A casa dos amores impossiveis de Cristina López Barrio

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heirava a pólvora o povoado castelhano, a sangue de perdiz, a coelho e a fumaça de chaminé. Os caçadores, envoltos pelo outono, exibiam suas presas entre as primeiras rajadas de um vento dourado. Nas portas das casas, as velhas senhoras sentavam-se ao lado das vizinhas, formando fileiras de véus negros de luto, segredando sobre aqueles que passavam por elas. Suas vozes, curtidas por toda uma vida de queimaduras de frio, ensopados e missas, confundiam-se com o arrastar das folhas secas. Por sua vez, as mulheres mais jovens escondiam-se detrás das cortinas observando os caçadores, sem que eles as vissem, e falando sobre eles sem sentir a proximidade da morte. Com a última nesga de luz do entardecer e depois de ter esfolado os focinhos farejando as colinas, as matilhas ocupavam a praça e urinavam contra o tanque reservatório da fonte de pedra de três bicas. E, se sentiam vontade, também urinavam nos portões da igreja, cujo campanário permitia que se visse a região do Duero, ou nos portões das casas que exibiam escudos das armas das famílias nas fachadas. Os latidos apavoravam os burros, as crianças das casas dos ricos e os gatos, que se escondiam entre os feixes de lenha empilhados nos pátios. Os caçadores, alheios à confusão, entrincheiravam-se no calor bem-vindo da taverna da praça, onde o vinho tinto e o cabrito assado os ajudavam a livrarem-se das colinas e de sua geografia. Ao saírem, bêbados, encontravam seus cães apunhalados pelas estrelas. Esses homens chegavam ao povoado com a esperança de caçar, além de perdizes e coelhos, um javali ou um cervo. E foi esse desejo que, no fim de 1897, arrastou um jovem fazendeiro andaluz até o povoado castelhano. Chegou na diligência da tarde acompanhado de dois criados e de uma carreta que o seguira através de Despeñaperros e da planície trazendo a jaula com sua matilha de cães de caça cor de canela. Ocupou três quartos da melhor hospedaria do povoado e um canil inteiro para seus cães. Mas .9


desapareceu subitamente a galhada de cervo que trazia refletida em suas pupilas negras como azeitonas quando, ao amanhecer do dia seguinte, saiu para dar uma volta e esbarrou nuns olhos cor de âmbar ao cruzar uma ruela, os olhos de Clara Laguna. — Parecem de ouro, menina, que linda você é. — Ele a pegou pelo braço. Ela tentou se livrar e derramou o conteúdo do jarro que trazia apoiado na cintura. A água serpenteou como uma cobra pelas pedras da rua. — Posso enchê-lo na fonte outra vez para você. — Posso fazer isso sozinha. — Clara escapou e correu para a praça. Rindo, ele a seguiu. Naquela época do ano, uma neblina metálica cobria a praça no final da madrugada. O fazendeiro andaluz viu como o vulto da garota se fundiu com o ar condensado até desaparecer. Parou. Um vento gelado açoitava seu rosto e despenteava os cachos penteados com óleo em sua nuca. O mundo, de repente, tornara-se mais denso, desaparecendo em meio a uma cegueira que o impedia de seguir a moça. Quis chamá-la, mas a névoa era uma mordaça de gelo. Foi tomado pela suave lembrança de sua fazenda, as laranjeiras em flor oscilando com a brisa, até que os sinos da igreja chamaram de volta as almas, e sua lembrança se desvaneceu lentamente, junto com a névoa que o cercava. Depois daquele som sobrenatural, a imagem de Clara Laguna surgiu junto à fonte carregando seu jarro. — O senhor está pálido — disse ela quando ele se aproximou alisando o cabelo. — E foi bem feito por não me deixar em paz. — A culpa é deste tempo castelhano. É difícil acostumar-se a ele. — Se não gosta, volte para onde veio. O homem se apoiou na borda da fonte. Ele sorria. Em suas botas de montaria, brilhavam as últimas luzes do amanhecer. — Ah, como você é bonita, moça. E tão brava. — O senhor deveria aprender umas tantas coisas, como por que essa neblina densa cobre a praça apenas quando se aproxima o dia de finados. — Quero é descobrir seu nome, para que possa adoçá-lo com seus olhos. — Disfarce seu medo fazendo galanteios se quiser, mas há minutos o senhor estava branco de susto sem entender o que acontecia. — Certo, moça, reconheço que me assustei, mas não com a neblina e nem com o repicar triste dos sinos da igreja. Assustei-me ao não vê-la de 10 .


repente, pensei que a havia perdido, que você tivesse desaparecido em meio a esta neblina do demônio. Não me importa de onde veio e nem para onde vai. A única coisa que me importa é olhar para você. Clara notou que seus olhos brilhavam. — Ao amanhecer dos últimos dias de outubro, ninguém deve se aventurar na praça até que toquem os sinos. As almas dos cavaleiros enterrados na igreja deixam suas sepulturas e atravessam os portões, amalgamados em névoa e vento. As almas estão condenadas a lutar entre si, com suas armaduras e espadas sobrenaturais até que purguem todas as suas culpas. Mas depois do toque dos sinos, retornam às sepulturas e o povoado reza para que descansem em paz. O senhor está me entendendo? Enquanto os sinos não tocarem, a praça pertence aos cavaleiros mortos. Isso foi bem explicado aos caçadores. Foram avisados de que, se não respeitassem nossas tradições, teriam que se haver com as consequências. — Mas e você, menina? Você seguiu praça adentro, em meio à neblina... — Neste povoado, prefiro os mortos aos vivos. — Isso me parece inteligente. — E é por isso que digo que o senhor me deixe em paz e vá caçar. — Cheguei aqui com a ilusão de caçar um cervo, mas acho que encontrei algo muito mais belo. Clara passou a mão em seus longos cabelos castanhos. — Eu não sou um animal, meu senhor. — Está bem, então permita que eu carregue o jarro para você até sua casa. Como um pedido de desculpas. Não quero que você dê um mau jeito em sua linda cintura com o peso. — Minha linda cintura vem até a fonte para buscar água todos os dias, para depois se dobrar sobre a plantação de tomates. Assim sendo, não se preocupe com ela. E não seria recomendável que o senhor bisbilhotasse em minha casa, saiba que minha mãe é uma feiticeira. Ela me deu este amuleto, algo que me protege de homens como o senhor. — Clara exibiu um osso de lebre enfeitado com penas, que trazia junto a si, pendurado no pescoço. — Sou apenas um cavalheiro querendo ajudar. — Os únicos cavalheiros que restaram neste povoado estão sepultados na igreja... Bem, o que restou deles. — Eu não sou um cavalheiro castelhano. Venho de Andaluzia. — E onde fica isso? . 11


— Ao sul, onde o Sol incendeia o céu ao entardecer e fica parecido com seus olhos. — Meus olhos, veja o senhor, são como as planícies de um lugar chamado La Mancha e se assemelham aos do meu pai, que era de lá. Bem, isso é o que sempre disse minha mãe. — Ajeitou o jarro na curva de sua cintura e andou na direção de uma das vielas que começavam na praça. No céu, tufos de nuvens cinzentas se acumulavam. O dia se instalara. Cheiro de toucinho e pão fresco recebeu a moça quando ela entrou na viela. As portas dos pátios estavam abertas e podia-se ver os feixes de lenha ainda úmidos de orvalho, burros carregando alforjes cheios de faiança ou lã, cães de guarda alertas, orelhas em pé. Clara olhou em volta. O homem estava perto dela. — Diga-me seu nome. — Eu me chamo Clara, Clara Laguna. Com muita honra. Na outra ponta da rua, despontaram mulheres de alguma idade, com seus casacos grossos de gola de pele e chapeuzinhos matinais coroados com penas de faisão. Clara entregou o jarro ao rapaz. Endireitou-se quando as mulheres se aproximaram e, pela primeira vez, deu um sorriso encantador ao fazendeiro andaluz. Ao perceber aquilo, uma das mulheres agarrou a outra pelo braço e sussurrou algo em seu ouvido. O fazendeiro andaluz lhes deu passagem, enquanto as senhoras agradeciam com uma quase imperceptível inclinação de cabeça. — Você tem um sorriso lindo, ainda que tenha sorrido para as damas e não para mim. — O senhor já pode ir caçar e me deixar com meus afazeres. — Ela tirou o jarro da mão dele e o apoiou de novo em sua cintura. Permitiu, porém, que ele a acompanhasse até sua casa, que ficava fora do povoado, onde as pedras que cobriam as ruas se transformavam em barro e onde a pobreza punha distância entre as casas. As telhas da casa estavam descoloridas pela umidade e pelo abandono, e a fachada estava coberta por um musgo que parecia definitivo. Cães famintos vagavam por ali, distraindo-se com redemoinhos de folhas secas. A casa parecia estar prestes a despencar à margem do leito seco de um rio, onde a moça plantara tomates. Nos fundos havia um quintal com quatro galinhas e uma cabra. E pouco mais adiante, uma floresta de pinheiros en12 .


trecortada pela estrada de terra que levava à aldeia mais próxima. A garota vivia com a mãe, uma velha que inventava feitiços para repelir mau-olhado ou para curar, preparava amuletos que garantiam boa caça, cosia hímens e lia o futuro em um esqueleto de gato que guardava, como um tesouro, dentro de um saco resistente, untado com resina e seiva de lírio. Clara parou em frente à porta. Estava envolta pelo perfume suave dos pinheiros, do sereno do outono e da terra coberta de cogumelos. Do interior da casa vinham os roncos da mãe, que passara a noite em claro lendo o futuro no esqueleto de gato para a mulher e as filhas do boticário. — Amanhã, a esta hora, virei buscá-la para darmos um passeio. — O senhor faça o que tiver vontade. Fechou a porta, mas correu para espiar por uma das janelas. Viu enquanto ele se afastava, as mãos protegidas dentro da capa. Talvez não volte, pensou Clara Laguna, enquanto limpava os potes dos feitiços de sua mãe; talvez não volte, pensou quando foi ao quintal dar de comer às galinhas; talvez não volte, pensou enquanto ordenhava a cabra; talvez não volte, depois de acordar a mãe ao meio-dia e de almoçarem restos de pão com linguiça; talvez não volte, à tarde, semeando um novo canteiro de tomates; talvez não volte, enquanto o sol se punha por detrás das copas avermelhadas do pinheiros; talvez não volte, enquanto preparava os fios e os anestésicos a base de flores para que a mãe restaurasse a virgindade da filha de um homem importante; talvez não volte, jantando ensopado de legumes e alho; talvez não volte, sonhando com os olhos dele. Mas na manhã seguinte, depois de voltar da praça com o jarro de água, usando o xale dos domingos, o fazendeiro andaluz, montado em um cavalo malhado, esperava junto ao leito seco do rio. — Vim por você — disse ele desmontando. — Pois o senhor veio à toa. A moça, com o coração batendo contra o corpo de cerâmica do jarro, entrou em casa e fechou a porta. Era uma manhã nevoenta, a última do mês de outubro. O jovem foi até uma das janelas, apoiou o cotovelo em um dos parapeitos e se pôs a cantar uma canção, pois além da caça, era apaixonado por música e tinha uma bela voz. — O senhor quer assustar minhas galinhas? — perguntou Clara abrindo a porta. . 13


Atrás dela, o fazendeiro viu uma mulher com cabelos grisalhos presos e com apenas um olho. — Meus respeitos, minha senhora. E minhas desculpas se a acordei. — Bom-dia, meu jovem — disse a mulher com voz rouca. — O que o traz tão cedo para estes lados? — A senhora faria a gentileza de me dizer se é a mãe de Clara? — perguntou ele, esforçando-se em não desviar o olhar do olho esquerdo, cinzento e murcho da velha senhora. — Sim, eu sou. Ainda que seja difícil de acreditar, tempo houve em que também fui bela. — Eu gostaria de pedir permissão à senhora ou ao pai de Clara para dar um passeio com sua filha. A mulher deu uma gargalhada. — Você teria de ir longe, meu rapaz, para pedir qualquer coisa ao pai dela. Nesta casa, as permissões sempre foram concedidas por mim e, antes de mim, por minha mãe, que a terra lhe seja leve. — O olho direito da velha tremeu. — Você é um caçador. — Ora, sim, eu sou. — Pois então, deve comprar um de meus amuletos. A mulher desapareceu no interior da casa, mas voltou em seguida com uma presa de javali coberta de penas de perdiz. — Garanto, meu rapaz, que esses animais irão ao seu encontro aos magotes. Você não perderá um tiro sequer. — O fazendeiro andaluz lhe deu algumas moedas. — E sim, você pode passear com Clara. Minha filha faz o que tem vontade, mas creio que, por estar usando esse vestido e esse xale, Clara pretende aceitar o seu convite. — Não diga bobagens, mãe, eu me arrumei assim para ir à praça. O fazendeiro montou primeiro em seu cavalo malhado e depois ajudou Clara a subir na garupa. — Há um campo cheio de azinheiras aqui perto, se quiser, posso mostrar onde fica. Seguindo as indicações da moça, ele conduziu o cavalo até o pinheiral, enfiando-se pelo meio das árvores, cada vez mais distante da estrada de terra por onde passavam carretas e diligências. A manhã era varrida por um vento gelado que trazia com ele os ecos dos tiros que davam os caçadores que os cercavam, ocultos pelas colinas. 14 .


— Faça-o galopar, faça-o galopar! — Pode ser perigoso galopar entre os pinheiros. — Não seja covarde! — insistiu Clara com o rosto úmido. Ele agitou as rédeas e o cavalo começou a galopar. No mesmo ritmo das batidas do coração de Clara, os cascos do cavalo golpeavam a terra coberta de musgo e samambaias amareladas. Abraçada à sua cintura, Clara sentia as costas musculosas do fazendeiro e o cheiro de azeite em seus cabelos cacheados. Jamais cavalgara como naquele dia e jamais poderia se esquecer: os braços dele, firmes, manejando as rédeas para que o cavalo se desviasse das árvores e das rochas que apareciam na frente deles; as águias planando em meio à bruma; o relincho do cavalo quando seus cascos atingiram um monte de agulhas de pinheiros e o suor do fazendeiro, que tinha cheiro de laranja. Foram pegos por uma garoa. As coxas dele tensas contra a carne do cavalo e as coxas de Clara, tensas contra as coxas do jovem andaluz. Quando alcançaram os últimos pinheiros, quase isolados ao pé de uma colina, o temporal desabou. — Esse animal precisa descansar. — O azinhal fica perto daqui. Enquanto o cavalo subia pela colina, Clara soltou a cintura do homem. Seus braços estavam doloridos. Acima deles, desenhava-se o vulto das encostas que formavam o vale, onde as copas de enormes azinheiras se fundiam. A chuva caía com força e um relâmpago iluminou a terra, que estava agora avermelhada e barrenta. Protegido por sua capa, ele estremeceu. Clara comprimiu o peito contra as costas do fazendeiro para esquentá-lo. Ao chegarem ao azinhal, a neblina se dissipou, os relâmpagos pararam, o céu se abriu, e apenas uma leve garoa os atingia. Antes de desmontar, Clara Laguna tirou seu amuleto do pescoço e o guardou no bolso do vestido. O vento amainou. O azinhal era cortado por um riacho cujas águas corriam, formando poças e redemoinhos. Ela buscou proteção debaixo de uma árvore que, desgastada pelos séculos, jazia junto ao riacho. Apoiou-se no tronco escurecido e esperou enquanto ele cuidava do cavalo. O rumor das águas parecia sussurrar segredos. O fazendeiro andaluz não demorou a correr os dedos por sua garganta até alcançar o lugar macio onde antes repousava o amuleto, agora tocado . 15


pela garoa. Ele estava sério. Clara tomou a mão dele cuja palma estava esfolada por lidar com as rédeas. — Ah, você se machucou. O fazendeiro não disse nada. Ergueu o queixo e, antes de beijá-la, acariciou com os lábios seus olhos de cor âmbar e sentiu o aroma úmido de seu cabelo cheio de feitiços. Na hora do almoço, ele voltou à hospedaria. Foi recebido por um rapaz que se encarregou de seu cavalo malhado e o levou resfolegando ao estábulo. Um de seus criados o ajudou a tirar as botas e a se livrar das roupas molhadas e acendeu a lareira do quarto. O fazendeiro almoçou junto ao fogo, uma sopa castelhana, perdizes recheadas e vinho tinto, e a comida fez com que pegasse no sono em uma poltrona e dormisse até o meio da tarde. Quando acordou, foi até o canil para ver como estavam seus cães cor de canela. Eles o receberam com ganidos nervosos, porque estavam trancados desde a chegada ao povoado. — Em breve, em breve mesmo, iremos para as montanhas. Depois do temporal daquela manhã, o céu se abrira, mas com o crepúsculo o azul foi desaparecendo, o firmamento tomado de uma escuridão repleta de estrelas. As ruas foram sendo invadidas pelo cheiro dos ensopados e não havia nelas nem o rastro das velhas senhoras que, bem cedo, acomodavam-se para observar os caçadores. O fazendeiro andaluz foi até a taverna da praça. O murmúrio da fonte fez com que se lembrasse de Clara Laguna. Nem mesmo durante a sesta, sua sofreguidão por ela diminuiu. Dera sua palavra que a buscaria na manhã seguinte para outro passeio e por isso desejava que a noite passasse depressa e que logo chegasse a alvorada. A taverna estava tomada pela fumaça de cigarros e charutos. Nas paredes caiadas e ásperas pendiam cabeças empalhadas de cervos. O fazendeiro ficou impressionado com a galhada que adornava a lareira de pedra. Antes que Clara Laguna cruzasse seu caminho, sonhava em caçar um animal como aquele. Aproximou-se do balcão, enquanto esperava que uma das mesas ficasse livre. Dois homens do povoado que bebiam vinho, ao ver o fazendeiro, chamaram a taverneira, uma ruiva de uns 40 anos que estava secando uns copos. A mulher, apelidada de “a Vermelha”, esquadrinhou o fazendeiro com seus olhos claros, quase transparentes. — Vai jantar, senhor? 16 .


— Se for possível, um bom cabrito assado. — Estamos lotados. Se o senhor não se incomodar, poderia sentar-se com aqueles cavalheiros de Madri. — A mulher fez um gesto na direção de três jovens que conversavam a uma mesa ao lado do fogo. — Também são caçadores, pessoas muito agradáveis. — Bem, se eles não se incomodarem... Durante o jantar, o fazendeiro comprovou que a taverneira tinha razão. Passou horas divertidas junto aos novos conhecidos. Comeram cabrito assado, consumiram quatro garrafas de vinho e contaram anedotas sobre a paixão que os unia. Quando a taverna já estava cheirando a homens e colinas, guimbas de cigarro e vapores de vinho, o fazendeiro se despediu de seus companheiros. A taverneira, que estava limpando as mesas, foi ao encontro dele. — O senhor ficou satisfeito? — Muitíssimo. A senhora foi muito atenciosa, obrigado. — Permita-me, senhor, que eu lhe dê um conselho. Não me considere intrometida e sim alguém que só deseja preveni-lo do perigo. Parece que o senhor foi visto diversas vezes na companhia da filha da bruxa. O senhor sabe a quem me refiro, à garota com olhos de trigo. O fazendeiro sentiu que seu desejo pela garota instalava-se de novo em seu coração como um veneno. A Vermelha deu um soquinho no braço do fazendeiro andaluz. — Saiba que Clara carrega uma maldição, por mais bela que seja. Ela é muito amaldiçoada, como todas as mulheres de sua família, posso jurar. — Beijou os dedos em cruz, com a paixão dos confidentes. — Não entendo o que a senhora diz. — O vinho tinto turvara suas ideias. — Por acaso, em sua terra, vocês não conhecem maldições? — Em minha terra, senhora, também temos superstições. — Pois bem, o que o senhor chama de superstições aqui é uma maldição grande como bosta de vaca, ou maior ainda, já que se trata das mulheres Laguna e de Clara, que é a última da linhagem. Saiba o senhor que até onde alcança a memória do povo, todas e cada uma das mulheres Laguna foram amaldiçoadas. — Assim que os homens da família se livram delas. — Homens! — A Vermelha o socou com gosto desta vez. — Que homens? O ventre de uma Laguna jamais gerou um varão e nenhuma delas nunca se casou. . 17


Estão condenadas a viver em desonra e a parir apenas meninas, que permanecerão solteiras e terão a mesma sorte que as outras mulheres da família. — E nenhum homem... — Nenhum, meu senhor — interrompeu a taverneira —, ninguém se atreveu a interromper a maldição. Tenha em mente que os presságios são os piores possíveis para quem se atrever a tentar. — Que tipo de desgraças tal homem atrairia para si? — Não se sabe com certeza. Parece que a bruxa Laguna, como é conhecida, tentou lançar uma série de sortilégios sobre um homem, mas algo deu errado e ela perdeu um olho. Na manhã seguinte, assim que acordou, o fazendeiro andaluz se lembrou de que bebera demais e que teve que ser acompanhado até a hospedaria por um homenzarrão, que lhe disse: — Ah, sim, entendo bem o senhor, eu e todo o pessoal masculino do povoado. Se não houvesse uma maldição sobre a Laguna dos olhos de trigo... Era dia de finados e o povoado amanhecera cheirando a domingo. Após o toque dos sinos, a névoa se dissipou e os moradores do lugar tomaram as ruas, usando roupas festivas para lembrarem-se de seus mortos. Em cada canto da praça havia uma barraca com flores. Mulheres em vestes de luto vendiam cravos vermelhos e brancos, margaridas e rosas para os ricos. De um dos lados da igreja havia uma encosta coberta de pedras que, ao se afastar das últimas casas do povoado, transformava-se em uma trilha de terra e mato que alcançava o cemitério. Oculta por um dos portões do cemitério, a bruxa Laguna vendia lírios para os mortos, pulverizados com uma poção que garantia a permanência dos espíritos em suas sepulturas. Passavam por ela dezenas de anáguas sussurrantes com chapéus discretos e boinas com calças de veludo. Evitando encarar seus vizinhos, muitos compravam aqueles lírios que os livrariam da visita da alma penada de algum parente. Ciprestes tomavam todo o campo santo. Meia dúzia de sepulcros familiares ostentava os mesmos escudos que as fachadas das casas ricas. O resto do espaço era ocupado por uma confusão de túmulos. A multidão que entrava no cemitério recebia as boas-vindas das gralhas que grasnavam e agitavam as asas brilhantes. A limpeza das lápides era o ritual que precedia as orações e as flores. As mulheres pegavam suas buchas e seus panos de limpeza e esfregavam as letras douradas das lápides e os retratos em molduras ovais, os 18 .


homens arrancavam as ervas daninhas que cresciam ao redor das sepulturas. Aqueles que tinham entes queridos nos sepulcros familiares levavam criados para que limpassem a pedra com suas mãos avermelhadas de frio. Ao meio-dia, o campo santo cheirava a chão recém-limpado e a santidade. O fazendeiro passou a manhã em seu quarto tomando café para curar a ressaca, acompanhado pela recordação das palavras da taverneira sobre a maldição das mulheres Laguna. Enquanto isso, Clara o esperava em sua casa para outro passeio a cavalo. Depois do almoço, ele foi para as colinas com os caçadores madrilenhos. Em várias ocasiões, seus cães adivinharam o rastro de um cervo, mas quando o fazendeiro o via, camuflado na vegetação, e o tinha na mira, a arma tremia em suas mãos, o lombo castanho de sua presa se transformava nos cabelos da garota e o cervo desaparecia mais uma vez na colina. Também não conseguiu capturar nenhum dos coelhos rastreados pelos cães, porque as folhas amareladas das faias, que tanto lembravam os olhos de Clara, distraíam o rapaz que se esquecia do motivo de estar na colina naquela tarde e o que viera fazer ali. Sentado no chão sob as samambaias, a umidade molhava suas calças, a arma em silêncio, ele ali, mergulhado na imobilidade. Os caçadores madrilenhos se perguntavam o que teria acontecido àquele companheiro que cruzara metade da Espanha para caçar em terras castelhanas para que agora se arrastasse por tais terras sem disparar um tiro. Quando a colina engoliu o Sol, regressaram ao povoado. O fazendeiro andaluz não aceitou o convite dos caçadores madrilenhos para que jantasse com eles na taverna. Desculpou-se e pediu que selassem seu cavalo malhado. Pouco depois, metia as esporas nos flancos do animal e partia a galope. Uma Lua cheia de mortos iluminou sua chegada à casa de Clara Laguna. A mãe estava no povoado, entrando pelas portas dos fundos com seu esqueleto de gato para ler, nas cozinhas e salas de costuras, o que traria o futuro a vivos e mortos. O fazendeiro encontrou Clara sentada junto ao leito seco do rio, perto de tomates que pareciam pérolas gigantes. Foi ao encontro dela murmurando: — ... e que me importa se houver uma maldição sobre ela, que me importa se não há nada que eu possa fazer... Ao vê-lo, ela se levantou. Seu rosto estava manchado das lágrimas que derramara esperando por ele. Ele se ajoelhou na frente de Clara e cantou uma . 19


canção. Os vira-latas da rua uivaram, queixando-se daquela cantoria andaluz que perturbava seus sonhos. Piaram as corujas do pinheiral em meio àquela noite cálida demais para ser a noite dos mortos. Clara atirou uma pedra nele, e o feriu na testa. O fazendeiro sentiu um fio de sangue escorrer por seu rosto e começou a cantar uma canção religiosa. A Lua brilhou intensamente para iluminar a paixão de Cristo, e a moça não jogou mais pedras. Contemplou os cabelos azulados, a testa sangrando, as azeitonas nos olhos dele que brilhavam como os olhos de um mártir. Beijou seus lábios, limpou sua ferida com a saia. E ele deixou que Clara fizesse isso. Em seguida, ergueu-a pela cintura e levou-a no colo até acomodá-la na garupa do cavalo malhado. Cavalgaram até o azinhal. As folhas refletiam as estrelas, e os futuros amantes desmontaram enquanto se beijavam e pisavam nas sombras dos animais pré-históricos que as árvores projetavam no chão. Ao chegarem à margem do rio, ele tirou sua capa e a estendeu sobre a terra vermelha onde gotejava sangue de sua ferida, ela, o xale de lã e o amuleto que voltara a usar. O vento os ajudou a despirem-se dos feitiços, cartucheira, saia e calça de caça. Suas peles tornaram-se uma, em seu leito de limo. Clara Laguna sentiu os beijos, as mãos, o peito dele envoltos no sussurro encarnado das águas e a dor da primeira vez tinha o sabor do musgo da margem do rio.

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