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EDIÇÃO 95 • Junho de 2008
101964 - O CAMPUS
PRAZO NOS 26 CONTRATOS DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇO
UNIVERSITÁRIO DO DOPS-SÃO PAULO
Foto de capa: Luis Henrique ORPHEU SANTOS SALLES EDITOR TIAGO SANTOS SALLES DIRETOR EXECUTIVO DAVID RIBEIRO SANTOS SALLES Diretor jurídico ERIkA BRANCO SECRETÁRIA DE REDAÇÃO TAÍS CAVALCANTI REVISÃO DIOGO TOMAZ DIAGRAMAÇÃO CLEONICE DE MELO ASSISTENTE DE EXPEDIÇÃO EDITORA JUSTIÇA & CIDADANIA AV. NILO PEÇANHA, 50/GR.501, ED. DE PAOLI RIO DE JANEIRO - RJ - CEP: 20020-906 TEL./FAX (21) 2240-0429 SUCURSAIS SÃO PAULO RAPHAEL SANTOS SALLES AV. PAULISTA, 1765 / 13°ANDAR SÃO PAULO - SP - CEP: 01311-200 TEL. (11) 3266-6611 PORTO ALEGRE DARCI NORTE REBELO RUA RIACHUELO, 1038 / SL.1102 ED. PLAZA FREITAS DE CASTRO CENTRO - Porto Alegre - RS CEP: 90010-272 TEL. (51) 3211-5344 SALVADOR FREDERICO DINIZ GONÇALVES RUA BARÃO DE ITAPUÃ, 60 / CONJ. 301 CENTRO EMPRESARIAL PORTO CENTER Salvador - BA - CEP: 40140-060 TEL. (71) 3264-3754 BRASÍLIA ARNALDO GOMES SCN - Q.1 – Bl. E / Sl. 715 EDIFÍCIO CENTRAL PARK BRASÍLIA - DF - CEP: 70711-903 TEl. (61) 3327-1228/29 CORRESPONDENTE ARMANDO CARDOSO TEL. (61) 9674-7569
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A JUSTIÇA DO TRABALHO DEPOIS DA ec 45 CONSELHO EDITORIAL Alvaro Mairink da Costa ANDRÉ FONTES Antonio Carlos Martins Soares Antônio souza prudente Arnaldo Esteves Lima arnaldo Lopes süssekind aurélio wander bastos Bernardo Cabral carlos antônio navega carlos ayres britTo Carlos mário Velloso CESAR ASFOR ROCHA DALMO DE ABREU DALLARI darci norte rebelo denise frossard Edson CARVALHO Vidigal eLLIS hermydio FIGUEIRA Enrique ricardo lewandowski Eros Roberto Grau fernando neves Francisco Viana Francisco Peçanha Martins Frederico José Gueiros GILMAR FERREIRA mENDES Humberto Gomes de Barros Ives Gandra martins Jerson Kelman Joaquim Alves Brito josé augusto delgado JOSÉ CARLOS MURTA RIBEIRO José Eduardo carreira Alvim luis felipe Salomão Manoel CarpeNa Amorim Marco Aurélio Mello Massami Uyeda MAURICIO DINEPI maximino gonçalves fontes nEY PRADO Paulo Freitas Barata Sergio Cavalieri filho Sylvio Capanema de Souza thiago ribas filho
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A Saga dos Atingidos por Barragens SUMÁRIO A MORALIDADE PÚBLICA
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Um vício incorrigível
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Pela moralização das eleições
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TEMPOS DE SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA
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A IMPORTÂNCIA LEGAL DA PERÍCIA MÉDICA
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O MUNDO ESTÁ MUDANDO
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LIBERDADE DE IMPRENSA NÃO PRECISA DE LEI
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Direitos e Garantias Fundamentais: Direito à Vida, à Propriedade e ao Trabalho
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A MISSÃO CRIADORA DA JURISPRUDÊNCIA – A Revolução Copérnica da Súmula de Efeito Vinculante
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A racionalidade do sistema penal
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PGE-RJ na vanguarda do debate jurídico do país
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O desafio do biênio
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os Novos ministros do STJ
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EDITORIAL
A MORALIDADE PÚBLICA
O
país vive hoje, na questão da moralidade pública, um dos momentos mais cruciais, devido à falta comprovada de compostura e credibilidade – para não dizer da desonestidade que ocorre em profusão em vários setores da administração pública – notadamente no Poder Executivo, assim como nos Legislativos federal, estaduais e municipais. Os escândalos que comumente espocam nestes órgãos são de fazer corar um frade de pedra. Há exemplos de corrupção no abuso escancarado do uso do poder econômico pelos detentores de cargos públicos, atingindo ministros de Estado, governadores, prefeitos, senadores, deputados, vereadores e com ramificações nas camadas mais insignificantes do funcioFoto: Arquivo Pessoal
“De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto.”
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Rui Barbosa
nalismo público, que se locupletam dos dinheiros do erário com o maior despudor já visto na história republicana. Hoje, os homens de bem, na sua maioria, fogem da política em razão da pecha desmoralizante que atinge a generalidade dos políticos. O dito por Rui Barbosa está presente nestes momentos desditosos da vida brasileira, quando a sua prédica é lembrada, infelizmente, com profunda tristeza. Entretanto, enquanto a questão da contundente imoralidade vem à tona, como se constata quase que diariamente pelas nauseabundas notícias nos jornais e na televisão, felizmente estão surgindo movimentos cívicos em vários setores da sociedade, que redundam em fundadas esperanças de que nem tudo está perdido. São louváveis as iniciativas das conceituadas entidades OAB – Ordem dos Advogados do Brasil, ABI – Associação Brasileira de Imprensa, AMB – Associação dos Magistrados Brasileiros, AJUFE – Associação dos Juizes Federais do Brasil, ANADEP – Associação Nacional dos Defensores Públicos, CONAMP – Associação Nacional dos Membros do Ministério Público e a CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, de se congregarem no sentido de conseguir, em subscrição pública, a coleta de UM MILHÃO E TREZENTAS MIL ASSINATURAS para ingressarem com emenda popular perante o Congresso Nacional, a fim de conseguir aprovação de leis moralizadoras entre outras, como a de regulamentar a lei eleitoral com objetivo de expurgar da vida pública políticos desclassificados. Outra extraordinária iniciativa foi promovida pelo Instituto Innovare com o lançamento da quinta edição do PRÊMIO INNOVARE, sob o tema “JUSTIÇA PARA TODOS: Democratização do Acesso à Justiça e Meios Alternativos para Resolução de Conflitos” – com o objetivo de identificar, premiar e divulgar práticas do Poder Judiciário, do Ministério Público, da Defensoria Pública e da Advocacia que estejam contribuindo para a melhoria da eficiência e eficácia da prestação jurisdicional aos cidadãos. São fatos como estes que fazem recrudescer a esperança de que a dignidade prevalecerá contra a imoralidade.
Orpheu Santos Salles Editor
Foto: Arquivo Pessoal
Um vício incorrigível Ives Gandra Martins Professor Emérito das Universidades Mackenzie, UNIFMU, UNIFIEO, UNIP e CIEE Membro do Conselho Editorial
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projeto de criação de uma nova CPMF por lei complementar esbarra, a meu ver, em barreiras jurídicas, que me parecem intransponíveis. Pretende, o governo, no projeto enviado, instituir uma contribuição nova à luz do § 4º do art. 195, assim redigido: “§ 4º - A lei poderá instituir outras fontes destinadas a garantir a manutenção ou expansão da seguridade social, obedecido o disposto no art. 154, I”. Remete o dispositivo para o artigo 154, inciso I, cuja dicção é a seguinte: “Art. 154. A União poderá instituir: I mediante lei complementar, impostos não previstos no artigo anterior, desde que sejam não-cumulativos e não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos discriminados nesta Constituição”. Por outro lado, ao considerar constitucional a Lei Complementar nº 84, que conformou a contribuição para autônomos, o STF declarou, no RE 228.321-0 do Rio Grande do Sul, que a contribuição poderia ter base de cálculo e fato gerador idênticos a de impostos. Nesse julgado, não se cuidou da “não-cumulatividade”. Embora para mim as “outras fontes” a que se refere o § 4º só possam ser “impostos vinculados” – pois o próprio artigo 195 declara que a seguridade seria financiada “pelas seguintes contribuições”, e as elenca todas, razão pela qual as outras fontes só poderiam ser impostos, e não contribuições, daí decorrendo a referência ao art. 154, inciso I –, não insistirei nessa exegese. Ficarei com a inteligência do STF. A referida decisão não cuidou, todavia, do princípio da
“não-cumulatividade”. Este independe da natureza do tributo. É obrigatório para determinados impostos (IPI e ICMS) e facultativo para outros tributos, lembrando-se que o PIS e a Cofins são também não-cumulativos. Ora, para o exercício de sua competência residual na criação de novos tributos, impostos ou contribuições, o artigo 154, inciso I, impôs à União observar a “não-cumulatividade” e utilizar a “lei complementar”, razão pela qual a referida decisão é imprestável para o caso da CSS, pois o tema da “cumulatividade” nela não foi tratado. Outro aspecto relevante é que remanescem, apenas, dois ministros dos que proferiram aquele acórdão, tendo um deles (Min. Marco Aurélio) considerado a lei inconstitucional e o outro (José Celso de Mello) não comparecido à sessão. Vale dizer, não há, no momento, nenhum ministro comprometido com a decisão então proferida a favor da constitucionalidade da criação de um novo tributo cumulativo, e pelo menos um deles comprometido está com a sua inconstitucionalidade. Creio, portanto, que, fatalmente, se aprovada esta acintosa contribuição – o adjetivo é da “Folha de S. Paulo”, em editorial –, a oposição recorrerá ao Pretório Excelso, tendo eu a esperança de que a Corte declarará inconstitucional a nova imposição – que desatende o art. 154, I, da CF – criada por um governo que não cansa de bater recordes de arrecadação e que, como dependente químico de tributos, precisa cada vez de mais impostos e contribuições para saciar seu vício incorrigível. 2008 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 5
Pela moralização das eleições
Da Redação
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m ano de eleições municipais, os passos dos candidatos aos cargos de vereador e prefeito não são os únicos a ganhar destaque. Chama a atenção também o papel desempenhado pela Justiça Eleitoral, que atualmente se vê diante de um impasse quando o assunto tratado são os requisitos a serem exigidos daqueles que pretendem concorrer ao pleito. O presidente do Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro (TRE-RJ), desembargador Roberto Wider, defende a análise minuciosa da vida pregressa do concorrente. E é categórico: quem não ostentar moralidade não pode se candidatar. Aos poucos, os argumentos defendidos por Roberto Wider começam a ganhar fôlego. Por diferença de apenas um voto, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) manteve, ao responder uma consulta no início do mês, o entendimento em vigor de que somente uma condenação transitada em julgado poderia impedir um cidadão de lançar a candidatura. “Esse aspecto é muito importante de se considerar, pois essa interpretação poderá ser alterada. Primeiro pela modificação na composição da Corte. Segundo porque três ministros, inclusive dois do Supremo Tribunal Federal, entenderam que nossa tese está correta e é defensável”, afirmou o desembargador, que vislumbra novos tempos. Nesse sentido, é com entusiasmo que Roberto Wider encara a decisão do presidente do TSE, ministro Carlos Ayres Britto, de tornar pública a ficha dos candidatos. A medida aumentará a responsabilidade do eleitor. Entretanto, é preciso ser feito algo mais. Em entrevista concedida à Revista Justiça & Cidadania, o desembargador cobra uma participação mais contundente dos partidos para elevar o nível dos políticos. Roberto Wider ressalta também a importância da reforma
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política, principalmente de institutos como a reeleição e o financiamento das campanhas. Ele explica a atuação do TRERJ em relação aos casos de infidelidade partidária. E fala o que pensa acerca da Proposta de Emenda Constitucional 333/04, que amplia o número de vereadores em 24 diferentes faixas, segundo o tamanho da população. O texto foi aprovado pela Câmara e agora tramita no Senado. O mais importante, porém, é a promessa de que a Corte eleitoral fluminense continuará à caça dos maus candidatos. “Ao debater essa questão, não houve nenhuma divergência quanto a se exigir, daqueles que querem ser candidatos, esse requisito de moralidade para exercício de mandato eletivo. Não houve um juiz que dissesse ‘eu penso que não’”, disse Roberto Wider. Justiça & Cidadania – O presidente do TSE, Carlos Ayres Britto, defendeu, recentemente, a divulgação dos candidatos com ficha suja, apesar da posição firmada pelos ministros daquela Corte, por quatro votos a três, de permitir que essas pessoas concorram. Como o senhor avalia essa postura? Roberto Wider – Avalio com muito entusiasmo. Acho que essa é a solução. E essa solução tem o condão de trazer à responsabilidade, nessas questões, toda a imprensa. No momento em que ela divulga, o eleitor passa a saber. O eleitor tem responsabilidade ao votar naquelas pessoas que não ostentam a condição de moralidade para o exercício eletivo. Mas, para pôr a questão de maneira clara… em primeiro lugar o TSE não decidiu, dentro daquela interpretação antiga, que só as pessoas com sentença criminal transitada em julgada estariam obstadas de se candidatar. O TSE respondeu a uma consulta.
Foto: Luis Henrique
Essa resposta não vincula os tribunais inferiores nem os juízes de primeiro grau. O ministro presidente, inclusive, afirmou isso. Em segundo lugar, o que Ayres Britto colocou não foi que os TREs iriam fazer a divulgação, mas que o próprio TSE o faria. Isso é muito importante, porque envolve todo o Brasil. Trata-se de estender uma campanha que se iniciou no Rio de Janeiro para todo o País. JC – Essa postura do TSE não indica qual seria o posicionamento da Corte ao analisar o caso concreto? RW – Em tese, poderia. Entretanto, temos aspectos a analisar. Em primeiro lugar, uma consulta não se vincula a um fato concreto. Ou seja, os ministros não estão sendo chamados a julgar um caso de uma pessoa com vida pregressa cheia de anotações, que causam reação muito grande que a impeçam de se candidatar. Esse aspecto é muito importante de se considerar, pois essa interpretação poderá ser alterada. Primeiro pela modificação na composição da Corte. Segundo porque três ministros, inclusive dois do Supremo Tribunal Federal, entenderam que nossa tese está correta e é defensável. Considero esse ponto importante, pois nos traz um alento enorme. Se tivesse sido por sete votos a zero, poderíamos nos sentir enfraquecidos. Mas não. Houve uma disputa, e o placar foi quatro a três. Três ministros entenderam que a posição do Rio tem fundamento. Prosseguiremos com nossa luta por essas razões. Até porque não estamos vinculados à decisão do TSE. Nós juízes somos independentes. Temos nossa consciência e podemos julgar como entendemos melhor. O TSE poderá modificar ou não nossa decisão. Isso, inclusive, aconteceu em 2006. Exatamente por quatro votos a três, foram modificadas as decisões do Rio de Janeiro que afastaram diversos políticos cuja vida pregressa não recomendava a candidatura. E o que aconteceu? O eleitor tomou conhecimento e rejeitou todo mundo. Ninguém foi eleito. Então, se o ministro presidente, dentro dessa linha moralizadora, entender que deve se publicar a vida pregressa de todos os candidatos, desde logo acena que o eleitor será o maior responsável nessa luta. Ele verá que o candidato x cometeu isso, aquilo e aquilo outro… enfim, coisas sérias. Isso, aliás, é algo que tenho enfatizado. Não estamos falando de qualquer infração: de trânsito, de um crime culposo (sem intenção), de conflitos de família ou envolvendo relação de consumo. Estamos falando de coisas sérias, que realmente impeçam a pessoa de se candidatar. JC – Como se dará essa divulgação na prática? RW – No momento em que os partidos escolhem seus pretensos candidatos, eles os oferecem à Justiça
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“Não estamos falando, aqui, do direito fundamental decorrente do princípio constitucional da presunção de inocência. Isso é uma coisa que cada cidadão tem na área criminal. Na hora que esse cidadão sai dessa esfera para ser um político, um representante da sociedade, não é o direito dele o que mais importa.” Eleitoral. Ao fazerem isso, eles têm que instruir o pedido com as folhas corridas dos candidatos, ou seja, com as certidões referentes a todas as áreas da vida civil e criminal dessas pessoas. No momento em que eles municiarem o pedido com essas informações, a imprensa terá acesso. Isso quer dizer que a imprensa poderá acompanhar. Agora, vamos apreciar caso a caso. Como sempre digo, não existe pré-julgamento. Caso a caso, vamos examinar se aquela pessoa tem ou não condições de atender o requisito de moralidade para exercício de um mandato eletivo. JC – Tendo em vista a polêmica em torno da candidatura de pessoas com ficha suja, o senhor acha que não seria necessária uma regulamentação por meio de lei específica? RW – Acho que seria muito difícil estabelecer quais seriam os casos (para alguém não poder se candidatar) em uma lei. A norma pode até aproximar o número de hipóteses. Pode estabelecer, por exemplo, casos que envolvam crimes hediondos ou contra o patrimônio público. Pode, então, aproximar, mas dificilmente exaurir todas as situações. De qualquer forma, seria muito mais fácil. O que tenho dito sempre, e enfatizo muito, que triste é o país que precisa de lei para dizer que o princípio da moralidade tem vigência. Ou seja, se não há lei, ninguém precisa resguardar a moralidade. Não aceito esse contra-senso. Nesse aspecto é que entramos na área da comparação. Todas as pessoas que querem ingressar no serviço público, sem exceção, têm que demonstrar uma ficha limpa. Só os políticos, então, é que não precisam? Por quê? É um contra-senso. A Constituição estabelece que o princípio da moralidade deve ser exigido em todas as atividades públicas. É o artigo 37 que diz isso. Então, não precisamos de uma lei para dizer que o princípio da moralidade será exigido. Podemos estabelecer alguns critérios objetivos no sentido de balizar, ou seja, criar parâmetros de razoabilidade. 8 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JUNHO 2008
JC – Quais seriam esses critérios? RW – Acho que uma pessoa que responde por homicídio não deveria concorrer. Por homicídio culposo poderia... Às vezes, sem querer, dentro de uma fatalidade, ela atropelou alguém. Mas por homicídio doloso, não. Enquanto estiver respondendo a isso, não pode concorrer a cargo de vereador, prefeito ou deputado. JC – As ações de improbidade também poderiam ser outro critério? RW – Depende. Às vezes existem ações de improbidade, que são esgrimidas entre diversas partes, apenas para tentar derrubar e causar prejuízo a outro. Vamos ter que examinar o conteúdo dessas ações de improbidade para ver se são sérias e relevantes. Sempre vamos trabalhar com coisas sérias. Mas o que são coisas sérias? O bom senso vai dizer. O juiz, que tem experiência e formação, poderá fazer a análise, caso a caso, do que seria sério e importante. E fundamentar. Todas as decisões serão muito bem fundamentadas. Elas dirão por que é conveniente que determinado cidadão não seja candidato, por que aquilo que está sendo imputado a ele não milita em prol da moralidade que se exige para o exercício de um cargo eletivo. Não estamos falando, aqui, do direito fundamental decorrente do princípio constitucional da presunção de inocência. Isso é uma coisa que cada cidadão tem na área criminal. Na hora que esse cidadão sai dessa esfera para ser um político, um representante da sociedade, não é o direito dele o que mais importa. É importante também o direito dos eleitores de terem como representantes pessoas direitas, que não têm nada que pesem contra elas. Essa equação não está entrando na cabeça das pessoas, mas está começando. JC – Qual é a responsabilidade dos partidos nesse processo de escolha? RW – Nesse momento, a responsabilidade é total. Eles fazem as convenções partidárias onde debatem quem será candidato. Nesse momento, que vai até o final de junho, a responsabilidade é só dos partidos. Eles poderão não ter nenhum problema, nenhuma ação na Justiça Eleitoral, se escolherem pessoas que não tenham essa vida pregressa. Agora, se não assumirem a parte da responsabilidade que têm e começarem a querer nomes cuja vida pregressa não ostente condição, a Justiça Eleitoral vai entrar. E se ainda assim houver necessidade de correção, entra o eleitor, que vai tomar a decisão. JC – Nesse contexto, que importância tem a reforma política? RW – Não conheço todos os termos da reforma, mas existem alguns aspectos que considero relevantes, na minha avaliação pessoal. A questão da reeleição é uma delas. Acho que a reeleição não trouxe qualquer benefício para nosso sistema político. Acho que ela deveria ser extinta. Talvez devêssemos aumentar em um ou dois anos o mandato do dirigente do Executivo para que não houvesse mais a reeleição. É que, em um momento, a reeleição começa a tangenciar uma área muito delicada entre quem é governante e quem é candidato. Mistura
essas duas coisas. Quem sai prejudicada com isso sempre é a sociedade. Então, acho que a reeleição não resultou em bons frutos. A meu ver é algo que poderia ser modificado. JC – Qual é a sua opinião em relação ao financiamento das campanhas? RW – É algo no qual tenho falado muito e que acho que precisava ser revisto. Merecemos a oportunidade de experimentar o financiamento público e não mais o financiamento privado. Assim veremos se a gente consegue evitar desequilíbrios e irregularidades, como fraudes e caixa dois. Acredito que o financiamento público poderia corrigir isso. E por aí seguimos. Em função da campanha que deflagramos no TRE-RJ, Brasília está se movimentando para modificar ou criar uma legislação que atenda esse requisito da vida pregressa. Eles dizem que uma lei complementar estabelecerá os novos casos de inelegibilidade justamente para observar os princípios de probidade e da moralidade para exercício de mandato. Isso desde 1994. Já faz 14 anos sem que algo realmente tenha sido feito. Agora, de repente, começaram a fazer. Que bom. Pode ser que eles estabeleçam critérios razoáveis e mais adequados, pelo menos para afastar quem realmente não tem condições. JC – O senhor também não acha que a questão do foro privilegiado deveria ser abordada na reforma política? RW – Acho fundamental que o foro privilegiado seja afastado. Esse instituto foi desviado de sua função. O foro foi estabelecido, desde os primórdios da República e com base nos princípios democráticos ingleses, para que os políticos tivessem protegido o direito à opinião. Ele não poderia ser perseguido ou prejudicado pelas opiniões que emitisse, pela defesa que fizesse dos princípios que considerasse correto. Essa finalidade, entretanto, sofreu desvio. O foro privilegiado passou, então, a proteger o político até de crime de homicídio. JC – Mas há quem defenda a manutenção do foro para presidente da República e ministros de Estado, por exemplo. RW – Acho que há de se proteger as autoridades maiores da República, para que não sejam submetidas, amanhã, a perseguições por qualquer tipo de pessoa. Mas, ainda dentro dessa linha, me parece que, não sei… O foro é uma criação, dentro de um sistema democrático, para proteger o direito à opinião, não para proteger o pseudodireito de se cometer crime. JC – Qual é a sua opinião quanto à fidelidade partidária? RW – Temos a posição do Supremo Tribunal Federal, que vem dentro de uma linha da qual depende ainda de uma educação do povo brasileiro e dos partidos. O partido tem uma ideologia, e o mandato que o eleitor dá a ele tem que ser respeitado. Vamos chegar à conclusão de que os mandatos daquelas pessoas eleitas dentro de determinada linha partidária têm que respeitar essa linha partidária. As pessoas não podem usar o partido como trampolim, em benefício próprio. Acho que essa idéia, em resumo, de que o mandato pertence ao partido, como entendeu
o Supremo, é muito saudável. Melhora o padrão político. Dentro desse trabalho que estamos realizando... Se me perguntarem qual é o meu objetivo na direção do TRE e dos juízes eleitorais do Rio de Janeiro ao deflagrarem essa campanha... É justamente esse: o de melhorar o padrão político do nosso Estado. JC – Como está a fiscalização pelo TRE-RJ quanto aos casos envolvendo a questão da fidelidade partidária? RW – Tem havido muitas ações. E estamos julgando. Elas ocorrem porque são muitos os casos. As negociações [para mudar de partido] eram um hábito comum. Isso, sem qualquer respeito pelo eleitor que elegeu aquele candidato. No nosso sistema é o partido que propõe ao eleitor as metas e os objetivos do que consideram sendo como o melhor. Por isso, o candidato tem que respeitar a ideologia do partido a que pertence. JC – Como o senhor analisa a aprovação, recentemente, do projeto que aumenta o número de vereadores? RW – Minha avaliação não é positiva. Acho que o TSE e o Supremo Tribunal Federal se posicionaram sobre isso no sentido de que não há necessidade de um número tão elevado de representantes a nível municipal quanto se pretende. Temos que fazer uma equação do número de habitantes para verificar se realmente se faz necessário aquele número. Pela experiência do dia-a-dia, você não constata que haja menos serviço prestado à comunidade porque há menos vereadores. Pelo contrário. JC – Que mudanças o senhor defenderia na lei da inelegibilidade? RW – A mudança que proporia vem justamente na linha do trabalho que estamos realizando e da nossa campanha para que, além das questões objetivas de inelegibilidade, houvesse também as questões de elegibilidade para que pudéssemos examinar melhor se as pessoas ostentam ou não condições para se candidatar. E quais seriam essas condições? Isso está na Constituição. A lei complementar estabeleceria apenas os casos de inelegibilidade para observar a proteção da probidade administrativa. Para observar que aqueles que querem ser candidatos devem ostentar condição de moralidade para exercício de mandato. Para que esses aspectos, que são exigidos de todos os cidadãos brasileiros que querem ingressar no serviço público ou em empresas privadas, sejam exigidos para os senhores políticos da mesma maneira. JC – Os juízes do Rio vão trabalhar nesse sentido? RW – Conversei com eles e debatemos o assunto. Todo juiz é independente. Os juízes julgam com a consciência deles e de acordo com aquilo que eles acham certo ou errado. Mas perguntei se alguém considerava errada essa posição e todos concordaram que a posição estava correta. Não houve um juiz que dissesse ‘eu penso que não’. Enfatizo esse ponto porque respeito a opinião do magistrado. Entretanto, no debate da questão, não houve nenhuma divergência quanto a se exigir, daqueles que querem ser candidatos, esse requisito de moralidade para exercício de mandato eletivo. 2008 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 9
Foto: www.panoramio.com/ André Bonacin
1964 - O CAMPUS UNIVERSITÁRIO DO DOPS-SÃO PAULO Orpheu Santos Salles Editor
A
o ser recolhido ao xadrez do DOPS, na madrugada do dia 1º de abril de 1964, jamais poderia imaginar que estava entrando num local que, logo após alguns dias, se transformaria em “campus univer-
sitário”. Nos dias seguintes, as portas dos xadrezes do DOPS se abriram para recolher, indistintamente, presos de várias categorias. Os primeiros a chegar foram os líderes dirigentes de vários sindicatos de trabalhadores e funcionários públicos, seguidos de estudantes, professores, jornalistas e outros. Presos, foram recolhidos aos xadrezes o delegado do Ministério do Trabalho, Léo Munari, o escritor Paulo Guilherme Martins, marido da deputada Ivete Vargas, os deputados estaduais Taibo Cadorniga e Wilson Rahal, o presidente do Centro Acadêmico “XI de Agosto”, João Miguel, o poeta Jamil Almansur Haddad, o jornalista Nelson Gato, do “Diário da Noite” – que vim a encontrar novamente no navio-presídio Raul Soares, onde escreveu “O Navio Presídio”, cujo prefácio é de minha autoria –, os sindicalistas Afonso Delellis e Araújo Plácido, presidente e vice do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, o médico João Belline Burza, que havia recém-chegado da Rússia, onde dirigiu o Instituto Científico Pavlov, o jurista, escri10 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JUNHO 2008
“Vocês, apesar de estarem encarcerados aqui no DOPS, curtindo as agruras da política, longe das famílias e das responsabilidades pessoais, no entanto, apesar dos pesares, conseguem manter a mente livre a ponto de transformarem este xadrez numa escola, ou melhor, numa mini-universidade e ainda com aulas de renomados catedráticos. Isto é ter opinião, caráter e coragem. Parabéns!”
tor e professor da Faculdade de Direito de São Paulo, Caio Prado Junior, o físico e professor da Faculdade de Filosofia, Mario Schenberg, o capitão de Exército Eduardo Chuahy, ajudante de ordens do Gabinete Militar da Presidência da República, e mais centenas de presos que acabaram lotando a grande prisão do DOPS. O professor Caio Prado Junior, logo após se acomodar no xadrez, perguntou-me quem era o chefe do coletivo e o juiz da cadeia, e, ante a minha ignorância, passou a dar instruções e informações, as quais procuro reproduzir: “Vocês, se ainda não imaginaram ou refletiram, devem se conscientizar que os militares que assumiram o governo logo implantarão uma ditadura, cujo prazo já iniciou e será duradouro, e cujo término é incerto. A minha experiência e a reflexão que faço, pelos fatos políticos antecedentes desde o golpe que prepararam contra o presidente Getúlio Vargas, leva-nos a conjecturar que a nossa permanência neste xadrez ou outra cadeia poderá se estender por um mês, um ano ou uma eternidade. Portanto, devemos nos preparar para enfrentar o que de pior poderá acontecer.” E continuou: “Assim, vamos nos organizar pondo ordem na casa: o preso mais antigo, como é do costume carcerário, é normalmente o juiz do xadrez e o encarregado do coletivo”. Surpreso com as palavras do professor, retruquei que ele deveria explicar o que competia ao juiz do xadrez e o que era o coletivo, pois a maioria dos que ali se encontravam eram prisioneiros jejunos e ignoravam o assunto. Com as explicações, eu acabei juiz do xadrez, incumbido de acertar com o chefe da carceragem a localização dos presos que chegavam para distribuí-los nos vários xadrezes, afim de que estudantes ficassem entre si, trabalhadores com trabalhadores e os intelectuais no xadrez que nos encontrávamos enquanto houvesse vaga, além de programar diariamente os responsáveis pelas diversas tarefas, a fim de manter o local em estado de limpeza e higiene. Quanto ao coletivo, que era o responsável e o caixa do dinheiro dos presos – que devia ser recolhido de todos que o tivessem e concordassem em cedê-lo para atender às despesas coletivas necessárias, de modo a não constranger os que se encontravam duros –, solicitei a dispensa, tendo sido escolhido para a tarefa o companheiro Taibo Cadorniga. Resolvida essa sugestão, o professor Caio Prado prosseguiu: “Nós não podemos ficar aqui inertes, trancafiados jogando conversa fora, portanto, vamos nos preparar e organizar um seminário de estudos, e cada um de nós vai ter oportunidade de ensinar aos companheiros o que aprendeu e sabe; destarte, o tempo não será totalmente perdido. Amanhã, depois do café, às nove horas, teremos a primeira aula que darei sobre processo penal, haverá debates e todos estarão melhor instruídos para enfrentar os interrogatórios que surgirem.” A iniciativa do professor Caio Prado, com suas empolgadas aulas e debates, teve continuidade nas dissertações filosóficas do professor Mario Schenberg, com os relatos do médico
“Nós não podemos ficar aqui inertes, trancafiados jogando conversa fora, portanto, vamos nos preparar e organizar um seminário de estudos, e cada um de nós vai ter oportunidade de ensinar aos companheiros o que aprendeu e sabe; destarte, o tempo não será totalmente perdido (...)”
Belline Burza sobre as experiências adquiridas na Rússia, no Instituto Pavlov, com os dizeres dos líderes sindicais Afonso Delellis e Araújo Plácido sobre as lutas do sindicato em busca de melhores salários para os seus companheiros metalúrgicos; o deputado Wilson Rahal discorreu sobre política; os escritores Jamil Almansur Haddad, Taibo Cadorniga, Paulo Guilherme Martins contaram suas histórias e declamaram seus poemas; o estudante João Miguel, falava da política estudantil na Faculdade de Direito, o jornalista Nelson Gato, relatava suas reportagens policiais e experiências na redação do “Diário da Noite”; eu, me reportando à vivência funcional no Ministério do Trabalho e no Palácio do Catete assessorando o presidente Getúlio Vargas, no Palácio do Planalto e em outras funções, assessorando o presidente João Goulart, política e funcionalmente, inclusive como dirigente do PTB, participando das campanhas eleitorais vitoriosas dos governadores Lucas Nogueira Garcez e Carvalho Pinto, além de Ademar de Barros, tanto quando concorreu para prefeito de São Paulo, como para governador. Os dias foram passando e o interesse dos companheiros pelas aulas e palestras foi absoluto, principalmente quanto aos debates que ocorriam. As dissertações proferidas pelos professores Caio Prado e Mario Schenberg, e do médico Belline Burza – especialmente sobre a teoria do reflexo condicionado na psicanálise – causaram tanto entusiasmo que até os carcereiros, funcionários e um delegado compareciam para ouvir as preleções dos professores, as vivências contadas por vários companheiros e, inclusive, os poemas declamados por Jamil, que provocavam palmas e aplausos. 2008 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 11
Em certa ocasião, esse delegado, que demonstrava não comungar com as diretrizes do governador Ademar de Barros, chegou a lamentar a situação dos presos e saiu-se com esta: “Vocês, apesar de estarem encarcerados aqui no DOPS, curtindo as agruras da política, longe das famílias e das responsabilidades pessoais, no entanto, apesar dos pesares, conseguem manter a mente livre a ponto de transformarem este xadrez numa escola, ou melhor, numa mini-universidade e ainda com aulas de renomados catedráticos. Isto é ter opinião, caráter e coragem. Parabéns!” E se foi. A minha permanência no xadrez do DOPS durou exatamente 59 dias, diante da intervenção do jornalista Edmundo Monteiro – então presidente da Cadeia dos Jornais e Rádios Associados, da TV Tupi, e também da Associação das Emissoras Brasileiras –, que solicitou a liberdade do jornalista e seu colega diretor da Rádio Marconi. A sua interferência resultou na minha libertação no dia 29 de maio e inclusive a volta ao ar das transmissões da Rádio, mas com a advertência do então Secretário da Segurança do Estado de São Paulo, general Aldévio Lemos, de minha proibição de irradiar noticiários e comentários, de, enfim, manter-me afastado de qualquer atividade jornalística, sob pena de voltar para o DOPS. Coagido e intimidado, não tive outra alternativa senão a de me submeter à recomendação policial, estranhando o fato de, durante o período em que estive preso no DOPS, não ter sido chamado para prestar qualquer depoimento ou conversar com qualquer autoridade, estadual ou federal. A passagem durante 2 meses pelo presídio no DOPS de São Paulo, naqueles primeiros dias do golpe militar, transcorreu – fora o cerceamento do grande bem da liberdade, o aviltante aprisionamento e apesar dos dissabores que constituiu a ocasião – pelo congraçamento humano, solidariedade, afeto espontâneo entre todos os presos, uma benesse de firmes e duradouras esperanças, aliadas aos ensinamentos mútuos e às extraordinárias aulas dos magníficos professores catedráticos, que naqueles tempos difíceis, reafirmando esperanças, transformaram o DOPS num campus universitário, e que hoje, relembrando o passado, paradoxalmente, deixou saudades. Acontecimentos seguintes Entretanto, passados alguns dias da libertação, comecei a receber intimações para prestar depoimentos: a primeira foi o IPM (Inquérito Policial Militar) dos Correios, tendo sido interpelado para explicar por que usara o telex da repartição em centenas de telegramas particulares à Presidência da República, ao Ministro do Trabalho, ao Ministro da Justiça e a inúmeras personalidades, sem nunca ter pago os respectivos custos. Respondi que havia usado os serviços em razão da assessoria que prestava ao presidente João Goulart, portanto em trabalhos decorrentes de serviços oficiais prestados, constatados nos termos das correspondências transmitidas, o que foi aceito pelo coronel encarregado do IPM, transcrito em depoimento e dispensado em seguida. 12 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JUNHO 2008
O segundo depoimento foi em IPM da Aeronáutica: fui ouvido sobre as visitas, reuniões e participações de sargentos em programas radiofônicos na Emissora, tendo o coronel encarregado me inquirido sobre as razões de a Rádio e eu pessoalmente termos apoiado as reivindicações dos sargentos, se eu tinha conhecimento da ideologia comunista dos que freqüentavam a Emissora, e, inclusive, se eu também era comunista. Em depoimento prestado perante o referido coronel, declarei que as visitas, reuniões e participações dos sargentos da Aeronáutica nos programas eram comuns como eram os programas dos sindicatos, associações e entidades comunitárias, pois a Emissora era popular, dava apoio e incentivava as justas reivindicações apresentadas, sendo que tudo o que a Rádio transmitia era, na minha opinião, postulado democraticamente dentro dos princípios republicanos e do Estado de Direito vigente no país. Quanto à minha ideologia, declarava ser trabalhista e ter sido, em 1945, um dos fundadores do PTB – Partido Trabalhista Brasileiro –, e ser declaradamente democrático, podendo afirmar não ser reacionário, também não comunista nem tão pouco fascista. O terceiro depoimento foi diferente, já demonstrando o que me seria reservado no futuro. Ao anoitecer de um dos primeiros dias de julho, recebi um telefonema, voz de mulher, pedindo que fosse à porta do prédio receber uma correspondência de pessoa amiga – o que atendi pensando tratar-se de carta de algum companheiro preso no DOPS –, porém, ao chegar à portaria, fui surpreendentemente agarrado por dois corpulentos indivíduos e jogado como se fosse um saco de batatas no fundo de um camburão, postado na frente do prédio e que reparei não possuir nenhuma identificação. Fechada a porta do camburão, no negrume do recinto, confesso que tive medo e pensei: “Aonde me levarão?” Nesse tempo, após a prisão do DOPS, as notícias de torturas e mortes já eram anunciadas em várias regiões do país, no Rio de Janeiro, na polícia do Carlos Lacerda, e no nordeste, principalmente em Recife, onde o general Justino Alves Bastos comandava a barbárie, como a cometida ao velho deputado Gregório Bezerra. O camburão rodou cerca de 10 minutos, desde a porta da Rádio, e parou. Ouvi o ruído de um portão se abrindo, o carro entrando, parando, o portão fechando e o porta-malas se abrindo. Na claridade, constatei estar no Quartel General e pensei: “Aqui, apesar da brutalidade da prisão e de ter sido jogado no camburão, não pode ser tão ruim. Mesmo que o general Kruel, após ter se bandeado para o golpe, tenha sabido dos meus comentários na Rádio, me conhece, sabe que eu não sou comunista e que a minha reação e o meu posicionamento foram por lealdade ao presidente Jango.” Fiquei, portanto, um pouco mais tranqüilo e confiante. Desci do camburão e fui levado a uma sala logo na entrada do prédio. À minha espera estava um civil que se declarou escrivão do IPM. O inquérito era presidido pelo coronel Mendonça Lima, que, portando um rebenque que
batia constantemente na bota, foi logo dizendo: “Aqui você vai falar e confessar tudo, tenho informações de todas as suas andanças”. Fixou-se bem nos meus olhos, continuou golpeando com o rebenque e disse: “Eu sei que você é o chefe.” No momento lembrei dos ensinamentos do professor Caio Prado Junior: “Não discuta no interrogatório, seja calmo, firme no que responder e fale com convicção.” Ponderei: “Bem, coronel, não sei a que o senhor se refere, mas chefe, hoje, só sou da minha casa e da minha família. Portanto, peço que o senhor explique.” Com as minhas palavras, apesar de ditas com calma, ele se irritou, batendo o rebenque na bota com mais força, dizendo: “Não se faça de besta; eu sei que você é o chefe do Grupo dos Onze em São Paulo”, ao que respondi: “Coronel, o senhor está muito mal informado. Eu estou consciente da situação política atual e não tenho nenhuma vinculação com o tal grupo. Eu fui e sou leal ao presidente João Goulart, que orientou seus companheiros para que não se portassem em nenhum movimento de contestação, além de ele ser frontalmente contra essas baboseiras do Leonel Brizola – e eu, pessoalmente, também não cruzava bem com ele –, portanto, coronel, estou completamente fora dessa estrepolia do Brizola. Para provar, o senhor contate o seu colega, coronel encarregado do IPM dos Correios, onde prestei depoimento, e pergunte a ele sobre o teor dos telex a respeito dos movimentos que o Brizola fazia. Pelo teor dos telex se constatará a minha impossibilidade de pertencer ao Grupo dos Onze.” Eu nem tinha terminado de falar e entrou na sala o general Kruel. Cumprimentou o Coronel e, tendo me visto, perguntou ao encarregado o que eu fazia ali, tendo este respondido: “Estou ouvindo-o em virtude de informações recebidas sobre ele ser o chefe do Grupo dos Onze, e ele está negando o fato comprovado nas informações”, ao que o General retrucou: “Ele está falando a verdade; ele é afeiçoado ao Jango e ao que sei não se relacionava bem com o Brizola”, nada mais disse e retirou-se. O Coronel, meio desapontado com as palavras do General, voltou-se para mim e disse: “Bem, parece que eu entrei num erro com as informações que recebi para a instalação deste IPM, que acusa você e muitas outras pessoas. Assim, diante da palavra do comandante, a coisa muda de figura. Você me desculpe e como eu não jantei, vou pedir uma pizza com guaraná e convido você a fazer uma boca comigo e esquecer o transtorno”. E esse IPM para mim, apesar da brutalidade da prisão, felizmente, terminou em pizza com guaraná e eu como comensal. Poucos dias depois do terceiro depoimento, fui novamente intimado para prestar declarações em um Inquérito Policial Militar instaurado na Capitania dos Portos, na cidade de Santos. Estranhei a intimação para depor na Capitania em Santos, pois desde 1955 não havia retornado àquela cidade, tendo, entretanto, notícias de que vários companheiros
e conhecidos haviam também sido intimados e, ao se apresentarem, foram presos e encarcerados no navio Raul Soares, que se encontrava ancorado no estuário. Sabendo da determinação do comando geral das investigações que as prisões não poderiam ultrapassar 60 dias, decidi atender à intimação, me apresentando na sede da Capitania dos Portos munido de algumas roupas, objetos de limpeza e alguns livros. Da sede da Capitania, fui encaminhado ao porto, embarcado numa lancha da Marinha e levado ao navio. Na travessia, antes de chegar ao navio, senti angústia vendo aquele casco todo negro, no qual deveria passar 2 meses trancafiado sem saber as condições, o que me aconteceria e como seria tratado. As perspectivas que se apresentavam diante daquele barco negro e de aspecto sinistro trouxeram angústia e algum medo do desconhecido, levando-me a sentir arrependimento em ter atendido à intimação. As desgraças as quais assisti, as humilhações e sofrimentos pelos quais passei naquele infecto e negro navio constituíram, na minha vida, a marca mais dolorosa da existência, pelo aviltamento que semelhantes fazem a pessoa humana. A mal fadada história do navio Raul Soares, que se transformou em pestilento e horroroso presídio, será relatada em edições seguintes. 2008 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 13
TEMPOS DE SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA
Sidnei Agostinho Beneti Ministro do STJ
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m dia, o ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, Diretor-Presidente da Escola Nacional da Magistratura (ENM) convocou-me, como Diretor de Assuntos Internacionais, para ir à sua casa em Brasília. Um bom vinho, almoçamos, conversamos sobre a Escola, contamos casos, rindo, falando da vida. Sálvio me disse que havia decidido deixar a direção da Escola, indicando-me para o cargo. Datilografei a carta, que ele ditou, ao Presidente da AMB. Tirei-lhe a fotografia assinando. Depois lhe dei a foto em um quadro emoldurado, que manteve em seu gabinete no Tribunal. Uma bela foto, em que lá está ele, fazendo pose de assinar para a posteridade, com uma cara boa que estampa o bom coração, e um sorriso de viver o momento. Uma foto cheia de bom sentimento, como sempre. A emoção foi intensa. Quanto custava a Sálvio deixar a Escola tão querida, embora soubesse o momento de fazêlo, após quase uma década. Fora nomeado e renomeado pelos presidentes da AMB que se sucederam. Indicou-me a Viana Santos, que me nomeou, e ao fim de cujo mandato declinei de continuar, sucedido pela competência de Antonio Guilherme Tanger Jardim. Tremi em assumir a “Escola do Sálvio” e voltei para São Paulo de coração contrito. Suceder ao ministro Sálvio de Figueiredo, por ele indicado. Que coisa imensa a amizade me punha às costas. Soube da existência de Sálvio antes de ele ser Ministro do STJ. Conhecia-o de nome jurídico de grande processualista, 14 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JUNHO 2008
professor de Direito Processual Civil de Minas Gerais, integrante daquele maravilhoso grupo de processualistas do triângulo mineiro, que se reunia em Uberaba ou Uberlândia, com advogados, professores e juízes de lá, estando entre estes os então juízes Humberto Theodoro Júnior e Ernane Fidelis dos Santos. Uma confraternização em escritório de estudos e dá-lhe “papo”, provavelmente todos concordando que o queijo de Minas era obra divina e que a pinguinha de Salinas, terra natal de Sálvio, era a melhor do mundo e, por que não dizer, do Universo! Lembro-me de quando o vi em pessoa pela primeira vez. Não em aula, nem no Tribunal, nem em mesa de estudos. Mas dançando alegre com a esposa, Simone, em algum congresso. Um “pé-de-valsa”. Prosaico. Lembrou-me Mário de Andrade, no célebre “O Poeta Come Amendoim”, que está lá no “Clan do Jaboti”. Ali, o jurista e ministro dançante de não cansar! Já tinha cabelos grisalhos, mas com abundância que veio a desertar-lhe depois. Comecei a trabalhar com Sálvio na Comissão de Reforma dos Códigos de Processo, nomeada pelo Ministro da Justiça da época, Jarbas Passarinho. Que honra para mim, que lecionava Direito Processual Civil, mas trabalhava no criminal. E que comissão! Lembro alguns nomes. No cível, os ministros Sálvio de Figueiredo Teixeira e Athos Gusmão Carneiro, a então desembargadora Fátima Nancy Andrighi, secretária, o advogado José de Castro Bigi, os professores José Manoel de Arruda Alvim Netto, Donaldo Armelin,
Foto: STJ
Sérgio Sahione Fadel, Celso Agrícola Barbi, Ruy Rosado de Aguiar, Kazuo Watanabe, João Otávio Noronha. No criminal, os ministros Luiz Vicente Cernicchiaro e Luiz Carlos Fontes de Alencar, os professores e advogados Rogério Lauria Tucci e Nabor Arêas Bulhões, e o então juiz Luiz Flávio Gomes. Em ambas as comissões, Ada Pellegrini Grinover. Em momentos de esplendor, surgiram José Carlos Barbosa Moreira e José Joaquim Calmon de Passos. Vieram Sergio Bermudes, Cândido Rangel Dinamarco, Ovídio Baptista da Silva, Macedo Malta. Apareceu Petrônio Calmon Filho. Por certo omito, imperdoavelmente, embora aos quais peço desculpas, mas não posso deixar de dizer os nomes que me vêm agora à memória. E Adroaldo Furtado Fabrício, Antonio Janyr Dall´Agnol Jr., Teori Albino Zavascki, José Eduardo Carreira Alvim, Ernane Fidelis dos Santos. Integraram-se às reuniões numerosos ministros do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal. E tantos mais que se acresceram, participaram no todo ou em parte, vieram e ficaram ou não puderam prosseguir por não conseguirem desabsorver-se da carga enorme de trabalho que todos tinham. A tônica de Sálvio, que sempre repetia, era “somar sempre”, sem formalidade de entrar ou sair. Quem soubesse, tivesse boa vontade, idéias novas e aparecesse era bem-vindo e participava. Dessa Comissão Ministério da Justiça – Escola Nacional, surgiram as leis da primeira fase da reforma processual civil e os inícios de projetos de reforma do Código de Processo Penal. Logo somou-se e depois encampou os trabalhos, o prestigioso peso do Instituto Brasileiro de Direito Processual. Que tempo profícuo aquele de trabalho na Escola sob a presidência de Sálvio de Figueiredo Teixeira! A Escola nunca teve orçamento. Não tinha verbas da AMB; era ponto de honra não a onerar. Os trabalhos eram feitos em parceria com instituições, que davam suporte financeiro. A primeira parceria duradoura de que me lembro foi com o Instituto dos Advogados de São Paulo e o Instituto de Ciências Bancárias, organizada por Geraldo Facó Vidigal, com o apoio da Febraban. Vários seminários foram realizados nessa parceria. Publicaram-se livros produzidos em cada um. Sálvio fazia sempre questão de que se publicassem livros para perenizar, divulgar e democratizar conhecimentos. Seguiram-se vários seminários organizados pelas Escolas da Magistratura. Criaram-se as Reuniões Semestrais de Diretores de Escolas da Magistratura, para “trocar figurinhas”, boas ou ruins, não importava, as ruins até mais relevantes que as boas, porque eram más experiências a não repetir. O que se fazia no movimento nacional de Escolas da Magistratura passava por lá. Sugeri um lema, que havia lido em escrito do National Center for State Courts, publicado pelo Justice System Journal: “Centro disseminador de experiências bem-sucedidas”. Quantos cursos inesquecíveis abriram horizontes, fizeram circular idéias, deram ânimo de
“E tantos mais que se acresceram, participaram no todo ou em parte, vieram e ficaram ou não puderam prosseguir por não conseguirem desabsorver-se da carga enorme de trabalho que todos tinham.”
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fazer algo de novo no sistema de Justiça. A maior parte das parcerias foi mesmo com os tribunais e as Escolas da Magistratura, que naquele tempo, eram quase que apenas as dos Estados. Sálvio trazia a experiência da organização da Escola da Magistratura “Desembargador Edésio Fernandes”, de Minas Gerais. Conhecia bem o que era uma Escola da Magistratura. Havia cursado o Centro de Estudos Judiciários em Lisboa, no Limoeiro, ao tempo em que era juiz em Minas. E contava com Ricardo Arnaldo Malheiros Fiúza, o mineiro mais português, ou vice-versa, do mundo. E que também havia estudado no mesmo Centro, em Portugal. Resplandecia entre as Escolas a da Ajuris, talvez a primeira delas, produzida pela criatividade associativa gaúcha, cuja Associação se antecipara aos tribunais e ao Legislativo instituindo a própria Escola. Um modelo de eficiência e seriedade, que assim até hoje perdura. Note-se: as Escolas da Magistratura começaram nas Associações de Magistrados, não por iniciativa dos governos ou dos tribunais. Depois é claro que tinham de institucionalizar-se, vindo as Escolas que são departamentos dos tribunais. Os trabalhos da Escola Nacional da Magistratura espraiavam-se por diversas frentes: a) Reuniões semestrais, com o apoio das Escolas e tribunais, com diretores de Escolas da Magistratura, em que cada diretor expunha realizações, trazia idéias, alertava para perigos, erros e cuidados – um foro de discussões ou um grupo de criatividade. Quanto do que se tem agora não veio dali? b) Seminários e colóquios a respeito de temas especializados de Direito, geralmente em parceria com alguma instituição de ensino ou pesquisa, ou grupos culturais de alguma das áreas – por exemplo, seguros, transportes, comunicações – contando com grupo de expositores e debatedores de notória densidade cultural, como ministros do STF e STJ, professores universitários de nomeada, advogados especializados, visitantes do exterior. c) Reforma dos Códigos de Processo, inventando-se a reforma de código sem projeto de reforma de código, cujo andamento levaria décadas – e surgindo a técnica de reforma “fatiada”, mediante a elaboração de projetos de lei esparsos, que depois se apelidou de “técnica do salame”, e, seja lá como for, vingou, deixando já de início mais de uma dezena de leis, que receberam os maiores elogios da doutrina especializada, Cândido Dinamarco, Sergio Bermudes e Humberto Theodoro Júnior saindo à frente com os conhecidos comentários. d) Relacionamento internacional com Escolas de Magistratura e Centros Judiciários – o que nos levou a visitar as principais escolas de magistratura e centros de formação de magistrados do mundo. Foram celebrados convênios com base nos quais se ensejou o intercâmbio de juízes brasileiros no exterior e estrangeiros no Brasil, com a Ecole Nationale de la Magistrature francesa, o Centro de Estudos Judiciários de Portugal, a Escuela Judicial espanhola, e estreitaram-se, sem celebração de convênios, os contatos com a Deutsche Richtsakademie, de Trier, o Federal Judicial Center, National Cen16 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JUNHO 2008
ter for State Courts e o National Judicial College, dos Estados Unidos, o Legal Training and Research Institute, do Japão, a Academia Judicial, do Chile, o Conselho da Magistratura, da Itália, o Stichting Studiencentrum Rechtspfleging, dos Países Baixos, entre outras instituições. e) Debates sobre códigos e interpretação das reformas processuais em diversos Estados – destacando-se, entre essas atividades, a realização da primeira reunião de interpretação da Lei dos Juizados Especiais, em Belo Horizonte, em que se extraíram conclusões que nortearam a jurisprudência inicial da matéria. A diretoria da Escola Nacional da Magistratura constituiu-se, no núcleo inicial nomeado pelo diretor-presidente Sálvio de Figueiredo Teixeira, pela ordem de nomeação, por: Fátima Nancy Andrigui, secretária; Sidnei Agostinho Beneti; Eládio Lecey, incansável trabalhador criativo que tinha acabado de ser diretor da prestigiosa Escola da Magistratura da Ajuris; Nildo Nery dos Santos, então diretor da Escola de Pernambuco, por indicação minha para representar o Nordeste; e Ricardo Arnaldo Malheiros Fiúza, que não era juiz, nem advogava, mas um respeitabilíssimo professor de Direito Constitucional, em Belo Horizonte, com a bagagem de secretário do Tribunal de Justiça de Minas Gerais e com curso no Centro de Estudos Judiciários de Portugal. Vieram, em seguida, José Renato Nalini, à época juiz de 1º Grau, admirado pelos escritos sobre a formação do juiz, e os então magistrados nos Tribunais Federais, Eliana Calmon, que veio a ser secretária e providenciou muita coisa como, por exemplo, o primeiro folder da Escola, Ellen Gracie Northfleet, com destacada atuação no TRF em Porto Alegre, Vladimir Passos de Freitas, de grande nome nacional projetado pela Ajuris e pela ecologia, Suzana Camargo, que trazia a experiência do Centro de Estudos Judiciários de Portugal, os juízes Clayton Reis, Diretor do Paraná, e Marco Antonio Marques da Silva, que se destacava como magistrado e professor, e o desembargador João Baptista Lopes, grande processualista. Em meu tempo de diretor-presidente (biênio 2000-2001), quando as Escolas da Magistratura da Justiça Federal e do Trabalho já também se destacavam, a diretoria assim se compôs: Vladimir Passos de Freitas, Justiça Federal; Douglas Alencar Rodrigues, Justiça do Trabalho; Marco Antonio Marques da Silva, Justiça Estadual, e Getúlio Corrêa, Justiça Militar. Com esses nomes, contudo, continuaram a trabalhar muitos dos integrantes do grupo dos tempos de Sálvio, inclusive o próprio. Devo à Escola Nacional da Magistratura conhecer os tribunais, a Justiça e a Magistratura do Brasil e do exterior. Aprofundei o conhecimento internacional depois trabalhando com a UIM – União Internacional de Magistrados. Vi de perto a Magistratura de nossa terra, a “nossa gente” da Justiça. Sonhávamos alto. Nada menos que reformar todo o sistema judiciário, por intermédio da formação da Magistratura, para fornecer melhores serviços de Justiça para o nosso povo.
Todos trabalhando sem prejuízo do próprio trabalho de juiz. Indo e vindo, participando, dando aulas e cursos, e julgando processos sem redução da distribuição de feitos que recebiam, como todos os Magistrados nos tribunais. Todos com grande produtividade judiciária, mirando no exemplo de Sálvio. Indo e vindo, mas presentes às sessões e audiências marcadas. Não sei até hoje como conseguimos fazer isso. À época, sempre me ecoava a frase bíblica ao encantamento do canto forte dos guardas do Templo na “Flauta Mágica” de Mozart, fazendo-me crer que quem se mata de trabalho será purificado pelo fogo, a água, o vento e a terra. Um baú de memória. E Sálvio estava lá. Sálvio estava lá, em todos os lugares. Dirigia reuniões, fazia palestras e dava conta do serviço do STJ. Lembro que levava a maleta de mão cheia de minutas de votos, que ia corrigindo com um toco de lápis e borracha. Mantinha contatos com seu gabinete pelo telefone – tempos em que não havia internet – e estava sempre entre os mais produtivos e respeitados magistrados do país. Curioso o método de trabalho de Sálvio. Mantinha rigor, cobrava muito os encargos. Telefonava longamente, “checava” o que determinava fazer. Regia o caos que ele próprio criava. Coração grande, sempre no grupo cabia mais um – que viesse com idéias, que viesse com histórias, que trouxesse um grande ideal, que fosse algo interessante. Repito: na ponta da língua a palavra “somar”. Somar sempre. Ajuntava gente, ouvia tudo. Promovia reuniões com advogados, promotores, funcionários, policiais – ao tempo dos projetos sobre o Código de Processo Penal. Controlava com jeito, firme na condução, cioso da respeitabilidade. Mas contava histórias, destacava a um e a outro. Homenageava os presentes. Cumpria e fazia cumprir com rigor noções caras à Magistratura, como o respeito à antigüidade para a presidência de mesas e destaques de nomes. Nunca elevou a voz. Nunca olvidou a cortesia. Respeitou e foi respeitado com simplicidade, harmonizando a tudo e a todos com paciência e aquele jeito de falar de Minas! Sálvio sempre presente. Nossas famílias, de todos, tornaram-se amigas. Que emoção, Simone, esposa! Os filhos, Vinícius, Úrsula e Cristina. E Simone, de novo Simone, sempre Simone. Com doçura de tanto afeto, plantada na solidez de intelecto forte. Companheira de Sálvio, de nós todos, gratos, imensamente, a você, Simone! Um dia, a notícia. Sálvio não merecia. Nem a família, nem os amigos, nem o Tribunal, nem a Justiça de nossa terra. Justo naquele momento de reformas, em que o melhor da Justiça tinha de estar pronto para a luta. Sálvio lutava pela vida. Venceu. E um dia fui vê-lo, com Simone, no Hospital Sarah Kubitschek. Era o mesmo. Brilho nos olhos, perguntando, querendo saber, mil planos para as Escolas, para o Tribunal, para a vida. Quando vi, seguíamos adiante como se nada houvesse acontecido. Como está lá naqueles sertões e veredas, “para a frente é que se anda”, quando se trata de Sálvio de Figueiredo Teixeira.
“Curioso o método de trabalho de Sálvio. Mantinha rigor, cobrava muito os encargos. Telefonava longamente, ‘checava’ o que determinava fazer. Regia o caos que ele próprio criava. Coração grande, sempre no grupo cabia mais um – que viesse com idéias, que viesse com histórias, que trouxesse um grande ideal, que fosse algo interessante.”
NOTA DO DIRETOR Em homenagem ao eminente Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, renovamos a publicação transcrita da Revista da Escola Nacional da Magistratura, por nós editada, do artigo da lavra do excelso Ministro Sidnei Beneti, novo integrante do Superior Tribunal de Justiça e cuja participação no augusto pretório do STJ chega com uma década de atraso. A cultura, a inteligência e a experiência deste operador do Direito, mestre conceituado, ativo e prático participante na reformulação processual civil e penal, por certo – com seus novos companheiros também preocupados com a absurda morosidade processual – trarão incentivo com idéias inovadoras para o aceleramento dos pleitos com soluções tendentes a liquidar o estoque de centenas de milhares de processos empilhados nos gabinetes dos ministros da alta Corte. 2008 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 17
A IMPORTÂNCIA LEGAL DA PERÍCIA MÉDICA José Augusto Delgado Ministro do STJ
“o conceito de perícia médico-legal, para ser bem fixado, envolve, primeiramente, investigação sobre o que é perícia, quais as suas finalidades, classificação e onde ela é utilizada.”
Conceito de perícia médica estudo dos aspectos legais da perícia médica deve começar pela filiação do entendimento sobre o seu conceito. A respeito, registramos o entendimento manifestado pelos autores a seguir anotados: a) Genival Veloso de França, em sua magnífica obra intitulada “Medicina Legal”, 7ª ed., Editora Guanabara Koogan, 2004, p. 12, afirma que “define-se perícia médico-legal como um conjunto de procedimentos médicos e técnicos que tem como finalidade o esclarecimento de um fato de interesse da Justiça ou como um ato pelo qual a autoridade procura conhecer por meios técnicos e científicos, a existência ou não de certos acontecimentos, capazes de interferir na decisão de uma questão judiciária ligada à vida ou à saúde do homem ou que com ele tenha relação”; b) Fernando Capez, em “Curso de Processo Penal”, 13ª ed., Editora Saraiva, p. 316, explica o conceito de perícia com base nas razões a seguir transcritas: “O termo ‘perícia’, originário do latim peritia (habilidade especial), é um meio de prova que consiste em um exame elaborado por pessoa, em regra profissional, dotada de formação e conhecimentos técnicos
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específicos acerca de fatos necessários ao deslinde da causa. Trata-se de um juízo de valoração científica, artística, contábil, avaliatório ou técnico, exercido por especialista, com o propósito de prestar auxílio ao magistrado em questões fora de sua área de conhecimento profissional”; c) Guilherme de Souza Nucci, em “Código de Processo Penal Comentado”, RT, p. 312, define somente perícia. Para o autor, perícia “é o exame de algo ou alguém realizado por técnicos ou especialistas em determinados assuntos, podendo fazer afirmações ou extrair conclusões pertinentes ao processo penal. Trata-se de um meio de prova”; d) no artigo La pericia medico-legal en los casos de responsabilidad médica, a perícia médico-legal está conceituada como sendo o ato efetuado por um médico (funcionário judicial ou não, que, com a elaboração de um informe, assevera à justiça sobre algum fato ou conseqüência de natureza biológica ou médica); e) Dr. Carlos Maggi, médico legista e presidente da Sociedade de Ciências Forenses do Uruguai, em palestra sobre o tema “O perito médico-legal”, explica o que seja perícia médica definindo o perito médico. Para o referido autor, perito médico é aquele que “por seus
Foto: Valter Campanato/ABr
especiais conhecimentos, que sejam práticos ou bem teóricos, informa o julgador sobre pontos litigiosos enquanto relacionados com o especial saber ou experiência”. Em conseqüência, para o referido autor, a perícia médico-legal é as operações médicas que têm por fim a determinação ou o esclarecimento de um fato de prováveis conseqüências judiciais. Integra uma etapa do processo judicial: o da prova; f) o conceito de perícia médico-legal, para ser bem fixado, envolve, primeiramente, investigação sobre o que é perícia, quais as suas finalidades, classificação e onde ela é utilizada. Na intenção de percorrer esse ciclo estabelecido para bem conceituar perícia médico-legal, registramos que a doutrina conceitua perícia como sendo uma espécie de prova depositada nos autos judiciais, prova essa que ganha importância por resultar da atuação de doutos convocados pela autoridade policial ou judiciária com o objetivo de esclarecer à Justiça fato acontecido de natureza duradoura ou permanente. A finalidade da perícia médico-legal torna-se relevante porque apresenta conhecimento técnico-científico ao juiz, auxiliando-o para que, ao analisar a prova, firme o seu livre convencimento sobre o fato que está posto nos autos judiciais a exigir julgamento. Com insignificantes divergências, as perícias são classificadas pela doutrina em:
a) judicial: é a determinada pelo Poder Judiciário, quer de ofício, quer a requerimento das partes envolvidas no litígio cível, criminal, trabalhista, previdenciário, administrativo ou até mesmo tributário; b) extrajudicial: a que é realizada a pedido das partes de modo particular; c) necessária (ou obrigatória): a que é determinada, de modo impositivo, por lei ou pela natureza do fato, quando há necessidade, por força de norma jurídica positivada, de ser, por via dela, provada a materialidade do fato. Se esse tipo de perícia não se concretizar, tem-se o processo por nulo; d) facultativa: quando o fato pode ser provado por outros meios (testemunhas, documentos, etc.), sem necessidade absoluta de perícia; e) oficial: a que é determinada pelo juiz; f) requerida: a que é solicitada pelas partes litigantes; g) contemporânea ao processo: a que é feita no curso do processo; h) cautelar: a realizada na fase preparatória da ação, isto é, antes do processo principal (ad perpetuam rei memoriam); i) direta: a que tem como presente o objeto da perícia; j) indireta: a que é feita com base em indícios ou seqüelas deixadas pelo fato investigado. 2008 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 19
A perícia médico-legal é classificada, especificamente, nos tipos seguintes: a) autópsia médico-legal; b) identificação do cadáver; c) perícias em pessoas vivas, entre as quais podem ser mencionadas as feitas nas pessoas lesionadas, em vítimas de atentados sexuais, em toxicômanos, para valorar danos corporais, para determinação de idade, a feita na esfera da psiquiatria forense, para determinação de imputabilidade e incapacidade. A importância que o ordenamento jurídico positivo empresta à perícia médico-legal O legislador brasileiro, consciente da importância da perícia médico-legal como meio de prova absolutamente útil para imposição da sentença sobre o litígio submetido ao Poder Judiciário para solucioná-lo, disciplina-o por via dos seguintes dispositivos legais: a) Código de Processo Penal – arts. 158 a 184, Capítulo II (Do Exame do Corpo de Delito e das Perícias em Geral); b) Código de Processo Civil – arts. 145 a 147 (Do Perito) e 420 a 439 (Da Prova Pericial); c) CLT – art. 827; d) Lei nº 9.099, de 26/09/1995 – art. 77, § 1º. Rápido histórico da perícia O Dr. Talvane de Moraes, ex-diretor do Departamento Geral de Polícia Técnica da Secretaria de Segurança do Estado do Rio de Janeiro, em palestra proferida na Associação Comercial do Rio de Janeiro, no dia 08/11/2004, referente ao tema “Polícia Técnica e Garantias Constitucionais”, apresentou levantamento histórico sobre a perícia em geral, incluindo estudo médico, onde, ao analisar os primórdios da perícia, registra que, no século XII a.C., o jurista chinês Song T’su, em seu tratado pericial Si Yuan, já destacava a importância dessa prova afirmando: “A veracidade dos testemunhos, nos casos de homicídio, deve ser pesquisada a partir da colocação do suposto autor frente ao cadáver da vítima. Observando-se as modificações fisionômicas do suspeito, alterações dos batimentos cardíacos e presença de suores e palidez, poder-se-á afirmar a culpabilidade do mesmo, ante suas reações de medo e pânico.” A seguir, o mesmo autor indica que “na Idade Média, a valorização da confissão colocou a prova pericial em desprestígio, com prevalência da tortura”. Por fim, nesse campo da evolução histórica da perícia, explicita que a sua importância ganhou evolução por “o Direito sempre ter desejado obter certezas através de provas periciais”, o que nem sempre foi possível no passado, tendo em vista as limitações da ciência e do conhecimento, especialmente por serem considerados “os fatores complexos na causalidade dos fenômenos investigados”. Na época contemporânea, as dificuldades, antes exis tentes, desapareceram graças à evolução do conhecimento científico no campo da perícia médico-legal, com o emprego 20 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JUNHO 2008
de técnicas que apresentam resultados que são considerados como produzindo efeitos absolutos no entender do Poder Judiciário. A perícia médico-legal como entidade de relevante importância para o processo decisório judicial O resultado eficaz da perícia médico-legal está vinculado à exploração do campo de conhecimento enciclopédico aberto pela Medicina Legal, onde estão presentes relacionamentos obrigatórios com a Psiquiatria, a Traumatologia, a Obstetrícia, a Neurologia, a Patologia, a Ginecologia, com o Direito Penal, o Direito Civil, o Direito Trabalhista, o Direito Previdenciário, o Direito Administrativo, etc. A perícia médico-legal envolve, ainda, para que o Poder Judiciário priorize a sua importância como meio de prova, que as suas investigações e resultados demonstrem receber apoio das regras científicas seguintes: – Antropologia Forense (ciência que visa o estudo da identidade médico-legal); – Tanatologia Forense (capítulo da Medicina Legal que estuda a morte e as suas conseqüências); – Traumatologia Forense (ramo da Medicina Legal que estuda as lesões corporais resultantes de traumatismos de ordem física ou psicológica); – Asfixiologia Forense (parte da Medicina Legal que estuda os efeitos da asfixia, que é um estudo referente à falta de oxigênio no ar que o homem respira); – Sexologia Forense (compreende o estudo da inter-relação dos problemas sexuais com a Justiça – estudo médico-legal da conjunção carnal ilícita, do atentado violento ao pudor, etc.); – Psiquiatria Forense (subespecialidade da Psiquiatria que trata dos problemas psiquiátricos envolvidos em causas legais); – Psicologia Forense (estuda a aplicação dos princípios e conhecimentos psicológicos em diversas atividades relacionadas à aplicação das leis, como litígios judiciais sobre a guarda de crianças, abusos sexuais, entre outros); – Infortunística (ramo da Medicina Legal que trata dos acidentes de trabalho e das doenças causadas pelo exercício do trabalho em situações insalubres e perigosas); – Toxicologia Forense (estuda os aspectos médicolegais procurando esclarecer a causa mortis decorrente de intoxicações). O relacionamento da perícia médico-legal como amplo campo de convencimento científico que acabamos de enumerar, a denotar o alto grau de sua importância jurídica, não exime o perito de, obrigatoriamente, além de dominar a base investigatória anunciada, também dominar normas legais postas nos seguintes documentos: a) Constituição Federal; b) Código Civil brasileiro; c) Código Penal brasileiro; d) Código de Processo Civil; e) Código de Processo Penal; f) Consolidação das Leis do Trabalho;
g) Regulamento das Leis da Previdência Social; h) Lei n° 8.212, de 24/07/1991 (dispõe sobre a organização da Seguridade Social, etc.); i) Lei n° 8.213, de 24/07/1991 (dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social); j) Lei n° 9.876, de 26/11/1999 (dispõe sobre a contribuição previdenciária do contribuinte individual, etc.); k) Lei n° 8.743, de 07/12/1993 (dispõe sobre a organização da Assistência Social, etc.); l) Lei n° 7.853, de 24.10.1989 (dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência, sua integração social, etc.); m) Decreto-Lei n° 200, de 25/02/1967 (dispõe sobre a Organização da Administração Federal, estabelece diretrizes para a Reforma Administrativa, etc.); n) Lei n° 10.424, de 15/04/2002 (dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento de serviços correspondentes, e dá outras providências, regulamentando a assistência domiciliar no Sistema Único de Saúde, etc.); o) Lei n° 10.710, de 05/08/2003 (restabelece o pagamento pela empresa do salário-maternidade devido à segurada empregada gestante, alterando a Lei n° 8.213, de 24/07/1991, etc.); p) Lei n° 10.741, de 06/10/2003 (dispõe sobre o Estatuto do Idoso e dá outras providências); q) Lei n° 6.514, de 22/12/1977 (alterou o Cap. V do Tit. II da CLT, relativo à segurança e medicina do trabalho, e dá outras providências); r) Lei n° 7.410, de 27/11/1985 (dispõe sobre a especialização de Engenheiros e Arquitetos em Engenharia de Segurança do Trabalho, a profissão de Técnico de Segurança do Trabalho, e dá outras providências); s) Lei n° 6.321, de 14/04/1976 (dispõe sobre a dedução do lucro tributável, para fins de Imposto de Renda das pessoas jurídicas, do dobro das despesas realizadas em programa de alimentação do trabalhador, etc.); t) Lei n° 8.027, de 12/04/1990 (dispõe sobre normas de conduta dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas, etc.); u) Lei n° 8.080, de 19/09/1990 (dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes, e dá outras providências); v) Lei n° 8.112, de 24/07/1991 (dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias, etc.); w) Lei n° 8.142, de 28/12/1990 (dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde, e dá outras providências); x) Lei n° 8.429, de 02/06/1992 (dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, etc.); y) Lei n° 9.784, de 29/01/1999 (regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, etc.); z) Lei n° 9.719, de 27/11/1998 (dispõe sobre normas e
condições gerais de proteção ao trabalhador portuário, etc.); aa) Lei n° 10.876, de 02/06/2004, alterada pelas Leis n° 10.997 e 11.302 (cria a Carreira de Perícia Médica da Previdência Social, etc.). Além da legislação acima citada, sem ser de forma exaustiva, está obrigado o perito médico a conhecer e aplicar outras normas contidas em decretos, regulamentos, portarias, ordens de serviço, etc. O quadro legislativo que acabamos de demonstrar e que necessita ser movimentado pelos peritos médico-legais bem demonstra a importância da entidade ora estudada. Princípios constitucionais aplicados à perícia médico-legal Diante do panorama que acabamos de expor, a demonstrar a elevada importância legal da perícia médica, cumpre-nos destacar a sua inserção no contexto da Constituição Federal e registrar os princípios constitucionais que a regem. Sem o esgotamento do rol dos princípios constitucionais regedores da perícia médico-legal, anotamos os seguintes: a) o princípio da valorização da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF); b) o princípio da homenagem aos valores que compõem a cidadania (art. 1º, II, CF); c) o princípio do respeito à liberdade individual e aos direitos humanos fundamentais; d) o princípio da legalidade; e) o princípio do devido processo legal; f ) o princípio do contraditório e da ampla defesa; g) o princípio da proibição de provas obtidas por meios ilícitos; h) o princípio da presunção de inocência; i) o princípio da proteção à intimidade da vida privada; j) o princípio da garantia ao cidadão contra excessos praticados pelo Estado e pela sociedade; k) os princípios do silêncio e do segredo de justiça; l) o princípio da proporcionalidade; m) o princípio da adequação; n) o princípio da proteção ao direito de personalidade que se projeta nos falecidos quanto ao segmento respeitante à vida privada. Esses princípios e outros que decorrem da estrutura do Estado Democrático de Direito ditado pela Constituição Federal de 1988 deverão ser aplicados às perícias médico-legais, cabendo aos juízes, promotores, advogados e peritos médicos obedecê-los em toda a sua extensão, exercendo um juízo de ponderação em razão dos dados colhidos por esse tipo de prova judicial serem profundamente sensíveis à dignidade humana. Além da vinculação dos agentes públicos envolvidos na realização da perícia médico-legal com todos os fenômenos axiológicos jurídicos que acabamos de enumerar, há de ser sublimada a escravidão do perito médico, do juiz, do promotor, do advogado e dos agentes auxiliares atuantes no processo, aos princípios da ética profissional. 2008 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 21
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Foto: Arquivo JC
A perícia médica na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça No afã de ser demonstrada a importância legal da perícia-médica como meio de prova capaz de influenciar o convencimento do julgador, passamos a elencar algumas decisões do Superior Tribunal de Justiça que, pelos seus conteúdos, fortalecem o que estamos a afirmar e a defender. Destacamos os julgamentos seguintes: a) no REsp 2.163, de São Paulo, julgado em 28/03/1990, a Segunda Turma do STJ afastou pretensão do INSS de ser reconhecida prescrição relativa a benefícios de acidente de trabalho por considerar que o prazo prescricional devia ser contado a partir da data em que foi lavrado o laudo judicial emitido pelos peritos comprovando a incapacidade resultante do acontecimento laboral; b) em 06/05/1991, no REsp nº 8.599, de Minas Gerais, a Segunda Turma do STJ não permitiu que um soldado da Polícia Militar fosse excluído da Corporação por aceitar as conclusões da perícia médica, realizada por profissionais do Instituto Médico Legal, que afastou a ocorrência de insanidade mental. Interessante anotar que, nesta decisão, o STJ entendeu que, por os peritos médicos terem afirmado que cumpriram o encargo pericial sob a fé do grau profissional possuído e do cargo exercido, dispensado estava o compro misso legal; c) no REsp 19.062, de São Paulo, o STJ, pela sua Segunda Turma, entendeu que, de acordo com o art. 434 do CPC, inexiste violação de lei por o juiz nomear médicos particulares tecnicamente habilitados e de sua confiança para proceder à perícia, não obstante a Lei dispor que essa escolha deverá recair, de modo preferencial, entre os médicos do Instituto Médico Legal, entidade oficial; d) em 1°/12/1997, a Sexta Turma do STJ decidiu que, em “tema de concessão de auxílio-acidente, a lei aplicável, no que concerne ao cálculo do valor do benefício, é aquela vigente ao tempo da perícia judicial certificadora da consolidação das lesões”; e) no julgamento do HC nº 11.331, de São Paulo, a Quinta Turma do STJ entendeu de absolver sumariamente pessoa acusada de ter praticado delito em razão da sua imputabilidade atestada por perícia médica. Aplicou-se, apenas, medida de segurança; f ) ao apreciar o HC nº 16.580, do Rio de Janeiro, a Quinta Turma do STJ denegou habeas corpus à paciente que alegava sofrer de enfermidade psiquiátrica, por inexistir, na época, conclusão a respeito firmada por perícia médica; g) no HC nº 24.073, do Rio de Janeiro, a Quinta Turma do STJ, valorando o resultado apresentado pela perícia médica toxicológica, diminuiu a pena aplicada ao acusado de ter violado a Lei de Tóxicos, por tal prova ter atestado o seu grau de dependência química e o prejuízo que ela causava à capacidade do paciente de entender as circunstâncias provocadas por sua conduta; h) no RMS nº 16.431, do Rio de Janeiro, a Quinta Turma do STJ, em 02/09/1993, firmou entendimento no
sentido de que agiu com acerto a Administração Pública quando, em concurso público, com base em perícia médica, constatou que a deficiência apresentada pelo candidato – ausência de falange distal do segundo dedo da mão direita – não o habilitava a concorrer às vagas reservadas aos deficientes físicos, incluindo-o no rol geral dos candidatos; i) no trato do denominado indulto humanitário (art. 1º, V, do Decreto no 4.495/02), a Sexta Turma do STJ, em 16/05/06, entendeu que o sentenciado, por ter cometido homicídio qualificado, não obstante encontrar-se acometido de osteoartrite de coluna vertebral, pode ser tratado dentro do sistema hospitalar do presídio ou em unidades hospitalares externas, conforme indicação da perícia médica. O habeas corpus foi denegado; j) no REsp 78.087, do Rio de Janeiro, julgado em 19/06/07, a Primeira Turma do STJ firmou convicção de, em respeito à coisa julgada, sem existência de atualizada perícia médica, não ser possível suprimir pensão mensal vitalícia estabelecida em sentença, da qual não cabe mais recurso, em razão de incapacidade da parte interessada. Os dez precedentes jurisprudenciais que acabamos de citar demonstram, exaustivamente, a importância legal das perícias médicas no momento do proferimento da sentença judicial. A perícia médico-legal e a responsabilidade dos peritos A responsabilidade do perito médico-legal deve ser examinada, em primeiro plano, na disciplina estatuída pelo Código de Processo Civil. Este diploma, em seu art. 147, determina: “O perito que, por dolo ou culpa, prestar informações inverídicas, responderá pelos prejuízos que causar à parte, ficará inabilitado, por 2 (dois) anos, a funcionar em outras perícias e incorrerá na sanção que a lei penal estabelecer”. A regra processual acima invocada considera como informações inverídicas os dados apresentados pelo perito que destoam da realidade dos fatos. No mesmo plano são consideradas também as informações prestadas sem “configurações técnicas e científicas na área de conhecimento do perito” (Nelson Nery Júnior, em “Código de Processo Civil Comentado e Legislação Extravagante”, RT, 9ª ed., p. 362). Doutrina Nery Júnior, ob. cit., que “para configurar-se a infração prevista na norma sob análise, não é preciso que ocorra o evento danoso, isto é, que a informação inverídica prestada pelo perito cause efetivo prejuízo à parte ou interessado. A infração é de natureza formal, bastando para caracterizá-la a simples prestação da informação inverídica, por dolo ou culpa do perito. Verificada a infração, o juiz proferirá decisão inabilitando o perito para o exercício de sua atividade, em processo judicial, por dois anos”. Examinamos, em seqüência, em segundo plano, a responsabilidade penal do perito médico-legal pelo crime de falsa perícia, conforme previsto no art. 342 do Código Penal, que determina: “Art. 342. Fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade, como testemunha, perito, contador, tradutor
ou intérprete em processo judicial, ou administrativo, inquérito policial, ou em juízo arbitral: Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa. § 1º As penas aumentam-se de 1/6 (um sexto) a 1/3 (um terço), se o crime é praticado mediante suborno ou se cometido com o fim de obter prova destinada a produzir efeito em processo penal, ou em processo civil em que for parte entidade da administração pública direta ou indireta. § 2º O fato deixa de ser punível se, antes da sentença no processo em que ocorreu o ilícito, o agente se retrata ou declara a verdade.” No crime em questão o bem jurídico protegido é a administração da justiça. O sujeito ativo é qualquer pessoa que, como perito, pratique a ação descrita no art. 342 do Código Penal – é, portanto, crime próprio. O sujeito passivo imediato é o Estado. O mediato é o particular ofendido pelo delito. O tipo objetivo é realizado por três modalidades: a) afirmar o falso; b) negar a verdade; c) calar a verdade. O tipo subjetivo exige dolo – direto ou eventual. O delito entra em fase de consumação com o encerramento do ato processual. É admissível a tentativa. Em terceiro plano, registramos a responsabilidade civil do perito, nos limites estabelecidos pelos arts. 186, 187 e 927 do Código Civil. O art. 186 do CC de 2002 dispõe: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.” De igual modo, estabelece o art. 187 do mesmo diploma legal: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.” Regra o art. 927 do CC de 2002, em capítulo sob o título “Da Obrigação de Indenizar”, que: “Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”. Pode, ainda, o perito médico servidor público, por faltas cometidas, responder na esfera administrativa com penas que vão da advertência até a demissão, a bem do serviço público. Decálogo do perito médico-legal Concluímos o rápido estudo que apresentamos sobre a importância da perícia médico-legal comungando com o sentimento do prof. Genival Veloso de França (ob. cit.) de propagar o decálogo do perito médico-legal empregado pelo mestre Nerio Rojas (psiquiatra e médico legista argentino, nascido em 07/03/1890 e falecido em 1971, em Buenos Aires). Eis em síntese o referido decálogo: I – O perito deve atuar com a ciência do médico, a veracidade da testemunha e a equanimidade do juiz. 2008 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 23
“Pode, ainda, o perito médico servidor público, por faltas cometidas, responder na esfera administrativa com penas que vão da advertência até a demissão, a bem do serviço público.”
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II – É necessário abrir os olhos e fechar os ouvidos. III – A exceção pode ter tanto valor quanto a regra. IV – Desconfiar dos sinais patognomônicos (não se pode concluir um diagnóstico baseado em um só sinal). V – Deve-se seguir o mito do Cartesiano: (a) não admitir jamais como verdadeira nenhuma coisa que não pareça evidente como tal, evitando a precipitação e a suposição; (b) dividir as dificuldades no maior número de parcelas possíveis; (c) ordenar o pensamento pelo mais simples para resolvê-los melhor; (d) anotar e revisar tudo sem omitir nada (conselhos de Descartes). Em suma: aprender a duvidar, na expressão de Genival Veloso. VI – Não confiar na memória. VII – Uma necropsia não pode ser refeita. VIII – Pensar com clareza para esclarecer com precisão. IX – A arte das conclusões consiste nas medidas. X – A vantagem da Medicina Legal está em não formar uma inteligência exclusiva e estritamente especializada. O decálogo ético do perito em geral está composto pelos postulados seguintes e foram criados por Genival Veloso, ob. cit., p. 37-38: I – Evitar conclusões intuitivas e precipitadas. II – Falar pouco e em tom sério. III – Agir com modéstia e sem vaidade. IV – Manter o segredo exigido. V – Ter autoridade para ser acreditado. VI – Ser livre para agir com isenção. VII – Não aceitar a intromissão de ninguém. VIII – Ser honesto e ter vida pessoal correta. IX – Ter coragem de decidir. X – Ser competente para ser respeitado. Não é demais, como registro final, lembrar que o Código de Ética do Perito Criminal estabelece, em seu art. 2°, como princípios fundamentais a serem cumpridos pelo agente ativo dessa atividade, os seguintes: Art. 2º. São fundamentais, no desempenho do exercício da profissão de perito criminal, os Princípios Deontológicos e Ideológicos, segundo os quais o perito deverá se conduzir em relação aos seguintes aspectos: I – a formação de uma consciência profissional no ambiente de trabalho e fora dele; II – a responsabilidade pelos atos praticados na esfera administrativa, como na judicial; III – o resguardo do sigilo profissional; IV – a colaboração com autoridades constituídas, dentro dos limites de suas atribuições e competência do órgão onde trabalha; V – o zelo pela dignidade da função, pela defesa dos postulados da Criminalística e pelos objetivos das associações de classe a que pertença ou não; VI – a liberdade de convicção para formalizar suas conclusões técnico-científicas em torno da análise do(s) fato(s), objeto das perícias, sem, contudo, infringir os preceitos de ordem moral e legal, de modo a ser obrigado a desprezar tais conclusões.
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PRORROGAÇÃO DE PRAZO NOS CONTRATOS DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇO: EFICIÊNCIA EM NOME DO INTERESSE PÚBLICO
Marcus Fontes Advogado Mestre em Direito pela Harvard Law School Pós-graduado em Tributação Internacional pela Harvard University
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ssim como em outros ramos do conhecimento, o Direito é marcado por datas históricas. 1500, 1889, 1964 e 1988 são anos que marcaram decisivamente a história jurídica do Brasil. 2008 será também um deles, e, inevitavelmente, um ano emblemático para a exploração de serviços públicos no Brasil. Digo isso porque a União Federal, diversos Estados e inúmeros Municípios decidirão, este ano, acerca da prorrogação dos prazos de permissões de serviços públicos outorgadas à iniciativa privada. Debates acalorados têm se espalhado pelo país sobre essa questão. A grande parte movida por conceitos préestabelecidos (i.e., preconceitos), pretensos dogmas e, de certa forma, incompreensão sobre a matéria. Há duas opções: estagnar ou avançar, tanto jurídica como institucionalmente. Essa escolha, entretanto, deve prescindir de paixões e impõe que seja tomada, logicamente, com vistas à realização do interesse público. Para se escolher o melhor caminho, deve-se, antes de tudo, conhecer o terreno e o contexto. Pois bem. O tema envolve a validade de centenas de permissões outorgadas a empresas privadas para a exploração de serviço público, dentre os quais o de transporte coletivo, sobretudo o operado através de ônibus. Antigamente, no setor de transporte coletivo de passageiros, por exemplo, fez-se uso de “contratos de permissão” 26 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JUNHO 2008
para formalizar os vínculos entre concedente e prestador de serviço. A designação, porém, confundia o regime jurídico do instituto. É que, ao invés de atos de natureza “unilateral e precária” (como eram caracterizadas pela doutrina), as permissões do setor de transporte eram marcadas pelo caráter nitidamente “contratual” e por vultosos investimentos, no mais das vezes com prazo determinado, o que eliminava sua condição de precariedade absoluta. O vínculo jurídico, portanto, possuía características mais próximas de uma concessão do que propriamente de uma permissão, se esta fosse considerada em sua acepção tradicional. Tanto é assim que Miguel Reale, atento para a singularidade dessa relação jurídica, chegou a afirmar que “a permissão se constitui como se fora uma autorização e é exercida como se fora concessão.” Foi justamente por essa razão que Caio Tácito alertava que, nesses casos, “a substância das relações oriundas das permissões evidencia a necessidade de distinguir as permissões simples, de extrema precariedade, e os casos em que a fixação de prazo certo, ou mesmo a natureza da obrigação, evidenciam a estabilidade do vínculo.” A diversidade de limitações que pode apresentar a peculiar natureza das permissões chegou a inspirar, inclusive, a síntese de Cretella Júnior no sentido de que “há, assim, uma precariedade muito precária, uma precariedade mais ou menos precária, e uma precariedade bem pouco
Foto: Arquivo Pessoal
precária, ou seja, existem graus diversos de intensidade na utilização precária do bem público (e, conseqüentemente, da exploração do serviço público).” A Constituição de 1988 ratificou esse entendimento e, atualmente, não há dúvida de que a permissão de serviço público possui natureza contratual e não consubstancia ato “unilateral e discricionário”, resolúvel a qualquer tempo pela Administração Pública. Prova disso é a própria Lei Federal nº 8.987/95, conhecida como Lei de Concessões e Permissões de Serviços Públicos. O problema reside, todavia, na velha concepção sobre esse instituto tida por muitos no passado e dos seus efeitos no presente. Alega-se que tais permissões, por terem sido delegadas sem prévia licitação, não se revestiriam da legalidade, tampouco legitimidade, necessárias à sua validade. Por conseguinte, afirmam que a prorrogação dos seus prazos, em 2008, implicaria na manutenção de uma situação irregular, sem amparo constitucional. Com respeito daqueles que pensam assim, julgar dessa forma significa optar, unicamente, por “pseudo” dogmas, a priori. É uma questão de escolha, mas representa o caminho da estagnação, da submissão cega a uma máxima, independentemente da sua ratio. O princípio da licitação é visto simplesmente sob a lente morfológica e não sintática. Puramente estática, não dinâmica. É analisado em si mesmo e não como instrumento
ou função para a realização de um fim: o interesse público. Ora, nenhum procedimento licitatório é um fim em si ou algo absoluto. Ao contrário, é, na sua essência, um princípio instrumental e relativo. A sua função no sistema legal e constitucional visa, exclusivamente, à satisfação do interesse público, como meio, em regra, de se obter, de forma isonômica, a proposta mais vantajosa para a Administração Pública quando da contratação de obras e a prestação de serviços. Mas nem sempre isso é possível ou recomendável. Há inúmeros casos em que essa norma-princípio não se aplica, haja vista a própria Lei de Licitações, que a excepciona em mais de duas dezenas de vezes. A impossibilidade de competição e a urgência da contratação são fundamentos clássicos para que isso ocorra. Até aí nenhuma novidade. O que chama a atenção e instiga a apreciação é, justamente, quando o que está em jogo é algo além do efeito imediato da aplicação desse princípio: a “eficiência” na escolha em se licitar ou não, quando da prorrogação de prazo nos contratos de prestação de serviços públicos. Aqui sim jaz o dilema. A encruzilhada jurídica em se optar entre dois caminhos, ambos perfeitamente defensáveis, porém com efeitos bem diversos. De um lado, temos a via estreita, correta e estanque que cerca o processo de licitação. Licita-se porque é bom (e, indubitavelmente, é), mas não porque ou para se fazer bem. 2008 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 27
“O princípio da licitação é visto simplesmente sob a lente morfológica e não sintática. Puramente estática, não dinâmica. É analisado em si mesmo e não como instrumento ou função para a realização de um fim: o interesse público.”
De outro, há a possibilidade de inovar, progredir, fazer melhor, ser mais eficiente. E isso também com base na mesma Constituição Federal, que enaltece o princípio da licitação. No exemplo citado, esse segundo caminho perpassa pela continuidade do serviço público, vedação do enriquecimento sem causa, segurança jurídica, realização do interesse público primário. Enfim, pela eficiência da gestão da coisa pública. Para tornar mais palpável essa discussão, basta analisar o caso das permissões de transporte coletivo no Município do Rio de Janeiro. Antes da atual Constituição, essas permissões eram celebradas e vigoravam por prazo indeterminado, enquanto bem servissem à Administração e à população em geral. E isso com base na legislação da época, que não exigia licitação para a delegação, através de permissões, da execução desses serviços. Era o tempo em que os próprios permissionários figuravam como verdadeiros bandeirantes do asfalto, desbravando caminhos, abrindo estradas, consolidando o direito de ir e vir dos seus usuários. Em 1998, foi promulgada a Lei Complementar Municipal 37, que fixou um prazo determinado e prorrogável (de 10 anos) para essas permissões. De lá para cá, houve incremento substancial do número de ônibus (quase 7.500), empregos diretos (mais de 50 mil), na capilaridade das linhas e qualidade da prestação do serviço. A melhoria só não foi mais acentuada porque, durante esse período, a insegurança jurídica provocada pelas dezenas de ações civis públicas propostas pelo Ministério Público estancou, literalmente, o investimento das empresas. Paralelamente a essa insegurança jurídica, o setor de transporte sofreu com constante defasagem tarifária, elevação excessiva da carga tributária, concorrência desleal e ruinosa de vans ilegais, incêndio de centenas de ônibus e completa ausência de custeio para os milhões de beneficiários de gratuidades transportados mensalmente. Tais fatos ensejaram créditos para esses permissionários da ordem de centenas de milhões de reais, devidamente apurados, dentre outros, pelo sistema de bilhetagem eletrô28 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JUNHO 2008
nica RioCard e facilmente constáveis através de auditoria independente, como autoriza o art. 42, § 3º, II da Lei Federal nº 8.987/95. Muito bem. O Município do Rio está diante desse impasse. Licita-se tudo ou prorroga-se, com base na lei, o prazo dessas permissões, de sorte a anular/compensar, de imediato, os vultosos créditos dessas empresas. Sem solução de continuidade. Sem desemprego em massa. Sem prejuízo para o erário e os usuários. Além disso, em busca da eficiência, os permissionários municipais concordam, inclusive, em modernizar substancialmente o sistema de transporte local, implantando corredores expressos, propondo a alteração dos itinerários de linhas, ampliando a integração entre outros modais, sem qualquer custo para a população. Poder-se-ia até cogitar de uma terceira via, em que se optasse pela concorrência do tipo “maior valor de outorga”, a fim de fazer face ao incontestável pagamento desses créditos. Essa opção, entretanto, vai de encontro ao próprio interesse público, pois, nesse caso, ao contrário do que possa parecer, o interesse (secundário) da Prefeitura contrapõe-se ao interesse (primário) dos usuários, já que este montante necessariamente deverá ser amortizado durante o prazo da nova permissão, o que corresponderá a uma tarifa, inevitavelmente, mais elevada. A conta é simples. A eficiência é isso: mera relação entre resultados obtidos e recursos empregados. No caso em tela, o Prefeito do Rio decidiu pelo caminho do “pseudo” dogma. Açodou-se. Sem qualquer planejamento, resolveu licitar por licitar, sem qualquer previsão de melhoria do quadro atual. Optou por olhar o futuro com as lentes opacas do passado. Perdeu mais essa chance de inovar, de ser mais eficiente, de fazer história. A população pagará a conta. Bom para o Judiciário, que certamente será chamado a controlar mais essa decisão e figurar, novamente, como protagonista na definição de políticas públicas. Espera-se, no mínimo, que, dessa vez, esse último baluarte do Estado do Direito, ao optar entre esses dois caminhos, decida pela eficiência, em nome do interesse público.
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A JUSTIÇA DO TRABALHO DEPOIS DA EMENDA CONSTITUCIONAL 45
Da Redação
“A JT transformou sua competência para alcançar essas relações, mas o TST ainda não uniformizou seu entendimento.”
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Justiça do Trabalho (JT) ainda vem encontrando dificuldades para implementar totalmente sua competência, estendida pela Emenda Constitucional 45, de dezembro de 2004. A avaliação é da ministra do Tribunal Superior do Trabalho (TST) Maria Cristina Irigoyen Peduzzi. De acordo com ela, os juízes vêm suscitando conflitos “negativos” quanto à atribuição desse seguimento de apreciar as ações decorrentes da extinção ou quebra de contratos que a princípio seriam de prestação de serviço, mas têm em seu bojo características de relação de emprego. O Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao analisá-los, tem determinado a remessa das causas dele decorrentes à Justiça comum. Na avaliação de Maria Cristina Peduzzi, somente com a aprovação de uma lei que relacione as hipóteses que competiriam à JT, esses conflitos seriam solucionados. Apesar disso, tudo tem caminhado no sentido de se confirmar a nova competência desse seguimento e principalmente de se afirmar o direito do trabalhador. Nesse sentido, a ministra comenta a decisão do TST que estabeleceu uma regra de transição para os processos, então em tramitação na Justiça comum, para que não caíssem em prescrição ao serem transferidos para a JT, e também a jurisprudência que vem sendo firmada para garantir justas indenizações decorrentes de acidentes de trabalho, sem criar ambiente propício à instalação da “indústria do dano moral”.
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Justiça & Cidadania – Passados pouco mais de três anos desde que a EC 45 entrou em vigor, como a senhora avalia a ampliação da competência da Justiça do Trabalho, conferida por ela? Maria Cristina Irigoyen Peduzzi – Sem dúvida a Emenda 45 ampliou de forma substancial a competência da JT. Em relação ao acidente de trabalho, o Supremo Tribunal Federal já decidiu que é de competência da JT o julgamento das ações que objetivam indenização por dano material ou moral decorrentes. Em relação aos outros incisos, também não tem havido substanciais controvérsias. Identifico polêmica apenas em relação ao alcance da expressão “relação de trabalho”. Alguns juízes trabalhistas vêm suscitando conflitos negativos. Em razão disso, o STJ, ao julgar esses conflitos, mantém entendimento que não houve efetiva alteração da competência desse ramo do Judiciário com a mudança, pela Emenda, da expressão “relação de emprego” para “relação de trabalho”. Ou seja, relação de trabalho deve ser lida como sendo de emprego. Nesse sentido, a Corte vem afirmando a competência da Justiça comum para os litígios decorrentes dos contratos de prestação de serviço em geral. Não só contratos de honorários de advogado como de outros profissionais liberais, mas também os de representação comercial, de parceria agrícola, de transporte... Enfim, contratos que são regidos por lei específica ou pelo Código Civil.
A JT inclina-se a admitir a competência dela para esses casos, mas a questão é controvertida. No TST, no que diz respeito à cobrança de honorários advocatícios, há turmas que sustentam que a competência é da Justiça comum, porque se trata de um contrato de natureza civil e não uma relação entre trabalhador e empregador, assemelhando-se mais a uma relação de consumo. Outras sustentam que, embora existam aspectos próprios da relação de consumo, o que se está discutindo, preponderantemente, é um contrato de prestação de serviço, que também alcança as relações de trabalho. Enfileiro-me nessa segunda corrente. Acredito que isso é reflexo da globalização. A JT transformou sua competência para alcançar essas relações, mas o TST ainda não uniformizou seu entendimento. JC – Uma pessoa física poderia ser considerada empregadora, por exemplo, do advogado, também pessoa física, que tenha contratado para defender uma causa? MCIP – Penso que sim, mas nem o TST uniformizou isso. Entendo que a ampliação objetivou justamente alcançar essas situações. JC – Na sua avaliação, a competência da JT deveria ser mais ampla? MCIP – Em relação a isso, significativo é o Projeto de Lei que regulamenta o inciso IX do artigo 114 [da Constituição], que insere entre as situações que devem ser submetidas à JT os contratos de prestação de serviço em geral e todos aqueles que são regulamentados por lei específica. Essa proposta é minuciosa. Havendo uma relação pessoal, ela atribui a competência à JT. Isso nas mais diversas hipóteses: trabalho cooperativo, avulsos, típicos de transporte, parceria, entre outros. JC – Como a senhora avalia o posicionamento dos demais tribunais superiores em relação à nova competência da JT? MCIP – O STF ainda não se manifestou sobre os pontos controvertidos, como os limites da competência para as relações de trabalho autônomas. O STJ, que se manifestou a favor da competência da Justiça comum, adotou uma interpretação de que houve apenas uma mera substituição da expressão “relação de emprego” para “relação de trabalho”. Se formos aos anais, verificaremos que a alteração da expressão foi intencional. Com a globalização da economia, o vínculo de emprego típico passou a ser substituído por outras formas de relação, que são autônomas. O trabalho autônomo vem se implementando em atividades onde só havia o trabalho subordinado. É natural que com isso se tenha ampliada a competência da JT. É uma mudança de concepção em razão das mudanças dos tempos. JC – Em relação às ações por acidentes de trabalho, uma crítica é a de que as indenizações não têm acompanhado a ju-
“O trabalho autônomo vem se implementando em atividades onde só havia o trabalho subordinado. É natural que com isso se tenha ampliada a competência da JT. É uma mudança de concepção em razão das mudanças dos tempos.” 2008 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 31
risprudência da Justiça comum, que antes julgava esses casos. MCIP – Acho que foi bom [ampliar a competência da JT] porque ela é que pode definir até com mais propriedade. Um dos aspectos negativos para as ações anteriores foi a prescrição. No antigo Código Civil ela era de 20 anos. Na JT é de dois anos. Pode-se até postular diferenças de cinco anos antes, mas a ação tem que ser ajuizada dentro de dois anos a contar da extinção do contrato. Então, ao virem para a JT, os processos que tramitavam na Justiça comum estavam todos prescritos. Sensível a esse tema, o TST decidiu pela necessidade de se optar por uma regra de transição. Não só a do próprio Código, que, com a reforma de 2002, reduziu para três anos a prescrição nessas hipóteses. Seria uma regra de transição para as ações que
“O objetivo da lei é compensar o dano que a pessoa sofreu, ainda que muitas vezes ele não possa ser reparado. A indenização tem também efeito pedagógico para coibir novos acidentes de trabalho ou novas práticas de assédio moral.”
foram ajuizadas antes do Código Civil, na Justiça comum, e que foram transferidas para a JT. Foi uma decisão muito importante, porque essa é a única hipótese em que realmente se tem constatado que houve prejuízo ao trabalhador. Em relação ao montante das indenizações, no entanto, se viu que esse é um tema vasto. Temos muito que pensar ainda sobre o assunto, pois, como há lei fixando limites para os valores, os juízes têm muitas vezes adotado critérios subjetivos. Isso é perigoso porque nega a premissa da integridade do Direito, que pressupõe coerência na prestação jurisdicional. Um pede muito, outro uma quantia menor. Às vezes há situações similares com valores absolutamente desconexos. Os tribunais tendem a reduzir os valores fixados em primeiro grau, e, tanto no STJ como 32 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JUNHO 2008
no TST, a jurisprudência é no sentido de se reduzir os valores considerados excessivos. JC – Existe divergência entre a jurisprudência que o TST vem formando a partir da nova competência com a anterior, fixada pelo STJ? MCIP – Não há. Em relação à fixação do valor, o que se identifica é que os tribunais superiores, em geral, têm reduzido valores que muitas vezes são estratosféricos, exatamente para não se criar a indústria da indenização. Não pode pretender que a reparação de um dano sirva para enriquecer uma pessoa. O objetivo da lei é compensar o dano que a pessoa sofreu, ainda que muitas vezes ele não possa ser reparado. A indenização tem também efeito pedagógico para coibir novos acidentes de trabalho ou novas práticas de assédio moral. Os valores são fixados considerando esse duplo aspecto. Para isso é preciso observar critérios que não sejam fruto da mera sensibilidade do juiz. O direito não pode justificar valores aleatórios. Isso tem que ser evitado. JC – O Congresso aprovou um projeto que diminui a quantidade de recursos ao STJ. Na sua avaliação, mecanismo igual também se faz necessário no TST? MCIP – É mais difícil na Justiça do Trabalho implementar dispositivo semelhante porque é muito difícil haver uma causa com uma só questão. No STJ isso vai ser muito eficiente porque as causas se repetem. No TST, as causas, até no mérito, às vezes se repetem, mas é comum o empregado postular outra coisa. É muito difícil uma reclamação exatamente igual à outra. JC – Então, qual seria a solução para a demanda excessiva que hoje assola o TST? MCIP – A súmula impeditiva já melhorou bastante. Temos também a Seção, que uniformiza a jurisprudência quando há divergência interna no tribunal, o que já vem reduzindo o número de embargos e, portanto, vem antecipando o trânsito em julgado das decisões. Agora, acho que a única forma é a educação no sentido de se aceitar a decisão e não recorrer. Acho que já foram todos [mecanismos] implementados. Temos o procedimento sumaríssimo, as comissões de conciliação prévia... Realmente, não sei mais o que se poderia fazer. JC – A senhora é contra mecanismos que visem a impedir os recursos? MCIP – Sou. Tenho muito medo dessa concentração no Tribunal Superior, pois isso impede o debate público que se implementa no Judiciário pela possibilidade de os juízes manifestarem sua posição e com isso contribuírem até para o aperfeiçoamento da interpretação.
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A Saga dos Atingidos por Barragens
Jerson Kelman Professor de Recursos Hídricos na COPPE – UFRJ Diretor-Geral da Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL
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ssisti com muito interesse um documentário com o mesmo título desse artigo, preparado pela PUC-SP por encomenda do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). Há cenas que emocionam os que alguma vez acreditaram que o socialismo redimiria a humanidade – como eu próprio, quatro décadas atrás. São manifestações de união e solidariedade do povo contra a construção de barragens em seus locais de moradia e trabalho. Trazem à lembrança o clássico “Os Companheiros”, de Mario Monicelli. No entanto, as diversas manifestações e palavras de ordem em atos públicos mostradas no filme transmitem mensagens conflitantes e não ajudam a esclarecer o que pretende o MAB. Seria assegurar a justa compensação às comunidades reassentadas? Ou impedir a utilização de energia elétrica para a produção de bens exportáveis? Ou propiciar o aumento de empregos no setor público, e decréscimo no privado, por meio da reestatização de concessionárias de energia elétrica? Ou, ainda, arregimentar os atingidos por barragens para engrossar o exército dos que lutam contra o capitalismo? Hélio Meca, um dos líderes, declara numa das primeiras cenas que “nós não somos contra a barragem em si, nós somos contra o jeito que a barragem é feita...”. Pareceu-me um bom ponto de partida e fiquei animado. Então o MAB aceita a construção de barragens, se bem feitas? Haveria espaço para diálogo e convergência? Uma usina hidroelétrica só é “bem feita” quando há respeito pela população a ser reassentada. Pagar a justa indenização é uma condição necessária, mas não suficiente. Tratar com respeito significa, por exemplo, compreender que não há
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dinheiro no mundo que pague o sofrimento da “dona Maria” que, na velhice, é forçada a abandonar a casa onde viveu toda a sua vida. Nessas circunstâncias é preciso atenção e carinho, não arrogância. Nesse ponto, o MAB e a Aneel concordam. A divergência surge quando a “dona Maria” não quer que a barragem seja construída e ponto final. Nesse caso, o MAB entende que o desejo dela tem que ser respeitado, não importa que, em substituição à hidroelétrica, se construam usinas que gerarão uma energia mais cara e dependente de óleo, não de água, para funcionar. A Aneel, ao contrário, entende que o interesse de “dona Maria”, por mais legítimo, não pode se sobrepor ao de milhões de brasileiros que desejam uma economia competitiva no cenário mundial – e isso significa energia abundante a baixo custo – capaz de lhes proporcionar luz, empregos e boa qualidade de vida, que no mundo moderno só se alcança com o uso de eletricidade. Paradoxalmente, alguns membros do Ministério Público – felizmente poucos –, cujo dever é zelar pelo interesse difuso da sociedade, têm a mesma visão do MAB, que só enxerga os efeitos locais ao meio ambiente e à população, em geral negativos, resultantes da construção de uma barragem. Sem a visão holística, isto é, sem enxergar os efeitos na escala nacional e global, em geral positivos, desconsideram o interesse difuso de todos os afetados pela não-construção, como, por exemplo, o aumento do efeito estufa provocado pela queima de óleo nas usinas térmicas. O MAB argumenta que não é preciso construir novas usinas porque grande parte da energia presentemente gerada serve para produzir bens que serão exportados. Trata-se
“A Aneel tem feito sua parte para impedir que essas brechas lesem os consumidores, por exemplo, opondo-se à concessão de subsídios para a energia consumida em instalações de mineração na Amazônia.” Foto: ANEEL
de uma curiosa visão insular de nação, do tipo “exportar é ruim”. Mesmo entre os mais xenófobos nacionalistas, poucos têm coragem de adotá-la. Afinal, como foi que a nossa famosa “dívida externa” sumiu do horizonte? Não foi por efeito do aumento das exportações? Dito isso, é possível concordar com o MAB que há brechas legais que permitem a exportação de eletricidade subsidiada na forma de bens eletro-intensivos. A Aneel tem feito sua parte para impedir que essas brechas lesem os consumidores, por exemplo, opondo-se à concessão de subsídios para a energia consumida em instalações de mineração na Amazônia. Certamente é possível também concordar com o MAB quando este manifesta desejo que as tarifas de energia elétrica sejam módicas. Só que a posição da entidade é, no mínimo, paradoxal: como seria possível segurar as tarifas em patamares baixos sem contar com a fonte hídrica, que é a mais barata? Mas o que realmente permeia todo o filme são as manifestações do MAB contra o capitalismo. Numa cena típica, os militantes se dão as mãos e o orador afirma “que Deus nos livre dos males do capitalismo, do individualismo, da ganância... que a gente busque a solidariedade, a fraternidade...”. A Aneel valoriza, tanto quanto o MAB, a solidariedade e a fraternidade, principalmente no trato com as populações atingidas por barragens. E é forçoso reconhecer que no passado algumas barragens foram construídas sem o devido respeito a esses princípios. Recentemente a Aneel recebeu alguns representantes do MAB e de outras entidades congêneres. Foram muitas as divergências, mas houve pelo menos um ponto de conver-
gência: é preciso aprimorar o processo de reassentamento das populações atingidas pela construção de barragens. Como nos disse um dos participantes do encontro, “não é razoável supor que um pescador consiga se transformar em agricultor da noite para o dia”. Não é suficiente compensar o pescador tornando-o proprietário de um bom pedaço de terra. É preciso também ensiná-lo como plantar e como comercializar a produção. Ou como exercer um novo ofício urbano, se essa for a melhor opção. É preciso acompanhar o progresso da família, particularmente a educação da nova geração, ao longo de alguns anos e não apenas durante a obra. Essa responsabilidade não deve ser atribuída à empresa geradora de eletricidade que tenha recebido a concessão para explorar o potencial hidráulico. Em geral, ela não tem o conhecimento e a experiência para assumir tão complexa responsabilidade. Correto é fazer com que ela pague o custo, o qual será obviamente repassado para os consumidores. Nada de errado nisso. Cabe à maioria beneficiada pela construção da barragem indenizar a minoria deslocada. Tanto quanto o MAB, a Aneel entende que “as águas são para a vida, não para a morte”. Para materializar esse conceito, é preciso conceber e colocar em prática uma arquitetura institucional que resulte no acompanhamento das comunidades reassentadas durante diversos anos, dando-lhes apoio e assegurando excelentes condições educacionais para a nova geração. Meta que certamente será mais rapidamente alcançada se todas as partes interessadas abandonarem as posições cristalizadas pelo preconceito e aceitarem o diálogo baseado no conhecimento, respeito mútuo e boa-fé. 2008 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 35
O MUNDO ESTÁ MUDANDO
Ernane Galvêas Economista Ex-Ministro da Fazenda
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História do mundo é marcada por uma sucessão de “civilizações”. Algumas duraram milênios, outras duraram séculos. É interessante como a humanidade passou de uma civilização à outra praticamente sem perceber, uma vez que as mudanças são feitas contínua e lentamente. Essas mudanças, como é natural, não são percebidas pelos contemporâneos, que não se dão conta das transformações. Da Pré-História, que pode ter durado milhões de anos, passamos, sem perceber, à História, na qual os documentos somente nos dão conta da civilização dos egípcios, dos povos da Mesopotâmia (babilônios, assírios, caldeus) e dos persas, após a descoberta da linguagem escrita, muitos séculos após a sua iniciação. A civilização judaica é um capítulo à parte, na qual tem início a religião monoteísta, a religião dos livros, iniciada por Abrahão, Jacob, Moisés, Josué e outros patriarcas judeus, assim como a dos hindus e a dos chineses. Daí entramos na civilização da Grécia antiga, de Atenas e Esparta, dos filósofos como Aristóteles, Sócrates, Platão, e a do Império Romano, com a sua organização quase moderna e seus códigos de leis. É a época da Antigüidade, marcada pelas ‘guerras de conquistas’. Os países mais poderosos eram os que possuíam os melhores exércitos, com os quais roubavam as riquezas de outros povos e aprisionavam seus habitantes, transformados em escravos, destinados aos trabalhos na lavoura e na construção dos palácios. A religião, pagã ou hebraica, confundia-se com o Estado, uma instituição que veio surgindo aos poucos, em um processo de evolução natural, na medida em que as populações errantes foram se aglomerando em vilas e cidades, grandes e pequenas. Quando os invasores bárbaros invadiram Roma, por volta 36 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JUNHO 2008
do século V, todo o mundo que consideramos no capítulo Antigüidade desmoronou. A História encerrou um capítulo e abriu outro, conhecido como a Idade Média, que durou, praticamente, até o século XV. A civilização parou. O Estado foi pulverizado e os governos reorganizados em torno dos castelos feudais e das catedrais, nos quais os bispos e arcebispos, ligados à Igreja Católica cristã, liderada por um Papa sediado em Roma, também agiam como senhores feudais. Acima dos condes, duques e marqueses (os senhores feudais), surgiram os reis – na Inglaterra, na França, na Prússia, na Áustria, na Espanha, em Portugal –, chefes do sistema aristocrático, que reunia não só a força militar como os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário associados à Igreja. É a fase do Absolutismo dentro do regime feudal da Idade Média. A partir dos vilarejos, que circundavam os castelos e as catedrais, foram surgindo as metrópoles – Paris, Londres, Viena, Roma, Madri, Lisboa – e as cidades-estados italianas, que prosperaram à base do comércio com o Oriente (Florença, Nápoles, Veneza). Os estudos sobre a geografia terrestre, a descoberta de novos instrumentos de navegação marítima (a bússola e o astrolábio) e o comércio com as Índias deram origem ao período das grandes navegações, que levaram os europeus, principalmente os portugueses e os espanhóis, a darem a volta na África (Vasco da Gama), a descobrirem a América (Cristóvão Colombo) e o Brasil (Pedro Álvares Cabral), e a cruzarem do Atlântico ao Pacífico, na Terra do Fogo (Fernão de Magalhães), chegando mais tarde à Austrália, à Nova Zelândia e à Indonésia. É o predomínio do comércio sobre a agricultura, o início do Mercantilismo, que vai durar até o novo ciclo da Revolução Industrial. A Revolução Industrial começou no século XVIII, praticamente com a invenção de novos equipamentos para
Foto: Cristina Bocayuva
a indústria têxtil, como a fiandeira Jenny, em 1750, e a máquina a vapor, descoberta por James Watt. Daí vieram os novos navios e as locomotivas a vapor, que revolucionaram os meios de transporte e consolidaram a nova era do Capitalismo, período em que ocorreram as maiores e mais rápidas transformações e o maior progresso da humanidade. Mais tarde, vieram os automóveis e os aviões. No período que vai da descoberta da máquina a vapor até os dias de hoje, foram inúmeras as ondas de inovações, cabendo destacar a indústria do carvão, a descoberta do petróleo como combustível e matériaprima de milhões de novos produtos industriais, a descoberta da eletricidade e da telefonia. Nesse contexto, a aviação veio ocupar um lugar de destaque, revolucionando os meios de transporte e os instrumentos da guerra, com o uso da pólvora. É interessante assinalar que desde as guerras de Dario e de Alexandre, até as campanhas de Napoleão, em 1850, foram utilizados os mesmos meios de transporte das tropas e táticas dos exércitos. Tudo isso mudou de forma surpreendente a partir da Primeira Guerra Mundial, em 1914. A Segunda Guerra Mundial, de 1939 a 1945, trouxe-nos a descoberta e o uso da energia atômica, com desdobramentos que ainda não sabemos aonde podem nos levar. Hoje, onde estamos? Para onde vamos? Alguém sabe? A onda da Revolução Industrial vem se multiplicando: primeiro a iluminação, o raio X, o automóvel, a aviação, as viagens espaciais, depois a revolução no mundo das comunicações, o telefone, o telégrafo, o telex, a televisão, o computador, a Internet, o telefone celular. E vem chegando um novo mundo, o mundo da nanotecnologia. Alguns falam na primeira, na segunda, na terceira Revolução Industrial. Um dos aspectos mais impressionantes dos avanços da civilização, a partir da Segunda Guerra Mundial, é, sem dúvida, a revolução do conhecimento, proporcionada pelo rápido desenvolvimento da tecnologia das comunicações. Esse cenário oferece aspectos positivos, de um lado, e negativos, de outro. Do lado positivo temos todos os benefícios da modernidade, incluindo o aperfeiçoamento das técnicas no campo da saúde, responsáveis pela melhoria da qualidade de vida, redução da mortalidade infantil e alongamento das expectativas de vida. A economia mundial vive um de seus melhores momentos, com a expansão do comércio internacional e o enriquecimento dos chamados países emergentes. A China, a Índia, a Rússia e o Brasil, assim como vários países da Ásia e da América Latina, estão apresentando as mais elevadas taxas históricas de progresso social e crescimento econômico. Em contrapartida, é impressionante a dimensão do quadro
negativo, que inclui enormes disparidades de renda dentro das comunidades nacionais, bem como entre as nações dos diferentes continentes. O luxo e a riqueza convivem, lado a lado, com a miséria e a pobreza, nos dias de hoje, como conviviam há milênios. A ordem mundial continua fortemente marcada pelas desavenças políticas, raciais e religiosas, pelo crescente terrorismo e pelas ameaças de guerras nucleares. A brutalidade do ataque às Torres do World Trade Center em Nova Iorque, em 11 de setembro de 2001, foi uma revelação do atraso e da ignorância que ainda prevalecem nos meios religiosos. A conjuntura política atual está marcada por uma corrida armamentista – quem sabe a preparação de uma Terceira Guerra Mundial. A China está armada “até os dentes”, assim como a Rússia, Irã e Israel. Os Estados Unidos estão construindo uma linha de mísseis na Polônia, amedrontando a Rússia. Há guerra civil em vários países da África e sérios conflitos raciais na Europa. Na América Latina, a Venezuela está gastando bilhões de dólares na compra de equipamentos militares, fomentando um nacionalismo retrógrado na Bolívia e no Equador, além de apoiar e financiar a ação subversiva das Farc, na Colômbia, e promover uma campanha de ódio contra os Estados Unidos. Pairam, ainda, sobre esse cenário, os riscos de uma recessão econômica mundial a partir da crise financeira iniciada nos Estados Unidos. É difícil prever o que poderá acontecer no futuro próximo, mas tudo indica que o melhor caminho é continuar trabalhando normalmente, contribuindo para manter um clima de confiança nas relações entre o setor privado e o Governo, entre o capital e o trabalho, dentro do país e nas relações internacionais. 2008 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 37
LIBERDADE DE IMPRENSA NÃO PRECISA DE LEI
Michel Temer Presidente Nacional do PMDB Professor de Direito Constitucional da PUC-SP
“Fazendo essa exposição, o deputado Miro Teixeira acrescentou que, em se tratando de autoridade pública, não há de se falar em calúnia. Seriam incaluniáveis pela imprensa aqueles que exercem função pública.”
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eraldo Ataliba dizia para seus alunos que, no Brasil, há grande desprezo pelos preceitos da Constituição Federal. Argumentava que se a norma está na Constituição, não se lhe dá aten ção; se na lei ordinária, começa-se a olhá-la; se está na portaria (que, na origem, é ordem do porteiro), já se lhe presta gran de reverência; entretanto, se for telefonema de Ministro, ninguém desobedecerá. O tempo da história era o do regime autoritário. Ocorre que, hoje, muitas e muitas vezes ainda é assim. Quase ninguém pergunta, quando se quer praticar um ato, “o que diz o livrinho”, como perguntava o presidente Dutra. O “livrinho” era a Constituição de 1946. Por isso, é louvável a iniciativa do deputado Miro Teixeira, que foi buscar na Constituição Federal todas as regras referentes à liberdade de imprensa para sustentar a desnecessidade de sua regulamentação. Examinou as Constituições brasileiras desde 1891, mostrando que, em todas, as liberdades de imprensa, de expressão, de comunicação eram normas de eficácia redutível, já que poderiam ver diminuído o seu alcance por meio de lei reguladora. Já na Constituição em vigor, não. O seu art. 220 determina que a manifestação de pensamento, a criação, a expressão e a informação sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto na Constituição. Aliás, ao referir-se à Lei, no § 1º do art. 220, impõe-lhe limites dizendo que não poderá conter dispositivo embaraçador da plena liberdade de informação
Foto: José Cruz/ABr
“O nosso sistema republicano é baseado no princípio da responsabilidade. Ou seja: todos, sem exceção, respondem pelos seus atos.”
jornalística. Acrescenta no § 2º a vedação a qualquer espécie de censura. Portanto, não poderá haver lei sobre essa matéria. A liberdade de imprensa é plena e irrestringível por lei infraconstitucional. Fazendo essa exposição, o deputado Miro Teixeira acrescentou que, em se tratando de autoridade pública, não há de se falar em calúnia. Seriam incaluniáveis pela imprensa aqueles que exercem função pública. Em conseqüência, pareceme, não seriam indenizáveis por dano material, moral ou à imagem. Talvez nem tivessem direito à resposta. Somente aos particulares se aplicaria tal direito. Nesse ponto, sirvo-me mesmo do argumento de Miro de que tudo está na Constituição para registrar que o art. 220 se reporta ao art. 5º, incisos IV, V, XIII e XIV, definidor dos direitos individuais e coletivos. É neles que se asseguram o direito de resposta e a indenização por dano material, moral ou à imagem. Ao tratar desses direitos, a Constituição não faz nenhuma distinção entre aqueles ocupantes de funções de Estado e particulares. Ao contrário, a generalidade é a marca da descrição dos direitos individuais e coletivos (CF, art. 5º). É claro que será preciso analisar caso a caso para verificar se houve má-fé do noticiante ou irresponsável divulgação do fato. A revelação de um fato tipifica a atividade noticiosa da imprensa. Uma coisa é revelá-lo tal como veio à luz; outra é dar-lhe o matiz da certeza e do julgamento antecipado. Não é incomum que o fato noticiado se converta em
objeto de comentários de colunistas, muitas vezes tomando posições em relação a ele. Poderá haver maior agravo moral do que a imagem maculada de um homem público que, no decorrer do noticiário, se revela inocente? Não é sem razão que a imprensa já tem cuidado de, em seus quadros, incluir analistas jurídicos que pré-examinem as conseqüências de uma notícia. O nosso sistema republicano é baseado no princípio da responsabilidade. Ou seja: todos, sem exceção, respondem pelos seus atos. Finalmente, entendo que se deva combater o argumento de que a lei é necessária para fixar parâmetros indenizatórios. Não vislumbro tal necessidade. A dosimetria da pena para o direito de resposta e a quantia indenizatória serão fixadas pelo juiz, que avaliará o tamanho (se houver) do dano moral ou à imagem. A sentença será recorrível a várias instâncias até que se produza a decisão final. Este é o sistema de tripartição do poder. Ao Judiciário compete dizer se há o direito pleiteado e qual a sua extensão. Em conclusão: a Constituição já fixa todos os critérios para assegurar a liberdade de imprensa, a impossibilidade de censura prévia e, como resultante, as conseqüências de um agravo à imagem do noticiado. Tem razão Miro Teixeira: não há razão para uma lei menor se a Lei Maior já estabeleceu as regras. Basta aplicá-la. Artigo publicado na Folha de S. Paulo, de 15/05/08.
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Direitos e Garantias Fundamentais: Direito à Vida, à Propriedade e ao Trabalho
Rubens Teixeira da Silva Diretor Financeiro e Administrativo da TRANSPETRO
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preocupação com os direitos fundamentais erigiu-se inicialmente na declaração da Constituição americana de 1786, cristalizou-se na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789, e universalizouse na Declaração dos Direitos Humanos da ONU, em 1948. O artigo 5º da Constituição de 1988 enuncia os direitos individuais na seguinte seqüência: direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Tal seqüência não é fruto do acaso, mas resultado da gradação valorativa dada pelo legislador a cada um desses direitos. O direito à vida aparece em primeiro lugar por ser este de impossível restituição. Ademais, a perda deste direito impossibilita o gozo dos demais. Todos os direitos contemplados no artigo 5º são considerados cláusulas pétreas. Além da Constituição brasileira, outros tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário declaram que o direito à vida é inviolável. Outro direito individual destacado, o direito à propriedade, também é consagrado na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Este direito é assegurado como meio de garantia da subsistência. É o direito universal à terra como fonte provedora das condições mínimas para que a família e a comunidade possam levar uma vida digna. O inciso XXIII, do artigo 5º da Constituição, prevê que “a propriedade atenderá sua função social”. Sob essa ótica, pode-se supor que o Estado deveria garantir pelo menos o atendimento das necessidades básicas de qualquer indivíduo. Não poderia ocorrer o caso de pessoas terem a sua vida ou saúde prejudicadas por limitações de acesso ao direito à propriedade. A realidade histórica brasileira aponta em direção diferente. Pessoas morrem de fome ou por falta de recursos para arcar com custos relativos a
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tratamentos de saúde. No artigo 6º, o legislador constituinte contemplou, dentre os direitos fundamentais, o direito ao trabalho. O direito ao trabalho é também uma garantia prevista na Declaração Universal dos Direitos do Homem, no artigo 23, nos seguintes termos: “Toda a pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do trabalho, a condições eqüitativas e satisfatórias de trabalho e à proteção contra o desemprego”. No cenário social, a renda originária do trabalho é a válvula de escape para que os desprovidos de patrimônio possam subsistir com dignidade. Apesar da importância desse direito, garantido por diplomas legais de hierarquia elevada, o seu não atendimento para milhões de brasileiros tem sido a regra há alguns anos, embora mereça registro que os esforços governamentais visando à reversão deste quadro tenham produzido algumas melhorias. A ausência do emprego para quem não possui patrimônio capaz de garantir a sua subsistência deixará duas alternativas aos marginalizados sociais: a primeira é esperar o auxílio de alguém que possa e se disponha a doar parte dos seus recursos para o desempregado, e a segunda é utilizar-se de meios ilícitos para a obtenção de recursos, caso não receba alguma doação. Esta última poderá levar o indivíduo ao enquadramento em um dos tipos previstos no Código Penal. Contudo, o legislador, reconhecendo que não é razoável exigir de alguém o cumprimento pleno da lei se a sua sobrevivência está em risco, excluiu da ilicitude o crime se este se justifica pela necessidade de subsistência. Esta excludente encontra-se prevista no artigo 23, combinado com o 24, do Código Penal. O legislador seguiu a lógica de que não deveria se exigir de um esfomeado que preservasse o patrimônio alheio quando correndo risco de
Foto: Thelma Vidales/TRANSPETRO
morrer de fome. Por isso, em tese, a situação menos danosa a alguém em situação de penúria é o cometimento do furto famélico, que se constitui em estado de necessidade. Os tribunais têm se pronunciado a respeito, da forma que se segue: “Reconheceu-se estado de necessidade em favor de quem, recém-chegado de seu Estado natal, sem recurso e sem emprego, sem alimentos nem habitação, pratica furto (TACrSP, RT 574/370)”. “Deve haver necessidade de sobrevivência, diante de risco iminente (TJ/DF, Ap. 9.597, DJU 02/05/90, p. 8.485)”. “Atua em estado de necessidade o responsável pelo sustento de família numerosa e carente que, tendo a luz de sua casa cortada por falta de pagamento, efetua ligação clandestina para funcionar vaporizador para filho doente (TACrSP, RT 785/621)”. Portanto, a idéia contida nos artigos 23 e 24 do Código Penal é que, embora tenha sido violado o direito à propriedade da vítima do furto, torna-se este menos relevante do que o direito à vida do esfomeado. Se a motivação foi a extrema penúria, há a presunção de que o faminto não terá outra estrutura à sua disposição para se defender da acusação do furto que praticou, provando que este foi famélico, a não ser a estrutura estatal que se encontra sobrecarregada. Conhecendo-se as condições de funcionamento e de excesso de trabalho do Poder Judiciário, da Defensoria Pública e do sistema carcerário, não é exagero supor que o preso por furto famélico ficará encarcerado por alguns dias, e até mesmo meses ou anos, até que a sua absolvição seja sentenciada ou mesmo que as medidas para a sua soltura sejam tomadas. Se for o preso responsável pelo sustento de uma família, podem-se prever os desdobramentos que a prisão de alguém nessa situação possa causar. A solução mais adequada para que se garanta a subsistência
dos que não possuem patrimônio é a garantia do direito ao trabalho. O não atendimento desse direito pode ameaçar a garantia de direitos individuais como o direito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade. O direito à vida do desempregado estará em risco à medida que, sem recursos, não terá condições de alimentar-se, ao menos adequadamente, para que a sua saúde seja preservada. Por outro lado, sem recursos, o desempregado não terá a garantia de atendimento digno adequado no serviço de saúde pública, que é deficiente. O direito à vida, à segurança e à propriedade dos que não sofrem diretamente os efeitos do desemprego estará ameaçado. Alguém afetado pela fome pode investir contra a vida de outrem para usurpar-lhe o patrimônio. O agressor, se condenado, poderá ter o seu direito à liberdade cerceado. Note-se que o cenário ilustrado para demonstrar o risco que o desemprego provoca ao direito à vida é suficiente para demonstrar os efeitos gerados sobre os outros direitos fundamentais citados, isto é, à liberdade, à segurança e à propriedade. Portanto, isso demonstra o efeito devastador gerado pelo desemprego em uma sociedade capitalista desigual e expõe com clareza a necessidade imperiosa do atendimento aos preceitos constitucionais relacionados ao emprego. Não é circunstancial que o direito ao trabalho seja elevado ao nível de direito fundamental. É que, sem ele, há a possibilidade real de os demais direitos serem ameaçados, em virtude de ações de desespero dos que forem privados de exercê-lo. Reconhecidamente, a necessidade de sobrevivência altera, ainda que temporariamente, a hierarquia de valores de uma pessoa. A persistência de limitações aos direitos individuais gera um ciclo vicioso de degeneração social. 2008 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 41
A MISSÃO CRIADORA DA JURISPRUDÊNCIA – A Revolução Copérnica da Súmula de Efeito Vinculante
René Ariel Dotti Professor Titular de Direito Penal da UFPR
Foto: Alberto Bernardes/Estúdio A Photo 42 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JUNHO 2008
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m sessão considerada histórica pelo ministro Gilmar Mendes, o Supremo Tribunal Federal aprovou a 4ª ‘súmula de efeito vinculante’, sobre a restrição de uso do salário mínimo como fator de indexação. Poucos dias após, surgiram a 5ª e a 6ª súmulas. Independentemente da avaliação do seu conteúdo, nasce um possível e promissor meio para garantir a celeridade de tramitação de muitos processos com razoável duração, como determina a lei fundamental. Atualmente, as salas de trabalho dos magistrados nos fóruns das grandes cidades, em tribunais estaduais ou federais de Justiça, exibem as cargas oceânicas de processos que invadem as mesas e deságuam nas estantes, nos armários e em outros espaços físicos, para manter os litígios concentrados em papéis costurados com milhares de metros de fios de esperança. No Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal os depósitos são muito maiores. Nos gabinetes dos ministros os feitos disputam espaços com livros, cadeiras, mesas e outros móveis que se alternam para receber – dia mais dia! – novos autos a imitar a lenda trágica de Sísifo, condenado no Inferno a rodar continuamente uma grande pedra roliça da raiz de um monte até o alto dele, de onde logo tornava a cair.
“Independentemente da avaliação do seu conteúdo, “A excelsa brasileira, testandomeio e aprovando a prática nasce Corte um possível e promissor para garantir das súmulas, poderá conferir à jurisprudência a segurança a celeridade de tramitação de muitos processos jurídica o vigor didático próprios boa legislação.” comerazoável duração, como da determina a lei fundamental.”
Mas, além de incorporar a missão espiritual do seu ofício, da compreensão familiar, do apoio de assessores e outros funcionários, da solidariedade de amigos e de cumprir fielmente os três preceitos fundamentais do Direito Romano, atribuídos a Ulpiano – honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere (viver honestamente, não lesar os outros, dar a cada um o que é seu) –, qual é o estímulo para o juiz se libertar da rotina asfixiante quando é acossado durante o dia pelos papéis e à noite é perseguido pela autocobrança do que falta decidir? Interpretando a fábula de Sísifo, Albert Camus deixou-o no sopé da montanha: “Cada um dos grãos dessa pedra, cada brilho mineral dessa montanha imersa em trevas forma por si só um mundo. A própria luta em direção aos cimos é bastante para preencher um coração de homem. É preciso imaginar Sísifo feliz”. André Maurois avaliou a influência dessa obra sobre os jovens franceses, quando apareceu, em 1942, durante a resistência. Nunca o mundo parecera tão absurdo com a tragédia da guerra, a ocupação e o predomínio da violência e da injustiça. Sísifo seria a pessoa humana que no princípio do século conseguiu levar a rocha até o alto da montanha. O conflito mundial fizera cair a pedra sobre os escombros,
sem força nem coragem. Então, aquela voz jovem se ergueu e falou: “Sim, é assim mesmo; sim, o mundo é absurdo; não, não há nada a esperar dos deuses. E, no entanto, face a esse implacável destino, importava tomar consciência dele, desprezá-lo e, na medida do possível, transformá-lo. Compreende-se que essa voz tenha sido escutada. Era isso ou nada” (de Proust a Camus). A ‘súmula de efeito vinculante’ deverá acabar com a litigiosidade incontida do Poder Público, costumeiro litigante de má-fé e inventor do calote dos precatórios; deverá reduzir imensamente o número de processos do interesse de bancos e companhias seguradoras; deverá abrir frinchas na paliçada dos recursos especial e extraordinário, de íngremes e tortuosos acessos; deverá, também, reservar pautas para conhecer e julgar inúmeros casos com a centelha de humanidade que eles contêm. A excelsa Corte brasileira, testando e aprovando a prática das súmulas, poderá conferir à jurisprudência a segurança jurídica e o vigor didático próprios da boa legislação. Poderá, enfim, mudar o eixo de rotação da vida de muitos juízos e tribunais de infinitas causas, e acabar com a provação bíblica de seus membros, seqüestrados da liberdade do trabalho e da felicidade de alma. 2008 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 43
A racionalidade do sistema penal Pierpaolo Cruz Bottini Professor-Doutor de Direito Penal da Faculdade de Direito da USP
“Também são fundamentais medidas de modernização do aparato judicial e policial para permitir uma eficaz troca de informações e dados entre autoridades e instituições, e de informatização, garantindo a prática de atos processuais de maneira célere e transparente.”
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discussão sobre o papel e os limites do Direito Penal na sociedade contemporânea desperta as mais acirradas polêmicas e paixões. Vivemos em uma sociedade de massas, de riscos, com grande desigualdade social, em que a prática do crime é uma realidade cotidiana. Delitos tradicionais como o roubo, o homicídio e o tráfico de drogas contracenam com novas formas de criminalidade, como a agressão ao meio ambiente, a lavagem de dinheiro e as complexas e criativas modalidades de lesão à administração pública. A pergunta sobre qual a melhor política criminal para o enfrentamento desta criminalidade deve ser respondida com serenidade e responsabilidade, de maneira a contribuir para a utilização da reação penal da forma mais eficaz e útil, e, ao mesmo tempo, garantir que os preceitos constitucionais de proteção à dignidade e à liberdade humana sejam respeitados, para a própria manutenção do Estado Democrático de Direito. A resposta mais tentadora, e mais usual, é a defesa do aumento do rigorismo penal, como fazem alguns especialistas em segurança pública e agentes políticos, afirmando que as benesses previstas na legislação criminal, como o indulto e 44 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JUNHO 2008
progressão de regime, devem ser abolidas em prol da eficácia da luta contra o delito. A legislação penal brasileira, ao contrário do que se pensa, longe de ser branda, é bastante rigorosa em relação àqueles submetidos ao sistema penal, desde o processo penal até a execução da pena. Todas as alterações na legislação penal, processual penal e de execução penal, nas últimas décadas, foram no sentido de criminalizar condutas ou de ampliar o rigor do Direito Penal (Lei dos Crimes Hediondos, lei do regime disciplinar diferenciado, leis de crimes contra o consumo, Lei dos Crimes Ambientais, Lei de Biossegurança, nova Lei de Drogas, lei que dificulta a prescrição penal). Ainda que possam ser apontados alguns lapsos de flexibilização do Direito Penal, como a decisão do STF de garantir a progressão de regime àqueles condenados por crimes hediondos ou a aprovação de lei que amplia os casos de aplicação de penas alternativas à prisão, estas não modificam o fato de que a grande maioria das normas aprovadas endurece o tratamento do réu ou do condenado. A aplicação desta legislação, pelas autoridades judiciais, não é menos rigorosa, seja no aspecto penal, seja no aspecto processual. O número de presos no Brasil chega à cifra
Foto: Arquivo Pessoal
de 427.134 (janeiro de 2008), sendo que 37% são presos provisórios, ou seja, cidadãos ainda não condenados que aguardam o fim do julgamento em estabelecimentos penais de qualquer espécie. No entanto, mesmo com uma legislação cada vez mais rigorosa, aplicada de forma cada vez mais rígida, o índice de criminalidade aumentou de forma espantosa nas últimas décadas. Recente estudo levado a cabo pelo Ministério da Justiça apontou, por exemplo, que a promulgação da Lei dos Crimes Hediondos não impediu o aumento da prática dos mesmos. Da mesma forma, a Lei de Crimes Ambientais não impediu que as agressões ao meio ambiente se multiplicassem. Fica evidente, portanto, que não é o aumento do rigor na aplicação da lei penal, ou o enrijecimento de sua interpretação, que resolverá o problema da criminalidade do país. Não adianta mais do mesmo remédio quando este já se mostrou ineficaz para o fim pretendido. O tão propalado e defendido programa Tolerância Zero, que reduziu a criminalidade na cidade de Nova York, não consistiu apenas no endurecimento da ação penal, mas trouxe consigo inúmeras outras atividades, dentre as quais programas de inclusão social efetivo, que contribuíram de forma muito mais eficaz para a diminuição dos delitos do que o aspecto midiático da intolerância penal. Por outro lado, a passividade não será também a solução para a superação do problema da criminalidade. É necessário refletir sobre a maneira mais adequada de orientar o Direito Penal para auxiliar na redução das atividades ilícitas, mas também é importante evitar o discurso fácil e sedutor de que basta o recurso ao rigor da lei penal para enfrentar o crime. Como afirmava o ex-Ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos, a prevenção do crime não se faz pelo aumento do Direito Penal, mas pela certeza da aplicação efetiva e célere da lei existente. Para isso, não é necessário aumentar as penas, acabar com o indulto ou com a progressão de regime, mas se faz urgente uma reforma na legislação processual penal para evitar que gargalos e dificuldades de processamento de feitos resultem em julgamentos que levem nove ou dez anos para sua conclusão, com prejuízo para o réu, para a sociedade e para as vítimas do delito. Medidas como a unificação das audiências para ouvir testemunhas, a supressão de recursos despropositados, como o protesto por novo júri, ou que facilitem a intimação e notificação das partes, têm a capacidade de acelerar o processo e evitar a prescrição dos crimes, bem como diminuir as prisões preventivas por tempo além do necessário. Também são fundamentais medidas de modernização do aparato judicial e policial para permitir uma eficaz troca de informações e dados entre autoridades e instituições, e de informatização, garantindo a prática de atos processuais de maneira célere e transparente. Se há polêmica para a realização de interrogatório de réus presos por videoconferência, nada impede a implementação imediata deste sistema para ouvir testemunhas ou peritos à distância, em outros estados ou países, simplificando um procedimento que hoje é responsável por parte considerável do tempo processual.
Por fim, faz-se imprescindível desenvolver um programa de segurança pública que, ao lado da aplicação correta e eficaz da lei penal, assegure programas de inclusão para prevenir que situações de risco social transformem cidadãos carentes em futuros criminosos. Desta forma, alternativas como o Programa de Segurança Pública com Cidadania, lançado pelo Ministério da Justiça, que congrega alterações na legislação processual penal, medidas de repressão e de integração comunitária e social, parecem mais efetivas e responsáveis do que propostas simplistas de mero recrudescimento penal. É importante compreender que fazer política criminal não significa ampliar a repressão de maneira atabalhoada, retirando a eficácia e a credibilidade do próprio Direito Penal. Fazer política criminal exige reflexão sobre as fontes e as razões do delito e a melhor forma de evitá-lo, congregando ações de repressão e de prevenção social, sempre dentro dos limites de atuação apontados pela Constituição Federal. Talvez, desta forma, o Direito Penal perca em termos de espetáculo midiático, mas a sociedade ganhará a percepção de que uma política criminal de bom senso é capaz de trazer resultados mais concretos e animadores na luta contra a criminalidade. 2008 JUNHO • JUSTIÇA & CIDADANIA • 45
PGE-RJ na vanguarda do debate jurídico do país Leonardo Espíndola Presidente da APERJ
“A história do órgão central do sistema jurídico será agora contada em livro da Aperj com o patrocínio da Companhia Estadual de Gás (CEG), a quem registro meus sinceros agradecimentos pelo apoio ao projeto.”
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negavelmente, ao longo dos últimos anos a PGE [Pro curadoria Geral do Estado] experimentou profundas mudanças estruturais com a edição da Lei Complementar no 111/06 e do Decreto no 40.500/07, as quais devem ser creditadas a união de toda a categoria, que jamais deixou de acreditar na importância capital da Instituição para o fortalecimento do Estado Democrático de Direito. Registramos o resgate de nossa dignidade remuneratória, selando o fim da captura econômica de alguns de nossos melhores quadros para outras instituições jurídicas que até então vinham sendo mais bem tratadas pelo Poder Público. A criação, e posterior implementação, do Fundo da Procuradoria Geral do Estado permite hoje que a nossa Instituição seja absolutamente independente do Estado para os fins de custeio e investimento, estando atualmente em curso a instalação de uma nova sede que propicie um ambiente de trabalho adequado, em consonância com a relevância do trabalho desempenhado pelos procuradores. A exclusividade do exercício das chefias das assessorias jurí dicas por procuradores do Estado, outro marco institucional alcançado nos últimos dois anos, solidificou o papel da PGE como órgão central do sistema jurídico – promessa de campanha do go-
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vernador Sérgio Cabral, cumprida no dia 1o de janeiro de 2007. De fato, não podemos deixar aqui de consignar que a trajetó ria política de sucesso do governador Sérgio Cabral sempre esteve ligada à história do fortalecimento institucional da Procuradoria. Como Deputado Estadual e Presidente da Alerj, teve participação decisiva em mudanças legislativas fundamentais para a carreira e, como Senador da República, se mostrou um defensor vigoroso da autonomia das Procuradorias Gerais de Estado. Mas tenho a clara convicção de que o apoio denotado à Procuradoria tem sido honrado pelo trabalho que vem sendo desenvolvido, contribuindo de forma decisiva na viabilização das mais diversas políticas públicas, citando, apenas a título exemplificativo, a viabilização das obras do PAC e os Jogos Pan-americanos. O atual quadro de procuradores tem se mostrado à altura das melhores tradições da Casa, colocando a Procuradoria do Rio na vanguarda do debate jurídico do país, em temas como a Lei de Cotas e o reconhecimento de direitos e garantias às relações homoafetivas. A história do órgão central do sistema jurídico será agora contada em livro da Aperj com o patrocínio da Companhia Estadual de Gás (CEG), a quem registro meus sinceros agradecimentos pelo apoio ao projeto.
Foto: Luiz Winter
Não podemos desconhecer que a nossa classe sempre enfrentará resistências inconfessáveis em razão do papel que desempenha, qual seja, o de exercer o controle interno da legalidade, nem sempre tão simpático. Prova maior de que devemos estar sempre vigilantes, e de que medidas autoritárias contra a classe não são incomuns, foi o ato abusivo e ilegal que originou o antigo Mandado de Segurança no 351/92, uma inominável injustiça contra procuradores, delegados de polícia e defensores públicos. Procuramos pautar nossa gestão sempre na conciliação dos conflitos surgidos, buscando esgotar as vias de negociação administrativas, evitando ao máximo a beligerância, mas jamais deixamos de recorrer ao Judiciário na medida em que nos deparamos com a violação de direitos constitucionais ou legais dos nossos associados. A Aperj esteve presente ainda nos mais diversos fóruns em defesa dos procuradores de Estado, seja no Supremo Tribunal Federal – quando da propositura de Ações Diretas de Inconstitucionalidade contra artigos de nossa Lei Complementar junto à Presidência do Tribunal de Justiça –, nas eleições para a Presidência da OAB e para o Governo do Estado do Rio de Janeiro.
nota:
Muito nos honra a parceria que celebramos com a Associação dos Procuradores do Estado do Rio de Janeiro - Aperj para a criação de um espaço em nossa Revista, onde seus associados poderão discutir temas relevantes de interesse da categoria, bem como do estado do Rio de Janeiro. Sejam bem-vindos!
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O desafio do biênio Paulo Saboya Presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros
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nova gestão do Instituto dos Advogados Brasileiros começa com desafios previstos e obstáculo que se supunha sepultado, mas que infelizmente volta a atormentar a consciência jurídica da nação. Os desafios postos são conhecidos e estimulantes. Cuida-se de aprofundar a relação do IAB com a sociedade e particularmente com os juristas brasileiros de forma a transformá-lo, de fato e de direito, no mais eficaz instrumento de renovação do Direito nacional, seja por intermédio do aperfeiçoamento de seu ensino, seja através de críticas às suas instituições, que, por serem arcaicas, deixaram de servir os interesses do povo brasileiro. O Direito como fenômeno de superestrutura não pode ser negligenciado como instrumento de renovação social; antes pelo contrário: há de servir justamente como meio de correção de mazelas que, conhecidas há décadas, permanecem como empecilhos ao desenvolvimento pleno da cidadania dentro da estrutura do Estado Democrático de Direito. Embora muito haja a fazer em relação às relações de direito privado, tais como a propriedade, a família, a sucessão hereditária e as novas obrigações derivadas da modernização da economia, tudo leva a crer que as questões tributária e penal ganham particular relevo nos dias atuais, devendo sobre elas se concentrar nossos esforços teóricos imediatos. Está em curso no Congresso Nacional reforma tributária que, longe de atender os anseios da população, tende a agravar a concentração de renda e aumentar a carga tributária de forma a impossibilitar o desenvolvimento harmônico da economia nacional, e isso sem o menor proveito para a 48 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JUNHO 2008
população socialmente desamparada, que se torna objeto e vítima do clientelismo político, que, em lugar de libertar, escraviza com o conseqüente esvaziamento da organização popular e retardamento à satisfação de necessidades básicas, como saúde e educação, por exemplo. Propor uma verdadeira reforma tributária é tarefa urgente e magna do Instituto dos Advogados Brasileiros, que deve, para tal fim, aproveitando-se de trabalhos já feitos, convocar todos os especialistas e juristas integrantes de seus quadros para de forma definitiva alcançar e divulgar à nação a posição dos advogados sobre a matéria. O País aguarda isso! A atual estrutura de tributos e encargos sociais que sufoca a economia tem que ser reformada, porque os tempos atuais, quando a competição internacional é implacável, definitivamente não são complacentes com os retardatários. Outro desafio que nos está a bater à porta é o Direito Penal, que à calva de pensadores sistemáticos modernos tende a ser visto como meio de acobertar crimes e criminosos. A exploração de crimes nefandos por uma mídia sensacionalista e o aumento da criminalidade organizada violenta alimentam a sede persecutória de ampla camada da população, que se vê ameaçada em seu dia-a-dia e tende a se socorrer de remédios genéricos simplistas para combater enfermidades que estão a merecer tratamento específico. Essa questão é tão mais preocupante porque, como se vê no noticiário diário, o combate ao crime se faz, ou finge-se fazer, com a perpetração de outros crimes praticados por autoridades que fazem pouco dos princípios constitucionais da ampla defesa, da presunção da inocência e sobretudo do
Foto: Vanessa Vansiger
sigilo profissional e inviolabilidade do lar. Esse é o ovo da serpente. A porta foi arrombada para a entrada do fascismo. A lição que a Itália moderna nos deu é esta: o crime não se combate com o crime. O crime se combate com a legalidade plena. Pois é justamente nessa arremetida de um estado todo poderoso contra as liberdades individuais, seja criminalizando a pobreza, seja levando à execração pública indivíduos cuja inocência é presumida por força da lei, que reside a ameaça atual à advocacia e, destarte, à cidadania. A advocacia está ameaçada e o está tanto quando um advogado é impedido de ingressar livremente nos tribunais, sob alegação de segurança, quanto em nome da celeridade processual se suprimem recursos e fases processuais, como se a presteza da prestação jurisdicional fosse inimiga da maturação serena da lide, seja ela de que natureza for. É claro que no fundo de todas as questões acima esboçadas está a própria formatação do Estado Democrático de Direito, que deverá servir ao povo brasileiro. A estrutura que herdamos é importada e arcaica. Isso, por óbvio, não significa que seja imprestável, mas certamente, uma vez testada, como o está sendo, tem que ser corrigida naquilo em que se demonstrar ineficaz. Não há limites para os questionamentos! É preciso ter coragem para perguntar: O Judiciário está nos servindo? O Legislativo está nos servindo? O Executivo está nos servindo? Para que serve o Legislativo Municipal? Por que não existe um Judiciário Municipal? Óbvio que um biênio é muito pouco tempo para responder a essas perguntas. Mas não custa começar a fazê-lo.
“A atual estrutura de tributos e encargos sociais que sufoca a economia tem que ser reformada, porque os tempos atuais, quando a competição internacional é implacável, definitivamente não são complacentes com os retardatários.”
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Os novos ministros do STJ Da Redação Foto: Christophe Sciani/STJ
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m substituição aos ministros Raphael de Barros Monteiro Filho, Hélio Quaglia Barbosa e Francisco Peçanha Martins, tomaram posse no Superior Tribunal de Justiça, no dia 17/06/08, os ministros Geraldo Og Fernandes, Luís Felipe Salomão e Mauro Campbell, que segundo o presidente da Casa, Humberto Gomes de Barros, “contribuirão para minimizar o estigma da morosidade processual e levar aos brasileiros uma prestação jurisdicional mais rápida e eficaz”. A aquisição dos três novos membros privilegia o Tribunal Superior com o conhecimento notável e a experiência premiada de um pernambucano, com 27 anos de magistratura e expresidente do TJ/PE, ministro Geraldo Og Fernandes; um manauense com 20 anos de Ministério Público, ProcuradorGeral do Amazonas em três oportunidades, ministro Mauro Luiz Campbell; e um baiano, mas carioca de formação e carreira, ex-desembargador no Estado do Rio de Janeiro, com 20 anos de judicatura, experiência como dirigente da AMB, ex-promotor e atual presidente da Escola Nacional da Magistratura (ENM), ministro Luís Felipe Salomão. Para Luís Felipe Salomão, a sua indicação para compor o STJ foi uma homenagem à magistratura do Rio de Janeiro e uma honra para quem é juiz de carreira. A sua expectativa é somar. Questionado sobre o imenso número de processos, o novo ministro afirma que isso assusta, mas que também aumenta a vontade de trabalhar no Tribunal. “Assusta porque eu venho da Justiça estadual. Eu não estou acostumado a ver um volume tão grande de processos dentro do gabinete. Então, a perspectiva é realmente de muito trabalho. Agora, por outro lado, é o coroamento de uma carreira, o último degrau da minha carreira de juiz. Então, para mim é um desafio”, declara. Tendo recebido vinte votos dos vinte e sete válidos no Superior Tribunal de Justiça, foi o mais votado e sufragado no primeiro escrutínio. Porém, conforme suas 50 • JUSTIÇA & CIDADANIA • JUNHO 2008
próprias palavras: “Quem está indo para o STJ não sou eu, é a Magistratura do Estado do Rio”. Em seu discurso de despedida no Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, o ministro Salomão expôs seus anseios e expectativas para o cargo tão almejado na Corte Superior: “(...) Nosso Tribunal, como é reconhecido hoje, é o melhor do país. Portanto, no momento em que o destino reservou-me essa surpresa, quero, na verdade, transferir esse reconhecimento aos juízes do meu Estado. (...) A homenagem, portanto, é para a magistratura do Rio de Janeiro, no momento em que o Poder Judiciário precisa se redescobrir, se recriar, reinventar. Recompor sua credibilidade a partir de uma agenda positiva. A crise pela qual atravessa o nosso Poder, pouco diferente daquela que perpassa todo o Estado brasileiro – cada vez mais diminuto, com péssimos serviços nas áreas de educação, saúde, esporte, lazer, dentre outros –, serve para um exame das ações passadas e um olhar generoso para tentar vislumbrar um futuro melhor. (...) A explosão de demandas ocorrida a partir da Constituição de 1988 (o número de causas novas no Judiciário galopa e se multiplica por mais de 25 vezes em períodos de cada 10 anos), assim como as modificações estruturais levadas a efeito na sociedade brasileira moderna, exigem que o Judiciário passe por um sistema de modernização. No caso do Superior Tribunal de Justiça, o “Tribunal da Cidadania”, criado para ser o intérprete final da aplicação da lei federal, tribunal fundamental para o resguardo do “pacto federativo”, essa proporção não é diferente.” Para encerrar seu discurso, o novo Ministro fez menção ao final da peça “Hamlet”, de William Shakespeare: “Se tiver que ser agora, não está para vir; se não estiver para vir, será agora; e se não for agora, mesmo assim virá. Estar preparado é tudo.”
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