da Lei no 9.074, autorizando prorrogação de 20 anos para as concessionárias de energia elétrica. LEI No 9.074, DE 07 DE JULHO DE 1995 Estabelece normas para outorga e prorrogações das concessões e permissões de serviços públicos e dá outras providências. Art. 1o - Sujeitam-se ao regime de concessão ou, quando couber, de permissão, nos termos da Lei no 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, os seguintes serviços e obras públicas de competência da União: I – (VETADO) II – (VETADO) III – (VETADO) IV – vias federais, precedidas ou não da execução de obra pública; V – exploração de obras ou serviços federais de barragens, contenções, eclusas, diques e irrigações, precedidas ou não da execução de obras públicas; VI – estações aduaneiras e outros terminais alfandegados de uso público, não instalados em área de porto ou aeroporto, precedidos ou não de obras públicas. VII – os serviços postais. (Incluído pela Lei no 9.648, de 1998) § 1o - Os atuais contratos de exploração de serviços postais celebrados pela Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – ECT com as Agências de Correio Franqueadas – ACF, permanecerão válidas pelo prazo necessário à realização dos levantamentos e avaliações indispensáveis à organização das licitações que precederão à delegação das concessões ou permissões que os substituirão, prazo esse que não poderá ser inferior a de 31 de dezembro de 2001 e não poderá exceder a data limite de 31 de dezembro de 2002. (Renumerado pela Lei no 10.684, de 2003)

“Vale observar, ademais, que são corriqueiros os atos que autorizam a prorrogação de concessões, à míngua de licitação. A União Federal o faz de forma sistemática, estando tais prorrogações condicionadas a um único motivo: o interesse público.”

§ 2o - O prazo das concessões e permissões de que trata o inciso VI deste artigo será de vinte e cinco anos, podendo ser prorrogado por dez anos. (Incluído pela Lei no 10.684, de 2003) § 3o - Ao término do prazo, as atuais concessões e permissões, mencionadas no § 2o, incluídas as anteriores à Lei no 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, serão prorrogadas pelo prazo previsto no § 2o. (Incluído pela Lei no 10.684, de 2003) (...) Art. 4o - As concessões, permissões e autorizações de exploração de serviços e instalações de energia elétrica e de aproveitamento energético dos cursos de água serão contratadas, prorrogadas ou outorgadas nos termos desta e da Lei no 8.987, e das demais. § 1o - As contratações, outorgas e prorrogações de que trata este artigo poderão ser feitas a título oneroso em favor da União. § 2o - As concessões de geração de energia elétrica anteriores a 11 de dezembro de 2003 terão o prazo necessário à amortização dos investimentos, limitado a 35 (trinta e cinco) anos, contado da data de assinatura do imprescindível contrato, podendo ser prorrogado por até 20 (vinte) anos, a critério do Poder Concedente, observadas as condições estabelecidas nos contratos. (Redação dada pela Lei no 10.848, de 2004) Diante do exposto, voto no sentido do provimento do agravo. 2008 MAIO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 29


Despedida de um Grande magistrado Sylvio Capanema Desembargador do TJ/RJ

“O que mais dói nas despedidas é a certeza que não soubemos aproveitar todo o tempo que tivemos.”

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de dezembro de 1960. Em ebulição vulcânica de sonhos e esperanças, com projetos que iriam salvar o mundo, eu colava grau como bacharel em Direito, no solene palco do Theatro Municipal, pela gloriosa Faculdade Nacional de Direito. Quarenta e sete anos se passaram. Durante trinta e três exerci a advocacia e há quatorze sou desembargador. De vida acadêmica, lecionando Direito Civil e Internacional Privado, são teimosos e ininterruptos quarenta e três anos. Pensava, então, que tinha o pleno domínio das palavras e que poderia manejá-las para exprimir qualquer dos sentimentos humanos, como se fossem elas velhos e queridos instrumentos de trabalho, amigas fiéis e prestativas, que jamais me faltariam. Percebo agora, entre assustado e curioso, que talvez não consiga encontrá-las e que só possa agradecer-lhes o carinho e a amizade com o choro dos que acabam de nascer e ainda não conhecem as palavras. O Padre António Vieira, uma de minhas leituras mais freqüentes, nos advertia, em um de seus mais famosos sermões, que Deus há de nos pedir contas de tudo que fizemos, mas muito mais estreita conta do que deixamos de fazer. Eu me despeço hoje da atividade judicante consolado pela íntima certeza de que, apesar das fragilidades de minha condição humana, tentei, incansável e apaixonadamente,

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fazer tudo o que me foi possível para honrar a toga que a generosidade de meus colegas advogados me permitiu envergar, com tanto orgulho, quando me indicaram para integrar o Quinto Constitucional da Advocacia. Durante todos estes fascinantes quatorze anos, procurei uma Justiça que fosse um pouco mais caridosa, que, ao invés de ter seus olhos classicamente vendados, os mantivesse bem abertos e vigilantes, exatamente para, ao contrário, perceber as diferenças e enxergar os miseráveis, os discriminados, os que dormem nas calçadas da desesperança e do desamor. Uma Justiça que se erga soberana, independente, serena e forte, alimentada por valores imortais. Uma Justiça que realmente pacificasse as partes, que fosse, ao mesmo tempo, meu sonho e realidade, que se praticasse igual nos palácios e favelas. Uma Justiça artesã, que costure e borde a toga de seus filhos magistrados com o etéreo tecido dos sonhos, da solidariedade e do amor, e que os mantenha sempre em seu regaço, acalentando-os nos momentos de solidão, quando sentem a tentação de desistir. Esforcei-me em cada processo que julguei para neles descobrir as partes, seus únicos e às vezes esquecidos personagens, e entendê-las, com suas grandezas e pecados, seres como eu, perdidos em seus medos e ambições, sangrando suas feridas, lutando por seus sonhos; os rostos que entram e saem a cada dia deste Tribunal, anônimos, com olhares assustados ou cheios de esperança, procurando todos a justiça – algo que não entendem bem, que não conseguem


Foto: Rosane Taylor/EMERJ

sentir fisicamente, mas que percebem intuitivamente que é o seu refúgio e garantia. Fiz o possível para não ser apenas um acomodado expectador da nova ordem jurídica implantada a partir da Constituição Federal de 1988 e do Código Civil de 2002. Não me escudei na sedutora desculpa de que não terei mais tempo para vê-la consolidada. Pelo menos quanto a ela não carregarei o pecado de ter deixado de fazer. Ora na companhia de queridos amigos, como Sergio Cavalieri, Luiz Fux e Nagib Slaib, então apresentados como os “Meninos do Rio” e hoje, certamente suas relíquias, ora em solitárias peregrinações, percorri literalmente o Brasil numa cruzada cívica, pregando a necessidade de um Direito novo, para o séc. XXI. Tentei decifrar suas mensagens, enfrentar os desafios traumáticos da mudança, incentivando principalmente os jovens para que se afastassem do individualismo em direção à socialidade, da culpa à solidariedade, da tirania do positivismo estrito a um Direito principiológico, oxigenado por valores fundamentais, que devem pairar, soberanos, sobre o texto da lei. Como os menestréis medievais, cantei um Direito finalmente comprometido com a função social, mitigando-se o dogma da autonomia da vontade e da imutabilidade dos contratos, um Direito preocupado não apenas com a liberdade, mas também com a igualdade, e aplicado por juízes que se recusassem a ser apenas a boca da lei para se transformarem nos

solucionadores dos conflitos, identificados profundamente com as angústias e esperanças dos jurisdicionados. Tantos e tantos foram os congressos, seminários e palestras, tantas foram as viagens que nem senti que o tempo se estreitava. As cidades eram os grandes palcos da saga que escrevíamos, do enredo que sonhamos e que, no fundo, sabíamos não ter fim. Não deixei de perseguir, nem por um minuto, a minha própria utopia, e aos alunos sempre tentei falar da boa-fé objetiva como uma enorme janela que se abria para uma nova dimensão ética – regra de conduta agora obrigatória. Quantas vezes falei da necessidade de se criar um Direito efetivo, que construísse a paz, cujas sentenças fossem mágicas poções que inoculassem o amor e a dignidade humana. Garimpei minhas últimas energias para ser um agente da mudança, e o papel que ainda me cabe é o de professor, para tentar continuar formando os advogados que serão os arquitetos do novo tempo, os advogados da esperança de um Brasil melhor, mais justo, fraterno e solidário. Escolhi continuar sendo aquele que semeia, mesmo sabendo que não terá tempo de colher. Mas tenho que confessar que apesar de todo o meu esforço, ainda deixei muito por fazer; às vezes por me faltar talento, outras por não ter tido o tempo ou a coragem necessária. Não se deixem iludir pelos generosos elogios que hoje os amigos me fizeram. 2008 MAIO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 31


Não me retiro como herói, vencedor de todas as batalhas que travei. Carrego frustrações, sofridas cicatrizes dos fracassos e muita vergonha do que nem sequer tive a coragem de tentar. E é isto que eu temo, quando tiver que a Ele prestar contas. Tive cinco filhos e duas netas, de que tanto me orgulho, mas não lhes dei o tempo de convívio que mereciam e precisavam; escrevi livros, mas não ensinei a ler; plantei algumas árvores, mas não salvei florestas; construí uma casa, mas não soube derrubar os muros; escalei montanhas, mas nem sempre aproveitei a vista; amei, mas na maioria das vezes não soube ser amado; muitos dos projetos com que iria salvar o mundo estão mofados nas gavetas da memória e da saudade. O que mais dói nas despedidas é a certeza de que não soubemos aproveitar todo o tempo que tivemos. Preciso encerrar minha carreira como sempre tentei construí-la, fazendo justiça. E nunca se é mais justo do que quando nos mostramos gratos aos que, de algum modo, nos ajudaram a caminhar. No pórtico da milenar catedral de Milão está gravado que o dever primeiro do cristão é a gratidão. A gratidão é a memória do nosso coração. Agradeço a Deus, que me conduziu em segurança até agora; aos amigos e colegas, que se fizeram meus parentes pelo sentimento; aos serventuários que comigo trabalharam na 10a Câmara Cível, nas 2a e 1a vice-presidências no Conselho da Magistratura e no Órgão Especial. O tempo não me permite citar seus nomes, tantos são, mas lhes asseguro que meu coração sabe de cor cada um deles, como lembranças muito queridas do passado. Agradeço a Sérgio Cavalieri as comoventes saudações, que compensaram, e muito, todo o meu esforço despendido. Elas comporão para sempre o hino da amizade. Sou eternamente grato a meus assessores, Kátia, Andréa, Leandro, Cozzolino, Rui e Almir, hoje meus filhos afetivos, que com sua lealdade e competência fizeram de meu gabinete trincheira e lar. Entretanto, gratidão ainda maior devo a todos que formaram minha família, desde que nasci, aos meus filhos e netas – fonte permanente de coragem e inspiração –, Sylvia, Ana Luiza, Beatriz e Luiza, e especialmente a Márcia, Flávia e João Paulo, aos quais entrego hoje a minha toga com a certeza que a irão honrar e dignificar. Sr. Presidente: Imaginei que minha despedida seria uma espécie de testamento, tendo como legado aos que virão todos os meus sonhos. Quase me deixei contaminar pela depressão e pela tristeza dos que sabem que seu tempo já passou. Felizmente ainda percebi a tempo que a justiça é um processo que se escreve a cada dia, com as tintas do amor e a força dos sonhos. Descobri, orgulhoso e aliviado, que este não é o meu testamento e, sim, o prefácio do livro de minha nova vida que começa. 32 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MAIO 2008

“Preciso encerrar minha carreira como sempre tentei construíla, fazendo justiça. E nunca se é mais justo do que quando nos mostramos gratos aos que, de algum modo, nos ajudaram a caminhar.”


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reconhecimento Ao Mérito Sérgio Cavalieri Desembargador do TJ/RJ

S

enhor Presidente, eminentes pares, colegas, minhas senhoras e senhores, embora muito honrado por poder usar a palavra neste momento, confesso que me vejo em grande dificuldade. Falar do desembargador Sylvio Capanema não é tarefa difícil. São tantas as suas qualidades, virtudes e realizações que até o mais jovem dos advogados seria capaz de falar sobre ele fazendo uma bela preleção. Já tive o privilégio de falar do Capanema algumas vezes. A última delas foi em nossa Assembléia Legislativa, quando Sua Excelência foi agraciado com a Medalha Tiradentes. Disse, naquela oportunidade, que o Capanema consegue ser, ao mesmo tempo, espelho e janela: espelho porque é brilhante, reluzente, cheio de esplendor; janela porque não reflete a si mesmo, pelo contrário, deixa entrar a luz, o ar, a vida onde quer que esteja, compartilhando com todos as suas qualidades. Um pouco mais difícil do que falar do Capanema é falar com o Capanema, mormente num mesmo evento. Todos sabemos que ele é um orador primoroso, o Catão da Magistratura: palavras fáceis, imagens empolgantes, pensamentos cristalinos. Falar com o Capanema, mormente depois dele, é uma grande dificuldade. Passei por essa dificuldade algumas vezes quando juntos percorremos o Brasil para falar do Código do Consumidor, nos seus primórdios. Foram tantas vezes que chegaram a nos chamar de dupla CACA – Capanema e Cavalieri. Tive a honra de ser apresentado como “Sérgio Capanema” e ele o dissabor de ser chamado de “Sylvio Cavalieri”. A maior dificuldade, entretanto, está em falar para o Capanema num momento como este. E esta é a minha grande dificuldade neste momento. Prefiro pensar, até para diminuir a minha dificuldade emocional, que este não é um momento de despedida; é um momento de alto valor simbólico de fazermos preservar na

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memória deste Tribunal a significativa presença, a participação e a passagem do eminente desembargador Capanema por esta Casa. Estas palavras poderiam ser dirigidas ao grande magistrado, prolator de votos brilhantíssimos, formador de jurisprudência neste Tribunal e até nos Tribunais Superiores; poderiam também ser dirigidas ao jurista consagrado, autor de importantes obras e trabalhos; ao conferencista renomado, vigoroso defensor de suas teses jurídicas, formador da doutrina. Prefiro falar para o Professor. E falo, Sylvio, não em nome dos milhares de alunos que você teve (e tem) ao longo de sua brilhante carreira no magistério, hoje espalhados por todo o país e exercendo as mais importantes funções na vida pública e privada. Falo em nome de todos nós que aqui estamos, membros deste Órgão Especial e de todo o Tribunal de Justiça. Sem termos tido a oportunidade, verdadeiro privilégio, de estarmos formalmente em uma sala de aula tendo você como professor, todos nós somos seus alunos; a todos nos ensinou com o seu exemplo, com a sua vida. O padre António Vieira, o príncipe dos pregadores, disse que o maior e mais poderoso sermão é o sermão do exemplo; é o sermão que se prega aos olhos e não apenas aos ouvidos; é o sermão que se prega com atos e ações e não somente com palavras. Você, Sylvio, sem nunca ter tido a pretensão de nos dar uma aula, foi e é o nosso mestre, a todos nos ensinou nos anos que integrou este Tribunal, porque você nos ministrou, diariamente, a lição do exemplo. É, como já disse, um orador brilhante, eloqüente, mas o seu exemplo e a sua vida são ainda mais brilhantes – falam mais alto que os seus discursos. Tem tudo para se orgulhar da sua brilhante inteligência, mas com a vida nos ensina a humildade, a ética, a transparência, a amizade e a lealdade. Sua extraordinária carreira de magistrado é uma lição de vida para todos os seus colegas,


Foto: STF

Foto: Arquivo JC

principalmente para os novos juízes – exemplo de dedicação, de eficiência, de pontualidade, de responsabilidade. Permita-me citar um único exemplo, embora devassando um pouco a sua vida privada. Acompanhei, consternado, a longa agonia de sua genitora; meses em coma internada no CTI. Você, como bom filho que é, nada lhe deixou faltar, e sem que ela pudesse saber, diariamente ia visitá-la no hospital. Mas não faltou um só dia de trabalho neste Tribunal. Poucos tinham conhecimento do drama que estava vivendo. E quando, finalmente, ela partiu, no dia seguinte você estava em plena atividade neste Tribunal. É possível maior exemplo de dedicação de filho e de homem público? Há pessoas que são admiradas de longe pela fama, beleza, cultura ou fortuna, mas depois de conhecidas de perto – a convivência, o dia-a-dia mostram que são ídolos de pé de barro. É por isso que muitos casamentos fracassam. Há pessoas que não são conhecidas de longe – não têm fama, não têm fortuna, não têm projeção. Mas depois de conhecidas de perto, pessoalmente, tornam-se admiradas, estimadas e até veneradas pelas suas qualidades e virtudes internas. Dificilmente uma pessoa admirada e respeitada de longe se torna ainda mais admirada e respeitada de perto. E uma dessas raras pessoas, Sylvio, é você. Você chegou a este Tribunal já admirado e respeitado por todos – pela sua cultura, pela sua brilhante carreira como advogado, pela sua renomada atuação no magistério. Mas depois de 14 anos de convivência diária com seus pares neste Tribunal, depois de 14 anos de convivência com juízes, advogados e servidores, você sai ainda mais respeitado, admirado e engrandecido. No exercício da magistratura você conseguiu ser enérgico sem arrogância, rigoroso sem prepotência, constante sem obstinação, bondoso sem condescendência, inflexível e ao mesmo tempo compreensivo. Conseguiu personalizar o magistrado que todos nós gostaríamos de ser.

Nestes últimos meses de convivência neste Órgão Especial tenho tido o privilégio de me sentar ao seu lado, o que me permitiu perceber, bem de perto, mais uma de suas admiráveis virtudes: o seu acendrado senso de justiça. Chega a ser comovente o seu empenho, a sua preocupação, verdadeira angústia em fazer justiça. E com isso aprendi mais uma lição depois de mais de 35 anos como julgador. Por que isso é importante? Porque a maior injustiça não é aquela que é feita pelo nosso maior inimigo; isso é vingança. Tampouco é aquela que é feita pelo nosso melhor amigo; isso é traição. A maior injustiça é aquela que é feita pela própria Justiça; que é perpetrada pelos agentes da Justiça e em nome dela – quando o direito, a eqüidade e a boa-fé são substituídos por motivação política e interesses pessoais. Então a vingança, a traição e a própria injustiça são travestidas em justiça. O branco passa a ser preto, o bom passa a ser mau, a virtude passa a ser defeito, às vezes até crime. “Não existe pior desordem do que a injustiça.” Com essa ponderação, Maurice Duverger, eminente jurista francês, denuncia e condena a ordem aparente, a utilização de leis e decisões jurídicas com motivação política e interesses pessoais para o acobertamento de injustiças, sob pretexto de garantir a ordem e proteger as instituições. Senhor Presidente e eminentes pares, aposenta-se o desembargador Sylvio Capanema; não se aposentam, entretanto, as virtudes norteadoras desse grande homem público – humildade, sabedoria, disciplina, lealdade, honra e senso de justiça. Deixa três brilhantes magistrados, seus filhos – a Márcia, a Flávia e o João Paulo –, que darão continuidade ao seu extraordinário trabalho e perpetuarão o seu nome neste Tribunal. Sylvio, meu irmão, em nome de todos os seus colegas, muito obrigado por tudo aquilo que você foi, é e será, e que Deus torne ainda mais brilhante a estrela que lhe deu ao nascer. Um abraço carinhoso. 2008 MAIO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 35


A DISTINÇÃO ENTRE INTERESSE PÚBLICO E PRIVADO NAS CONTRIBUIÇÕES NO INTERESSE DAS CATEGORIAS ECONÔMICAS

Ives Gandra da Silva Martins Professor Emérito das Universidades Mackenzie, UNIFMU, UNIFIEO, UNIP e CIEE Membro do Conselho Editorial

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xaminarei a questão pelo prisma exclusivo da Constituição Federal, segundo a interpretação que tenho emprestado às contribuições especiais cobradas no interesse das categorias no curso dos últimos anos. Quando, a convite dos constituintes, em audiência pública perante a Sub-Comissão dos tributos, defendi, em 1987, a necessidade de tornar explícita, no texto supremo, a existência de cinco espécies tributárias (impostos, taxas, contribuição de melhoria, empréstimo compulsório e contribuições especiais) – tese de resto também exposta por Gilberto de Ulhôa Canto no dia em que foi ouvido pelos constituintes –, meu intuito foi, com isso, afastar a polêmica que se instalara sobre a natureza jurídica das exações exigidas na vigência da Constituição de 67 e da Emenda no 1/69. O texto final consagrou, na sessão I, os três grandes princípios gerais, a saber: 1) o princípio das cinco espécies tributárias (arts. 145, 148 e 149); 2) o princípio da lei complementar (art. 146); 3) o princípio da capacidade contributiva (art. 145, § 1o). 36 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MAIO 2008

No que concerne às contribuições especiais, o constituinte, atribuindo-lhes natureza tributária, consagrou três modalidades, como já ocorrera no Direito pretérito, a saber: 1) sociais; 2) intervenção no domínio econômico; 3) no interesse das categorias. Quanto à primeira delas, os arts. 193 a 231 abrem um leque maior para hospedar imposições, objetivando atender os diversos aspectos do interesse social prestigiados na Lei Suprema, cujo perfil foi esculpido à luz de um Estado do Bem-Estar Social. No concernente às contribuições de intervenção no domínio econômico, tenho entendido que apenas serão de exação possível em graves desequilíbrios da ordem econômica. É que a contribuição de intervenção no domínio econômico é instrumento de planejamento, sendo o planejamento econômico, para o setor privado, apenas facultativo, nos termos do art. 174 da Lei Maior. Se, ao cuidar da ordem econômica, a Constituição consagra os princípios da livre iniciativa e livre concorrência como seus princípios maiores, hospedando, pois, os princípios da economia de mercado como sua opção de desenvolvimento à evidência, a intervenção mediante


“A expressão ‘como instrumento de sua atuação` não diz respeito à atuação do governo nas referidas áreas, mas sim das próprias categorias profissionais ou econômicas nos campos que lhes concernem.”

cobrança dessa contribuição só se legitima para regularizar setores descompassados da economia. Já no que se refere à terceira modalidade prevista no sistema constitucional tributário, ou seja, a contribuição no interesse das categorias, tenho para mim que se trata de uma contribuição especial, vinculada à autonomia sindical. Por estar preordenada a esse objetivo, não me parece que possa o Governo deslegitimá-la, tornando-a instrumento de política tributária ou de arrecadação fora de seus objetivos. Com efeito, reza o artigo 149, caput, que: “Art. 149 - Compete exclusivamente à União instituir contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou econômicas, como instrumento de sua atuação nas respectivas áreas, observado o disposto nos arts. 146, III, e 150, I e III, e sem prejuízo do previsto no art. 195, § 6o, relativamente às contribuições a que alude o dispositivo.” Como se percebe, as contribuições no interesse das categorias sobre terem natureza tributária foram concebidas como instrumento de atuação das categorias profissionais ou econômicas em suas respectivas áreas.

A expressão “como instrumento de sua atuação” não diz respeito à atuação do governo nas referidas áreas, mas sim das próprias categorias profissionais ou econômicas nos campos que lhes concernem. Se assim não fosse – ou seja, se tivessem sido concebidas como instrumento de atuação do governo e não das categorias –, através delas o poder público poderia eliminar ou reduzir a atuação das diversas categorias, maculando a autonomia sindical e violentando os incisos II e IV do art. 170, que impõem o respeito à propriedade privada e à livre concorrência. A única leitura plausível é, pois, de que se trata de instrumento de fortalecimento das categorias profissionais ou econômicas para que atuem nas áreas que lhes são próprias, em defesa dos interesses legítimos de seus participantes. Enquanto todos os tributos objetivam o interesse público, como conseqüência de política desenvolvimentista, social ou fiscal, as contribuições no interesse das categorias é desenhada – como o próprio nome está dizendo – “no interesse da categoria”. Difere, portanto, na sua finalidade, de todos os demais tributos. E tal inteligência parece-me restar fundamentada e fortalecida pelas normas do caput e do inciso IV, do art. 8o, 2008 MAIO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 37


que declaram: “Art. 8o - É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte: [...] IV - a assembléia geral fixará a contribuição que, em se tratando de categoria profissional, será descontada em folha, para custeio do sistema confederativo da representação sindical respectiva, independentemente da contribuição prevista em lei.” Da leitura de ambos os dispositivos, verifica-se, de um lado, o propósito de assegurar a liberdade associativa sindical com recursos advindos do sistema tributário e, de outro, permitir o recebimento de contribuições confederativas da representação de seus filiados. Tenho me manifestado, de resto, com base na orientação jurisprudencial, hoje consagrada, que a primeira das contribuições enunciadas – ou seja, a que é fixada pela assembléia da categoria – obriga apenas os que, no exercício da opção da livre associação, participem de suas entidades representativas. À nitidez, prestigiou o constituinte a liberdade de associação: aquele que optar por não se sindicalizar, claramente não está obrigado a contribuir, até porque, se estivesse, inexistiria a liberdade preconizada no caput do enunciado legislativo. A norma do inciso IV estaria a fulminar a garantia prevista na cabeça do artigo. No que concerne, entretanto, à outra contribuição, que é cobrada com base em previsão legal – como implícito está na expressão “independente da contribuição prevista em lei” – tem natureza tributária, é obrigatória e não comporta desonerações. É tributária porque sua previsão encontra-se no já citado artigo 149, ou seja, entre os princípios gerais (o das espécies tributárias) do sistema tributário brasileiro. É obrigatória porque é dela – mais do que da contribuição confederativa – que os sindicatos dependem para atuação nas suas respectivas áreas. Por essa razão, houve por bem o constituinte declarar que a contribuição confederativa deve ser cobrada “independente daquela prevista em lei”, ou seja, daquela que, por ser obrigatória para a preservação de autonomia sindical, não permite que a liberdade de associação possa impedir a manutenção das entidades representativas das categorias profissionais e econômicas, pois elas são necessárias ao regime democrático. Por fim, não admite desonerações, pois, se o fizesse, a União poderia inviabilizar a existência de sindicatos se, na hipótese máxima, desonerasse da própria contribuição ou reduzisse a imposição tributária à sua mínima expressão. Das cinco espécies – de rigor, sete – é, portanto, a única que não comporta desonerações. Os impostos, as taxas, as contribuições de melhoria – imposições clássicas –, assim como as contribuições sociais e contribuições de intervenção no domínio econômico são todos instrumentos impositivos que o Estado pode utilizar para, formulando políticas tributárias, implementar políticas públicas afinadas com a linha filosófica ou ideológica dos 38 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MAIO 2008

detentores do poder da ocasião, desde que subordinadas aos quadrantes da Constituição. São instrumentos de política de distribuição de renda, de um lado, ou de políticas públicas, de outro, para atender os objetivos máximos desejados pela sociedade, através de seus representantes. São, pois, instrumentos necessários à implantação de políticas públicas, comportando, após as ponderações propiciadas pela discussão democrática, desonerar o contribuinte de sua exigência, desde que nos termos do § 6o do art. 150, assim redigido: “§ 6o - Qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição, sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2o, XII, g. (Redação dada pela Emenda Constitucional no 3, de 1993).” Onerar ou desonerar relativamente a essas exações é matéria de interesse público, de política de arrecadação, de política tributária com vistas à realização da Justiça Fiscal e ao desenvolvimento econômico. Já as contribuições no interesse das categorias são instrumentos de política das categorias profissionais ou econômicas, e não dos governos, tendo sido previstas pelo constituinte exclusivamente para atender às necessidades e à liberdade de atuação nas áreas respectivas de cada categoria. Não são instrumentos de políticas públicas, mas de políticas próprias das categorias econômicas ou profissionais, que definem suas linhas nos quadros de sua conformação e atuação. Não comportam, portanto, desonerações, visto que não pode o Poder Público manejar instrumento capaz de sufocar ou reduzir a autonomia sindical, como é o caso da eliminação de receitas necessárias à sua existência. Ao contrário, das duas outras exações previstas (contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico), que comportam desonerações por força de políticas públicas, as contribuições no interesse das categorias não as comportam, pois não são destinadas a políticas públicas. Sua destinação específica é exclusivamente para o interesse das categorias econômicas ou profissionais. Leia-se, inclusive, o texto do art. 179 da CF, que prescreve a adoção de políticas públicas para as empresas de pequeno porte, cuja redação é a seguinte: “Art. 179 - A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei.” Em nenhum momento fez menção o constituinte às contribuições de interesse das categorias, mas exclusivamente às contribuições sociais de natureza previdenciária. Nem


mesmo alude às contribuições de intervenção no domínio econômico – estas apenas exigíveis para recompor setores descompassados da economia – como instrumentos de planejamento econômico regulatório, embora também possam ser vistas como instrumento de política pública. O mesmo se diga da letra “d” do inciso III do artigo 146 da CF, cuja redação repito: “Art. 146 - Cabe à lei complementar: [...] III - estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre: [...] d) definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso do imposto previsto no art. 155, II, das contribuições previstas no art. 195, I e §§ 12 e 13, e da contribuição a que se refere o art. 239. (Incluído pela Emenda Constitucional no 42, de 19/12/2003)”. Cuida o dispositivo apenas das contribuições previdenciárias e do PIS. Parece-me, pois, dentro de um sistema tributário coerente, que as contribuições no interesse das categorias não comportam desonerações a título de implementação de políticas públicas, o que é, de rigor, inadmissível para contribuições deste jaez. A sua desoneração a pretexto de realização de políticas públicas prejudicaria a contribuição sindical, a atuação das entidades representativas, podendo fulminar a intenção do legislador maior de preservar a autonomia sindical, razão pela qual, para as empresas de pequeno porte, sequer o constituinte colocou-as entre as imposições capazes de sofrer o processo redutor ou supressor. Em outras palavras, apesar de o constituinte falar em “tributos e contribuições” e o Supremo Tribunal Federal dar natureza tributária às contribuições especiais, o art. 179, dedicado às empresas de pequeno porte, apenas considerou passível de desoneração, entre todas as contribuições, aquelas de natureza previdenciária. Sobre mais nenhuma pode haver desonerações ou reduções impositivas. À luz destes argumentos, não me deterei em outros, tais como de ilegalidades instrumentais, inconstitucionalidades formais ou violências materiais à lei suprema por parte da Lei no 9.317/96, da LC no 123/06 ou da IN-SRF no 9/99. A meu ver, a legislação infraconstitucional não poderia desonerar as empresas de pequeno porte, à luz de políticas públicas, objetivando favorecê-las do recolhimento da contribuição sindical, conduta nem sequer permitida pelo art. 179 da Lei Suprema, que apenas admitiu tratamento preferencial para as contribuições sociais previdenciárias. No que diz respeito a desonerações de contribuição sindical, tais instrumentos legislativos infraconstitucionais são de manifesta violência à Lei Maior – sobre ser a IN 9/99 também ilegal –, por hospedar hipóteses desonerativas não previstas na lei, como procurei demonstrar no presente estudo.

“Parece-me, pois, dentro de um sistema tributário coerente, que as contribuições no interesse das categorias não comportam desonerações a título de implementação de políticas públicas, o que é, de rigor, inadmissível para contribuições deste jaez.”

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O LOBO E O CORDEIRO Abram Szajman Presidente da Fecomercio/SP e dos Conselhos Regionais do Sesc e Senac

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urante a campanha de Richard Nixon à Presidência dos Estados Unidos, seus opositores estamparam na mídia a fotografia do candidato com uma frase premonitória – “Você compraria um carro usado deste homem?” –, pondo em dúvida as suas qualidades morais. Anos mais tarde, já presidente, ele teve de renunciar ao mandato em razão do escândalo de Watergate. A lembrança vem a propósito da criação do Fundo Nacional de Formação Técnica e Profissional, o Funtep. É com esse fundo que o Poder Público pretende abocanhar recursos de Sesc e Sesi, Senac e Senai, dentre outras enti­ dades mantidas pelo empresariado, agora em nome da educação profissional. A tática não é nova. Sempre que algum ministro tem alguma idéia miraculosa para salvar o País, ou a sua pasta, lembra-se do assim chamado Sistema S. Não para tentar imitar a excelência de muitos de seus serviços, que a sociedade brasileira sempre admirou, mas para se apropriar da chave do cofre. No caso das entidades sociais, como Sesc e Sesi, o procedimento será cirúrgico, preciso e sem anestesia: para ajudar a manter o Funtep, simplesmente se corta a sangue frio um terço de seus recursos. Um erro grave, sim. Um erro grave e ululantemente óbvio, como diria Nelson Rodrigues: como é que se vai retirar recursos exatamente da área do bem-estar social dos trabalhadores, num país com carências tão graves como o Brasil? O que é que essas entidades vão fazer com seus programas sociais, educativos e culturais? Devem fechálos em um terço também? Já para as entidades de formação profissional, como Senac e Senai, a solução é mais ardilosa: elas vão receber de mão beijada os recursos retirados a bisturi das entidades sociais, mas pagarão um alto preço pelo agrado. Vão ser administradas diretamente pela mão do poder público, que vai 40 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MAIO 2008

lhes dizer onde, como e o que fazer com seus recursos. Haja vista que esse mesmo Poder Público, que se diz agora tão preocupado com a qualificação profissional, diminuiu em cerca de dez vezes os recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), destinados a esse fim, nos últimos anos. Os dados são do Dieese (Anuário 2007) e estão no portal do Ministério do Trabalho para quem quiser ver. Se no período de 1996 a 2001 as despesas com qualificação representavam 4,7% das despesas totais desse fundo, no período de 2002 a 2005 elas desabaram para 0,5%. Haja vista, também, que as despesas com o seguro-desemprego, que eram da ordem de R$ 7,7 bilhões em 2003, saltaram para R$ 10,9 bilhões em 2006, exatamente no período em que o nível de emprego mais aumentou. Como é possível entender que, aumentando o nível de emprego, aumente ainda mais o desembolso com o seguro-desemprego? Será com esse talento gerencial que o Poder Público pretende administrar os recursos do Funtep? O que há, na verdade, é uma questão velada que permeia todas as iniciativas do gênero, seja o Funtep de agora ou o de amanhã. E contra ela não há muito que fazer. A questão é que as entidades empresariais, reunidas no assim chamado Sistema S, sempre serão culpadas de alguma coisa, não importa o quê. É a reprise da velha fábula do lobo e do cordeiro. Alguma culpa o Sistema S há de ter e o que lhe acontecer será merecido. É o que parecem dizer todos os que assestam suas baterias contra essas entidades. Às vezes, a acusação é a suposta falta de transparência, mas os detratores se esquecem de dizer da auditoria feroz que o Tribunal de Contas da União e a Controladoria-Geral da União fazem de suas contas, dia a dia, mês a mês, ano a ano. Será que não confiam na competência e no rigor desses órgãos fiscalizadores do próprio Estado? Outras vezes, a acusação é de que poder público e trabalhadores não têm voz nessas entida-


“Você, em sã consciência, entregaria a senha de seu cartão de crédito para o poder público administrar suas contas?”

des, omitindo o fato de que ali estão, sim, em grande número, representantes do Ministério da Educação, do Ministério do Trabalho e Emprego, do Ministério da Previdência e Assistência Social e do Ministério do Planejamento, espalhados pelos conselhos dessas entidades, até mesmo na presidência, como ocorre no Conselho Nacional do Sesi, cujo presidente foi nomeado para o posto pelo presidente Lula. Omitem, também, que em muitos conselhos fiscais dessas entidades, a presença do Poder Público é acentuadamente forte, chegando a ser maioria, como é o caso tanto no Sesc como no Senac. E nem sequer fazem menção à presença de representantes dos trabalhadores, que também integram tais entidades e ali têm voz ativa. Mas o que os detratores mais procuram escamotear é a grandeza e a importância dessas entidades para o País, inclusive as de formação profissional. Segundo ainda o Dieese, enquanto o poder público federal responde por apenas 6,7% de todos os cursos de educação profissional existentes em nível nacional, as entidades do Sistema S respondem por nada menos que 36,3% do total, só superadas pelo conjunto dos cursos privados, que é da ordem de 46%. Não são perfeitas, claro, enfrentam dificuldades e podem cometer equívocos. Mas nada que se compare aos equívocos históricos da educação brasileira, por exemplo, reconhecidamente uma das piores do mundo em qualidade, apesar dos esforços da abnegada classe dos professores. Na iminência do assalto que vão sofrer essas entidades sociais e de formação profissional com a criação do fundo, e considerando a histórica, notória e irrefreável vocação do Poder Público para o desperdício público de recursos, talvez fosse o caso de indagar a cada cidadão brasileiro: “Você, em sã consciência, entregaria a senha de seu cartão de crédito para o Poder Público administrar suas contas?”

NOTA DO EDITOR O corajoso e esclarecedor artigo do presidente da Federação do Comércio do Estado de São Paulo e dos Conselhos Regionais do Sesc e Senac, Abram Szajman, detonado contra a estapafúrdia intenção do governo federal de querer se apropriar, acintosa e despudoradamente, do dinheiro arrecadado dos empresários do comércio e da indústria, que tem destinação certa e específica na educação técnica-profissional dos comerciários e industriários, e inclusive na assistência social das suas famílias, é muito oportuno e serve de alerta a todo o empresariado nacional contra absurdos e despautérios que vez ou outra surgem com a insolência própria de agentes políticos despreparados, desconhecedores do assunto e mal-intencionados, como é o caso presente. Torna-se necessário, ante fatos dessa natureza, que o empresariado nacional de todos os matizes, conscientes e responsáveis, cerrem fileira contra iniciativas deletérias como esta, denunciada com altivez e afrontosa coragem pelo empresário Abram Szajman, e que surgem a miúdo com intuitos sub-reptícios e interesses infestos, usando até de engodos e técnica marxista para colherem proveitos impróprios e inconfessáveis contra os interesses maiores das empresas e dos empregados do comércio e da indústria. A repulsa briosa, vibrante e acachapante do presidente da Federação do Comércio de São Paulo, acolitada pelo presidente da CNI, Armando Monteiro Neto, no debate promovido pela “Folha de S. Paulo”, reflete o inconformismo do empresariado nacional com a indevida e absurda pretensão governamental.

Artigo publicado em O Estado de S. Paulo, de 16/05/08.

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A importância da Justiça Federal Newton de Lucca Desembargador Federal do TRF 3a Região Diretor-Presidente da Escola dos Magistrados da Justiça Federal da 3a Região

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ntes de tratar propriamente da importância da Justiça Federal ‘Comum’, merece destaque um brevíssimo retrospecto do seu surgimento, apenas para que possamos relembrar as contingências históricas e políticas que permearam sua criação e viabilizaram a estrutura e o estágio de desenvolvimento hoje alcançados. A origem da Justiça Federal remonta ao período republicano, com expressa previsão no art. 55, da Constituição de 1891, conseqüência do dualismo jurisdicional, próprio do sistema federativo. Quarenta e seis anos após, em 1937, com o Estado Novo, foi extinta a Justiça Federal. As causas que eram de competência federal passaram a ser julgadas pelos juízes dos feitos da Fazenda Nacional, da estrutura judiciária dos Estados-Membros. Em 1946, o novo texto constitucional criou o Tribunal Federal de Recursos – extinto pela Constituição de 1988 –, cujo objetivo era examinar, em segundo grau de jurisdição, matérias de interesse da União. Finalmente, com o Texto Magno de 1967, a Justiça Federal foi integralmente restabelecida, com a previsão do já mencionado Tribunal Federal de Recursos e dos juízes federais, assim como suas respectivas competências. Nenhuma mudança trouxe a Emenda Constitucional no 1/69. Somente, porém, com a atual Constituição da República, 42 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MAIO 2008

promulgada em 1988, mais adequadamente estruturou-se a Justiça Federal, cuja disciplina vem contemplada nos arts. 106 a 110 do texto. Há previsão dos Tribunais Regionais Federais e dos juízes federais para os quais, “diversamente da tradição constitucional brasileira, a atual Carta Magna introduziu a saudável exigência do concurso de provas e títulos”. Compõe-se a Justiça Federal – nos exatos termos do art. 106, da Carta Política – dos Tribunais Regionais Federais e dos juízes federais. Quando da promulgação da Constituição de 1988, a criação dos cinco Tribunais Regionais Federais já estava prevista no art. 26, § 6o, do ADCT. A sede e jurisdição desses tribunais seriam fixadas pelo então Tribunal Federal de Recursos, que assim o fez: • TRF-1a Região: sede em Brasília, com jurisdição sobre Acre, Amapá, Amazonas, Bahia, Distrito Federal, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará, Piauí, Rondônia, Roraima e Tocantins; • TRF-2a Região: sede no Rio de Janeiro, com jurisdição sobre os Estados do Espírito Santo e Rio de Janeiro; • TRF-3a Região: sede em São Paulo, com jurisdição sobre os Estados de São Paulo e Mato Grosso do Sul; • TRF-4a Região: sede em Porto Alegre, com jurisdição sobre os Estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná;


Foto: Arquivo Pessoal

• TRF-5a Região: sede em Recife, com jurisdição sobre os Estados de Alagoas, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Sergipe. Não obstante essa divisão já existente, nada impede que a lei crie outros Tribunais Regionais Federais, conforme autoriza o § 1o, do art. 107, do texto constitucional. Duas novidades trouxe a Emenda Constitucional no 45 no que tange ao funcionamento da Justiça Federal. Foi criada a Justiça Itinerante (art. 107, § 2o, CF) e abriu-se a possibilidade de os Tribunais Regionais Federais funcionarem descentralizadamente, mediante a constituição de Câmaras Regionais (art. 107, § 3o, CF). Sobre esse aspecto da reforma judiciária – enfatizando que a criação da justiça itinerante é obrigatória e o funcionamento dos TRFs de forma descentralizada é facultativo – lamentou o prof. José Afonso da Silva: “Pena é que essa providência não seja impositiva como a que determina que instalem Justiça Itinerante, com a realização de audiências e demais funções da atividade jurisdicional nos limites territoriais da respectiva jurisdição, servindo-se de equipamentos públicos e comunitários. Se a descentralização for implementada, esta segunda providência, por certo, será bem mais produtiva, porque o órgão de recurso estará por perto.” Deve-se ressaltar, por oportuno, que essa descentralização não foi franqueada apenas à Justiça Federal, mas também

aos Tribunais de Justiça (art. 125, § 6o, CF) e aos Tribunais Regionais do Trabalho (art. 115, § 2o, CF). No plano infraconstitucional, a Justiça Federal vem disciplinada na Lei no 5.066/66. Feito esse pequeno intróito, volto à frase inicial do texto, onde faço expressa referência à Justiça Federal ‘Comum’. A dubiedade e insuficiência do título “A importância da Justiça Federal” merecem um esclarecimento, dada a ausência de univocidade na expressão “Justiça Federal”. Tanto a Justiça Federal ‘Comum’ – composta pelos Tribunais Regionais Federais e pelos juízes federais – quanto a Justiça Federal ‘Especial’ (também designada ‘Justiça Especial da União’), integrada pelas justiças trabalhista, eleitoral e militar, são, evidentemente, ‘justiças federais’. No que se refere à dubiedade do título – já que ele parece outorgar maior relevância à Justiça Federal ‘Comum’ do que às outras justiças existentes, quer sejam federais, quer sejam estaduais –, quero esclarecer que as outras Justiças Federais (a trabalhista, a eleitoral e a militar) são também muito importantes (seria escusado dizê-lo...), mas a importância da Justiça Federal ‘Comum’ merece especial destaque, ainda que não deva ser considerada uma Justiça Especial, como acontece com as já citadas trabalhista, eleitoral e militar, conforme já esclareci. Para deixar um pouco mais clara essa questão terminoló2008 MAIO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 43


gica, permito-me reproduzir o seguinte ensinamento do E. prof. Cândido Rangel Dinamarco: “Constitui erro, cometido às vezes até pela lei ou pelos tribunais mais qualificados, a indicação somente das Justiças Estaduais como justiça comum, em oposição à Justiça Federal – como se esta fosse uma Justiça Especial.” Para que se conheça qual é a competência da Justiça Federal, basta examinar-se o teor dos arts. 108 e 109 de nossa Constituição Federal: “Art. 108. Compete aos Tribunais Regionais Federais: I – processar e julgar, originariamente: a) os juízes federais da área de sua jurisdição, incluídos os da Justiça Militar e da Justiça do Trabalho, nos crimes comuns e de responsabilidade, e os membros do Ministério Público da União, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral; b) as revisões criminais e as ações rescisórias de julgados seus ou dos juízes federais da região; c) os mandados de segurança e os habeas data contra ato do próprio Tribunal ou de juiz federal; d) os habeas corpus, quando a autoridade coatora for juiz federal; e) os conflitos de competência entre juízes federais vinculados ao Tribunal. II – julgar, em grau de recurso, as causas decididas pelos juízes federais e pelos juízes estaduais no exercício da competência federal da área de sua jurisdição. Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar: I – as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho; II – as causas entre Estado estrangeiro ou organismo internacional e Município ou pessoa domiciliada ou residente no País; III – as causas fundadas em tratado ou contrato da União com Estado estrangeiro ou organismo internacional; IV – os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral; V – os crimes previstos em tratado ou convenção internacional, quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente; V-A – as causas relativas a direitos humanos a que se refere o § 5o deste artigo; VI – os crimes contra a organização do trabalho e, nos casos determinados por lei, contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira; VII – os habeas corpus, em matéria criminal de sua competência ou quando o constrangimento provier de autoridade cujos atos não estejam diretamente sujeitos a outra jurisdição; 44 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MAIO 2008

VIII – os mandados de segurança e os habeas data contra ato de autoridade federal, excetuados os casos de competência dos tribunais federais; IX – os crimes cometidos a bordo de navios ou aeronaves, ressalvada a competência da Justiça Militar; X – os crimes de ingresso ou permanência irregular de estrangeiro, a execução de carta rogatória, após o “exequátur”, e de sentença estrangeira, após a homologação, as causas referentes à nacionalidade, inclusive a respectiva opção, e à naturalização; XI – a disputa sobre direitos indígenas. § 1o – As causas em que a União for autora serão aforadas na seção judiciária onde tiver domicílio a outra parte. § 2o – As causas intentadas contra a União poderão ser aforadas na seção judiciária em que for domiciliado o autor, naquela onde houver ocorrido o ato ou fato que deu origem à demanda ou onde esteja situada a coisa, ou, ainda, no Distrito Federal. § 3o – Serão processadas e julgadas na justiça estadual, no foro do domicílio dos segurados ou beneficiários, as causas em que forem parte instituição de previdência social e segurado, sempre que a comarca não seja sede de vara do juízo federal, e, se verificada essa condição, a lei poderá permitir que outras causas sejam também processadas e julgadas pela justiça estadual. § 4o – Na hipótese do parágrafo anterior, o recurso cabível será sempre para o Tribunal Regional Federal na área de jurisdição do juiz de primeiro grau. § 5o – Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal.” A idéia central que se pode tirar da leitura de tais artigos é a de que a condição das pessoas constitui o fator determinante da competência da Justiça Federal, correndo nesta todas as causas em que figura como parte a União ou alguma de suas emanações mais diretas (autarquias ou empresas públicas), como se percebe pelo inciso I do retro mencionado art. 109. É de extrema relevância esclarecer que há três categorias de litígios em relação aos quais a Constituição (numa das hipóteses) e a lei (nas outras duas hipóteses) investem o juiz federal em uma parcela da competência federal: nas demandas promovidas em face da entidade previdenciária federal (INSS); nas execuções fiscais da União e autarquias federais; e, por derradeiro, nas medidas preparatórias visando à obtenção de prova a ser utilizada perante a Administração Federal. Outro aspecto relevante no contexto da importância da Justiça Federal refere-se à formação do magistrado federal. Segundo um dos importantes trechos do Plano Nacional de Aperfeiçoamento dos Magistrados Federais, “do magistra-


do federal devem-se exigir qualificações peculiares e específicas para o exercício da função judicante, devendo, portanto, a Escola da Magistratura ser um ideal de excelência para a formação continuada desse magistrado especial, o que justifica a sua necessidade e importância.” Seja-me permitido recordar umas palavras de que me utilizei ao saudar os novos juízes federais que, por seus próprios méritos, lograram êxito no XIII Concurso de Ingresso à Magistratura Federal. Referia-me eu à tarefa de julgar, num momento tão crucial como este em que vivemos, numa sociedade desorientada espiritualmente como a nossa. Somos forçados a lidar com as complexidades do chamado “pluralismo pós-moderno” – para usar uma das expressões caras a Erik Jayme –, vale dizer, com uma ciência simultaneamente formada por fontes legislativas plúrimas, com todas as dificuldades que tal fenômeno terá trazido aos operadores do Direito, em geral, e aos magistrados, em especial. Sem dúvida, um dos papéis mais importantes que os magistrados de hoje são chamados a desempenhar consiste num percuciente trabalho de coordenação entre leis existentes na mesma ordenação jurídica, como premissa fundamental para a preservação de um sistema jurídico eficiente e justo. Cunha aquele citado mestre de Heidelberg a bela expressão “diálogo das fontes” e, sobre elas, remata com precisão: “Les juges sont tenus de coordonner ces sources en écountant ce qu’elles disent.” (Recueil des Cours, p. 251) Ou, se se preferir em vernáculo: “Os juízes são obrigados a coordenar essas fontes, escutando o que elas dizem.” Sabemos que nossa época vive uma verdadeira crise de falta de humanismo na qual predomina o chamado “homem light”. Veja-se o perfil psicológico desse ser que caracteriza a sociedade contemporânea, tão bem descrito por Enrique Rojas (“O Homem Moderno – A luta Contra o Vazio”, Editora Mandarim, p. 16): “Trata-se de um homem relativamente bem informado, mas de escassa formação humanista, muito voltado ao pragmatismo, por um lado, e a vários assuntos, por outro. Tudo lhe interessa, mas de forma superficial; não é capaz de fazer uma síntese daquilo que percebe e, como conseqüência, se converte numa pessoa trivial, superficial, frívola, que aceita tudo, mas que carece de critérios sólidos em sua conduta. Tudo nele se torna etéreo, leve, volátil, banal, permissivo. [...] Homem sem vínculos, descomprometido, no qual a indiferença estética une-se à desvinculação de quase tudo que o cerca. Um ser humano rebaixado à categoria de objeto, repleto de consumo e bem-estar, cujo fim é despertar a admiração ou inveja.” Diante de quadro tão desolador, não é à toa que o escritor uruguaio Eduardo Galeano tenha escrito em seu livro “Patas Arriba – La Escuela del Mundo al reves” o seguinte trecho: “Talvez o símbolo mais expressivo da época seja a bomba de nêutrons, que respeita as coisas e carboniza os seres vivos.

Triste sorte da condição humana, tempo das panelas sem conteúdo e das palavras sem sentido. A ciência e a técnica, que foram postas a serviço do mercado e da guerra, põem-nos a seu serviço: somos instrumentos dos nossos instrumentos. Os aprendizes de feiticeiros desencadearam forças que já não podem conhecer, nem contê-las. O mundo, labirinto sem centro, está se rompendo e rompendo o seu próprio céu. Os meios e os fins foram divorciados, ao largo do século, pelo mesmo sistema de poder que divorcia a mão humana do fruto de seu trabalho, obriga ao perpétuo desencontro da palavra e do ato, esvazia a realidade de sua memória e faz de cada pessoa competidora e inimiga das demais.” É nesse tipo de mundo que os magistrados atuam, deles exigindo-se não apenas o conhecimento técnico do Direito, mas também uma formação intelectual, moral e espiritual verdadeiramente impecável, capaz de entender a alma humana em sua ambivalência trágica. Com a previsão da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados – Enfam, mencionada no inciso I do parágrafo único do art. 105 da Constituição Federal (acrescentado pela Emenda Constitucional no 45, de 8 de dezembro de 2004) e criada, recentemente, pela Resolução no 3, de 30 de novembro de 2006, da Presidência do Superior Tribunal de Justiça –, essa primorosa formação do magistrado foi posta em realce pela Resolução no 1, do Conselho Superior da Enfam, na qual se prevê, no art. 6o, a necessidade de serem cursadas pelos candidatos a juízes, como etapa final do concurso de seleção, disciplinas como deontologia, ética, administração judiciária, entre outras. Na mesma diretriz de pensamento da Enfam, encontrase o Plano Nacional de Aperfeiçoamento e de Pesquisa para Juízes Federais − PNA – (biênio 2008/2009), recentemente lançado no Tribunal Regional Federal da 3a Região pelo eminente ministro Gilson Dipp, Coordenador-Geral da Justiça Federal e Diretor do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, no qual é dado realce a dois programas fundamentais, um de ingresso, vitaliciedade e aperfeiçoamento de juízes federais e outro de pesquisa, editoração e intercâmbio desses mesmos magistrados, com seus respectivos subprogramas. Escusava dizer que o papel das Escolas de Magistrados de todo o País – e, em especial, as Escolas de Magistrados da Justiça Federal – passa a ter, doravante, outra relevância axiológica, não se justificando mais a profusão de cursos, por mais excelentes que pudessem ser, destinados a finalidades diversas e desconectados dessas diretrizes fundamentais tão bem estabelecidas pela Enfam e pelo PNA. Há um enorme esforço a ser empreendido por parte de todos, mas os propósitos a serem alcançados são, por certo, irrecusáveis. Só nos resta agora trabalhar – e muito – sempre com a íntima esperança de que, com o investimento na formação ética e técnica dos magistrados de nosso País, estaremos tentando, fazendo o Bem e não o Mal, pois é nisso que consiste a vida, conforme o velho diálogo de Sócrates com Glauco. 2008 MAIO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 45


O PRINCÍPIO DA TRANSPARÊNCIA E O USO DE CARTÕES CORPORATIVOS Alexandre Guimarães Gavião Pinto Juiz de Direito do TJ/RJ

“A função administrativa constitui o dever do Estado de atender ao interesse público, e para alcançar tal mister, o Estado exerce determinadas atividades, executando serviços para o bem-estar e o progresso da coletividade.”

A

sociedade brasileira, recentemente, foi surpreen­ dida com reprováveis escândalos, envolvendo o uso desvirtuado de cartões corporativos, que, ao invés de serem utilizados com parcimônia por agentes públicos para suprir unicamente necessidades esporádicas e emergenciais, vêm sendo manejados, muitas vezes, de forma imotivada e ilícita, através de saques vultosos em dinheiro e despesas sem qualquer relação direta com a atividade administrativa, em afronta a princípios constitucionais e violação das regras licitatórias e da boa gestão administrativa. O desvio de conduta e abuso de direito perpetrados por determinados agentes públicos, que transformaram os cartões corporativos em mais um potente instrumento de mau uso do dinheiro público na contramão do interesse da coletividade, revela a urgente necessidade de se aumentar os instrumentos de controle e assegurar a publicidade de todos os gastos com despesas administrativas, posto que somente a absoluta transparência na gestão pública propicia o controle eficiente da administração e de seus agentes. Não se pode perder de perspectiva, ainda, que, da forma 46 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MAIO 2008

desvirtuada como vêm sendo utilizados os aludidos cartões de crédito, vislumbra-se o risco de se vulnerar, rotineiramente, a regra da adoção, nas contratações públicas, da licitação, que corresponde ao procedimento administrativo voltado à seleção da proposta mais vantajosa para a contratação desejada pela Administração e necessária ao atendimento do interesse público, cuja dúplice finalidade é a de permitir a melhor contratação possível, com a seleção da proposta mais vantajosa para a administração, e a de possibilitar que qualquer interessado possa validamente participar da disputa pelas contratações. O grave problema configurado deve ser combatido, com firmeza, através da inafastável aplicação dos princípios constitucionais a seguir abordados, que não podem deixar de ser informados aos cidadãos brasileiros, já que somente um povo esclarecido é capaz de controlar e combater os abusos administrativos de quaisquer dos três Poderes e fazer valer seus direitos constitucionais e cívicos, construindo, assim, uma sociedade justa, fraterna e solidária. O Direito Administrativo, assim como as demais ciências jurídicas, é regido por vários princípios, que merecem uma


Foto: Karen Ferreira

profunda e detida reflexão num momento como o evidenciado atualmente, em que se encontram em crise aguda a ética e o comportamento probo e honesto exigível de todos agentes públicos. Compreende-se Direito Administrativo o conjunto de normas e princípios que regem a atividade administrativa, as entidades, os órgãos e agentes públicos, que devem atuar com o único objetivo de atender, de forma adequada, transparente e justa, às necessidades da coletividade. A função administrativa constitui o dever do Estado de atender ao interesse público, e para alcançar tal mister, o Estado exerce determinadas atividades, executando serviços para o bem-estar e o progresso da coletividade. A vontade do Estado se manifesta através de seus agentes, que são pessoas naturais que recebem a importante tarefa de atuar em nome do Poder Público e que, portanto, não podem adotar, em nenhum momento no exercício de suas funções, condutas reprováveis, divorciadas da ética e da boa administração, em atendimento a interesses pessoais, manifestamente egoístas, sob pena de incorrerem em infrações civis, penais e administrativas.

São princípios básicos da Administração Pública, previstos no caput do artigo 37 da Constituição da República: a ‘legalidade’, segundo o qual ao administrador somente é dado realizar o que estiver previsto em lei; ‘impessoalidade’, que exige que a atuação do administrador público seja voltada ao atendimento impessoal e geral, ainda que venha a interessar a pessoas determinadas, não sendo a atuação atribuída ao agente público, mas à entidade estatal a que se vincula; ‘moralidade’, que estabelece a necessidade de toda a atividade administrativa atender à lei e à moral, em suma, aos deveres da boa e honesta administração; ‘publicidade’, que faz com que sejam obrigatórios a divulgação e o fornecimento de informações de todos os atos praticados pela Administração Pública, e ‘eficiência’, que impõe a necessidade de adoção, pelo administrador, de critérios técnicos e profissionais que assegurem o melhor resultado possível, rechaçandose qualquer forma de atuação amadorística e ineficiente do Poder Público. A fiel observância dos princípios supramencionados se revela essencial em um Estado Democrático de Direito, regime político que visa estabelecer um razoável equilíbrio entre os direitos da pessoa e os direitos da sociedade, entre a liberdade e a soberania, através do qual o povo se governa a si mesmo, quer diretamente, quer por meio de representantes eleitos para gerir os negócios públicos e elaborar as leis. Isto se justifica pelo fato de que Democracia significa um Estado constitucional, governado por autoridades eleitas por sufrágio universal em eleições periódicas, em que deve ser assegurada a prevalência do império da lei e dos direitos e liberdades civis e políticas. Em razão do ‘princípio da legalidade’, somente é considerada legítima a atuação do agente público se for permitida por lei. Isto porque toda atividade administrativa que não estiver autorizada por lei é ilícita, ressaltando-se que, se ao particular é autorizado fazer tudo quanto não estiver proibido, ao administrador somente é franqueado o que estiver permitido por lei. O ‘princípio da impessoalidade’ compreende a igualdade de tratamento que a administração deve dispensar aos administrados que estejam na mesma situação jurídica. Exige, também, a necessidade de que a atuação administrativa seja impessoal e genérica, com vistas a satisfazer exclusivamente o interesse coletivo. O ‘princípio da moralidade’ evita que a atuação administrativa distancie-se da moral, que deve imperar, com intensidade e vigor, no âmbito da Administração Pública, o que exige que a atividade administrativa seja pautada, cotidianamente, não só pela lei, mas também pelos princípios da boa-fé, lealdade e probidade, deveres da adequada administração. No que se refere ao ‘princípio da publicidade’, convém esclarecer que a Administração Pública tem o dever de “dar publicidade plena”, ou seja, de conduzir ao conhecimento do povo o conteúdo e a exata dimensão do ato administrativo, a fim de facilitar o controle dos atos da administração. Isto 2008 MAIO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 47


se explica pelo fato de que a atividade administrativa deve ser caracterizada pela ‘absoluta transparência’, não se podendo utilizar, de forma imotivada e divorciada da realidade, termos vagos para impedir o controle dos gastos públicos e pessoais de agentes políticos e servidores públicos, sob pena de se vulnerar o Estado Democrático de Direito cobrindo com um manto intransponível os gastos com dinheiro público e o necessário controle da atividade administrativa. Quanto ao ‘princípio da eficiência’, podemos dizer que o ordenamento jurídico censura a atuação amadorística do agente público, que no exercício de sua função deve imprimir incansável esforço pela consecução do melhor resultado possível e o máximo proveito com o mínimo de recursos financeiros. Outros princípios de Direito Público também devem ser observados e cumpridos com rigor na rotina administrativa. O princípio da ‘supremacia do interesse público’ ensinanos que, no confronto entre o interesse do particular e o interesse público, prevalecerá o segundo, no qual se concentra o interesse da coletividade. É necessário que os interesses públicos tenham supremacia sobre os individuais, posto que visam garantir o bem-estar coletivo e concretizar a justiça social. Em razão do ‘princípio da indisponibilidade’, não é concedida liberdade absoluta ao administrador para concretizar transações de qualquer natureza sem prévia autorização legal. Insta salientar que os bens, direitos e interesses públicos são confiados ao administrador tão-somente para a sua gestão e jamais para a sua disposição sem justa causa. O ‘princípio da razoabilidade’ sinaliza que o administrador não pode atuar segundo seus valores pessoais, optando por adotar providências segundo o seu exclusivo entendimento, devendo considerar valores comuns a toda coletividade. Já o ‘princípio da motivação’ exige que o administrador público justifique seus atos, explicitando, de forma clara e precisa, os pressupostos de fato e de direito das decisões tomadas. A não observância de qualquer dos princípios da Administração Pública pode macular a edição de um ato ou contrato administrativo, tornando-o inválido e incapaz de produzir efeitos jurídicos, o que nos revela a enorme importância do tema ora tratado, que não pode deixar de ser observado na rotina administrativa, sob pena de se consolidar o ilícito e estimular a improbidade administrativa, maculando, consideravelmente, o Estado Democrático de Direito. Por fim, urge destacar que somente com a irrestrita aplicação do ‘princípio da transparência’ nos negócios públicos e a consolidação da ética e dos deveres da boa administração na rotina administrativa ocorrerá a tão desejada transformação de uma realidade social censurável e não mais tolerada pelo povo brasileiro, conduzindo-se, destarte, a sociedade a um novo patamar de harmonia, respeito e equilíbrio, com a concretização do controle pleno dos gastos e do patrimônio público, propiciando a adequada gestão administrativa. 48 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MAIO 2008

“O princípio da ‘supremacia do interesse público’ ensina-nos que, no confronto entre o interesse do particular e o interesse público, prevalecerá o segundo, no qual se concentra o interesse da coletividade.”


Nove anos levando para todo o Brasil

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A confusão é geral Arnaldo Niskier Membro da Academia Brasileira de Letras

H

á frases de Machado de Assis que ficam para sempre na memória dos bons leitores brasileiros. Uma delas é “ao vencedor, as batatas”. A outra, “a confusão é geral”. Parece que, no governo, há uma acentuada preferência por esta última. Fatos recentes nos levam a esse raciocínio. De quem terá sido a brilhante idéia de colocar, no questionário dos alunos submetidos ao Enem, perguntas do tipo “cor, raça e religião”, além da revelação do endereço particular? É um censo inédito, com claras demonstrações do que no Direito se convencionou chamar de “invasão de privacidade”, ou talvez até uma atitude preconceituosa. Não vemos como possa interessar aos examinadores oficiais saber a que raça pertence o cidadão, até porque o conceito de raça, hoje, é altamente discutível. Ainda mais num país que se orgulha, justificadamente, de ser basicamente mestiço (miscigenação), como proclamava há muitos anos o escritor Sílvio Romero. A relação cor, religião e conhecimento é outra invenção da burocracia, abusiva na sua essência. As escolas que se recusaram a responder à totalidade do questionário foram “reprovadas”. Ou, pior do que isso, retiradas sumariamente da classificação do Enem, como se não existissem. No Rio de Janeiro, que teve oito escolas entre as 20 melhores do país, as 140 que ficaram de fora certamente dariam ainda mais brilho a essa performance. Às voltas com problemas como a existência de 16 milhões de analfabetos, mais de 50 milhões de semi-alfabetizados, professores mal formados e mal pagos, o governo, no seu fértil laboratório de idéias, resolveu mexer com o que sempre apresentou bons resultados: o Sistema S. Será que o presidente Lula, ex-aluno do Senai, está acompanhando isso de perto? Para resolver a carência de educação profissional, os burocratas pensaram numa solução aparentemente simples: 50 • JUSTIÇA & CIDADANIA • MAIO 2008

influenciar no emprego dos recursos de Sesc, Senac, Sesi, Senai, etc. São instituições que existem há mais de 60 anos, prestando assinalados serviços ao país na dupla vertente do atendimento social e da prestação de serviços educacionais, com cursos modeladores em diversos graus de ensino. Para mexer no que dá certo, usa-se o argumento de que se trata de “recursos da sociedade”. É desconhecer a lei, que atribui essa responsabilidade aos empresários dos vários setores da economia – são eles, portanto, que decidem o que fazer dos recursos recolhidos compulsoriamente. Não é verdadeira a crítica de que esses órgãos são desconectados de qualquer fiscalização. Quando se trata de desmoralizar um esforço, esse é o argumento que impressiona a quem desconhece o cerne da questão. Os organismos do Sistema S não utilizam recursos públicos, mas, mesmo assim, são fiscalizados pela Controladoria Geral da União, o TCU e os seus conselhos fiscais, além de inúmeros e rigorosos auditores que acompanham todas as despesas realizadas. Por que não propor, para tornar mais efetivo o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), um amplo entendimento com os empresários da Confederação Nacional da Indústria e da Confederação Nacional do Comércio? É aconselhável uma saudável parceria, no sentido de otimizar a formação dos que vão operar em nível intermediário. O país cresce, precisa cada vez mais de técnicos, mas há uma dissociação entre esse crescimento e a política de recursos humanos. Antes de partir para uma guerra sem sentido ou de propor uma lei de conseqüências imprevisíveis, melhor seria que houvesse um compartilhamento de ações proativas para valorizar a educação profissional. Armar essa confusão toda, desestruturar o que está funcionando em busca de uma aventura, não nos parece o melhor caminho. Do jeito que as coisas vão, não haverá batatas para distribuir entre os pretensos “vencedores”.


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