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SOBRE A OBRA
A importância do pensamento crítico
Por que é importante ler? E escrever? Por que é importante termos a liberdade de opinar e questionar? Como a literatura pode nos despertar uma consciência crítica?
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George Orwell (1903-1950), defensor fanático da liberdade de pensamento, é um autor que soube com brilhantismo trazer esse despertar da consciência crítica. Escritor em língua inglesa, nasceu em 1903, na Índia, na época uma colônia da Inglaterra. O fato de ter nascido em uma nação subjugada a outra serviu de pano de fundo para muitos de seus escritos. Em 1922, depois de ter passado parte da infância e adolescência na Europa e ao se mudar para a Birmânia para ocupar um cargo na Polícia Imperial, percebeu o quanto o domínio britânico se opunha à vontade da população local. Passou, então, a se envergonhar de sua função e tomou a decisão de se demitir do cargo público.
Voltando para a Europa, optou por viver em meio aos menos favorecidos. Morou em albergues e cortiços frequentados por operários e mendigos, trabalhando como lavador de pratos em restaurantes e hotéis baratos ou luxuosos. Esse período da sua vida serviu de inspiração para o livro de memórias Na pior em Paris e Londres (1933), que mistura realidade e ficção.
A princípio um adepto do socialismo, Orwell criticou muito o movimento socialista na Inglaterra e denunciou o governo soviético, revelando em sua obra A revolução dos bichos (1945), como, se não for combatido, o totalitarismo pode triunfar em qualquer parte. Nessa obra, um grupo de animais de uma fazenda se revolta contra os humanos que os exploram, tentando estabelecer eles próprios uma sociedade igualitária. Liderando os animais, alguns porcos obstinados pelo poder acabam impondo um regime ainda mais totalitário e opressor que o anterior. Assim é toda a obra de Orwell, marcada por uma escrita inteligente, perspicaz, paradoxal e irônica, na qual o autor demonstra uma consciência profunda das injustiças sociais e uma intensa oposição ao totalitarismo.
Um dos principais expoentes da literatura em língua inglesa do século XX,Orwell escreveu diversos artigos jornalísticos, críticas literárias, romances e poemas. Sua obra 1984 foi escrita em 1948, quando Orwell, tendo presenciado as atrocidades de Segunda Guerra Mundial, não conseguia prever nada otimista para a posteridade. Dessa forma, imaginou como poderia ser a sociedade futura transportando-a para 1984. A inversão dos dois últimos algarismos na data de criação da obra era uma forma de dizer que o futuro imaginado pelo escritor não era uma ameaça distante.
A narrativa em 1984 se passa em um futuro fictício, no qual o mundo está sob o domínio de três superestados totalitários – Oceânia, Eurásia e Lestásia. Esses superestados estão permanentemente em guerra, refazendo suas alianças de tempos em tempos conforme as ideologias mudam. Suas fronteiras também não são fixas, variando de acordo com os resultados das guerras. O enredo está ambientado especificamente na cidade de Londres, a terceira cidade mais populosa da Oceânia.
Winston Smith
A personagem principal do romance, Winston Smith, um homem de 39 anos, trabalha no Ministério da Verdade. Sua função é reescrever artigos de jornais do passado, alterando constantemente os registros históricos para que reflitam a ideologia vigente do partido. Quando a ideologia por algum motivo muda, os registros históricos também devem mudar, definindo o que é a “verdade”. É sua tarefa também destruir todos os documentos que não foram editados ou revisados, de modo que não reste nenhuma prova de que o governo esteja manipulando os fatos. Controlando a memória dos indivíduos e, assim, definindo o que é a verdade, o governo visa uma sociedade idealizada. Essa prática de apagar ou reescrever a história foi muito usada durante a Segunda Guerra Mundial, pelos dois lados do conflito, pouco antes da publicação da obra. Hoje, pode ser vista na forma da disseminação de fake news ou da manipulação de dados por parte dos governos. Além do Ministério da Verdade, envolvido com notícias, entretenimento, educação e artes, a estrutura governamental era composta de mais três ministérios: o Ministério da Paz, para assuntos de guerra; o Ministério do Amor, ocupado em preservar a lei e a ordem; e o Ministério da Fartura, responsável por questões econômicas.
Winston é aquele que desafiará o sistema, começando por ler livros proibidos e por escrever um diário com considerações que questionam o sistema. Ele também começará a sentir amor por Julia, algo também proibido. No entanto, toda e qualquer atitude de rebeldia é ostensivamente supervisionada pelo Grande Irmão (Big Brother), termo que, décadas mais tarde, viria a se popularizar por meio do famoso reality show televisivo, criado por John de Mol para uma série televisiva holandesa, em 1997. O Grande Irmão é o líder do Partido que busca o poder para o seu próprio bem. É dever de toda a população venerá-lo, embora ele nunca tenha sido visto em pessoa.
Esta vigilância controla todas as reações dos indivíduos, voluntárias ou não, com o intuito de coibir o crime de pensamento. As relações interpessoais são desestimuladas e, embora tudo seja feito coletivamente, cada indivíduo vive sozinho. As relações sexuais precisam ser autorizadas e devem ocorrer apenas com o intuito de gerar filhos para servir ao Partido. O pensamento crítico é completamente anulado, por meio do controle da realidade (negacionismo), da reescrita da história e, principalmente, da criação da novalíngua.
Novalíngua
A novalíngua é um dos elementos fundamentais na construção do enredo em 1984 e uma das principais ferramentas de coibição do crime de pensamento. A novalíngua foi desenvolvida não pela criação de novas palavras, mas pelos processos de formação de palavras por derivação ou composição, por exemplo: uma pessoa assassinada ou desaparecida era uma “impessoa”; já uma pessoa incapaz de ter um pensamento ruim era uma “bompensadora”. As palavras que podiam ser usadas eram apenas as que estavam dicionarizadas nesse momento específico e o Dicionário da Novalíngua podia ser atualizado a qualquer instante, com o acréscimo de uma palavra ou a exclusão de outra. A intenção desse controle da linguagem era restringir o pensamento e recriar a realidade, pois, uma vez que as pessoas não pudessem se referir a algo, isso passava a não existir. Por outro lado, aquilo que podia ser mencionado pela palavra era tudo o que existia. A degeneração da linguagem retratada em 1984 é uma forma também de demonstrar como a língua pode passar por processos de reducionismo, que podem ser observados, por exemplo, nas mensagens trocadas atualmente por meio de aplicativos, em que fazemos pouco ou nenhum uso de pontuação e letras maiúsculas, reduzimos as palavras a suas consoantes ou usamos imagens em vez de palavras para representar nossas emoções.
Todas essas características mencionadas até aqui fazem com que a obra 1984 seja classificada como um romance distópico, que trata de um subgênero da ficção científica. Para entendermos o conceito de distopia, é interessante iniciarmos a partir da pa-
lavra “tópico”, oriunda do grego “topos”, que se refere a lugar ou local. Por exemplo, uma medicação para uso tópico é aquela para ser usada no local do ferimento ou machucado. A partir disso, podemos pensar no significado do adjetivo “utópico”, formado pelo radical “tópico” acrescido do prefixo de origem grega “u-”, que indica negação. Dessa forma, utópico refere-se à negação de um lugar, ou seja, a um lugar imaginário, impossível de acontecer na vida real. O termo utopia apareceu em um livro de 1516 de Thomas Morus (1478-1535) e referia-se ao nome de uma ilha fictícia onde os habitantes viviam em perfeita harmonia e estado de felicidade. O termo passou então a ser sinônimo de uma sociedade ideal, fundamentada em leis justas e em instituições político-econômicas verdadeiramente comprometidas com o bem-estar da coletividade. Assim, chegamos ao termo “distópico”, formado pelo radical “tópico” acrescido do prefixo de origem grega “dis-”, que significa “mau estado”, “defeito”, “dificuldade”. Em oposição à utopia, uma distopia refere-se a um lugar, uma época, ou um estado imaginário em que se vive sob condições de extrema opressão, desespero ou privação. As distopias são geralmente caracterizadas por regimes totalitários, nos quais o povo não tem voz. É importante destacar que, geralmente, nas distopias, a tecnologia se insere como ferramenta de controle, por parte do Estado, de instituições ou de corporações, ou ainda, como ferramenta de opressão, exatamente como o Grande Irmão faz no romance 1984. Em suma, a distopia é o contrário da utopia, ou seja, é uma utopia negativa. Isso é particularmente importante, porque, ao contrário da utopia, que é apenas uma imaginação, a distopia é passível de acontecer. Em outras palavras, o romance distópico é o vislumbramento de um futuro que pode vir a ser realidade.
Romances distópicos
Na literatura, além de 1984, temos vários outros exemplos de romances distópicos, como: Admirável mundo novo (1932), de Aldous Huxley; Fahrenheit 451 (1953), de Ray Bradbury; Laranja mecânica (1962), de Anthony Burgess; Androides sonham com ovelhas elétricas? (1968), de Philip Dick; O conto de aia (1985), de Margaret Atwood; e a trilogia Jogos Vorazes (2008), de Suzanne Collins, todos adaptados para as telas. No cinema, O exterminador do futuro (1984), Matrix (1999), V de vingança (2006); Wall-e (2008) e Mad Max, estrada da fúria (2015) são exemplos de filmes distópicos. Tanto na literatura como no cinema, o uso da tecnologia como forma de controle é bastante marcante e aqueles que ocupam a posição de poder justificam seus atos convencendo a população que todos devem se sacrificar em prol de um bem comum. É importante destacar que, nas distopias, o futuro sombrio da humanidade é sempre resultado de decisões políticas e não de fatalidades, como desastres naturais ou doenças, o que diferencia uma obra distópica de uma obra apenas de ficção.
O mundo opressivo, autoritário, criminoso, cruel e desumano retratado em 1984, dominado por uma teletela onipresente que enxerga e vigia todos a qualquer momento, comandada pelo Grande Irmão, como um irmão mais velho (big brother em inglês também tem esse significado), pode ser realidade no futuro. O destino cruel reservado a Winston e Julia, que representavam o que restava de amor, respeito e dignidade, pode ser o destino de cada ser vivendo uma distopia.
O romance distópico assusta por ser uma representação ou descrição de uma organização social futura e inevitável, caracterizada por condições de vida insuportáveis. No entanto, o romance distópico assusta os desavisados, aqueles que não pensam, que não leem, que não interpretam, que não questionam. A literatura nos proporciona autores de distopias como Orwell que nos faz repensar aquilo que nos é apresentado como realidade, que nos faz questionar nossos valores, nossos princípios, nossa ética como seres sociais e como cidadãos. Por isso, a obra de Orwell foi, é e sempre será relevante e atual. Ela nos alerta para o futuro ao qual nosso presente pode nos levar; nos mostra como o conhecimento do passado pode mudar o nosso presente e, consequentemente, o nosso futuro; e nos revela o quanto a liberdade de pensamento é fundamental para a nossa sociedade, abrindo possibilidades de mudança.
Desta forma, quem lê e escreve, como faz Winston, aprende a pensar, passa a questionar e não aceita ser manipulado por notícias que criam uma falsa realidade. Nos dias de hoje vemos redes políticas e governamentais que desprezam a veracidade das informações e disseminam o ódio. As fake news circulam em meio à ignorância, à preguiça de averiguar fatos e à falta de solidariedade e empatia, distorcendo os fatos e recriando uma realidade paralela. Daí decorre toda a importância de se desenvolver o raciocínio crítico por meio da leitura. E a literatura tem também esse papel. Com distopias, como 1984, podemos olhar para nosso entorno e perceber o quanto podemos estar sendo manipulados por aqueles que só desejam a manutenção do poder.
George Orwell, que enxergava o sistema de forma pessimista, acertou bastante em suas previsões para o futuro. Hoje, podemos ver que muitas das situações narradas em 1984 estão presentes
nas nossas vidas: o uso indevido da tecnologia, a hostilidade às ciências, o negacionismo, as fake news, as manipulações de dados, as tentativas de reescrever a história, a repressão policial, o isolamento social, a vigilância constante, os algoritmos que avaliam nossos interesses, a degeneração das linguagens escrita e falada, entre tantos outros mecanismos de controle e aniquilação da consciência crítica.
Essa fascinante obra visionária, escrita em 1948 e publicada em 1949, acaba de entrar em domínio público. A presente tradução para o português, de Adriana Buzzetti, é mais uma oportunidade para os leitores brasileiros conhecerem o texto integral desta que é uma das mais influentes obras da literatura mundial do século XX. É também uma oportunidade para desenvolvermos o pensamento crítico a partir da prática da leitura, em direção à construção de uma sociedade mais igualitária, mais justa e mais democrática.
George Orwell,
Eric Arthur Blair (1903-1950), mais conhecido pelo pseudônimo George Orwell, foi um escritor, jornalista e ensaísta político nascido na Índia, quando essa ainda era uma colônia britânica. Ainda criança, mudou-se com a família para a Inglaterra, mas, por volta dos 20 anos, retornou à Ásia, para trabalhar na Polícia Imperial Indiana da Birmânia, atual Myanmar. Deixou o emprego na polícia, em 1927, para voltar para Londres com planos de ser escritor. Nessa época, optou por experimentar uma vida desprovida de recursos, morando em cortiços e pensões e trabalhando em subempregos como uma forma de crescimento pessoal, intelectual e artístico.
Associado ao modernismo inglês, seus romances ficcionais distópicos são marcados por uma linguagem simples, caráter satírico, alegoria, ironia, crítica sociopolítica, pessimismo e ausência de idealizações.
Identificado por sua obra como antinazista, antifascista, antitotalitarista e anticapitalista, era favorável ao socialismo democrático. No entanto, foi um dos maiores críticos do socialismo russo, de viés totalitarista, duramente denunciado em seu livro A revolução dos bichos (1945). Depois de ser recusado por seu forte teor político, esse romance satírico, que viria a ser uma de suas obras-primas, trouxe reconhecimento e fama ao escritor, vendendo mais de 250 mil cópias logo no primeiro ano de edição.
o autor
Em 1948, aterrorizado com os fatos da Segunda Guerra Mundial, inicia a escrita de sua segunda obra-prima, 1984, apesar das complicações com a tuberculose, doença que o matou em 21 de janeiro de 1950, em Londres.
Principais obras: · Na pior em Paris e Londres (1933) – memórias. · Dias na Birmânia (1934) – romance. · A filha do reverendo (1935) – romance. · Mantenha o sistema (1936) – romance. · A caminho de Wigan (1937) – memórias. · Lutando na Espanha (1938) – memórias. · Um pouco de ar, por favor! (1939) – romance. · A revolução dos bichos (1945) – romance. · 1984 (1949) – romance.
Adriana Buzzetti, a tradutora
Adriana Buzzetti, bacharel em jornalismo e letras é tradutora literária, com experiência também no ensino de inglês, gerenciamento, edição e produção de material didático.
Uma líder nata, percebeu que muitas obras importantes para a literatura brasileira, não tinham sido publicadas em português. Então intensificou seu trabalho de tradução para que o público brasileiro tivesse acesso a grandes materiais literários e históricos
Nascido em São Vicente, litoral do Estado de São Paulo, Laudo Ferreira é ilustrador, roteirista e quadrinista. Publicou suas primeiras histórias no início da década de 1980 e, pouco adiante, adaptou filmes de José Mojica Marins, o Zé do Caixão, para os quadrinhos. Atuou também como ilustrador para o mercado publicitário.
Atualmente se dedica ao trabalho de ilustrador e principalmente à criação de histórias em quadrinhos. Alguns de seus trabalhos, como Histórias do Clube da Esquina, Olimpo tropical, Cadernos de viagem, Auto da barca do inferno e Yeshuah absoluto receberam o troféu HQMIX, um dos mais importantes prêmios para a produção de quadrinhos.
Laudo Ferreira, o ilustrador
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Em uma Londres sombria, George Orwell cria um mundo futuro no qual imperam a censura e a vigilância máxima da população. Os fatos são distorcidos por um regime totalitário que manipula as pessoas e centraliza o poder nos ideais do Grande Irmão. Todos são vigiados o tempo todo e sabem que qualquer atitude suspeita pode ser fatal. Lançado em 1949, o romance distópico de Orwell é hoje ainda mais perturbador. Suas previsões tornaram-se metáfora da sociedade atual, controlada por mentiras e medo.