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Sergio Veleda

BUDISMO

A arte de equilibrar-se sobre um fundo vazio

editora

kalango



Sérgio Veleda

BUDISMO

A arte de equilibrar-se sobre um fundo vazio

2ª Edição Ampliada

Simões Filho, 2013


© Sérgio Veleda, 2013 Direitos adquiridos para a língua Portuguesa pela Editora Kalango Ltda Rod BA 09 Km 07 Caixa Postal 029 Simões Filho, Bahia, 43700-000 contato@editorakalango.com.br www.editorakalango.com

S697A Sérgio, Veleda, 2013 Budismo, A arte de equilibrar-se sobre um fundo vazio/ Sérgio Veleda. -Simões Filho: Kalango, 2013 112p;

ISBN 978-85-89526-52-4 1. Literatura. 2. Romance. I.Título. CDD: B869.3


Para Caiano Veleda, que desde muito pequeno aprendeu a ouvir a hist贸ria de Buda



Sumário 7 Prefácio 9

Introdução a nova edição

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Introdução

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Vida e Experiência do Buda

19 NATUREZA

DA EXPERIÊNCIA DO BUDA

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DE VOLTA AO MUNDO DE TODOS OS DIAS

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GIRANDO A RODA DO DHARMA

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A PRIMEIRA NOBRE VERDADE

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SEGUNDA NOBRE VERDADE

31 TERCEIRA 33

NOBRE VERDADE

QUARTA NOBRE VERDADE

35 CAMINHO

DE OITO PASSOS

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OS TRÊS SINAIS DA EXISTÊNCIA

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O EFEITO PRÁTICO DE SUNYATA SOBRE OS TRÊS SINAIS

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O PRAJANAPARAMITA

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O BODHISATVA

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A NATUREZA PERFEITA

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ESCOLAS BUDISTAS

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OS SEIS CÓDIGOS DE ÉTICA DA CONDIÇÃO GUERREIRA



Prefácio

Trata-se nitidamente de uma definição criativa e provocante do que ainda não sabemos bem por sermos crianças; o Budismo, a arte de viver e de ser feliz, sendo isso o que mais nos importa no limiar do Séc. XXI. Deletamos conhecimentos inúteis, dissolvemos conceitos, derrubamos barreiras e de forma quase sutil, começamos a empreender uma alegre e refrescante jornada pelos recônditos do ser, compreendendo aquele que é o mestre das mentes livres: o BUDA. É ELE o Mestre que nos faz pensar sobre a futilidade do sim e do não, do certo e do errado, e sobre a grandiosidade do talvez. Percebemos, no início temerosos, que somos talvez divinos – abrindo um leque de incontáveis probabilidades outrora referidas como misteriosos aspectos da mente. Cogitamos, quem sabe vai dar certo, sobre o Caminho do Meio. Analisamos suas verdades relativas e absolutas, desenvolvendo humildade pela constatação da complexidade do cérebro humano e suas faculdades ainda inexploradas ou bem compreendidas pelo homem e pela ciência. Viva a experiência e a percepção direta dos fenômenos, entretanto vazios de existência inerente. Podemos, pela primeira vez na história, surfar ou parados contemplar o fruto da nossa história: aquilo que não é o fim nem o começo mas o incessante navegar, quando despertos, na tranquila profundidade do oceano cósmico ou aquilo que rola ladeira abaixo juntamente com os escombros de uma civilização falida. Sem antes deixar de lado as teorias ultrapassadas e gerar incôndita coragem e fé – buscar perceber o rio – GATE; o além do rio – GATE GATE; o que está muito além do rio – PARAGATE: aquilo que está e é muito, muito além do eu e do rio: PARASAMGATE: a sabedoria última do vazio - BODHI SVAHA.

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Os caminhos são os comuns, porém temos ainda os vastos e os profundos; todos variados, moldados silenciosamente pela personalidade amadora que insiste em seguir apenas com o mapa. O território que é a rede revela-se patrimônio de ninguém e comum a todos os seres sencientes; de forma amorosa e compassiva, interdependentemente nos estrutura, fornece conteúdos e nos faz dançar. Cada livro escrito sobre o Budismo é uma viagem – um relato especial de um discípulo, com esperanças no Buda, ou sem esperanças no Buda, ou além das esperanças no Buda. Nada complicado, conforme constatamos pelos depoimentos e preciosas informações prestadas pelo autor SÉRGIO VELEDA. É em especial um convite, não apenas para uma pesquisa séria mas sobretudo para uma vivência compartilhada; um estímulo, um pontapé, uma parada, uma provocação ou podemos considerar um livro com conteúdo rico para meditação. Temos assim a história do Buda, dos giros da Roda do Dharma, As Quatro Nobres Verdades, o Caminho Óctuplo, passeando pelo LAMRIM ou Etapas do Caminho Budista, de forma leve e prazerosa, com sugestões, práticas e ensaios sobre a natureza perfeita ou sobre a Doutrina do Mahamudra. De forma criativa, Sérgio Veleda aterrissa e expõe sua pesquisa pessoal e bibliográfica, culminando com o “Sutra da Mão Vazia”, em homenagem a Allan Watts e Allen Ginsberg. É um jovem Tathata, trazendo para nós as ideias do “errante vagabundo que quando passava de aldeia em aldeia costumava dizer: desde o começo, nenhum Buda se tornou Buda!” – e percebam: continua equilibrado sobre um fundo vazio. E... “ há um momento em que se deve calar...” BOA VIAGEM! Tânia Belfort

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Introdução a nova edição

Escrevi esse livro já fazem alguns anos, em três noites e três dias. Foi feito de forma rápida, intuitiva, livre, fluída, descompromissada, e, isso se percebe em sua linguagem e estética. Não foi minha intenção fazer algo rebuscado, mas um texto simples com pontos basilares ao contexto budista. Agora, para a presente edição, o ampliamos com uma palestra proferida aos alunos da Escola de Meditação & Artes Contemplativas do Vale do Ser. Se trata das seis paramitas do caminho bodisatva no budismo, desenvolvida e compreendida como seis códigos de uma ética, para o aprimoramento da condição humana. Abordei as seis paramitas como disciplina e conduta moral do guerreiro, que se coloca em uma atitude de destemor perante a sua vida. Quis trazer o tema para a vida secular com uma abordagem prática a vida de todos os dias e seus relacionamentos. Aqui, ser guerreiro, equivale, a desenvolver uma vida descente, comum, doméstica, com um sentido de dignidade e valor. Oportunamente, espero me ater a um material mais extenso para publicação, sobre o budismo. Por hora, o mais importante é oferecer uma simplificação com uma insinuação de poesia. Verão de 2013

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Introdução “Nunca antecipe a tristeza de amanhã. Viva sempre neste paradisíaco Agora... Levante-se. Por que lamentar este transitório mundo dos homens? Passe toda a sua vida em gratidão e alegria.” Omar Kháyyám, Rubáiyát

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eu amigo e irmão Dhan Ribeiro me pediu que lhe escrevesse algo introdutório ao Sufismo, tema que muito me toca. Disse a ele que não me sentia com propriedade para tal, mas que estava disposto a escrever sobre um outro tema, o Budismo. O Budismo se inseriu na minha vida em meio a um processo de buscas, alimentando e esclarecendo fases do meu percurso. Eu tinha ido buscar refúgio no existencialismo de Jean Paul Sartre e em muitas vertentes da poesia, principalmente a de William Blake e dos poetas visionários. Embora minha angústia não encontrasse saída nem consolo no existencialismo sartreano, experimentava inspiração e encantamento na poesia de Blake e outros poetas. Havia resolvido me tornar um poeta, um bardo, um beatnik em busca da beatitude que Jack Kerouack, Allen Ginsberg, Gary Snyder, o que muitas pessoas na minha geração também haviam buscado. Sentia-me parte de uma tradição profética que aprendi através de Norman O. Brown. Estava em uma busca poético espiritual que começou pela Macrobiótica, Yoga, Vipassana, Reich, Zen, Allan Watts, Rajneesh (Osho), Carlos Castañeda, John Coltrane, estados alterados de consciência e caminhadas românticas inspiradas em Thoreau, Rosseau e Whitman. Mais recentemente veio a inspiração na concepção guerreira de Chögyam Trunpga, no Eneagrama e 13


no processo psicoespiritual com Cláudio Naranjo, a quem tenho muita gratidão. O Budismo em todo esse tempo sempre esteve em minha vida, independente de qualquer formalidade. Como a ideias do nada, do vazio, da evanescência ocupava minhas entranhas, meus temores, tormentos e diálogos com a morte, o Budismo passou a ser parte da minha inquietação filosófica e artística. Dessa perspectiva passei a ver o vazio não mais como desolação e penúria, mas como a abertura de um vasto espaço que penetra no presente, no aqui e agora, como uma espada de prajna, um raio de vajra, uma bastonada zen. Essa compreensão tem estimulado meu desafio e minha coragem para estar em um mundo em constante impermanência, imprevisibilidade e insondabilidade, como diria Don Juan de Castañeda. No atual momento o Budismo é uma das bases de compreensão na minha função como terapeuta e facilitador dos processos de transformação das pessoas que acompanho. Influiu na forma de me relacionar com meus clientes e alunos. Ampliou meu entendimento psicológico do sofrimento humano, abrindome para a compaixão e a coragem, como faria um bodhisatva. Faço aqui um esboço rápido e curto sobre um tema muito vasto. BUDISMO A ARTE DE SE EQUILIBRAR SOBRE UM FUNDO VAZIO significa a arte de soltar, desprender e largar não necessariamente o que está fora de si, mas o que está dentro. E assim experimentar a sensação de abrir-se ao espaço, à vacuidade. Saliento: sua visão espiritual não teísta; a coragem guerreira que incentiva o destemor de ver esse mundo como um fluxo impermanentemente fascinante; a arte do trapézio, a de se equilibrar de forma humana e corajosa sobre o fundo vazio de todas as coisas. Embora formalmente não me encontre inserido ao Budismo, aqui fica minha convicção no Buda, no Dharma e na Shanga formal e informal de praticantes. Dessa shanga informal fica minha saudosa lembrança de três “personagens” Zen que

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acompanharam parte dessa jornada: Abhinandan, Atit-Dhan e Pantadhana. Sérgio Veleda, 12.01.04, Novo Hamburgo, RS. Ao tilintar do sino do camelo no deserto.

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Vida e Experiência do Buda Breve história de um príncipe

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Budismo nasceu na Índia cerca de 500 a.C., mas se desenvolveu fora da Índia obtendo importância na China, Ceilão, Japão, Tailândia, Tibet e Nepal. Não encontraremos no Budismo a figura de Deus. A sua origem é sapiencial. Não foi concebido por intervenção ou revelação divina. O Cristianismo foi uma revelação de Deus a Jesus, assim como o Islã foi revelado por Alá a Maomé. Mas o Budismo nasceu da experiência direta de um homem: Gautama Buda. O Budismo se origina de uma experiência individual, de um homem que acreditava apenas na própria experiência e recomendava a todos os que se aproximavam dele a não acreditar em nada sem antes provar. Por isso, o Budismo é pedagógico e a conduta de Buda, o exemplo. Sidartha Gautama, o Buda histórico, nasceu nas proximidades de Kapilavastu, ao norte da Índia, no reino Sakia. Filho do rei Sudodana, viveu por muito tempo cercado de uma visão do mundo rica, alegre e prazerosa – seu próprio pai sempre evitou que percebesse a sombra do mundo. Uma vez, aos 29 anos, ele rompeu os limites do reino do seu pai. Deparou-se com quatro situações antes nunca vistas. Percebeu a sombra da vida que lhe estivera oculta. Viu a decrepitude da velhice em um homem carcomido pelo tempo; as agruras da doença na figura de um enfermo; a fatalidade da morte em um cadáver prestes a ser cremado nas margens de um rio; e um monge que meditava absorvido interiormente. Esses fatos foram como uma sentença cabal. E tornaramse as motivações de toda inquietude de Gautama, por certo tem17


po. Ele não cessava de se perguntar sobre o sentido das situações com que se deparou, sem encontrar respostas. Certa noite quando todos dormiam no seu reino, ele abandonou Yashodara, sua mulher, e Rahula, seu filho. Deixou suas credenciais como príncipe, cortou os cabelos e abandonou suas vestes ricas e perfumadas. Resolveu entrar, através da sombra do mundo, em uma direção que ele próprio desconhecia. Foi para a floresta, o lugar onde na sua época se recolhiam para meditar aqueles que buscavam esclarecimentos. Ali conviveu com anacoretas, pânditas, eruditos e professores. Privou seus sentidos através de práticas ascéticas que mortificavam o corpo. Jejuou e fez uso de formas estoicas em que usava o desconforto físico e psicológico – como os yogues da floresta faziam para neutralizar o próprio ego. Mas não encontrou respostas e nem aplacou a ânsia que carregava consigo. Durante seis anos ele ficou na floresta em busca de respostas que não obtinha. Foi se decepcionando gradativamente com os professores e buscadores com quem convivia, e com as suas práticas. Chegou à exaustão total, quase fenecendo, sem conseguir a própria iluminação. Estava com trinta e cinco anos, faminto e seminu assim como os homens santos da floresta. Próximo de onde estava, viu um professor ensinando seu aluno a afinar um instrumento de música. Ouvia de tal homem que ao esticar a corda demasiadamente se obtinha um som dissonante e que, ao deixar frouxa demais a corda não obtinha tensão suficiente para ser tocada. Naquele momento, isso foi o necessário para abandonar o ascetismo louco que estava envolvido e compreender algo de sua busca. Então, resolveu aceitar a comida oferecida por uma jovem que o encontrou na floresta. Nesse ponto, já tinha provado em sua vida dois caminhos. Um de prazeres dos instintos, no reino de seu pai, outro de ascetismo rigoroso, na busca de compreensão existencial. Revigorado pela comida, sentou-se debaixo de uma figueira, a árvore Bodhi (ficus religiosa), e se determinou a entrar 18


no fundo da própria mente, raiz de toda a inquietude, origem e fim de todas as coisas. Encarou a noite escura de sua alma. Parou todos os esforços externos, toda a busca, toda a caminhada e voltou toda sua atenção e energia para dentro de sua mente. Chegava a um ponto onde nada mais existia para saber, nada mais para procurar. Restava a cessação de tudo, a interrupção de todo e qualquer movimento.

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NATUREZA DA EXPERIÊNCIA DO BUDA

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iz-se que durante sete semanas Buda meditou sob a árvore Bodhi. Camada por camada da sua mente foi se desvanecendo de sua forma bruta. Desidentificava-se de tudo o que não tinha existência concreta, ou melhor, em nada mais se agarrava diante do fluxo incontido de todas as coisas. Até que chegou a uma experiência onde só existia espaço e liberação dentro de si. O príncipe Gautama vivia a experiência da espacialização como base e natureza de sua própria mente. O que experienciava tinha a qualidade de abertura e alargamento das fronteiras do eu, dissolvendo-se no espaço de todas as coisas. Percebia, a partir disso, que nada mais estava separado, que não havia dualidade em sua experiência. Conforme permanecia nesse espaço via as coisas de forma clara, límpida, sem fronteiras (sem dualidade) até o ponto em que o dentro e o fora não encontravam divisão, separação. Sua mente ficou vazia, era pura claridade, um cristal luminoso e agudo capaz de cortar e dissipar toda e qualquer sombra. Segundo sua experiência, o espaço de sua mente se tornou vacuidade. Percebeu que a vacuidade era a natureza de todos os fenômenos, e natureza última de tudo o que é experimentado nesse mundo. Viu, dessa maneira, que a vacuidade era a falta de existência inerente a qualquer coisa. Entendeu que a compreensão direta dessa vacuidade significava a liberação completa de todo o seu sofrimento. Por fim, claro estava que a realização dessa vacuidade era a cessação de tudo ou Nirvana. Ali, debaixo da árvore Bodhi, a vacuidade convertida em liberação se transformou em gozo, em desprendimento. Ficou conhecido, desde esse momento, como Buda. Aqui podemos en21


tender que Buda não é o nome de uma pessoa, mas o estado puramente desperto da mente na sua natureza, que se confere como Iluminação. Também ficou conhecido desde esse momento como Sakyamuni, o sábio (muni) dos sakyas. A base de sua experiência, que posteriormente se qualificou como o seu ensinamento, ficou assim denominada Dharma (a lei de como funciona a realidade), e todo o seu ensinamento/ experiência Budadharma. O que significa que aquilo que Buda experimentou e ensinou só pode ser conhecido por experiência direta, e não por abstração filosófica. Equivalente é o fato de que quem vê o Dharma vê o Buda, e quem vê o Buda vê o Dharma. A experiência de sua própria mente como espaço, também ficou compreendida como experiência da Luz Clara, qualidade essa do próprio espaço. Dela se origina um estado de amor, compaixão, alegria e equanimidade que formam os mais nobres pensamentos. Tudo se extingue nessa claridade, ao mesmo tempo em que tudo pode ser visto tal qual como é. O Buda também ficou conhecido como Tathagata: tatha (esse assim) gata (chegado na outra margem). Aquele que vai ou vem assim mesmo como é. Não está mais aprisionado na abstração ou na forma conceitual. É Aquele que vê tudo como é. Ele está para além do bem e do mal, do passado e do futuro, do móvel e do imóvel, da fixação e da mudança. Referido de forma definitiva, Tathagata é a natureza original e verdadeira de todos os seres. Por isso a natureza do próprio Buda e Tathagata é uma coisa só, o que designa a condição primordial da Realidade e não apenas o nome Buda como nome de um homem, mas o nome da realização da Realidade. O que mais sublimemente expressa toda a experiência do Buda é o que se chama Mahamudra. Maha quer dizer grande e mudra significa gesto. Desse modo a experiência do Buda é um símbolo, mas não como uma imagem, mas símbolo como gesto da experiência possível que ele deixou como exemplo.

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DE VOLTA AO MUNDO DE TODOS OS DIAS

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s primeiras pessoas que se aproximaram do Buda foram seus primeiros companheiros de busca. Eles testemunharam seu estado e o convenceram a ir até o Parque dos Veados, perto de Benares para fazer um sermão entre os que ali se dedicavam à Busca. Foi nessa situação que Buda fez o discurso em que proferiu a essência de sua compreensão, conhecida como “As Quatro Nobres Verdades”. Num primeiro momento o Buda se perguntou se poderia ser entendido, se não poderia parecer loucura afirmar que a liberdade estava na cessação de tudo, inclusive da própria busca, e que esse mundo na verdade carecia de qualquer fundamento. E que, ao final, a experiência de liberação poderia estar em se soltar, não agarrar mais nada e se equilibrar sobre um fundo vazio. Mas o fato de ver todos mergulhados na sombra do sofrimento – que se origina da ignorância em não perceber que nessa vida nada é sustentável – despertou nele a árdua tarefa de ensinar algo que não pode ser comprovado antecipadamente ou intelectualmente. Foi sua compaixão e sua condição guerreira de estar diante do próprio sofrimento de todos os seres que lhe fez entrar no mundo de todos os dias para ensinar. Durante quarenta e cinco anos o Buda ensinou. Sua compreensão nasceu das interrogações que fez sobre o medo, a solidão, o sofrimento, a ignorância e a neurose da mente (anseio ou desejo de perpetuação). O que falou durante esse tempo apareceu na forma de sutras (sermões poéticos). Os sutras não são filosofia, religião ou dogma, são diagnósticos como um médico qualificado pode fazer sobre uma doença. 23


Agora nada mais há, nada mais é, nada mais pode ser dito, e ainda assim o mundo que não pode ser dito permanece para ser tocado e descoberto. Olhe esse mundo sem nome, sem forma! Veja sua pureza, e veja sua própria realeza. Esse é o mundo do Buda. Quando o olho da mente vê assim como o Buda viu sob a árvore bodhi, tudo é silêncio e poesia. Dessa forma tudo está em Ação. É a Terra Pura.

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GIRANDO A RODA DO DHARMA As Quatro Nobres Verdades

É

certo quando acompanhamos a compreensão de Buda, que ele não estava interessado em fazer filosofia ou elucubrações. A natureza de sua própria experiência é tão direta e tocante, que sua preocupação ao ensinar nasce da sua compaixão e da sua simplicidade em ser direto, em ir ao ponto. O ponto é o sofrimento. Ocidentalmente inter-relacionamos as questões da vida, sempre de forma indireta, elucubrando. Para lidar com a questão do sofrimento é necessário deixar a elucubração de lado – pois ela funciona como amortecimento e distanciamento – e nos relacionar diretamente com ela. A sofisticação da visão budista que conhecemos, tal como sabemos hoje, deu-se através de seus seguidores. Bem se sabe que as pessoas que se reuniram ao redor de Buda não eram simples camponeses e pescadores como foram os alunos de Jesus, por exemplo. As pessoas que seguiram o Buda eram eruditas e poetas. Mas o Buda dizia apenas isso: “Eu ensino a realidade do sofrimento, a causa ou a origem do sofrimento, a cessação do sofrimento e o caminho para a cessação do sofrimento”. Esses quatro pontos comentados pelo Buda foram mostrados direta e abertamente, desde o começo. O que Buda chamava de dukkha (sofrimento) tem como equivalente contemporâneo “a falta de sentido”. Viver sem saber bem como e porque. Viver de forma automática, mecânica. Somos alimentados incessantemente desde o nascimento pela ideias de possuir, agarrar e competir. A construção exclusivista do eu leva ao meu. Aprendemos uma visão de mundo como per25


petuação que nos enclausura e caímos em uma rede de desejos que vão se sofisticando com o tempo. O desejo se sofistica como desejo de perpetuação e, no delírio, já não sabemos claramente o que desejamos para permanecer. Quando não sabemos mais e somos nada mais do que impulsos elétricos plugados a essa visão fictícia, vivemos, como diz Jean Baudrillard, fingindo ter o que na verdade não temos. Maya: o teatro do sofisticado engano. Virtualmente corremos atrás do que não é, tal qual um cão que tenta pegar o rabo. O mundo, como o construímos em nossa mente, é uma miragem que se intitula real. Esse engodo produz a falta de sentido e o sofrimento. Vivemos dentro de uma “matrix” (como dão a entender os irmãos Wachowski), que determina a realidade e a visão de mundo. A Matrix emite uma noção confusa e determina: skandhas, originação dependente, samskara, maya... Vivemos de forma a não descobrir, a não ver, a não saber a causa da “falta de sentido”. Amamos o desconhecimento (avidya) quase como se fosse natural viver assim. Essa naturalidade (ou autoengano) está na forma cotidiana de ficarmos inconscientes. Somos socialmente regulados de fora para dentro. Esse “modus vivendi” não passa da vida experimentada como evitação ou repressão – no sentido freudiano – da dor e do sofrimento. É viver sem um sentido nobre e autêntico, permanecendo na superfície, para não arriscar o desmascaramento da ilusão e cair no que é desconhecido. Quando o Buda girou a roda do Dharma e proferiu o sermão sobre “As Quatro Nobres Verdades”, estava apontando para uma única coisa a ser conhecida em profundidade e experiência. “As Quatro Nobres Verdades” foram apresentadas à maneira védica de diagnóstico seguido pela medicina hindu: apontar a doença e sua causa, o entendimento para a cura e a prescrição do medicamento. Em toda a visão do Buda estão claros quatro pontos. Antes de tudo, Gautama afirma com sua experiência que nada per26


manece. Desmascara a ilusão e mostra que tudo pode ser frustrante. Que esse mundo, de fato não tem nenhum fundamento porque carece de substância. Mas o Nirvana, a vacuidade, a liberação, é o triunfo dos jinas, dos guerreiros. O Buda fez a função de um médico ou, melhor, de um psicoterapeuta na sua época. Ele descreve a doença, a neurose e aponta para a causa da biopatia, mostrando a cura para a doença e, por fim, indica os passos para a sanidade. O Buda é o psicoterapeuta; o Dharma (os ensinamentos) o remédio; os alunos (a Shangha) e interessados, que seguem o ensinamento e o demonstram com sua própria experiência, são os enfermeiros. Em outras palavras, essas são as “três joias”: o Buda, o Dharma e a Shangha.

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A PRIMEIRA

NOBRE VERDADE

“Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira rio. Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos que a vida passa (...)” Fernando Pessoa

A

Primeira Nobre Verdade é a verdade do sofrimento – Dukkha Satya. Não se trata de um dogma ou de uma lei arbitrária, mas de uma realidade vivenciada. Desde que o mundo é mundo, todos os que por ele passam provam da verdade do sofrimento. Todos nós sofremos, de algum modo, por privação, doença, velhice, morte, culpa, perdas, abandono, ansiedade, engano, frustração e raiva. Sabemos que o prolongamento da vida nos fará lidar com as adversidades, que se tornam mais angustiantes na medida do nosso próprio desconhecimento sobre elas. Há uma única realidade para isso: o fato que nada permanece e tudo passa. O mundo como o vemos – não o mundo real – incita nosso desejo de prender o que está acontecendo. Mas as coisas nem sempre ocorrem como se quer, porque tudo pode mudar inesperadamente. Quando nos frustramos, sofremos. De fato nada acontece exatamente como queremos. Tudo pode mudar e quase sempre é impossível prever ou reter este fluxo. Quando o tempo se prolonga, mais ameaçados estamos. Aqui está a relação entre o medo e a esperança. Só quem tem esperança de fato tem medo e não pode viver o presente. O desejo de segurar, controlar ou evitar produz frustração. Embora o sofrimento seja algo conhecido em suas diversas formas de manifestações, nunca sabemos quando e como ele 29


poderá acontecer. Mas uma coisa é concreta e realmente direta: não podemos evitá-lo. Essa é a primeira nobre verdade: a realidade do sofrimento. Passamos a vida inteira tentando ignorar esse fato, tentamos de todas as formas escondê-lo, e de tanto fazer isso nos embrutecemos. Perdemos a sensibilidade ao reprimir a existência do sofrimento. Com isso ficamos cegos, perdidos, autômatos, chegando à total falta de sentido. Damos um exemplo de profunda covardia e medo. A realidade do sofrimento define-se com a frustração. Já nascemos assim, frustrados pela mamãe que em um determinado momento nos abandona, e crescemos melancólicos com uma forte sensação de alguém que perdeu a origem e o caminho de casa. Crescemos, e ninguém nos ensina que a vida flui e não se guarda.

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SEGUNDA

NOBRE VERDADE “(...) quando agarra com força percebe que a estatueta sólida se transforma em areia escorrendo entre os dedos da mão.” Conde de Ratnapur

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Segunda Nobre Verdade é a verdade da causa do sofrimento – Samudaya Satya. Ela responde o que significa a própria frustração. A causa do sofrimento é a ânsia, o desejo e a voracidade em perpetuar a si e a tudo num mundo em total impermanência. Essa avidez se transforma em apego e obsessão e a sua frustração em sofrimento. Nada se estabiliza nessa vida e o desejo é a tentativa de cristalizar o fluxo em partes egoístas, que visam somente um desejo exclusivo: a avidez auto referente. É um paradoxo. Nada se estabiliza. Paradoxalmente, o equilíbrio se dá pelo desequilíbrio – ou o fluxo, a mudança e impermanência de todas as coisas. Queremos repetir. A neurose tem sempre por base o ato de repetir. O ego é uma inconsciência ativa. A impermanência contraria o desejo e dessa forma giramos em círculos como um cão que tenta segurar o rabo. Samskara é a definição budista para a imagem de um mundo que gira e não conseguimos segurar. Um mundo que gira, um carrossel no parque de diversões da mente, no qual acabamos tontos, mareados e frustrados. Uma espécie de alucinação e delírio da percepção incorreta que tenta agarrar o que não pode permanecer.

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TERCEIRA

NOBRE VERDADE “Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos”. Fernando Pessoa

A Terceira Nobre Verdade é a verdade da cessação do

sofrimento – Nirodha Satya. Ela parte do ponto de que a mente é um rodamoinho de pensamentos e pensamentos, ânsias e voracidade que tenta agarrar o mundo que gira. É preciso soltar o que flui, viver e deixar ser. Se o agarrar leva à frustração e, consequentemente, ao sofrimento, soltar o que flui conduz à cessação do sofrimento. Exatamente quando não nos agarramos, e podemos nos entregar ao bailado do ir e vir, é que toda a ânsia cessa. É quando se dança o doce bailado sem parar a música. Aquele que quer agarrar, ao se soltar no ritmo da música, desaparece. Diz o Buda: “Há a ação, mas não o seu agente”. Desse modo realmente começa a vida. A vida se torna um propósito em si mesmo. Não tem objetivo. É espaço puro e livre. É como o rio de Heráclito, novo e fresco. O eu é uma ilusão, fragmentos do fluxo da vida cristalizada em aparências. Quando ele se solta, uma outra noção de eu aparece. O eu se torna o processo inteiro, onde não há divisão da experiência entre o eu e a coisa em si. A expiração do eu dentro do movimento do processo inteiro foi definida pelo Buda como Nirvana. O Nirvana é a cessação do eu, da ânsia, e tem a mesma característica daquilo que os hindus chamavam por Moksha, liberação (perda dos limites do eu no processo inteiro da vida). 33



QUARTA

NOBRE VERDADE “A pé e de coração leve eu vou pela estrada aberta.” Walt Whitman

A Quarta Nobre Verdade é o caminho que conduz à

cessação do sofrimento – Magga Satya. Aqui o Buda indica a prescrição da cura da doença. Aponta para oito passos conhecidos como A Nobre Senda Óctupla. Dos oito passos, dois iniciais se referem a uma correção cognitiva. Os quatro passos seguintes estão relacionados com a ação. Os dois passos finais dizem respeito à disciplina mental e à meditação, segundo a prática ensinada pelo Buda. Como vimos até aqui, as duas primeiras nobres verdades (dukkha e samudaya), dizem respeito ao mecanismo que gera a neurose, produzindo diferentes formas de sofrimento, bem como ao círculo vicioso de repetição do próprio sofrimento. São como desvios do alvo, tentativas de chegar a uma satisfação que se torna insatisfação, gerando toda a forma de máculas, sombras e obscurecimentos sobre a mente. E que se tornam negatividade em potencial: frustração, inveja, raiva, aversão, inconsciência. Essa negatividade é chamada, no Budismo, de kleshas (ou venenos). As duas nobres verdades finais tratam da desintoxicação do veneno (ânsia, apego e frustração), e da possibilidade de ser experimentado o sentido da vida como bem-estar e gozo, através do fluxo de mudanças e do caminho para a realização da própria budeidade. 35



CAMINHO DE OITO PASSOS A disciplina para viver as coisas como são A confiança é um pré-requisito para qualquer passo nessa vida assombrosa, desconhecida de momento a momento. Mas a confiança não está antes e nem depois, senão naquele átimo em que você não pode nem pensar. Ou você a tem ou não a tem! Por isso, a confiança não é pensada, e sua base vem de alguma coisa sem fundo, que no fundo, no fundo mesmo, é vazio, em um mundo sem fundamento, sem substância. Exatamente por isso é chamada de confiança, fé. Exatamente por isso a experiência do Buda foi a de equilibrar-se sobre um fundo vazio.

Esses passos envolvem compreensão, atitude e ajuste da

mente. Eles estão ligados diretamente ao caminhar através de nosso cotidiano. Não está determinado em cada passo a chegada a um mundo transcendental, mas o ingressar, de forma precisa, no mundo de todos os dias. O último passo representa o aperfeiçoamento do primeiro. Todos os passos estão interligados do começo ao fim, com o objetivo de realizar o caminho do Buda. 37


Mas esclarecemos de antemão que aquilo que o Buda chama de correto em cada passo, não significa algo em oposição ao que é errado. Correto significa diretamente aquilo como é ou como a nós se apresenta. Trata de algo preconceitual, como se estivéssemos descobrindo o fundamento original das coisas ou a confiança genuína do poema. Samyak é a palavra que Buda usava para dizer o que é correto, ou também completo indicando algo que não está apoiado em nada – conceitos e credenciais – mas que é autossuficiente naquilo que exatamente é. Primeiro Passo ou a Visão Correta. Aqui isto significa não ver as coisas pelas aparências, pelas credenciais, pelo que se pensa ser. Trata-se de uma compreensão correta baseada em ver as coisas como são, tal como existem e se manifestam aqui e agora, sem desviá-las através de conceitos condicionados. Experienciar cada coisa direta e abertamente. A visão incorreta é uma visão conceitual, que já foi definida antecipadamente, portanto ela é parcial e não pode ser sentida em sua totalidade. Como não há julgamento, o mundo pode ser vivenciado tal como ele é. Do mesmo modo, o indivíduo se percebe tal como é, diretamente. Segundo Passo ou o Pensamento Correto. A visão correta, portanto, produz um pensamento e uma percepção corretas das coisas, o que conduz a uma intenção correta, uma forma de elaborar o mundo correta e diretamente: um pensamento que passa a ser preciso, que não se perde em rodamoinhos. Terceiro Passo ou a Fala Correta. Quer dizer expressão, comunicação. Trata-se de uma comunicação correta a partir do mundo tal como é, e da expressão que se segue a isso. É algo que se torna afirmativo. Não se trata de que algo poderia ser ou não, mas implica em ser verdadeiro na forma como se diz. Não ficam margens, a comunicação é precisa e não existe prolixidade. Quarto Passo ou a Conduta Correta. A conduta aqui significa que não há mais a necessidade de uma imposição arbitrária e moralista sobre o comportamento. Dessa maneira se manifesta uma confiança básica na própria atitude. Não existe subordinação, mas uma manifestação pura e autônoma, que se 38


traduz por simplicidade na maneira de ser. A simplificação da vida produz uma descomplicação de atitudes, transformando-se na mais alta conduta. Há nessa conduta um nível de franqueza que se mostra em retidão – reto aqui não tem conteúdo moral, senão que responde à sinceridade e à confiança. Quinto Passo ou a Vida Correta. Significa que não se está contrário aos aspectos vitais que a vida necessita para ser vivida. Que não evitamos as tarefas que a vida nos coloca, como: trabalhar, ter o próprio dinheiro, educar os filhos. Esse passo define o propósito de que estamos de acordo com a vocação de seguir a via de menor resistência e, dessa forma, aptos a encarar as tarefas de nossa vida com precisão, abertura e coragem. Não estamos à espera de uma ajuda que venha do céu. A disposição direta para viver se traduz em uma capacidade para estarmos abertos a todas as possibilidades reais da vida. Sexto Passo ou o Esforço Correto. Esse passo exemplifica uma disposição de ânimo, energia, vitalidade, perseverança e empenho. Estar direta e animadamente relacionado com as situações tais quais são e se apresentam, gera uma disposição de confrontá-las abertamente. O oposto aqui é tomar a vida como um encargo sem saída e sem sentido, o que levaria ao tipo de esforço auto derrotado e masoquista em que se tem de “empurrar a vida com a barriga”. O esforço correto indica que há um comprometimento e um envolvimento com as coisas, por isso o esforço deixa de ser sobrecarga. O esforço correto está traduzido com o sentido de que a vida vale a pena e tudo é valorizado. Até mesmo as dificuldades são encaradas de maneira diferente, manifestando uma intenção precisa em relação a elas. Sétimo Passo ou a Atenção Correta. Atenção aqui tem o sentido de estar vendo as coisas de forma panorâmica, com a lente aberta. Não significa estar concentrado e agarrado a um ponto. Desta forma podemos perceber as coisas, os fatos e os eventos na sua totalidade. Relaxando exatamente nisso, soltamos nossa intenção e percebemos tudo de forma clara. A atenção correta significa que você está completamente aqui e agora 39


de forma aberta. Isso quer dizer que você não teme perder as coisas de vista, pois não existindo nenhum esforço elas podem ser percebidas naturalmente. Podemos, de fato, confiar sempre no que estamos fazendo. Oitavo Passo ou a Contemplação Correta. O sentido aqui é de absorção completa com o que se está fazendo, de forma que não exista nenhum milímetro de separação. Isso representa um estado de fusão com as próprias experiências de vida. Estar completamente absorvido naquilo em que você está, tanto pode significar o envolvimento com o ato de tomar banho, caminhar, falar, beber um vinho, como estar sentado em meditação. O princípio da contemplação correta não divide o que você faz quando medita sentado, daquilo que faz em movimento. Tratase de uma maneira não dualista de se relacionar com a própria experiência. Por fim, a contemplação correta nesse sentido seria propiciadora de experimentar as situações de vida como gozo e satisfação completa, quando unificamos nossa experiência com o mundo. Como dizia o velho Alan Watts: “Se estamos em harmonia com nós mesmos, com o peso, com a energia (seguindo suas linhas de menor resistência), descobriremos que todas as vibrações são extáticas, eróticas ou serenas. A Existência é um orgasmo”.

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OS TRÊS SINAIS DA EXISTÊNCIA Anicca, Dukkha, Anatma

De acordo com o Budismo, nada é permanente. O

princípio de impermanência (anicca) situa-se na convicção de que nada é estável e definitivo. O vazio subjacente a tudo é a referência. Como diz Aroldo de Campos na sua tradução do Eclesiastes de Salomão: “Névoa de nadas disse O-que-Sabe / névoa de nadas tudo névoa nada”. Existe uma carência de substância. O que podemos observar nesse momento como sólido – o livro, o papel, a mesa, a cadeira, a casa, os pensamentos, os sentimentos – está desaparecendo, pois não possui uma substância que lhe sustente. Todas as coisas estão sobre um fundo vazio e nele desaparecem na medida em que surgem. O que cria a ideias de solidez é a ideias de tempo e a visão condicionada de permanência do tempo de quem observa. Mas qualquer coisa aparentemente sólida desde esse momento já não é a mesma coisa, e não será mais daqui a um átimo de tempo, ou melhor, ela não é agora. A impermanência de todas as coisas confere a insubstancialidade. Todas as coisas estão desprovidas de substância básica. Nada há que lhe sustente senão o próprio vazio. O vazio em si mesmo é a base, origem e fundamento dos fenômenos. Por mais estranho que pareça, esse mundo não tem nenhum fundamento, nenhuma base sólida que nos faça segurar o que desejamos. Quando não compreendemos tudo isso através de nossa experiência vem o sofrimento (Dukkha). Agarramo-nos com voracidade à vida que se desvanece. Ela escapa. Não podemos perpetuar o que desejamos da forma como gostaríamos e por

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isso sofremos. O sofrimento está identificado ao fato de que nesse mundo nada consegue permanecer. Mas tentemos entender o que é o vazio na perspectiva budista. Aqui o vazio não é desolação, miséria, penúria, falta de sentido. O vazio budista é algo sem medida, sem fixação, sem peso. Não é um objeto, uma coisa ou uma ameaça ao que é vivo. Trata-se do fenômeno vital do próprio Universo que flui, que não para ou se detém. Definimos isso por vacuidade como um termo mais dinâmico, que pode ser compreendido melhor como espaço ou abertura. Por outro lado, a questão da impermanência e da vacuidade no Budismo tem um propósito mais pedagógico. O Budismo, dentro de uma perspectiva mais psicológica do que filosófica, volta esse enfoque sobre o próprio agente, sobre o que pensa, sobre o que arquiteta o mundo: o eu. No Budismo a ideias do eu é uma ilusão por exclusividade. Na verdade o eu é uma realidade relativa, transitória, que não pode ser tomada como absoluta, real, permanente. Ele é resultado de impressões que se condicionam como uma identidade. O eu se forma através de um conjunto de agregados(skandhas) dentro do fluxo de impermanência. Deveria ser compreendido como uma realidade transitória e nunca permanente. Não encontramos nada nele que seja duradouro. Isso poderia se converter em desprendimento e liberação, como foi para o Buda. Mas o eu está apoiado em uma noção equivocada de substancialidade. O primeiro skandha trata da materialidade física (rupa). Tudo o que é vivenciado pelo corpo manifesta-se como sensação e sentimento (vedana). A sensação e, correspondentemente, os sentimentos se traduzem em percepção (sanna) dos eventos. Nossa percepção organiza mentalmente (sankhara) o mundo como o vivenciamos com nomes, etiquetas e credenciais. Dessa forma surge nossa consciência (vinnana) já totalmente distorcida

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– pois estamos elaborando um mundo de experiências que não é permanente. Cada skhandha vivencia o mundo dentro de um fluxo em que nada pode ser tomado como duradouro. O desconhecimento da impermanência de todas as coisas converte a experiência agregadora de cada skhandha na identidade de um eu, que não passa de uma aparência em meio ao fluxo das coisas. O eu se encontra diante de um mundo que não é fixo. O eu tenta fixar o mundo para o seu próprio prazer e permanência. Tudo o que ele acaba por perceber não passa de aparências, sombras, e ele mesmo se transforma em uma sombra ou máscara. A crença na solidez da identidade do eu como algo concreto não é confiável para o Budismo. A posição do Budismo na antiga Índia, diante dos sistemas filosóficos e religiosos da época, foi contracultural. O Budismo cunhou o termo técnico anatma (não eu) confrontando culturalmente a crença hindu do Atma (Eu Imortal) que não passa de uma extensão do pequeno eu. Não há dúvidas que essa visão é peculiar ao Budismo e o distingue da maioria dos outros sistemas religiosos. O eu é uma realidade relativa. É uma ilusão perpetuar a si ou qualquer princípio dogmático, quando tudo deixa de ser a cada instante. Toda noção que surge a partir desse eu perante o mundo, é uma verdade convencionada e condicionada por equívocos, ignorância (avidya), desconhecimento. A vacuidade é uma verdade absoluta, inquestionável.

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O EFEITO PRÁTICO DE SUNYATA SOBRE OS TRÊS SINAIS

O

termo técnico para vacuidade no Budismo é sunyata. A raiz de sunyata é sunya, termo sânscrito para vazio, vácuo, que pode ser visto como a qualidade de alguma coisa. Todas as coisas são relativas por não terem realidade independente, absoluta. Por isso estão condicionadas e passam a ser irreais. Dessa forma, sunyata é a qualidade intrínseca dos fenômenos, realidade última de todos os objetos. Sugerimos anteriormente que vacuidade ou sunyata pode ser compreendida não limitadamente como vazio, mas bem pode ser entendida como espaço e abertura. No Budismo, sunyata não é uma coisa, um objeto, mas uma experiência, a experiência do Buda e por isso seu caráter é dinâmico. A experiência de sunyata nasce do desprendimento, vivenciado na qualidade de não eu (anatma). Desprender-nos daquilo a que estamos aferrados para nos sentirmos “eu”. Isto exige o destemor para nos soltar no espaço, na vacuidade, na impermanência (anicca) e ter a sensação de liberação. Pode-se perceber sunyata como não dualidade, um espaço livre onde não há oposição entre as coisas e nem o conflito ou a confusão de “comos” e “porquês”. É, literalmente, uma sensação de espaço e liberdade, de ter ido além da margem: paragate segundo o sutra Prajnaparamita. A experiência de sunyata não significa que se abandonou algo para ir a outro lugar. Na verdade, trata-se de uma experiência de abertura para esse momento, de se soltar dentro desse exato momento. Dessa forma, sunyata vivenciada como espaço e liberdade amadurece e se torna luminosidade, claridade. A claridade do espaço expressa o fenômeno da Luz Clara, o dharmakaya, o corpo original da experiência de iluminação do Buda. 45


É na claridade do espaço que se define como desprendimento – como colocamos acima – dos condicionamentos do eu, que na perspectiva budista surge a compreensão da natureza de Buda e a extinção do sofrimento (Dukkha). Diz o poeta: névoa de nadas tudo névoa nada. Não agarro, não seguro, pois que pretensão é essa de segurar o vento e a névoa quando ela some por entre os dedos? Cada vez mais fica essa confiança de que o espaço é seguro, e nele pode ser experimentada a vacuidade como mãe de todas as coisas.

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O PRAJANAPARAMITA A essência do coração do Buda “Não há nada que possa ser sabido ou obtido. Justamente por não haver nada que possa ser sabido ou obtido é que as pessoas podem descansar na Perfeita Sabedoria.” Gautama Buda

Prajanaparamita é a essência do Sutra do Coração. A es-

sência como coração desse sutra é a precisão inata da sabedoria que habita o fundo de cada ser. Sua precisão ou intuição é prajna, o aspecto cortante e agudo dessa visão. Nesse sutra o Buda aborda a clássica noção entre forma e vazio, entre aparência e vacuidade, entre máscara e essência. A noção é de que forma é vazio e vazio é forma e de que não há distinção entre os dois. Shariputra, a figura que pergunta a Buda, nesse sutra, pode ser tanto um aluno, como o próprio Buda questionando a si mesmo. Ou poderia ser em cada um de nós o diálogo que travamos para chegar à compreensão de como são as coisas. Dissecando o termo prajanaparamita encontramos “prajna” como visão, sabedoria; “param” como margem entre dois lugares e “ita” como chegado ao outro lado dessa margem. De um lado estamos nós, vivendo a estreiteza de tomar esse mundo sombreado como realidade. Do outro lado está a claridade em perceber a vacuidade nesse mundo. Entre nós dois há um barco, o Prajanaparamita, para se fazer a travessia. Perguntado sobre a natureza desse mundo o Buda diz que todos os fenômenos materiais carecem de substância e fundamento. Exatamente por essa carência é que eles são fenôme47


nos materiais. Não é por essa falta que deixam de ser materiais, pois não existe nenhum fenômeno material que não esteja vazio de fundamento. Logo em seguida o Buda continua dizendo que forma, sensações, sentimentos, ideias, imagens, desejo, vontade e consciência passam a estar vazios de substância. Exatamente por todos os fenômenos internos ou externos carecerem de substância própria é que eles nem nascem e nem morrem, e não podem sofrer qualquer interferência. Sendo assim nada pode ser puro ou impuro, grande ou pequeno, sagrado ou profano. Mas se nada há, se não existem fenômenos materiais quaisquer que sejam e nem mesmo sensações, ideias ou consciência, o que existe? Existem as coisas como são e não podemos atribuir a elas existência que não seja a transitória. A iconoclastia do Buda atinge o ponto máximo nesse sutra, ao afirmar que não há nem iluminação e nem ignorância. Nem começo ou fim para qualquer das duas. E assim ele diz, que uma vez não existindo nada para ser sabido ou obtido é que cada um pode descansar na própria natureza perfeita (Dzogchen) do qual se origina. Tudo cessa e só há silêncio seguido de ação desidentificada daquele que procede nesse mundo. Nada perturba. Não há mais razão para o medo, pois ele mesmo é destituído de substância e fundamento, como todos os fenômenos. Dessa forma, como afirma Buda, a quietude e o silêncio da própria mente se torna gozo luminoso. Esvaziada, ela pode ver as coisas como são, apreciando seu bailado como uma dança de luzes. Uma vez compreendida, uma vez experimentada, a liberdade é um estado de absoluto desprendimento e desapego. Essa é a condição de quem chegou até o outro lado da margem. Mas não se trata de uma margem que leva para outro lugar. Ter chegado é ter feito uma total abertura para o aqui e agora. O Buda não está falando de outro lugar, nem de outra coisa senão da existência em si, imediata e precisa, do que acontece aqui e agora. 48


Assim acaba o Sutra do Coração: GATE GATE PARAGATE PARASAMGATE BODHI SVAHA. Ido, ido além, totalmente desprendido e desperto, salve! Se Jesus em total ferocidade chicoteia os que vendem ilusão e engano, na frente do templo sagrado, por sua vez o Buda se levanta com a espada de prajna e destrói imagens, ídolos, sombras, fantoches, apego, ideias, forma e vazio. Como dizia o sexto patriarca Zen Hui Neng: “Se não há sabedoria alguma, nem mente como espelho vazio, como a poeira (impurezas) que tememos pode sujar a nossa natureza?” Em seus versos o poeta Han Shan diz: “Minha mente é semelhante à lua outonal, que ilumina com seus raios um penhasco liso. Nada há a que eu possa comparar essa mente. Como farei para explicá-la?”

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O BODHISATVA O Ideal Guerreiro “Aqui, a condição guerreira se refere a conquistar o poder, a dignidade e o estado de atenção consciente que formam o potencial intrínseco de todos os seres humanos.” Chögyam Trunpga Rinpochê

No Budismo, especificamente no caminho Mahayana,

aquele que toma a trilha do Buda é originalmente conhecido por Bodhisatva. Tradicionalmente, dentro de uma cerimônia, tomará esse rumo através de um mestre da própria tradição, da imagem de um Buda, dos sutras (textos sagrados), ritualizando com a sua presença a preservação da linhagem desde o Buda Sakyamuni. O ponto de partida de um Bodhisatva é que o Samskara (o mundo) não é distinto do Nirvana. Tudo nesse mundo é equivalente à vacuidade e a vacuidade em si é a porta que conduz à liberação do Nirvana. Então, a dualidade não existe e o Bodhisatva está presente nesses dois mundos ao mesmo tempo, sem divisão. Sabe-se que a maioria dos seres não compreende isso. O Bodhisatva faz desse solo seu próprio ministério. Por isso, o Bodhisatva se determina a não chegar à iluminação, sem antes ver liberado todos os seres. Ele se encontra na porta da liberação, mas não passará por ela até que todos tenham feito seu caminho. No fundo, essa atitude tem o efeito da própria iluminação para o

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Bodhisatva, pois quanto mais desfaz qualquer desejo egoísta de se realizar, mais plenamente atinge sua dimensão búdica. A razão para tamanha nobreza reside na compaixão (karuna) do Bodhisatva por todos os seres que na sombra residem, atrelados ao próprio sofrimento e à ignorância (avidya). Essa compaixão está sublinhada pela intuição de sua visão (prajna), mas que a maioria dos seres não pode perceber que de fato são budas em sua essência. Diante do sofrimento, ele olha e sorri com ternura. A compaixão do Bodhisatva em ver o sofrimento e a perda de sentido de cada ser está baseada na sua coragem de presenciar diretamente esse sofrimento na vida de cada um, sem tentar escondê-lo. Daí que a sua compaixão é mais que amor. Ele vê, não teme (ou fecha os olhos) e penetra nessa realidade com sua intuição em ver a realidade última (o Nirvana) atrás de todos eles. Certamente, como sabemos todos, não suportamos o sofrimento. A forma como lidamos com o nosso sofrimento e o das pessoas ao redor são duas. Temos pena, o que é um estado decaído da própria compaixão, ou nos tornamos indiferentes, para não ver no outro o nosso próprio sofrimento. A coragem do Bodhisatva é a coragem de um guerreiro. A coragem do guerreiro reside exatamente na sua sensibilidade cortante. Não está no que acostumamos a entender por valentia, que é estar quase duro e insensível para não se fragilizar. O coração de um guerreiro é tão sensível que, se nele pousasse um inseto, arderia. A sensibilidade cortante é o princípio da coragem. A valentia comumente tem algo de contra fóbico: reagir para não temer... E fechar o coração para não ficar mole, sensível. Mas esse não é o treinamento pelo qual passa um Bodhisatva. O Bodhisatva conhece a raiz e a natureza do sofrimento. E assim compreende a origem da ignorância, que é se aferrar a um mundo em constante mudança e impermanência. Por isso ele tenta compreender compassivamente todos os seres e aproveita a oportunidade para mostrar o engano. Uma vez percebi52


do o engano, a vacuidade se torna o espaço onde cada um pode se soltar e obter a liberdade nesse mundo. A coragem de um guerreiro, de um Bodhisatva, está diante de um mundo sádico e masoquista. Um mundo onde a violência, a autoagressão, a baixa autoestima, a doença, a morte, a pobreza, a dor, a insignificância reinam com naturalidade. O destemor do Bodhisatva-guerreiro nasce do que no Budismo se denomina por bodhichitta. Pema Chöndro, aluna de Chogyam Trunpga Rinpochê, define bodhichitta como “coração e mente completamente abertos – chamado de ponto sensível, um local tão vulnerável e sensível quanto uma ferida aberta”. “Bodhi” tem o sentido de desperto, acordado e “chitta” tem o significado de mente, um coração/mente sensível e lúcido, que vê diretamente a realidade tal como é. Para finalizar, é oportuno apreciar a descrição do que é um Bodhisatva, segundo o próprio Trunpga Rinpochê: “O juramento do Bodhisatva é o reconhecimento da confusão e do caos – da agressividade, da paixão,da frustração e da frivolidade – como parte do caminho. A partir de hoje até à iluminação, estou disposto a conviver com o meu próprio caos e confusão, assim como com o de todos os outros seres sencientes. Estou disposto a assumir a confusão que nos é comum. Portanto, não há ninguém planejando superar alguém. O Bodhisatva é um peregrino muito humilde, que lavra o solo do Samskara para desenterrar a joia engastada dentro dele”. Um coração é uma membrana por onde o mundo transpassa. Quando o mundo lhe atinge se tem a sensação que vai se desintegrar ou se partir. A sensibilidade cortante rutila como um diamante à luz do dia. A luz que emana vê e nada mais pode ficar obscurecido.

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CAMINHO E SAÍDA DO LABIRINTO A prática da meditação “Meditar significa arrumar-se todos os dias, de forma que o belo se transparece em cada um como uma face sem face, radiante e luminosa”.

A meditação, no contexto budista, é uma forma de com-

preender todo o fundamento de sua visão. Na medida em que a prática da meditação progride, também avança a compreensão de fatores que formam a visão/experiência do próprio Buda. Na prática da meditação budista, etapa por etapa adentramos nas perspectivas que formam o caminho Hinayana, Mahayana e Vajrayana. A prática da meditação, da maneira clássica como Buda ensinou, conduz ao fim do desejo de agarrar as coisas, e ao fim de todo vício circular do vir a ser ou Samskara. Esse fim se define como chegada ao Nirvana, uma experiência de esvaziamento da própria mente. Cessar os vagalhões mentais, os rodamoinhos da mente. Os rodamoinhos são ventos circulares, fluxos de energia sem canalização, que loucamente alimentam o movimento dos pensamentos, através dos quais a mente busca desesperadamente segurar a si própria e ao mundo. Essa compreensão deixa claro que a mente é um labirinto sem saída, mas que a meditação proposta pelo Buda é o veio de saída. Há um ponto delicado a ser compreendido, para que a prática da meditação não se torne confusa. Se o Nirvana e a condição de Buda não trata do alcançar alguma coisa – mas de 55


vacuidade e desprendimento – a meditação tem o fim de aplacar a ânsia, a busca, o movimento e não a obtenção de algo em particular. Na meditação o “agarrar-se” a qualquer coisa deve ser abandonado, para que a experiência de vacuidade seja o seu resultado. Quanto mais nos desprendemos, mais podemos experimentar o gozo como efeito luminoso da vacuidade. Mas enquanto o Nirvana – a cessação de tudo – ainda é um objeto de nosso desejo, ele acabará por se tornar Samskara, e permaneceremos como o cão que tenta pegar o rabo e não alcança. Por isso, meditar equivale a soltar tudo e, por fim, aquele que está a meditar. Mas uma vez compreendido que Samskara (o mundo do ir e do vir de nossos pensamentos) é vacuidade, o Nirvana culminará dentro de nossa própria mente como uma coisa só, com o Samskara. Diante disso, nossos pensamentos já não serão problema durante a meditação, já que são desprovidos de substância e refletem a natureza da vacuidade. Dessa forma podemos sentar e simplesmente deixar tudo acontecer, sem que precisemos nos agarrar a alguma coisa. Há que se ter cuidado e saber caminhar sobre o fio da navalha, que aparentemente divide Nirvana do Samskara. Como diz Alan Watts: “Um momento chega em que esta consciência da armadilha sem saída na qual somos, ao mesmo tempo, o caçador e a caça, alcança o seu ponto de ruptura”. Isso quer dizer que começamos a meditar com uma intenção, e na medida que amadurecemos na prática meditativa temos de desfazer gradualmente toda e qualquer intenção. Ao final, a única intenção será permanecer aqui e agora. O aqui e agora é o fim legítimo da prática meditativa. Aqui e agora nada podemos agarrar, só podemos ser, coisa essa que acaba por adquirir a qualidade de não ser (anatma), de abertura, de espaço. Qualquer intencionalidade, ideação ou volição é vã na prática da meditação. Chegamos pela meditação “mais dias ou menos dias”, à conclusão de que no fundo nada existe

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que possa ser segurado, e nem alguém que possa conter o fluxo das experiências. Definitivamente, quando meditamos mergulhamos nessa sensação de que não existem fundamentos nesse mundo. O fator impermanência faz com que esse mundo se torne um fluxo. Estabelecer alguma coisa perante o fluxo de todas as coisas seria definir ou cristalizar algo que encobriria a visão panorâmica, que é proposta pela meditação. Por visão panorâmica na meditação estamos nos referindo à visão de abertura para o aqui e agora. Na prática da meditação, à maneira clássica ensinada pelo Buda, tal qual procedeu debaixo da árvore bodhi, seguimos algumas orientações: sentamos no solo (ou em uma almofada), alinhamos a coluna, de forma que as orelhas estejam paralelas aos ombros, e o nariz alinhado ao umbigo. Levemente, fazemos um sutil movimento para frente. Ficamos com o olhar semicerrado. Isso indica permanecer vendo as coisas como são, muito concretamente e de forma a não adormecer. Acabamos por ver diretamente nossos pensamentos, sentimentos e sensações tais quais são, sem agarrá-los. Continuamos na postura sentada. Agora não nos detendo em nada, mas simplesmente vendo os eventos mentais e físicos da maneira como se manifestam. Não catalogamos nada. Nosso objeto de meditação é a própria vacuidade, o fluxo sem peso, sem medida, sem forma e sem nome dos acontecimentos, traduzido originalmente como vazio ou porta de liberação. Às vezes prestamos atenção à respiração, no seu ir e vir, tal qual a vida vai e vem através dela. Quando observamos a respiração ela se torna uma raiz/semente (bindu), que abre a porta da liberação. E, na medida que desenvolvemos a atenção plena, podemos relaxar e nos soltar. Quanto mais procedemos assim, mais obtemos a noção de espaço. Entendemos assim que o relaxamento físico e mental é a condição da própria percepção de espaço.

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O desenvolvimento da atenção através de uma raiz/semente equivale à prática do shamatha na meditação budista. Shamatha equivale à prática de acalmar o movimento da mente. Quando nos soltamos através dessa calma e temos a percepção interior da própria mente, ingressamos na experiência da meditação vipassana. Quando não há nenhum centro mas apenas o interior de todas as coisas como espaço, isso é vipassana. Esse se dar conta do espaço é o oposto de prestar atenção em alguma coisa, portanto vipassana é uma visão panorâmica das coisas. Quando temos a experiência do interior de nossa mente como espaço ou vacuidade, atingimos na meditação o Sunyata, a qualidade inerente da própria mente. Por fim, a meditação nos leva à visão de nossa mente como perfeição, e suas características são de claridade, lucidez e transparência. Exatamente aí descansamos. Não há mais objeto de meditação. O estágio shamatha/vipassana está dentro da perspectiva Hinayana. O estágio seguinte, de vacuidade ou Sunyata, é concernente à visão Mahayana. Por fim a compreensão direta da perfeição de nossa mente e da nossa natureza equivale ao Vajrayana, como a meditação avançada Dzogchen/Mahamudra. É interessante apreciar a observação de Alan Watts sobre a meditação: “(...) a melhor maneira de tornar límpida a água lamacenta é deixá-la repousar; poderíamos argumentar que aqueles que se sentam calmamente estão a dar uma das melhores contribuições possíveis para melhorar um mundo em desordem”. Uma vez que a meditação é a saída do labirinto, estamos buscando sair do círculo, dissolver a tentativa e a obsessão de agarrar o fluxo. Quando saímos desse círculo, a própria mente adquire a qualidade de fluxo sereno e espontâneo, em que nada é interferido. Todas as coisas vêm e vão e somos os auditores dessa dança. Uma frase Zen define essa sensação: “A primavera vem e a grama cresce sozinha”. Diz Dogen: “Se a vida vem, eis a vida. Se a morte vem, eis a morte. Não há razão para que estejas sob o seu controle. Não tenhas esperanças nelas. Esta vida e esta morte são a vida do Buda. Se tentas lançá-las fora, 58


negando-as, perdes a vida do Buda”. É como não mais se desviar de coisa alguma e permanecer diante de pensamentos, sensações, eventos. Não é mais possível burlar o que vem, e o mais incrível é que não há alguém para se desviar. Novamente chegamos ao entendimento de que esse mundo, de fato, é sem fundamento. Sem fundamento aqui não é mais desolação, mas liberação da vida para ela ser o que é. O passado já foi, o futuro não veio e o presente nem sequer existe, pois nomear significaria retroceder um átimo ao passado. A vacuidade preenche todos os espaços. Não existe o tempo calcinado e petrificado em nossa mente. Nada pode ser nessa dimensão, e mesmo assim a vida não cessa. Tudo novo, completamente novo. O fascínio é o deslumbre, o alumbramento do despertar constante. A meditação nos conduz à precisão do que é singular. Isso nasce da agudez da mente ao perceber as coisas como realmente são. A singularidade interliga pontos da unicidade dos processos do Universo. O Universo é, ao mesmo tempo, multiplicidade e unidade. A multiplicidade como unicidade da unidade. Isso é possível porque não há interrupção entre o começo e o fim de todos os eventos. Tudo é fluxo. Na medida em que a meditação se torna pura intuição, a diferença entre Samskara e Nirvana desaparece, como já vimos. Ver alguma coisa não interfere na obstrução de outra. A existência de uma coisa não é problema para outra. E aqui chegamos à essência da visão panorâmica durante a meditação profunda. Contemplamos tudo sem fazer distinções ou diferenças. Aqui podemos chegar, pela prática da meditação, à compaixão (karuna) do Bodhisatva, que busca em seu ministério realçar em todos os seres a peculiar e singular noção da natureza de Buda. Uma natureza que tem o poder de repousar apenas naquilo que é. A visão de que somos uma forma singular na meditação, e que tudo é singular e interconectado, leva à visão de átimos, eventos e acontecimentos fluindo na própria vacuidade. E que,

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singularmente, nesse instante somos uma forma que existe e se relaciona a todas as outras formas sencientes. O que percebemos acima, durante a meditação, é a própria experiência do Dharmadhatu no Budismo. Uma visão do Dharma ou fenômeno de vacuidade do espaço (dhatu), ou a região de todas as coisas. O Dharmadhatu é o lugar onde todas as coisas coexistem. Trata-se de um espaço livre e aberto onde tudo está. Onde não há interrupção de nada. Dharmadhatu é a abertura onde tudo pode ser e acontecer. Dessa forma o Dharmadhatu é essência, a essência de todas as coisas, a vacuidade fluente, dinâmica, viva. Tudo é legítimo – pessoas, sentimentos, ideias, árvores, animais, sabedoria, Buda, vento, ruídos. Tudo se movimenta natural e abertamente. Dharmadhatu é o útero da mãe, o espaço onde estamos. Vivemos dentro da matriz e do âmago da experiência do Buda. O Dharmadhatu, o lugar da experiência do Buda não pode ser encontrado em outro lugar. Ele próprio é o aqui e agora, e tudo o que podemos fazer é nos abrirmos para ele. Perguntamo-nos e saímos a perguntar: onde está o Buda e por onde anda o Dharmadhatu? Só em nossa ignorância (avidya) podemos fazer isso, pois não podemos sair do Buda e do seu espaço de experiência, o Dharmadhatu. Toda essa noção do Dharmadhatu como espaço de todas as coisas e âmago da experiência do Buda, é o que no Zen afirma-se que ninguém senta para meditar e se tornar Buda. Seria incoerente se tornar o que já se é, tanto quanto encontrar o espaço no qual já estamos dentro. Por isso, toda visão equivocada busca exatamente fora o que deve ser percebido dentro. No vale mais profundo de silêncio da meditação brilha a luminosidade dos cristais do espelho. Como uma rede radiante, cada espelho (ou cada coisa) reflete a todos os outros na sua pureza. Essas redes são todos os Dharmas, fonte e base do ensinamento do Buda. Um espaço para todos os Dharmas, fenômenos, eventos, acontecimentos, fatos...

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A visão da meditação culmina na permissão de que cada coisa possa estar livre, aberta e dinâmica. Pessoas, sensações, expressões, comunicação, pássaros, aviões, chuva. Tudo, de certa forma, intensifica a noção de ser o que é. A liberdade é uma infinita condição para o ser. Somente no âmago podemos concluir que o Budismo nada tem que ver com o niilismo, mas com a afirmação do ser, que se nutre do não ser (anatma). O Buda, ou qualquer pretendente ao seu caminho, chega à conclusão que o seu próprio corpo é o corpo do Universo. Um fluxo interdependente, organizado e estruturado desde o fundo, desde o âmago. Isso é o Tathata! (o assim mesmo), aquilo que vem e vai e permanece como é.

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A NATUREZA PERFEITA A compreensão Dzogchen-Mahamudra “Tudo está terminado, e assim, superada a doença do esforço; nos encontramos no estado de auto-perfeição: esta é a contemplação”. (Os Seis Versos Vajra)

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ealizar nossa própria natureza,como sendo a natureza iluminada do Buda, é o princípio e o fim do Budismo. A forma, o caminho, a pedagogia para se chegar a essa condição difere segundo as abordagens e escolas. O caminho dos sutras, por exemplo, toma por base os ditos do Buda – discursos e sermões. A conduta moral e a disciplina se encerram dentro de um conjunto de regras monásticas (vinaya) a ser observado para o fim da iluminação. Esse é o caminho do Hinayana, o budismo antigo, ortodoxo. Um caminho estreito, para poucos, onde o controle da vontade é a ascese espiritual. Ainda no caminho dos sutras encontramos o Mahayana. O Mahayana, ao contrário do Hinayana, não segue ao pé da letra os sutras, mas faz uma interpretação criativa deles, favorecendo um renascimento do Budismo. O ideal mahayanista é o Bodhisatva. A compreensão dele é a de que todos os fenômenos – a partir do Sutra Prajnaparamita – são sunya (vacuidade) e karuna (compaixão), a expressão mais alta da vacuidade como uma abertura incondicional perante a vida. O Bodhisatva busca abarcar todos os seres na direção da iluminação. Trabalha sobre As Seis Paramitas (ou seis perfeições) – generosidade, atenção 63


plena, tolerância, esforço, meditação, sabedoria. Sua intenção é a de purificação. Atravessar até a outra margem (param) e atingi-la (ita), encontrando assim, como um guerreiro, a coragem, a serenidade e a liberdade. Até aqui, falamos de dois yanas (veículos): o Hinayana e o Mahayana. Está implícita, nos votos do praticante dos sutras, a renúncia para chegar à condição iluminada. O hinayanista renuncia ao mundo, o mahayanista à sua própria vida, em benefício de todos os seres. Mas, há um terceiro yana, o Vajrayana. A base aqui já não é mais os sutras, mas os tantras. Os sutras são os discursos específicos deixados pelo Buda, os tantras dizem respeito à “continuidade” entre os extremos dos quais os métodos, os meios hábeis (upaya), são usados para transformar tudo no estado primordial. O Tantra é como o lótus no pântano. O lótus nasce no meio da putrefação, no lodo do pântano, e sua flor é uma das mais belas. Ele absorve a putrefação do pântano e o transforma na delicadeza da flor. O caminho tântrico lida com a energia, com a manifestação das coisas, transformando-as na sua pureza essencial. Ele não evita a dor, a impureza, o caos, o ódio mas os utiliza para o despertar. O mundo é percebido como uma mandala onde ao centro está a deidade, que representa o aspecto puro do espaço original. Mas dentro do Tantra existem formas de ensinamentos avançados e sofisticados com um alto nível de penetração da realidade. Podemos situar esses ensinamentos à parte, devido à sua precisão e sutileza, formando uma via especial que se distingue dos outros caminhos. Enquanto no Tantra muitos dos ensinamentos fazem parte de um processo gradual de transformação, que leva muito tempo e exige muitos preparos, esses ensinamentos especiais visam à auto liberação direta e não gradual da natureza iluminada. Na linhagem Nyingmapa do Budismo Vajrayana esse ensinamento é chamado Dzogchen – dzo (plenitude) e chen (total). O Dzogchen é conhecido como Atiyoga ou yoga do conheci64


mento primordial. Na linhagem Kagyupta do Vajrayana esse ensinamento é conhecido como Mahamudra – maha (grande) e mudra (gesto). No Dzogchen não há caminhos intermediários. Ele trata do conhecimento (intuição), da compreensão e da realização direta da condição primordial presente em cada indivíduo. Não há o que ser praticado – nem a purificação, nem a transformação – mas liberar a condição espontânea da base dessa condição que existe como presença viva. Do mesmo modo, no Mahamudra não há separação entre puro e impuro, entre o dentro e o fora, o profundo e o superficial. O Mahamudra é uma abertura incondicional para a realidade imediata e instantânea do presente. Se os sutras estão no caminho da renúncia e da purificação e os tantras no trabalho de transformação, tanto o Dzogchen como o Mahamudra apontam para uma condição que não precisa ser corrigida, purificada ou transformada. É a própria auto liberação espontânea da natureza iluminada, pelo reconhecimento de que nada há para ser feito, senão deixar as coisas como são. O Dzogchen não requer que se deva acreditar em coisa alguma. Crenças, sistemas filosóficos, cultura, religião e o próprio Budismo acabam por se tornar limites ou restrições à sua experiência. Segundo o Dzogchen, a essência da nossa mente é a vacuidade, experimentada dinamicamente como um fluxo livre da consciência. Não só é a essência da nossa mente essa vacuidade, mas a essência de todos os fenômenos. A vacuidade é a condição pura e livre do espaço sem obstáculos. Esse espaço primordial de todas as coisas é a base da natureza iluminada. Portanto, a natureza da vacuidade é luminosa, clara e translúcida como um cristal. Essa natureza fundamental vê as coisas como elas são e não de outra forma. Ela se manifesta através de todos os fenômenos – que são vacuidade – como criatividade espontânea, como manifestação pura. Todo pensamento, sentimento, emoção, dor, tristeza, alegria, inspiração possuem o fundamento dessa vacuidade/claridade. Logo, passam a ser expressão da pureza dessa natureza iluminada, deixando de ser problema ou impedimen65


to. De fato, essa visão faz perceber que nada há de errado com as coisas em si, apenas com os reflexos que temos das coisas. Mas como os reflexos também são a própria natureza iluminada enquanto vacuidade e pureza, devemos apenas deixar as coisas como são para que repousem em sua base. Observemos as palavras de Chögyal Namkhai Norbu, um professor atual de Dzogchen: “Tomemos o exemplo de um espelho. Quando olhamos um espelho, vemos as imagens refletidas dos objetos que estão à sua frente, mas não vemos a natureza (a base) do espelho. O que quer dizer esta “natureza do espelho”? Nos referimos a sua capacidade de refletir, definida como sua claridade, pureza e limpidez, que são condições indispensáveis para a manifestação dos reflexos. Esta “natureza do espelho” não é algo visível, e a única forma em que podemos concebê-la é mediante as imagens refletidas em si mesmo”. Desde o começo não há nenhum impedimento para essa natureza. Como diz Longchenpa: “em vez de procurar a mente com a mente, apenas deixe estar”. Na visão do Mahamudra “esse apenas estar” é o lugar de assentamento da nossa própria natureza, e aí deixamos nossa mente descansar – na sua origem. Daí não se requer nenhum esforço ou lugar para fixar ou alcançar. Não há razão para se concentrar ou meditar em coisa alguma. Para o Mahamudra essa não meditação é a capacidade livre e espontânea da mente funcionar como percepção auto existente. Esse estado de ausência natural é o estado em que a atenção está presente sem nenhuma forma de apego. O Dzogchen também indica que simplesmente devemos relaxar e permitir que tudo possa estar aí. Deixar que tudo aconteça e se desdobre. Permitir nossa mente descansar na sua própria natureza, sem alterá-la e nem modificá-la, é concebê-la como perfeita na sua origem. O esforço e a interferência impedem as coisas de ser como são e isso permite a liberação do estado de perfeição, o conhecimento direto da presença viva da natureza iluminada. Quando estamos diante de alguma coisa sem interferências – sem os reflexos do espelho – mas na base de nossa percepção auto existente, nos encontramos livres. Dessa 66


forma, espontaneamente se libera e se revela nossa verdadeira natureza. Tudo o que se apresenta a nós, liberta-nos e então nos encontramos no estado da auto perfeição. Dar “espaço” significa que deixamos as coisas se manifestarem livremente, e apenas mantemos nossa presença aqui e agora. Permitindo que as coisas aconteçam, elas são envolvidas no próprio espaço – que é ilimitado e claro – e nele desaparecem, ou se confundem com a própria natureza iluminada do espaço. Deixar acontecer... (wei-wu-wei), que é agir através do não agir, é deixar que espontaneamente a nossa natureza, semelhante à natureza iluminada do espaço se libere. Essa é a forma de enfocar a contemplação tanto no Dzgochen, quanto no Mahamudra. Tanto a renúncia e a purificação, quanto a transformação das coisas, envolvem certa dualidade, entre onde estamos e o que podemos conseguir. O esforço produz a dualidade. Quando entendemos que a base de nossa mente é espaço e claridade primordial (Dharmakaya), observamos que esse espaço abarca tudo. Nada temos para fazer, não necessitamos nos fixar em nada, apenas nos soltar neste espaço. Tornamo-nos presença pura em um fluxo de consciência que não se detém, sendo totalmente auto liberada. Essa é a suprema atitude, o maior gesto. No Mahamudra permitimos tudo ser o que é. O que está aí está bem. Não há foco e sim abertura. A mente se encontra livre de interferências. Isso é Mahamudra, o espaço original, conforme Tilopa. Somente quando há distinção entre uma coisa e outra é que perdemos o Caminho, segundo Seng Tzan. Às margens do rio Ganges, na Índia, Tilopa transmite o Mahamudra a Naropa, seu aluno, com as seguintes palavras: “(...) A essência da mente é como o espaço; assim não há nada que ela não abarque. (...) Se a mente não tiver objetivos, isto é Mahamudra. (...) A natureza da mente é luminosa, sem objeto de percepção. Descobrirás o caminho do Buda quando não houver caminho de meditação. (...) Se não houver desejo envolvido, então a união da alegria com o vazio surgirão.” 67



ESCOLAS BUDISTAS Diferentes caminhos para um mesmo fim

Depois da morte do Buda aconteceram quatro concí-

lios entre seus alunos. A questão sobre a interpretação do que o Buda falou acabou por se dividir ao final em dois grupos. Como se sabe, o Buda não escreveu nada. Tudo o que falou ficou na memória de seus alunos, que através da repetição e recitação se manteve como uma tradição oral. Foi após a morte do Buda que os discursos foram compilados, organizando o cânone sagrado budista. O cânone budista é conhecido como os Três Cestos (Tripitaka): Cesto dos Discursos (Pitaka); Cesto das Disciplinas (Vinaya); Cesto dos Ensinamentos Superiores (Abhidharma). Os dois grupos de interpretação das palavras do Buda, originaram duas escolas: Escola Theravada e Escola Mahayana. O Theravada é conhecido como Escola dos Anciãos ou Budismo Primitivo. Conservaram na sua interpretação a forma ortodoxa dos ensinamentos, impedindo qualquer outra forma de influência. O Theravada se difundiu com a ajuda do Rei indiano Asoka, no Ceilão, estendendo-se mais tarde pela Birmânia, Tailândia, Camboja, Laos e chegando até o Paquistão Oriental. O Mahayana foi para o norte da Índia, chegando ao Tibet, Mongólia e mais tarde alcançando China, Coreia e Japão. Exatamente com o declínio do Budismo na Índia, a partir de 800 d.C., a popularidade Mahayana cresceu para fora de suas fronteiras. Em 520 d.C. o conhecido monge indiano Bodhidharma fez o Budismo chegar até a China. Uma certa aproximação axiomática da visão do Buda com a de Lao Tzu (precursor do 69


Taoísmo), fez com que o Budismo na China adquirisse a forma do Budismo Chan – conceito correspondente ao dhyan indiano, que pode ser traduzido como meditação. Da China o Budismo transmigrou para a Coreia e lá adquiriu o nome Sun, e em 1200 d.C. chegou ao Japão, na forma como o conhecemos por Zen. Em 700 d.C. Padmasambhava fez o Budismo alcançar o Tibet, embora não tenha sido o único a fazer isso. A assimilação da religião tradicional do Tibet, o Bon com o Budismo, deu nascimento ao Vajrayana, nome pelo qual é conhecido o Budismo Tibetano, que também é chamado de Mantrayana, Budismo Tântrico. Na Índia, de onde o Budismo se originou, ele foi sendo absorvido pelo Hinduísmo. Dentro do próprio Mahayana se estabeleceram duas escolas, que fundamentaram a base tanto do Zen como do Vajrayana. Uma é a Escola Madhyamika, do filósofo Nagarjuna, conhecida também como Escola do Caminho do Meio e Escola do Vazio. A outra escola é a Escola Vijnanavada ou Yogachara dos irmãos Asanga e Vasubandu. O Mahayana, ao contrário de seguir estritamente a base ortodoxa do Budismo, resolveu fazer uma interpretação profunda e sofisticada da experiência do Buda. Ele representa um renascimento dentro do próprio Budismo. Sua especulação filosófica se tornou altamente refinada e metafísica, fato esse que é percebido quando adentramos a visão Madhyamika de Nagarjuna e o Vijnanavada de Asanga e Vasubandu. O ideal Theravada está na figura do Arhat. Seu caminho é solitário, mais apartado do mundo e interessado na sua própria liberação. Ao contrário do ideal Mahayana onde está a figura do Bodhisatva, que acentua o caminho da relação social e a liberação de todos os seres, antes da sua própria liberação. Parece que o mesmo Budismo soa muito diferente entre uma escola e outra. Diferenças que vão desde a simplicidade do

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Zen até os complexos rituais, as alegorias e simbologias iconográficas no Budismo Tibetano. As diferenças estão muito ligadas ao território em que o Budismo se desenvolveu. Por exemplo, a religião Bon no Tibet era uma religião de contrastes xamânicos e culto à natureza. Isso é o que faz o Budismo Tibetano ter um caráter mágico. Por outro lado o modo de vida prática e concreta do povo japonês, deu ao Zen essa dimensão espiritual terrena e direta. Mas as diferenças entre essas escolas budistas na verdade são aparentes, pois têm como base o mesmo caminho. Diz Kalu Rinpochê: “Hinayana, Mahayana ou Vajrayana. Os três yanas variam em seus métodos, mas não em seus objetivos. Eles são diferentes veículos que servem a um caminho, que atravessam os mesmos estágios e chegam ao mesmo lugar”.

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SUTRA DA MÃO VAZIA Tratado poético sobre uma experiência budista Em memória de Alan Watts e Allen Ginsberg. I. A vacuidade é o fabuloso ensinamento da mesmidade, a visão do apenas isso! Embora qualquer um possa obter a radiante brancura da vacuidade mediante o despertar que a ilusão da forma cria, somente um coração livre de apego e identificação com as coisas pode sustentar o olho de sua mente diante da luminosidade pura. Se há no coração do pretendente raiva, cobiça, medo, inveja, ciúme ou orgulho, a luminosidade pura pode cegar seus olhos. II. O corpo da sabedoria não tem forma pois ele é o vácuo da ausência de tudo. Quando a forma é apenas forma, a forma é vista como vácuo. Quando o vácuo é visto como vácuo, o vácuo é visto como forma. Dessa forma a mesmidade é a falta de sustentação de qualquer coisa. Quando a mente atinge sua própria falta de sustentação, ela própria desperta como alguém que acorda de um sonho e se sente leve e transparente. III. A vacuidade é a natureza das coisas tal como são: Assim! Assim! Assim!... A partir desse entendimento se diz que o bodhisatva é generoso e compassivo, pois ele valoriza cada coisa devido à sua realidade efêmera. Seu olhar tem sempre a gratidão de alguém 73


que está vendo tudo como a última vez. Através disso, aquele que deseja obter o sentimento apropriado da budeidade deve soltar tudo e se desapegar serenamente para poder perceber as coisas como são, na sua natureza veloz e instantânea de surgir e desaparecer no vácuo. IV.

O Patriarca Seng Tzan afirmava que o caminho para a budeidade de fato é simples, aberto e sem nenhuma sombra de impedimento. Somente quando se estabelece a ideias de perdas e ganhos nessa conquista é que se perde a direção e não se encontra o caminho que está diante do nariz. Nem o bem e nem o mal. Nem o certo e nem o errado. A distinção é a raiz da ignorância. O caminho sempre se fez claro e limpo sem preferências e intenções. A flor no muro continua a ser apenas a flor no muro. Nisso reside toda sua beleza e o mistério de ter nascido tão bela no oco de um muro. v. Essa é a natureza do Tathata: o perene contemplar das manifestações a partir do “assim mesmo como é”. Contemplando dessa forma, a ideias de esforços e conquistas desaparece. Procedendo assim, a fantasia mística de chegar a algo se evapora como nuvem. O errante vagabundo quando passava de aldeia em aldeia costumava dizer: “Desde o começo nenhum Buda se tornou Buda!” VI. O vir a ser é a origem da ilusão. O movimento é uma percepção irreal. Sabe-se desses enganos quando a prática do dhyana é profunda. O fundo da mente em dhyana é vazio como um espelho. O Imóvel não é o estado do não movimento pois se fosse assim deveria existir o movimento. Ele é sem nada, sem gosto, sem cor, sem preferências. Ele é serenamente vazio e inalterado. É 74


a origem nobre que vem do berço do Não Manifestado e do Não Nascido. Quando Gautama Buda obteve esse entendimento compreendeu que não existia obtenção de nada em sua busca exaustiva. Que nem mesmo Samskara e Nirvana tinham realidade. Dessa forma conseguiu descansar e do seu descanso e relaxamento veio a sua realização. Diz-se que Gautama conseguiu quando não conseguiu mais. VII. A vastidão do “Apenas Isso!” não é uma teoria. A Evidência Gritante não pode ser articulada. “Há um momento em que se deve calar”, diz Norman Brown. No fundo só há silêncio... Essa é a Natureza Perfeita. Deixe as coisas como são, nada faças, não ponhas e nem tires. Ainda assim, com total abertura deixe que tudo se desdobre... VIII.

O Sr. Buda veio a esse mundo para se apresentar ao Grande Circo. Maya, o tablado do sofisticado engano, é o nome desse circo. O Sr. Buda subiu na parte mais alta do trapézio. Fez-se um silêncio profundo de toda a existência. Então ele saltou e não existia nenhuma rede protetora. Desde então, ele ficou conhecido como aquele que aprendeu a se equilibrar sobre um fundo vazio. IX.

Desde que percebi que o vento não pode ser segurado pela mão, se desfez a noção de forma e vazio. Às vezes, não sei se sou eu quem move o espaço, ou se é o espaço que me move. Mas já é compreensível que não existe separação entre meu corpo e o espaço, entre a mão e o vento. O espaço é minha mãe e dele me tornei filho. Todos os dias esse espaço se apresenta como Terra Pura, um jardim luminoso onde crescem as flores da Luz Clara.

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X. Nasci cristão e morrerei budista me desapegando da cruz do sofrimento. Mas quanto mais compreendo o Buda, mais observo que experimentar sua visão me faz livre até mesmo do Budismo. Se estar livre de todas as coisas é a maneira de me liberar para conhecer a vacuidade, minha condição é a de não definir nenhum caminho, mas andar sobre o caminho de todos os dias com minha mão vazia.

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Rendo homenagem aos destemidos Senhores de Shambhala, homens e mulheres oriundos do espelho primordial, onde se reflete o Sol do Grande Leste. Com o leque da generosidade, o guerreiro espanta o medo e abre caminho para se relacionar. Sua disciplina consiste em não conter-se, e por isso ele monta no cavalo de vento e com ele sopra o vento de poder. Nada espera e assim nada tem a perder. Mantendo o espaço aberto, desfruta da paciência que vê as coisas surgindo e desaparecendo como uma dança, sem ingerir. Agora, a energia viva que aqui se levanta é um raio de destemor, que ecoa dentro da neblina no vale entre as montanhas. A ousadia é quem arremessa a lança no espaço. A sombra que se move e lhe atravessa não lhe distrai, nem mesmo é motivo de desconfiança diante da precisão da sua flecha de plena atenção disparada no céu da visão panorâmica, que por fim atinge o ponto primordial. De forma que nada encontra como inimigo, pois venceu sua ignorância, ao herdar a sabedoria que vê as coisas como realmente elas são.



OS SEIS CÓDIGOS DE ÉTICA DA CONDIÇÃO GUERREIRA Palestra proferida aos alunos da Escola de Meditação e Artes Contemplativas Vale do Ser

Um ponto no coração da experiência do praticante Nesta palestra, trataremos de ensinamentos budistas que se encontram tanto no theravada como no mahayana e no vajrayana. Mas, vamos nos ater à perspectiva mahayana comunicada nos sutras, as seis paramitas, ou seja, as seis perfeições ou seis visões para a conduta de um bodisatva. Elas também podem ser compreendidas como códigos de ética para o desenvolvimento de uma conduta guerreira nesse mundo secular. Podemos identificá -las como os seis códigos de ética da condição guerreira. Vamos focalizar no bodisatva, que teve um impacto social no mundo através do budismo mahayana, que colocou essa figura no mundo como um guia para a travessia dos seres humanos até a margem da sanidade. O ideal theravada por sua vez é muito distinto: é mais monástico e se retraiu do mundo para a floresta. As seis paramitas são importantes também para a prática da meditação, pois servem de suporte moral para a prática. Um trabalho a partir das seis virtudes auxilia no aprimoramento da conduta pessoal, deixando-nos mais aptos à meditação. As seis virtudes nos remetem a um estado básico de sanidade. Sua prática nos permite conhecer a sanidade fundamental que trazemos. As paramitas são, desde o começo, os fundamentos para que se possa atingir o sentido correto desses ensinamentos e se referem à nossa natureza fundamental. E o sentido de sanidade aqui é praticamente oposto a tudo o que viemos a nos tornar. Parte do que passamos a ser é pura insanidade, neurose, confu79


são, loucura. Aquilo que nós passamos a ser é o deslocamento, a separação que ocorreu com a nossa condição natural, e que passou a ser uma condição de perversão e insanidade. Deslocamo-nos do ponto primordial da sanidade - que é o começo de tudo - para acabarmos em um outro lugar. Na meditação que realizarmos anteriormente houve um instante atômico, uma parada pontual, e, naquele exato momento – ao soar o sino de meditação – experimentamos a interrupção da continuidade de todos os nossos processos mentais condicionados. Formou-se ali uma lacuna, um vazio ou uma imobilidade entre um instante e outro. Deixou de ocorrer a continuidade de nossos condicionamentos e eles se suspenderam por um instante. E aí ficamos em um ponto imóvel e vazio, ao soar o sino, e, tudo parou dentro de nós. Trata-se de um ponto inquestionável, sem pensamentos, sem ação: vital, totalmente presente, uma experiência nua, incondicionada. Temos nessa experiência micro o contato com um breve e rápido instante da nossa sanidade. Esse é o ponto primordial da experiência, que também pode ser visto como o ponto seminal, ponto semente, ponto potencial da nossa sanidade. Ele forma a base da prática e para onde podemos avançar. É uma experiência atômica da consciência, como se referia Timothy Leuary. Para nos aproximarmos desse ponto radical, e aí permanecer e reconhecer nossa natureza, é preciso desenvolver uma atenção plena e aguçada. Uma atenção estável e menos oscilante, uma centralidade de corpo e mente. Quando paramos, ao cessar toda a ação de corpo e mente – com o soar do sino - permanecemos num ponto imóvel por uma fração de tempo. Enquanto estamos meditando parece que internamente estamos ainda ativos procurando manter nossa atenção focada, ou então, estamos bastante distraídos. E ao soar o sino há um alerta e uma parada. Tudo se interrompe. E, logo, o que acontece em volta, os sons e os movimentos, etc., seguem acontecendo em torno desse ponto, ampliando-se através da atenção estável em um espaço

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aberto. Literalmente, é como um ponto no centro de um espaço aberto e sem fronteiras. Nada existe de tão especial com esse ponto, mas na consciência do praticante e em um contexto panorâmico e aberto, ele contém uma presença muito concreta, muito viva, muito desperta. Dizem que tudo o que poderá surgir desse ponto – vazio e aberto – é o que podemos ser em nossa natureza sadia. E quando permanecemos estáveis nesse ponto, não necessariamente nos tornamos alguma coisa a mais, nem fazemos qualquer esforço para existir ou ser alguma coisa diferente. Nesse ponto, cessa o movimento do corpo e da mente. É puro existir. É absolutamente não fazer coisa alguma para existir. Nele, deixamos de vir a ser outra coisa. Não há continuidade de memória, nem linearidade de pensamentos. Tudo para! A sanidade a que estamos nos referindo habita esse ponto seminal, fundamental, fundador. O temor que sentimos em permanecer nesse ponto é ficarmos desguarnecidos, pois ele não oferece qualquer referência à nossa experiência, e nem mesmo qualquer espécie de apoio. Não podemos estar nele nos defendendo de alguma coisa, nem buscando estar protegidos. É preciso, para encontrá-lo, estar muito aberto, vulnerável. É como equilibrar-se sobre um fundo vazio. É a própria arte de equilibrarse sobre nada. É completamente desconhecido e aberto. Ele é o começo, a partida. Não está estreitado ou fechado para alguma coisa, para algum alvo. Não tem uma direção premeditada e definida. É totalmente vulnerável, exatamente por ser aberto. Então, esse ponto surge em todas as situações imprevisíveis da nossa vida, quando não sabemos como atuar e o que fazer. Ele reside na zona de impasse dos nossos condicionamentos. Geralmente, quando surge, causa-nos constrangimento. Ele surge do instante imediato e não está condicionado, o que nos dá uma sensação de fragilidade. Imediatamente nos defendemos dessa situação com nossos pontos de referências. Quando surge, “imediatamente perdemos o controle” sobre o que somos. Não sabemos para onde vamos, nem como controlar a situação. E logo 81


lançamos mão de nossos condicionamentos, sem permitir que a experiência seja fresca, primordial. Fazemos isso com nossa vida, todo o tempo. O que nosso script busca é sempre uma tentativa de “segurança”, com pouca disposição para os desafios. Permanecendo nesse ponto, sem nosso repertório de condicionamentos, entramos na experiência, um espaço sempre novo em que deixamos de ser o que somos. Esse ponto é uma interrupção na linearidade, um perder de referências e um sair dos condicionamentos pessoais. O medo maior é permanecer aí pois não sabemos quem passaremos a ser. Nesse ponto nada está dado e tudo está surgindo de forma fresca e primordial, promovendo uma interrupção entre passado e futuro. As sensações de que vamos desaparecer, de não saber quem somos, são como a queda de um castelo de cartas que construímos em torno de uma ideia falsa e vulnerável a respeito de quem somos. Um castelo muito fraco, mal erguido, denominado “eu”. Quando isso desmorona, o que experimentamos é uma sensação muito aguda de medo, de tristeza, de dor. Uma sensação de estarmos frágeis e desguarnecidos. A sensação básica proveniente da nossa vulnerabilidade primária e do estado desnudo, sem condicionamentos, é um ponto dilacerado em nosso interior, lugar que se encontra sensível. Quando encontrado, esse espaço interno não pode ser fechado e não há como ser coberto. Até podemos cobrir sua superfície com nossos condicionamentos, mas não podemos fechá-lo. Temos a sensação de que trazemos uma ferida ali – por isso nossa experiência é de fragilidade. Quando esse ponto ainda estava muito vivo para nós, o mundo ao redor foi se tornando uma oposição, uma ameaça contrária a essa condição de abertura. Foi dessa forma que acabamos por perder nossa inocência de fundo. Então passamos a nos defender dele e rechaçamos esse ponto muito sensível da nossa experiência. Com o passar do tempo fomos nos tornando seres humanos complexos, defensivos e reativos, para assim proteger esse ponto sensível. Quando ele é tocado, quase sempre faz emergir uma sensação nostálgica, uma tristeza. Não 82


é exatamente a tristeza de alguém sofrido ou que foi abandonado, mas uma sensação nostálgica mais profunda: um anseio metafísico, uma saudade primordial de lugar, de casa, de pátria. No budismo se diz que a busca interior começa nesse ponto, a partir dessa motivação, o verdadeiro anseio do despertar da bodicita, da mente desperta. A busca que não começa desse ponto, movida por essa nostalgia e saudade, é uma busca intelectual, superficial, sem profundidade, sem autenticidade. Essa é uma busca que nasce do coração e isso é muito claro entre os sufis. Quase toda poesia e alegoria dos sufis é a saudade de ter perdido algo essencial. Mais do que isso, é aquela saudade do amor verdadeiro que ilumina a consciência de todos os seres. Ter perdido isso representa estar afastado do núcleo do verdadeiro amor, que os sufis chamam de O Amado ou O Querido.

O caminho das paramitas As paramitas são seis virtudes que podem nos colocar nesse lugar esquecido e amedrontador, que está do outro lado da margem da nossa insanidade. Elas podem nos auxiliar a reconhecê-lo como nossa verdadeira natureza. As pessoas acostumadas aos ensinamentos de Dorje Dradul poderão lembrar que ele chama essa experiência da sanidade de “bondade fundamental” ou de “bondade generosa”, maitri. Claro que aqui não se trata da qualidade de ser bonzinho ou bem educado, mas de um estado muito mais profundo em relação à vida e a si mesmo. Dorje Dradul se refere a esse ponto delicado e vulnerável, em que surge essa sensação tocante e muito dilacerada, como o coração da bondade fundamental. É a sensação delicada que nos desperta para um sentimento compassivo, de bondade genuína. Primeiro isso pode acontecer conosco por meio de uma sensação de ser amigo de si mesmo, de estar em paz consigo mesmo. Isso serviria para cessar a angústia de nos tornarmos outra coisa que não o que somos, e, também a dar fim à rejei83


ção do que somos. Esse gesto fundamental da bondade genuína representa um desafio de aceitação incondicional. Deveríamos assim cessar o processo crítico sobre nós mesmos e a redução de tantos esforços para sermos outra coisa. Então, isso poderia nos aproximar de um estado de nudez, um ponto de abertura onde nada há a fazer. É um desafio, o maior deles. É permanecer no ponto onde nada sabemos e nada alteramos, para confiar que daí surge a sanidade. Trata-se de uma confiança pré-conceitual sobre a nossa natureza. Ela já está lá e o que devemos fazer é nos dirigirmos a ela imediatamente, ao contrário de pensar se ela existe ou não. Então, quando olhamos para o mundo e encaramos as pessoas, podemos perceber nelas esse ponto doloroso, uma vulnerabilidade coletiva que vai escondida por aí. Usamos a palavra “dolorosa” porque nesse ponto existe uma sensibilidade aguda. Quando estamos nele, há também uma sensação aguda de lucidez. É tão aguda que corta e dilacera a nossa própria carne, pois tudo ela percebe agudamente, com os sentidos totalmente abertos, afiados. Podemos nos espantar em ver o que estamos vendo. Tomamos um susto com a intensidade das cores, dos sons, dos sentimentos. Isso causa medo – uma forma de temor secreto de ver as coisas como realmente são. Ver as coisas muito vivas parece ser insuportável para muitos. Então recorremos a uma técnica muito comum de defesa, a insensibilização e o amortecimento. Avidya no budismo quer dizer a “ignorância em não ver as coisas como elas realmente são.” No sentido do que estamos falando, não há uma visão intelectual que possa traduzir o impacto das coisas que sentimos. Trata-se de sentir muito diretamente o que nos confronta e do qual não podemos nos proteger ou evitar. Comumente, vivemos a vida como se fossem graus e graus de amortecimento e de perda de contato com essa lucidez e com esse estado agudo e tocante, que é demasiadamente vivo, demasiadamente desperto, demasiadamente lúcido, demasiadamente vulnerável. Parece

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que comumente não suportamos essa condição primordial de vivacidade. As seis paramitas são seis virtudes que devem ser trabalhadas no mundo. Nesse caso, devemos entender a meditação como inseparável do que fazemos em termos de desenvolvimento ético na vida. Quando sentamos para meditar, há um instante como aquele de ajustar uma velha porta para ser fechada, em que você está tentando fechá-la e ainda não conseguiu ajustar. Daí você tenta, e encaixa o trinco. Esse momento em que encaixa, que se ajusta, é semelhante à experiência desse ponto que nos referimos quando o encontramos. Na meditação, é quando encontramos o nível do ajuste fino entre corpo e mente. Quando esse ponto é encontrado na meditação, tocamos também o ponto primordial de toda a experiência, o instante anterior ao começo das coisas. É o ponto em que nada há e onde tudo começa. Nada existe antes e nem depois dele. No entanto, onde ele está existe uma atmosfera intensamente viva, comprometedora, desafiadora. Ele está sempre no aqui e agora de nossa experiência. É um lugar virgem e sem referências. Exatamente aí tocamos em nossa sanidade fundamental. É o ponto seminal, o ponto semente, o ponto origem da sanidade. As paramitas são o campo de treinamento do bodisatva como um guerreiro. Param quer dizer “o outro lado da margem” e isso significa que estamos do lado de cá. Ou seja, que não podemos alcançar essa sanidade, que estamos metidos no lado da confusão, da neurose e da desorientação. Ita que dizer “alcançado”. Por isso se recita: gate, gate, paragate, parasamgate, bodi, svaha. No prajnaparamita-sutra do Buda isso quer dizer “ido, ido, além da outra margem, alcançado, salve!” Alcançamos, segundo esse sutra, o ponto incondicionado, o ponto primordial, esse ponto tão delicado e tocante, o outro lado da margem. No budismo, existem alguns nomes para esse ponto. Entre eles encontramos o da semente da budeidade (natureza -buda), o tatagatagarba. Esse ponto dilacerado é um ponto de total compassividade. Ele não é apenas um ponto dentro do coração, 85


é um estado agudo de sensibilidade do ser inteiro. Não é uma emoção no sentido passional do termo. É a emoção do despertar, do acordar, que não é superficialmente emotiva. A emoção aqui é uma inspiração ou uma aspiração. Essa é também a referência do despertar da bodicita no budismo. No meu entendimento, as paramitas são a ética da condição guerreira. Por isso, as estamos chamando de paramitas de ética da condição guerreira. As seis virtudes são a ética do guerreiro. Quando estamos falando de guerreiros, não estamos nos remetendo ao destemor bélico da revanche que logo ataca o outro, na tentativa de ser valente. Os guerreiros aqui são destemidos em relação a esse “ponto primordial”. Eles reconhecem nesse ponto a sua natureza, ao contrário de todos os que estão se protegendo dele com suas projeções, sua hostilidade e sua confusão habitual, baseada em um eu congelado, petrificado, rígido, fechado, exilados do ponto seminal. No momento que esse ponto vulnerável é aberto, nada mais tememos. A partir dele, tudo é visto como insubstancial, pois também nos sentimos vulneráveis, sem solidez, sem substância. Então não há medo também, não há morte. E com isso, não nos resta tempo para ser tímido. Então se diz que a ética das seis virtudes, a ética dos corajosos, dos destemidos, é a ética dos que vão além do senso restrito e congelado do eu. Dos que estão dispostos a abandonar a noção restrita e impedidora de ser eu. Tudo o que pensamos que somos, na verdade, é parte de nossas defesas e de nossos hábitos repetitivos. São tantas coisas que temos de pensar e acreditar sobre nós mesmos para poder dizer esse sou eu. Nosso hábito de pensar continuamente é uma justificativa mental para dizer que estamos aqui e somos isso e aquilo. Temos ao nosso entorno pessoas e credenciais que nos remetem a isso. É o que faz de cada um de nós um ser humano automático, que repete sempre as mesmas coisas. A hora da nossa morte é quando vamos deixar tudo isso de uma vez, para todo e sempre. E, nesse momento, na morte, resta-nos apenas esse ponto, uma vez que todo o resto desaparece. Na hora da morte, 86


só há esse ponto primordial se a mente permanecer lúcida. O resto desaparece. Esse ponto não morre, porque ele não é algo que se possa guardar, não é uma coisa. Ele vive independente de você e das suas coisas. Se algo sobrevive à morte, isso é o ponto primordial dentro de cada um de nós. As paramitas são seis virtudes e estão compostas por uma cabeça e membros. Há um centro, a inteligência, e o resto são os membros que executam a função de aprimorar essa inteligência. As paramitas podem condicionar uma às outras, ou se aprofundar uma através das outras. Então, entre as paramitas, a sabedoria é a cabeça, a inteligência. Mas tudo começa em dana -paramita, a generosidade, seguida pela shila-paramita, a disciplina. Depois vem shanti-paramita, a paciência, seguida de virya-paramita, a energia, e de dhyana-paramita, a meditação. Prajna-paramita é a paramita final, a sabedoria. Por fim, a sabedoria é o ponto determinante. De certa forma, podemos treinar muitas dessas virtudes como uma ética da vida, mas talvez não seja mais difícil reconhecer qual é o sentido da meditação como uma paramita, sendo assim uma virtude ética e não apenas uma prática formal e funcional. Dentro das seis paramitas, a meditação não significa fazer algo em determinado momento, como sentar para meditar. É mais do que isso. Dhyana-paramita significa estar desperto e manter esse estado desperto na vida cotidiana. Não se trata daquela meia hora sentada em meditação formal. O problema da maioria das pessoas que meditam é separar o momento de meditar do momento da não meditação, quando deveriam continuar mantendo o estado de atenção. Manter o estado desperto é cultivar a dhyana-paramita, determinante para se alcançar a sabedoria.

Generosidade (dhana-paramita) A primeira paramita é a generosidade. Não se trata de ser bonzinho ou de distribuir um container de comida na vila mais 87


próxima. Não há problema em socorrer a quem precisa, mas se isso for feito por culpa não se parecerá com uma generosidade genuína. Se você faz porque deve fazer ou para se aliviar um pouco, já que tem muitas posses, isso não é generosidade. É culpa, é débito. Estamos falando de uma generosidade que tem a ver com comunicação, com comunicar-se com o outro, com estabelecer uma relação e um contato real em que vigora a disponibilidade. Essa comunicação é aberta. Não se trata de comunicar palavras, mas de comunicar o sentido de se estar aberto e de se relacionar sem interferir na comunicação. Isso de fato é ser generoso com outra pessoa. O fenômeno central a que estamos nos atendo é a abertura, uma disposição para relacionar-se com o outro. É a isso que nos referimos como “Abrir”, que é a perspectiva da meditação vipassana. “Abrir” é parte da comunicação aberta com o espaço. Shamatha, a meditação de estabilidade e calma é uma meditação de absorção que se busca os quatro jannas. Vipassana, ao contrário, é a abertura para o campo de experiência dos quatro focos de atenção: corpo, sensações/sentimentos, mente e objetos mentais. É uma atitude contemplativa de não absorção e abertura para o fenômeno imediato da experiência. E aqui o fenômeno imediato é a relação, a comunicação direta e imediata com o outro, aqui e agora. Observem que algumas pessoas não trazem essa disposição de relacionamento na forma como vivem suas vidas. Algumas terão uma disposição pela metade e outras usam, às vezes, a forma de se relacionar para dominar ou seduzir o outro. A disposição genuína é aquela que tem a ver com essa generosidade não controladora. Ela não espera por algo. Primeiro, porque essa disposição só existe se eu for além da minha irritação, porque quando penso que estou disposto tem ainda muitas coisas que podem acontecer e me fazer perder a paciência no meio do caminho. Posso ficar irritado e fechar essa abertura. Então, estar disponível ao outro significa ter vencido a própria irritação, esse senso de impaciência legítimo do egoísmo. A comunicação 88


aqui é muito aberta, revelando recepção e troca com o outro. A generosidade tem a ver com a abertura de permanecer aí com o outro, diante do que for. Existem três tipos de generosidade: a) dar algo material aos outros – que é uma generosidade de barganha, eu dou e fico aliviado com a minha culpa ou espero receber algo; b) destemor - que é ter a capacidade de lidar com uma situação de medo e pacificar o outro por meio da disposição de ajudar. Alguém está para morrer, por exemplo. Quando as pessoas estão por morrer, muitos chegam ao seu leito de morte e as iludem de que elas não vão morrer agora. São poucos os que levam coragem para alguém que vai morrer, falando a verdade de que a pessoa realmente vai morrer, sempre que isso for mesmo inevitável. Há um princípio, que até certo ponto se respeita, de não se gerar mais sofrimento a quem está morrendo. Mas, a questão aqui é que se ilude a pessoa, ao contrário de auxiliar em seu processo de morte, permanecendo presente com ela. Esse auxílio corajoso é uma forma de generosidade. Diante de um doente terminal, podemos ajudar muito mais dizendo que ele está perto da morte, ajudando-lhe a despertar para o destemor diante da sua morte. Essa seria a generosidade capaz de aliviar o sofrimento de alguém. Usei um exemplo extremo, mas têm vários para isso. c) ensinar alguém - é a capacidade generosa de ajudar alguém a sair da sua confusão, de sua neurose. Ensinar alguém a sair da trama da sua mente é ensinar a meditar, por exemplo, ajudar o outro a se auto esclarecer. Se você experimenta essa sensação de pacificação na meditação, a generosidade emerge e vem o desejo de que o outro desfrute disso também. A generosidade de poder ajudar alguém a praticar e lhe oferecer ensinamentos essenciais é como ajudar alguém a sair da sua confusão por 89


meios hábeis (upaya). Esse exemplo é muito próximo para todos nós. Essa é uma generosidade mais genuína, a de estimular alguém a ser livre e a sair da sua confusão. Isso pode se dar por meio da meditação ou por algum caminho terapêutico genuíno e curador. Na generosidade que estamos falando aqui, não acabamos irritados por muito pouco. Permanecer aberto e disponível é tocar nosso ponto vulnerável. Ao ficarmos abertos por muito tempo, sem encontrar uma saída ou solução, a tendência é ficarmos irritados, impacientes. Queremos que tudo ande, e assim não respeitamos o outro, pois não possuímos essa generosidade. Mas, através da coragem de permanecer com o outro surge a generosidade genuína de um bodisatva. Estamos indo além da impaciência, além da nossa defesa automática. Oferecer facilitação ao desenvolvimento das coisas ao nosso redor é uma forma de ajudar que tudo evolua em direção à sua natureza fundamental. Geralmente, devido à nossa dualidade e resistência, quando algo está acontecendo começamos a criar problemas com aquilo que se diferencia de nós mesmos. A generosidade aqui é exatamente largar esse egocentrismo e ajudar as coisas a acontecerem. Embora possa não ocorrer exatamente o que queremos, a sensação de deixar as coisas fluírem, deixar as coisas acontecerem, facilita os acontecimentos e essa fluidez nos beneficiará também. Quando ficamos incomodados, trancamos o processo e começamos a limitar as circunstâncias. Imaginem como a energia de conflito e de tensão se instala contra a realidade de uma forma desgastante. Não soltamos e acabamos congestionando a vida e criando mais sofrimento. Renunciar a um prazer também pode fazer parte dessa generosidade guerreira do bodisatva. Por exemplo, eu queria muito ir ao cinema, mas fulano está enfermo (ou algo parecido) e fico cuidando dele. Renunciar a algum prazer momentaneamente é experimentar essa sensação de abertura e generosidade.

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Então temos alguns pontos importantes sobre a generosidade enquanto comunicação: estar aberto, soltar, permitir as coisas se desenvolverem, ajudar para que elas evoluam, além do dar, que é mais do que oferecer coisinhas a alguém. Dar com uma disposição generosa e autêntica é determinante. Gostaria que isso ficasse bem claro.

Disciplina (shila-paramita) A segunda paramita é a disciplina. A disciplina aqui está relacionada em realçar nosso estado de sanidade fundamental. A disciplina está em trabalhar com os meios que nos possibilitam realçar essa sanidade. Também significa uma disciplina da habilidade em lidar com as situações de forma não tão condicionada, não tão previsível, não tão automática. Compreende a capacidade de tornar-se espontâneo e natural, dentro dos limites de uma situação, sem se reprimir ou ser desastrado. Experimentar uma relação com o mundo, onde nos encontramos mais desprendidos. Por exemplo, quando você encontra alguém, sempre tem um repertório de coisas para dizer: “bom dia?” “Vai chover?” “Como vai sua vida?” Você vai interpondo coisas em um espaço vazio, aberto, de contato entre você e o outro. Geralmente, para as maioria das pessoas, esse é um espaço inadequado em que não sabem bem o que fazer. Surge a inadequação e o não saber lidar com os limites desse espaço. Comumente as pessoas se reprimem diante dos limites da realidade ou saem derrubando e passando por cima dos limites, desastradamente. Mas, quando a abertura e o espaço são sustentados, a pessoa toca naquele ponto doloroso, no ponto agudo da sua vulnerabilidade, do seu não saber, o ponto primordial em que nada está condicionado. Parece que você pode se perder dentro dele, pois não tem disciplina para lidar com ele. É um lugar vulnerável para a maioria das pessoas. Você tem medo de estar ali

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e logo passa há preencher o tempo e o contato com as etiquetas sociais artificiais. Então você encontra uma pessoa... Estende-lhe o braço e aperta-lhe a mão, ou lhe dá um abraço... Diz “bom dia” e para! Não faz mais nada e mantém sua presença e abertura naquele momento. E quando para, você experimenta esse ponto de ausência, de suspensão dos automatismos. Ali está o espaço com os seus limites. Exatamente desse lugar você percebe melhor a situação, o que não ocorre quando nos antecipamos. Presentes, vemos a expressão, o gesto e a atitude da pessoa. Sentimos o clima gerado, a textura de sua pele, ps seus movimentos, o tom da sua voz, os seus sentimentos e outros detalhes. Tudo isso ocorre porque existe esse espaço-tempo e a suspensão dos condicionamentos, com plena atenção. Você não fica inadequado e relaxa, nada fazendo. A disciplina aqui busca realçar uma coisa não condicionada em nós, uma conduta espontânea, aberta. Isso significa saber lidar com o espaço e os limites, o que requer um tipo de disciplina. Não se trata de uma disciplina para se conter, mas uma disciplina para relaxar e se soltar nesse contexto de limites. Precisamos aprender a confiar em nossa sanidade, em nosso ponto de abertura. Isso faz parte dessa disciplina. Então, agir desde esse desprendimento é agir com confiança, sem nenhuma regra. É também comunicar-se nesse momento de forma inteira, sem se fragmentar. Vale observar o medo que surge ao sermos inadequados, sem etiquetas, sem previsão? A primeira coisa que tememos é que os outros não irão nos aceitar sem respostas previsíveis, sem respostas imediatas, sem etiquetas sociais. Faz parte de um acordo social implícito correspondermos ao estabelecido. Isso também garante ao outro não ter que entrar nesse espaço incondicionado, pois ele o teme tanto quanto você. Nesse acordo social as pessoas perdem a espontaneidade e ambos estarão protegidos”. Na verdade, isso faz parte do medo infantil de não ser aceito. E se torna parte da projeção que fazemos e, consequentemente, das nossas defesas sociais. 92


Quando relaxamos, podemos transmitir uma sensação inteira, um sentimento completo, uma integridade e uma naturalidade, que comumente nos assustam. Perturbador é quando encontramos alguém com essa disposição para o imprevisível. Em especial, quando a pessoa não está em dúvida quanto a si mesma e se encontra mais liberada, mais desprendida em agir e se comunicar. Ela pode não ter medo e nos faz viver uma situação desconcertante, fora da lógica, sem etiquetas e sem credenciais. Na disciplina imposta de fora, você possui um sentido de completa falta de espontaneidade, onde atua como um soldado bem disciplinado, sem ser espontâneo. Trata-se de uma repetição de condutas, uma previsão forçada de atitudes e de regras fundamentadas em deveres. A paramita da disciplina surge de dentro e não de fora. Está de acordo com uma sintonia interior muito fina. Não é uma disciplina imposta por alguém. É uma disciplina baseada em desprender-se e recuperar uma sensação fundamental de ser. Está baseada na confiança de não se vigiar e se censurar tanto, deixando que esse ponto de equilíbrio – ou de equilíbrio sem equilíbrio – possa surgir de uma forma fresca e viva. Então, a sensação de não estar se vigiando vai trazendo um sentimento de desprendimento, de liberdade, de sinceridade e confiança. Partindo desse desprendimento podemos nos enquadrar, não em algo já previsto e determinado, mas dentro da situação fresca que surge. Então, seguimos sem referências forçadas. Aperto a mão da pessoa... Dou “Bom dia”... e, simplesmente está aí o acontecimento; ele já é suficiente por si mesmo. Nesse caso, não vou produzindo de antemão o próximo instante. Relaxo ao dar uma pausa, ao esperar que o próximo momento se apresente e aí eu o sigo. Tudo funciona naturalmente. Ouvi uma pessoa dizer que ao cumprimentar alguém tinha uma ansiedade tão grande que continuava falando sem parar, sem dar esse espaço para o outro, para a comunicação, devido à sua timidez. Isso ocorria com ela exatamente para não experimentar esse momento de incômodo, de vazio, de abertu93


ra. Evitamos esse incômodo pelo fato de não saber quem somos na verdade. Estamos habituados com algo já desenhado sobre nós mesmos. Não temos humor e desprendimento para experimentar o sentimento de desconforto, e, ao final, em contato direto com o que sentimos, sem qualquer defesa, descobrir o que realmente somos. Constantemente podemos ter a sensação de que somos abalados pela dúvida, de que não vamos funcionar na hora “h”. Então, se nos detemos nesse medo, sem impor nenhum condicionamento a ele, talvez alguns segundos depois nosso coração se recupere, e você se expresse de forma mais natural e aberta. É preciso realmente esperar... Seguir. Talvez você possa acreditar que não há nenhuma solução para o seu medo. De fato, esse ponto é muito vulnerável, desconfortável e, às vezes, diante dele não há o que dizer ou fazer, senão trabalhar com a abertura que ele nos possibilita. Aí está a disciplina. Só partindo de um desprendimento mais profundo nos enquadramos naturalmente na situação em que nos encontramos. Logo, a disciplina que estamos falando tem a ver com a tentativa de se estar realçando essa parte saudável, a partir desse ponto vulnerável, primordial, e, lidando com o espaço e os limites. Lidando com a espontaneidade e a presença do outro e do mundo que nos envolve. Realçamos essa inocência fundamental da nossa própria mente em ser o que somos. O mestre zen coreano Soensa chamava essa inocência original de “mente não sei” ou a mente iluminada do Buda. Para trabalhar com essa disciplina requeremos algumas coisas. Uma delas é reduzir o excesso e o exagero em nós mesmos. De alguma forma somos exagerados em como sentimos, pensamos, gesticulamos e nos movemos. Falamos e fazemos muitas coisas, no momento em que estamos em contato com o outro. Não temos uma atitude direta, mas oblíqua. Ter um senso de limite e de atenção é saber como ser comedido na forma de nos relacionamos com o espaço e com o outro. É não entulhar ou atropelar o caminho com obsessões, desejos, intenções, medos, estratégias e vontades neuróticas. 94


Estar desprendido – o que não significa ficar largado - não é ausência de regras e rebeldia, pois isso parece um tanto infantil. Ao contrário, estar desprendido é soltar, no sentido de relaxar e perceber as coisas calmamente em meio a regras e limites. Não se trata de chegarmos na casa de alguém e irmos nos deitando no sofá, bebendo e comendo tudo o que está disponível em sua geladeira, sem pedir licença achando que isso é espontâneo. Isso não é desprendimento natural, é outra coisa. Nesse caso, a disciplina não chegou a ser trabalhada. Essa paramita remete ao relaxar e soltar-se, mas também ao perceber os limites das coisas. É desenvolver uma boa relação com o espaço, com o outro e com tudo o que se inclui nesse espaço. Isso é a disciplina que falamos aqui: o senso de limites e de relaxamento, com abertura e espaço. Abertura com percepção dos limites: essa é a ideia central a ser considerada. Uma espécie de tai chi em que a pessoa se move calmamente pelo espaço das relações com um senso refinado de atenção e relaxamento. Também poderia ser a atitude do esgrimista que se move atentamente pelo espaço reconhecendo-o e agindo de forma direta, certeira.

Paciência (shanti-paramita) A terceira paramita é a paciência, que neste contexto significa não termos demasiadas expectativas e exigências. Quando esperamos sem expectativas, podemos experimentar a generosidade (shanti-Paramita) de nos comunicarmos abertamente. A sensação de permanecermos abertos ao que vai acontecer e, ao mesmo tempo, estarmos nos sentindo calmos e tranquilos é o princípio da paciência. Ou seja, nada estar esperando e não se ter tantas expectativas. Quando muito estamos esperando, ficamos impacientes. O que acontece quando temos de esperar muito? Queremos imediatamente que algo aconteça! Mas, não é exatamente isso o que ocorre. Imediatamente nos lançamos contra aquilo que 95


estávamos esperando, que é o oposto de estar paciente. Nos jogamos contra as coisas e quanto mais nos lançamos contra, mais elas se lançam contra nós. É ação e reação. Ação, conflito, tensão, sofrimento... Através da paramita da paciência surge a permissão de um espaço de menor reatividade com o que nos cerca. Isso não significa que ficaremos sentados, parados, sem nada fazer, esperando. Mas, significa que seguimos em outro tipo de ritmo, que não é o da impaciência e da irritação. Quando a pessoa tem que se lançar muito, ela é hiperativa no sentido de ter que fazer as coisas acontecerem sob seu controle e vontade. Uma pessoa que tanto precisa controlar está lidando com o temor de ficar nesse ponto vulnerável, de abertura e de paciência. Então, ela prevê o que vai acontecer e tenta se lançar na frente para que algo aconteça ou não. Ela faz muitas projeções sobre os acontecimentos. Pessoas assim necessitam ter domínio da situação e interferem na vida dos outros, manipulando os acontecimentos. Elas costumam ter muitos medos do que vai acontecer, temendo que as coisas não vão dar certo, que vão lhe criticar, lhe culpar e lhe desconsiderar, e que por fim não vão lhe amar ou lhe aceitar. São muitos os temores escondidos nesse tipo de atitude. A pessoa que controla é carente de qualquer tipo de paciência, calma e tranquilidade. Estamos falando de algo que diz respeito à coragem que, neste contexto, é tratada de uma forma peculiar e sutil. E que sobretudo está intimamente ligada à prática de sentar, ajustar a postura e abrir-se ao espaço da mente e da loucura que existe lá dentro. Abrir a sensibilidade e o coração terno. Lidar com a sensação de abertura, espaço, e com os movimentos da sua mente durante a meditação. Isso requer um tipo de presença que somente acontece quando estamos sensíveis e em plena atenção. É uma abertura consigo mesmo diante dos próprios medos no momento da meditação. Trata-se de não reprimir o que se sente e de permitir que surja a claridade da presença atenta.

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A ação compulsiva nos lança contra isso, motivada por esforços que querem cobrir uma insegurança. Esses esforços estão baseados em nossa impaciência e irritação, na profunda falta de confiança diante das coisas com as quais nos deparamos. Baseiase em nosso medo! No entanto, a ação – nessa paramita - não produz reação, adversidade, porque tenta se harmonizar com a situação por meio da paciência e da calma. O impulso também não é antecipado, nem prematuro, ele segue como aquele andar do elefante. A metáfora do elefante é muito interessante aqui: ele segue lento, constante, confiante. Essa metáfora é muito boa. Deixar as coisas acontecerem com o seu movimento. Não significa que fiquemos descomprometidos. Significa que estamos atentos ao que está acontecendo. Podemos agir sobre o que está acontecendo, mas é diferente de ser impulsivo e lançar-se o tempo todo contra as coisas. Podemos agir naturalmente a partir daqui. É mais ação do que reação. A metáfora do elefante é “a calma diligente”, que também se aplica à próxima paramita, virya, quando dirigimos nossa energia para um fim. Significa que não temos impulsos prematuros, antecipados; que fazemos as coisas de forma contínua, como o elefante, ou como ele costuma andar. Aqui há uma consciência do espaço entre si mesmo e o outro, com uma dose de calma. Na verdade, na paramita da paciência percebemos a dimensão e a natureza do espaço, exatamente esse espaço entre nós mesmos e o outro. Há menos invasão, menos controle, menos preenchimento. Há mais tempo, mais abertura, mais calma, menos antecipação. Existem três tipos de espaço a serem considerados. O primeiro é o espaço externo, objetivo que pode ser medido, têm dimensões e direções e, ao mesmo tempo, organiza os objetos onde vivemos. Experimentamos esse tipo de espaço como físico. O segundo é o espaço sentido, subjetivo, psicológico, que está de acordo com as nossas sensações, emoções, os nossos sentimentos e pensamentos. Uma pessoa impaciente, por exemplo, com muita ativação de sentimentos e pensamentos, poderá não ter 97


tanto espaço interno, pois ele estará ocupado com sua ansiedade, movimento e controle. Quando há espaço interno significa que relaxamos o corpo e a mente, e que permitimos um pouco do fluxo dos acontecimentos nessa abertura. Na mente existirá mais fluidez e menor fixação, o que confere com a percepção do espaço psicológico esvaziado. O terceiro espaço, que se poderia chamar de secreto – segundo os tibetanos - é o espaço de puro existir. Não há separação em sua experiência e estamos exatamente aqui e agora. Esse espaço é muito aberto, amplo e infinito. Ele é não dualista e tanto dentro como fora resume-se ao instante de um átimo ou ao pulsar de uma artéria. É o ponto primordial, a abertura incondicional da existência para além do visível e do invisível, pois não está em um lugar concreto, mas na origem de todos os espaços. Exatamente por isso se diz que é um espaço secreto. Por exemplo, L (uma aluna) comenta que prepara suas aulas (é professora), preocupada com o interesse dos seus alunos, o que parece muito natural. Ela está preocupada se os alunos vão gostar ou não do resultado do seu trabalho, etc. Na verdade, tudo são as antecipações que ela vive no seu espaço psicológico. Não são acontecimentos do espaço físico e objetivo, uma situação dada, por exemplo. Trata-se de antecipações subjetivas. Nossos pensamentos não podem ser confundidos com os fatos. Eles fazem parte da fantasia daquilo que ainda não aconteceu. É uma antecipação que é vivenciada como fantasia e também como ansiedade. Isso diz respeito ao espaço subjetivo, psicológico, que é o espaço interior. De fato, teremos que preparar nossas aulas sem pensar tanto no resultado posterior, mas no resultado em si do trabalho que se prepara, enquanto o preparamos. Desfrutar do que preparamos e realmente estar ali e não em outro lugar. Trata-se de não se separar do que se está fazendo, de momento a momento, até a sua execução final, quando ainda não estamos separados. Estar nesse trabalho, dessa forma, é não separar-se do espaço do puro existir ou do espaço secreto. Não significa que teremos que dar 98


a aula e logo nos livrarmos dela. Damos a aula com a confiança em seu desenvolvimento, sabendo que a aula vai se desenvolvendo naturalmente, consciente desse processo enquanto ele ocorre. Isso é como não se separar do espaço do puro existir, que podemos chamar de secreto, e isso ocorre devido à sutileza do que ali acontece, e de ser o espaço onde o exterior e o interior estão fundidos. Não nos ausentamos desse desenvolvimento, de momento a momento, por não nos anteciparmos a ele. O acompanhamos, sem estarmos separados. Isso é o que garante o resultado final e não a profusão de fantasias que fazemos, formas de antecipação e de controle da situação. Nunca nos ausentamos se mantemos a nossa presença, e nem nos antecipamos. Uma sensação comum ao nosso medo – e não se saber quando ela começou para cada um de nós - é que as coisas não vão funcionar. Então, nós nos antecipamos o tempo todo e perdemos a noção de espaço entre nós e as outras coisas. E, perdemos a experiência imediata em que se encontra o espaço secreto para além do dentro e do fora. Perdemos a nossa presença naquilo que estamos fazendo. A ansiedade é não suportar estarmos presentes e logo nos anteciparmos. Então já não sabemos mais como permitir a ocorrência do que estiver ocorrendo. Saber esperar é nada esperar. Parece contraditório, mas é assim mesmo. Temos muitas expectativas, muita antecipação. Não vivemos as coisas como são, mas o conteúdo da nossa projeção sobre elas. Tudo isso, novamente, refere-se a esse ponto primordial que é o nosso tema central – desde o começo - para se compreender o trabalho com as seis paramitas. Saliento isso por ser esse o ponto primordial a nossa sanidade. As paramitas são formas de retornar a essa sanidade. Vamos pensar agora que vai ocorrer uma festa muito esperada em casa de T (aluna que nos recepciona nessa palestra) na semana que vem. Vamos imaginar isso. Todos passam a ficar com a expectativa desta festa. Vamos encontrar fulano, sicrano, etc. Começamos desse modo, com um excesso de espera pela 99


festa que ainda não chegou. Daí que, no dia da festa, algumas coisas não acontecem e quem você esperava ver também não veio. A comida e a bebida também não estavam adequadas à situação. A música era rock e você desejaria dançar Gloria Gaynor. Você ficou esperando por algo e acabou frustrado. Viveu antes o que vinha depois e não acompanhou a vivência de momento a momento, que sempre está aberta a todas as ocorrências e acolhe cada expressão dos acontecimentos. Essa não espera não significa chegar jururu, deprimido, de má vontade. Você pode chegar sem expectativas, e, ao mesmo tempo, estar muito aberto com todos e com a situação. Uma coisa não depende da outra. Não é exatamente a onda do “eu gostaria que fosse assim ou assado.” Não tem esse excesso de expectativas e ainda assim todas as coisas estão aí. Então, vemos as pessoas de uma forma melhor, como potenciais para o que vier a ser, e o ambiente estará aberto, receptivo. Surgem mais possibilidades não esperadas - por não se estar antecipando - porém mantendo o processo da experiência, de momento a momento, muito diretamente por meio da presença. Estar desapegado de expectativas para assim desfrutar das coisas como elas ocorrerem. Fica claro o que significa a paramita da paciência? A paciência é não esperar. Podemos a entender também como a permissão para que as coisas se desenvolvam. Cultivar esse espaço refina cada vez mais a relação com o mundo e conosco. E vai tornando também a meditação uma prática sem tantas expectativas, um trabalho relaxado, tranquilo e contínuo, que se desenvolve pacientemente. Nesta palestra, estamos dando um outro sentido às paramitas, mais dinâmico do que filosófico ou religioso, mais secular do que espiritual. Quando queremos dar um sentido espiritual religioso geralmente tratamos as coisas de forma demasiadamente sagradas e distantes. No nosso caso, queremos fazer de nosso mundo doméstico um lugar de Trabalho descendente.

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Energia (virya-paramita) Certa vez, o pai de Felipe (um aluno), Celso Marques, falou algo interessante. Celso é um erudito do budismo e fez uma tradução muito curiosa sobre virya, a paramita que vamos comentar agora. Virya quer dizer energia e também diligência. Como o Celso observou, essa palavra tem também uma relação com a coragem. Ele relacionou o termo com Gautama Buda, que veio de um clã de guerreiros, os sakyas. Mas, o Buda se tornou um guerreiro por excelência, porque não pegou em armas tradicionais. Foi uma outra visão da coragem - que é a dos jinas, dos vitoriosos, dos conquistadores – e tem a ver com core, centro, coração. É algo mais profundo em sua própria experiência. Celso comparou virya, a energia, o ânimo, a força, a diligência, com a coragem. É uma boa e bela descrição para essa paramita. A paramita da paciência é o não antecipar-se, permanecendo completamente aí, disponível. Desse estado de abertura é que surgirá a energia. A visão aberta quase sempre é uma visão inspirada no novo, na aventura, no desafio. Ao não se estar com muitas preferências, podemos descobrir coisas interessantes. Essa visão aberta pode dar uma sensação de inspiração com as coisas que surgem no caminho. Podemos perceber coisas diferentes em lugares diferentes. A energia se move através dessa liberdade. E a visão aberta não tem intenção, inspira-se em trabalhar com a energia, com a diligência, com o ânimo. Isso faz brotar o sentimento da alegria, que está diretamente associado com vitalidade (a energia). Por que a alegria vem junto aqui? Porque a energia, a sensação de nada estar esperando, de se estar relaxado, de não estar em outro lugar e de estar acompanhando o fluir das coisas nesse instante, é semelhante à disposição alegre de seguir em frente, animados. A alegria é o estado animado da energia fresca e viva que se torna abundante. Outro termo associado a isso é diligência, no sentido de fazer andar, de fazer o movimento crescer, frutificar. Fazer andar as suas coisas, porém não por obrigação, 101


mas porque se está motivado com elas. Isso não se reduz apenas a estar mais inspirado. Exatamente porque nos alegramos, algo se move como um frescor, prestes a se tornar fluxo, movimento, energia. Há um senso de curiosidade que está presente em tudo isso. É o mais importante: um senso de curiosidade. Se não nos cansamos das situações, a energia vai aparecer como curiosidade e alegria. Parece que muitas das situações que vivemos são sempre muito enfadonhas, muito repetitivas, sem novidades, completamente automatizadas. A energia alegre brota de uma situação de curiosidade, de novidade e de frescor. Há um senso de interesse intrínseco na sensação de virya. Na medida em que estamos abertos não ficamos enfadados. Enquanto fechados, restringidos, automatizados, ficamos cansados. O destemor é parceiro de uma energia fresca e alegre. A energia em virya tem a ver com lidar com uma situação complexa. É um desejo de aprender e de lidar com algo que não conhecemos. É uma curiosidade, um senso de precisão, uma atitude aguda, direta. Essa é abordagem fundamental de shamatha-vipassana: conservar um estado de atenção aguda, relaxada e aberta. Quando lidamos com uma situação complexa e nos abrimos, ela vai tocar naquele ponto vulnerável. E, novamente, a sensação é de termos que nos proteger imediatamente dessa sensação vulnerável, frágil, insegura. Mas se lidamos com uma sensação complexa e dizemos “eu quero entender isso”, a energia fresca de virya ficará a nossa disposição. E podemos lidar com a situação não mais como algo enfadonho. Então, essa sensação de interesse ao lidar com a situação complexa é a energia de virya se manifestando, que é uma energia de destemor e de coragem. A curiosidade em querer lidar com uma situação complexa traz junto essa sensação da energia, da valentia no sentido real dos jinas, dos conquistadores.

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Meditação (dhyana-paramita) A quinta paramita é a meditação. Compreendemos que o estado de generosidade é uma atitude aberta e de receptiva comunicação, que vai junto com o desenvolvimento da consciência do espaço e do relacionar-se com esse espaço, formando um paralelo com a disciplina (shila) de estar mais desprendido e espontâneo. Exatamente isso é o que faz brotar a energia da curiosidade. Tudo vai fazer com que você se encontre desperto e presente finalmente. A meditação, então, é dhyana, a quinta paramita, a quinta virtude. Não se trata apenas de se estar sentado em meditação. Essa prática inclui o momento de sentar para meditar, mas agora não estamos falando apenas de treinar para estarmos despertos por meia hora. Nesse caso, tratamos de estar despertos todo o tempo possível, como uma conduta regular. As pessoas normalmente dizem: é muito difícil ficar atento vinte e quatro horas, é muito difícil; nem vou tentar isso, vou tentar minha meia hora, meus dez minutos de meditação. Ficar todo o tempo, todo o dia... Nem vou tentar, não funciona, não consigo... Quando praticamos essa paramita, buscamos uma atenção presente. Isso não requer esforço porque as coisas não estão em outro lugar e nunca vão para outro lugar. Trata-se de já estar em relação direta e imediata com a vida que nos cerca. Esse é o sentido da não distração. Não se trata de um ensaio de atenção reduzido a instantes sentado na postura de meditação. A prática, nessa paramita, consiste em não se distrair. A meditação aqui está revestida de um caráter dinâmico e não exatamente ocasional. Procuramos não nos distrair nas atividades domésticas, cotidianas. A meditação tem a ver com consciência panorâmica, que está diretamente relacionada à atitude de abertura da generosidade para com o instante presente e tudo o que nos cerca. Ela tem a ver com o mundo ao seu redor, e uma relação atenta com ele. É estar percebendo o que está no entorno. Estamos aqui e 103


presentes com o que está aqui. Percebemos o espaço, a nossa relação com esse espaço e os limites (elemento da disciplina) claros que formam parte dessa relação. Ficamos entusiasmado com a qualidade desse momento também. Ficamos alegres, não de forma volúvel, mas com sobriedade e simplicidade. Tudo isso nos faz atentos ao espaço. Observamos as coisas que estão ao redor. Também não se medita em um momento para se estar desperto em outro. Estamos despertos e interessados em nossa vida e na forma como nos relacionamos com ela. Quando encontramos alguém comumente não estamos atentos ao que ouvimos e recebemos da outra pessoa. Geralmente, já estamos preparados com nosso script e seu roteiro e com eles jogamos – de forma impaciente - contra essa pessoa. Não conservamos essa sensação de espaço, de receptividade, de generosidade e de disciplina. Talvez o que o outro fale nem seja percebido como importante. É como um atendente de telemarketing que não ouve a pessoa que está do outro lado da linha e fala todo o tempo como uma máquina. Porém, ao estarmos presentes, receptivos e atentos, a sensação de contato com o outro começa a ser interessante e curiosa. Nem tanto pelo que o outro diz, mas pela vivacidade que o contato provoca. Tudo isso tem a ver como o estado desperto, que é um estado de interesse, de precisão e de curiosidade. Esse é o movimento da energia que se conserva com a noção de espaço, que tem a ver com a paciência que sustenta o estado desperto. O que circula nesse contexto de interesse mútuo é sempre a energia que torna ativo esse tipo de contato. Curiosamente, tudo isso envolve o contato com alguém ou com determinada situação. Generosidade, disciplina, paciência, energia e meditação também se relacionam entre si de forma dinâmica. Ação é meditação. Meditação é ação, não apenas nada fazer. É como se todas esses aspectos não se dissociassem na paramita que estamos nos atendo. Estar aberto para todas as situações: isso é meditação. Não distrair-se e treinar a não distração na vida secular é a maneira de trabalhar com essa paramita. Não se trata de apenas estar desperto quando sentamos para 104


meditar. É estar desperto para as coisas ao nosso redor, de forma dinâmica e não apenas passiva. Há uma divisão comum entre praticantes imaturos na meditação e os que integram todos esses aspectos em sua prática e em sua vida. Aqueles que ainda não compreenderam a essência da prática, não percebem o motivo pelo qual a meditação não avança. É exatamente porque não a desenvolvem no pós-meditação. Quando saímos da cama, do banho, do assento de meditação há sempre uma série de situações que nos possibilitam trabalhar e viver essa paramita, no verdadeiro sentido da meditação, que é uma condição e não um momento apenas. O diferencial para que se possa trabalhar esse aspecto é permanecer não distraído. E a experiência da plena atenção transcorre nos quatro campos da atenção: corpo, sensação/sentimento, mente, fenômenos mentais.

Sabedoria (prajna-paramita) A última das paramitas é a sabedoria. Vale lembrar do que tratamos no início da palestra, de que a sabedoria é a cabeça e o resto são os membros. Todas as paramitas trabalham e culminam nesse ponto. Naturalmente levam a esse ponto, o da sabedoria e visão clara. E o que seria a sabedoria como elemento catalisador e síntese de todas as outras paramitas? Nesse caso, a sabedoria está associada à prajna, uma visão muito clara e penetrante a respeito das coisas como elas são. Trata-se de um conhecimento muito direto, sem intermediação. É um reconhecimento, uma visão que percebe o que já está ali. Isso é prajna. Que também é uma capacidade crítica muito aguda, de grande discernimento, que distingue o obscuro da clareza, a confusão da lucidez. É como um raio, um raio de luz que ilumina diretamente a escuridão. Tudo o que foi treinado até aqui poderá nos levar à capacidade de ver diretamente a vida que vivemos. Isso é a sabedoria que estamos tratando 105


agora. Esse saber que transcende a dúvida, a ambiguidade e as incertezas. A sabedoria é mais do que informações a respeito das coisas e desfaz a ilusão sobre o que elas aparentam ser. Pra e jna na palavra prajna significam o conhecimento agudo e direto das coisas. Jna quer dizer conhecer e pra significa ir além. É a sabedoria que lhe coloca além das aparências. Ela precisa ser descoberta e isso somente acontece por meio do trabalho de conduta moral com as paramitas anteriores, e, principalmente, por meio da paramita da meditação. A extinção da ignorância está em ver as coisas sem filtros mentais, sem filtros emocionais, sem o filtro das nossas crenças. Não se trata de termos uma experiência mental ou emocional como referência. A sabedoria aqui é ver as coisas como elas são, além do que é mental ou emocional. É uma experiência inteira e não dualista da realidade. Todas as paramitas que trabalhamos trazem na sua guisa esse sentido: nos conduzem a viver de forma mais clara a vida que se tem para viver. Prajna, em sânscrito, significa também visão clara, lúcida. Está associada a uma espada. Então, o que é a sabedoria ou a paramita de prajna? Quando estamos nos comunicando com alguém, notamos muitas vezes - no decorrer da conversação – um tipo de estranhamento, que é a nossa projeção na forma de pensamentos subliminares: “Ele não gosta de mim” ou “estou sendo visto de maneira inadequada”, por exemplo. Ou, “ele quer me forçar a fazer algo que não quero”, ou “está mentindo para me enganar”, etc. Quando esse processo ocorre, prajna significa a espada que percebe essa dissonância que nos tira da experiência imediata diante do outro. Então, a espada corta rapidamente essa confusão e nos devolve a lucidez. Se deixamos a projeção prosseguir, entramos em uma zona de fantasia e a erva daninha cresce rapidamente. Depois já nem sabemos mais onde estamos. Quando a erva daninha cresce e toma conta da casa, não sabemos mais onde está a porta de entrada ou por onde saímos. Prajna é a espada que corta a confusão. Ela corta a rede de associações mentais, fantasiosas e possibilita que se veja a rea106


lidade diretamente. Esse ver diretamente nos mantém ali onde tudo ocorre, sem nos deixar seguir tão automaticamente as situações que surgem. Podemos ficar ressentidos, por exemplo, porque fulano não nos atendeu da forma que esperávamos, ou que ele não sorriu para assim manter uma amistosa aproximação. Quando esse tipo de diálogo interno começa, imediatamente prajna pode cortá-lo. Quando isso inicia, mantendo a atenção presente, podemos pensar: corta! Ou corta imediatamente ou seguirá para algum inferno ou reino infernal. São os diferentes tipos de tormentos da mente, os diferentes tipos de reinos em que podemos ficar aprisionados. A sabedoria que falamos aqui é cortante. É a sabedoria vajra, aguda, como um raio. Ela é muito clara, direta e não distorce o que reflete. Significa não se ficar perdendo tempo com projeções ou ideais fantasiosas. Ela corta e não segue atrás, acabando com o inútil que se insinua. Vajra permanece com o essencial: a experiência direta e imediata, que não está colorida pela fantasia das nossas projeções. É como um espelho que está refletindo uma imagem, sem qualquer distorção. Essa presença vajra traz de volta a paciência, a disciplina, a generosidade, a energia, a meditação. O corte nos devolve ao contato genuíno e ao trabalho com todas as outras paramitas. As virtudes passam a se relacionar entre si, potencializando o contato com algo muito essencial. Prajna é a cabeça das outras partes. Todas as outras virtudes tomam essa direção, a recuperação de um sabedoria inata de claridade sobre as coisas. Prajna é o catalisador de todas. Quando a confusão é interrompida, todas as outras virtudes fluem como rios em direção ao que chamamos de sabedoria: uma visão clara e penetrante das coisas. Prajna é o discernimento que corta, uma visão sem preconceitos. Ver diretamente as coisas e, ao mesmo tempo, executar a sabedoria, é permanecer vendo claramente o que está aqui. O contrário será ficar imaginando, projetando a nossa confusão sobre o mundo. Lembram que antes falei de duas coisas: a confusão e a projeção. Ambas nos tiram desse ponto central, imediato, pri107


mordial, sensível. A sabedoria é aquilo que impede a projeção de se desenvolver. A vida para cada um tem razões terríveis e elas se tornam um filtro pelo qual passamos a ver a realidade de forma bastante obscura. Muitas vezes a vida pessoal parece ser algo desgastante e sem saída, porque tentamos destruir o incômodo fora de nós mesmos. Cria-se então um senso perverso de paranoia, um sentimento de separação e ameaça. Avançamos na direção errada, dizem as vozes internas. Tentamos brigar com alguma coisa fora de nós e não nos damos conta de que ela reflete algo de nós mesmos. Nada há que estejamos vendo ou vivendo que não seja nós mesmos. Tudo é projeção sem controle, fenômenos de dualidade, separação e desconexão. Nestas horas passamos a controlar e a brigar com as pessoas, nos desentendendo com elas, exatamente por isso. No entanto, isso é fruto de uma sensação interna, de uma negação que não reconhecemos. Então, é um sofrimento terrível, sem saída. Se alguém está atento à projeção e ao modo como ela se manifesta e consegue cortá -la, a pessoa sai da própria confusão. Afinal, tudo isso começa na própria mente. É essa a função da sabedoria diante da confusão: não deixar que ela se desenvolva. Quando nos referimos a prajna como uma visão aguda e penetrante, que corta a confusão e a separa da clareza com seu discernimento, estamos falando de prajna, que reconhece imediatamente algumas características da realidade. A primeira de todas é a de que não há substância inerente em nenhum fenômeno, ou seja, nada de sólido existe que possa lhe ferir ou destruir. Segundo, que a realidade se move de um ponto para outro, e, que jamais é fixa; portanto, isso está em desacordo com a nossa noção permanente das coisas como são e ocorrem. Por fim, a realidade é toda aparência, pois reflete as imagens que sobrepomos às coisas. A sabedoria enquanto prajna reconhece que, no fundo, não há peso, medida, realidade para as coisas que vivenciamos. Esses fenômenos tanto estão aqui como já não estão, pois são insubstanciais, vulneráveis. São sombras em um teatro de bonecos, refletidos na tela da nossa mente. A clareza 108


presente e penetrante da sabedoria prajna é uma luz que aponta para os fenômenos e reconhece esse fundo vazio. Se pensarmos que V (uma aluna), podemos nos remeter ao que achamos dela, à quem ela é, às atitude que tem e qual a sua opinião sobre determinados assuntos, etc. Acabamos fazendo uma radiografia de V. Achamos que ela faz isso e aquilo e, em certos aspectos, concluímos que V não deveria agir desse modo e sim de outro. A nossa ilusão das coisas não é apenas ilusão, como estamos vendo, é arrogância também. Ficamos ocupados mentalmente com a projeção que fazemos sobre V. Quando percebemos a sombra que interfere nessa experiência de percebê-la, podemos cortá-la imediatamente, não dando prosseguimento. Mas, ao fazer isso ficamos com a sensação de que estamos sendo tolerantes com ela, e, que isso nos destitui moralmente. Se estivermos com problemas com a pessoa, podemos ficar vulneráveis e sem defesas diante dela. Esse temor de ficar vulnerável é o que sempre mantém a defesa da nossa confusão e da nossa projeção sobre os outros. O medo que nos impede de largar esses pensamentos nos impede que reconhecer a confusão que criamos. É o medo de ficar vulnerável perante uma pessoa, uma situação ou um acontecimento. É também o receio de não se saber sobre algo, de não se saber agir senão do mesmo modo. Retornamos àquele ponto vulnerável, aberto, sensível. Se não cortamos a projeção é porque precisamos dela para nos defendermos desse ponto interno de abertura muito sensível. Colocamos tudo coimo estando fora de nós. Saímos da extensão infinita do espaço onde ocorre o jogo dos fenômenos. Ficamos reduzidos ao espaço pessoal e ali nos fechamos, acabando em um espaço claustrofóbico e paranoico. Ao interrompermos a confusão, ficamos abertos. Então, a sensação de desproteção nos invade. Isso significa que voltaremos ao ponto primordial, que é o começo de tudo. Tudo começa neste mesmo instante, antes de tudo o que possa vir a ser. Se voltamos ao ponto primordial e encontramo-nos com V, podemos agir sem nenhuma ideia sobre ela, de uma forma imprevisível, saindo dos 109


condicionamentos, que são todas as defesas, projeções, confusões e repetições. Ser imprevisível é ter saído da paranoia, da defesa e adotado uma postura flexível. Dessa forma, então mover –se com um pouco de humor e frescor. Dilgo Khyentse Rinpochê se refere a essa situação da seguinte forma: “Devemos compreender que a abertura é o campo de jogo das emoções e de nos relacionarmos com nosso próximo sem artificialidade, manipulação ou estratégias. Essa prática libera uma energia tremenda que, no geral, se vê constrangida porque tentamos manter pontos de referência fixos. A princípio, a intenção de permanecer presente no momento pode provocar certo temor. Mas, se damos boasvindas à sensação de temor, com plena abertura, atravessaremos esse obstáculo criado por nossos padrões emocionais habituais.”

Conclusão Podemos afirmar que as paramitas são códigos de ética de um guerreiro – assim como deve ser a vida de um bodisatva. Princípios que nos possibilitam entrar em contato com uma nobreza intrínseca, um estado de sanidade básico e fundamental. Quanto mais entendemos as seis paramitas como virtudes, mais vamos entendendo o que é a ética do guerreiro. As seis paramitas são a ética dos corajosos, dos vitoriosos, dos conquistadores, dos jinas. Não podemos tomar as paramitas como se estivéssemos em treinamento para ser alguém especial. Isso redundaria em uma experiência egoica e de barganha. Esses ensinamentos não podem ser compreendidos assim. Essa é sempre a postura egoísta de querer tirar vantagem, com o falso motivo de melhorar-se. No fundo, estamos - e isso parece ser o mais correto – estabelecendo uma disciplina de observação dos seis códigos e despertando algo interno. É preciso partir de uma sanidade básica e fundamental, que já existe. Ela está lá exatamente por não ser uma coisa, mas uma abertura, um espaço vazio, onde ocorrem 110


espontaneamente as seis paramitas, que são seis expressões naturais da mesma abertura. Podemos começar elevando nosso senso de estima como guerreiros, compreendendo que desde o começo - antes que algo tenha sido feito - a nossa natureza incondicionada já está lá, completamente sadia. Essa natureza está composta de todas as paramitas que estudamos até aqui. O que fazemos é apenas despertá-las dentro de nós. Até que, por fim, despertamos para a completa e clara lucidez dos que acordam. (Transcrito por Guisela Konzen e Cyntia Coleto Assumpção)

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