CONTRA-USOS DA CIDADE
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE Reitor JOSUÉ MODESTO DOS PASSOS SUBRINHO Vice-reitor ANGELO ROBERTO ANTONIOLLI Conselho Editorial da Editora UFS LILIAN CRISTINA MONTEIRO FRANÇA (COORDENADORA DO PROGRAMA EDITORIAL) ALCEU PEDROTTI – ANTONIO PONCIANO BEZERRA – MARIA AUGUSTA MUNDIM VARGAS – MÁRIO EVERALDO DE SOUZA MIGUEL ANDRÉ BERGER – TEREZINHA ALVES OLIVA
UNIVERSIDADE ESTADUAL
DE
CAMPINAS
Reitor JOSÉ TADEU JORGE Coordenador Geral da Universidade FERNANDO FERREIRA COSTA
Conselho Editorial Presidente PAULO FRANCHETTI ALCIR PÉCORA – ARLEY RAMOS MORENO JOSÉ A. R. GONTIJO – JOSÉ ROBERTO ZAN LUIS FERNANDO CERIBELLI MADI – MARCELO KNOBEL SEDI HIRANO – WILSON CANO
ROGERIO PROENÇA LEITE
CONTRA-USOS DA CIDADE LUGARES E ESPAÇO PÚBLICO NA EXPERIÊNCIA URBANA CONTEMPORÂNE A
2 a edição Revista e ampliada
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL DA UNICAMP Leite, Rogerio Proença. L536c
Contra-usos da cidade: lugares e espaço público na experiência urbana contemporânea / Rogerio Proença Leite. a – 2 ed. – Campinas, SP: Editora da U NICAMP ; Aracaju, SE: Editora UFS, 2007. 1. Espaços públicos. 2. Patrimônio cultural – Proteção. 3. Política cultural. 4. Cidades históricas. 5. Planejamento urbano. I. Título.
ISBN 978-85-268-0774-7
CDD 711.4 350.85 301.2 918.1 301.36
Índices para catálogo sistemático: 1. Espaços públicos 2. Patrimônio cultural – Proteção 3. Política cultural 4. Cidades históricas 5. Planejamento urbano
711.4 350.85 301.2 918.1 301.36
Copyright © by Rogerio Proença Leite Copyright © 2007 by Editora da UNICAMP Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada, armazenada em sistema eletrônico, fotocopiada, reproduzida por meios mecânicos ou outros quaisquer sem autorização prévia do editor.
Para CauĂŞ e Ravi, que os ares da cidade libertem para alĂŠm dos limites da esfera da vida privada.
Paris avanza, pero, em mi melancolía, nada cambia!, y las casas y los palacios, como los viejos barrios, todo se me hace alegoría, y mis recuerdos son pesados como el plomo. [...] Y recuerdo a la negra que muere de desgana Y, en el fango, esperando que el dolor la consuma, Otea las palmeras del África lejana Detrás de la muralla inmensa de la bruma. Y pienso en todo los que la dicha perdieron y no la hallarán más ¡nunca más!, y, malditos, a las ubres de loba del Dolor se cogieron!, ¡y recuerdo a los huérfanos, como flores, marchitos! La trompa del Recuerdo hace piafar los potros En la gran selva, donde mi espíritu se aísla, Y pienso en los que llegan náufragos a una isla, Y en los vencidos y en los cautivos... y en otros!... C HARLES B AUDELAIRE , Las flores del mal
SUMÁRIO PREFÁCIO ............................................................................................................................. 11 INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 18 1 LUGARES DA POLÍTICA E CONSUMO DOS LUGARES NAÇÃO E PATRIMÔNIO CULTURAL .............................................................................................. 34 Da construção da nação ao desenvolvimento das cidades: os lugares do patrimônio no Brasil ........................................................................................................ 47 Gentrification e consumo dos lugares .................................................................................. 61 Mercado de relíquias: o tombamento do Bairro do Recife ................................................................................................................ 79
2 DO BAIRRO HOLANDÊS À PARIS PERNAMBUCANA PAISAGENS DE UM BRASIL MODERNO ............................................................................................... 96
Do Corpo Santo ao porto fálico: gênese urbana e vida cotidiana no Recife Antigo ......... 99 Uma paisagem em construção: “Bota-Abaixo” o velho Brasil ......................................... 110 Síndrome de Haussmann: sociabilidades efêmeras e vida pública ................................. 129 3 CONSUMO MIX DA TRADIÇÃO A REINVENÇÃO DE UM LUGAR ............................................................................................................ 157
Contra-enobrecimento: a primeira fase de “revitalização” do Bairro do Recife ............. 160 Image-making: enobrecimento e reinvenção do lugar ....................................................... 174 Do espaço urbano ao espaço público .................................................................................. 191 4 USOS E CONTRA-USOS A CONSTRUÇÃO SOCIOESPACIAL DA DIFERENÇA ...................................................................... 212 Invariáveis espacialidades (dia) ........................................................................................... 216 Liminaridades espaço-temporais (entardecer) .................................................................. 241 Fragmentações: mapeando fronteiras (noite) .................................................................... 246
5 POLÍTICA DOS USOS A CONSTRUÇÃO DOS LUGARES NO ESPAÇO PÚBLICO .............................................................. 284 Lugares: demarcações e qualificação dos espaços urbanos .............................................. 289 Espaço público e lugares: repolitização das cidades-relíquias ......................................... 307
BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................. 320 IMAGENS & PAISAGENS ................................................................................................ 343 A REINVENÇÃO DE UM LUGAR ............................................................................................................ 345 A CONSTRUÇÃO DOS LUGARES NO ESPAÇO PÚBLICO ............................................................. 353 POSFÁCIO UM BAIRRO REVANCHISTA CINCO ANOS DEPOIS ....................................................................... 361
10
PREFÁCIO
É com enorme prazer que apresento este livro de Rogerio Proença Leite, não apenas por suas óbvias qualidades de pesquisa e escrita, mas sobretudo pelo desafio de enfrentar uma das discussões mais polarizadas da atualidade: o sentido das transformações do espaço público das cidades através das políticas de gentrification, que atuam em áreas deterioradas que também são fundamentais como referências físicas e simbólicas de sua memória e história. Um assunto polêmico e difícil de tratar, já que a proposta, hoje dominante, dessas políticas de recuperação de áreas centrais degradadas se apóia na suposta necessidade de transformação das cidades em fator de valorização econômica. Esse pressuposto inclui o gerenciamento técnico empresarial de seus espaços públicos no lugar do convívio espontâneo de cidadãos conscientes da cidade como mundo partilhado e, certamente, o descompromisso com as áreas urbanas miseráveis que transbordam o plano, para as quais persistirá apenas o controle repressivo. Não obstante, as políticas de gentrification são apresentadas por seus promotores pelas vantagens de uma cidade que funciona em seus serviços básicos e atende a uma “demanda de cidade” esteticamente bonita e agradável de se habitar. Disso dependeriam os espaços de cidadania e convivência ordenada, revertendo a degradação das áreas centrais. Sabemos, portanto, graças ao pensamento urbanístico crítico, que essas políticas concebem a cidade como uma mercadoria e são propagadas e financiadas nos pressupostos empresariais, requerendo gestões urbanas 11
concentradas na rentabilidade mercantil e política de suas realizações, que, paradoxalmente, se tornam provas de responsabilidade pública eficiente. Inerente a essa intervenção se forma, em todas as cidades que passam por esse processo, uma nova divisão de trabalho — além de arquitetos, há educadores, assistentes sociais, profissionais do turismo, animadores culturais e, evidentemente, o tradicional policiamento, para evitar que a teimosia da população que habita as áreas enobrecidas possa desordenar a operação. Essa operação, em seu conjunto, pretende “revitalizar” tais áreas, o que significa adequar sua paisagem, seus cidadãos e seus trajetos às funções pressupostas naquilo a que se chamam “novas centralidades” urbanas, as quais concentram pólos de atividades especializadas. Diante de tais evidências, como não suspeitar, com horror, que estamos em vias de viver não apenas em um mundo gerenciado — coisa que já experimentamos —, mas em um oposto de mundo, “urbanizado” segundo um modelo de shopping center, circundado por miséria e programado localmente em seus espaços coletivos? E serão factíveis as alternativas, também apresentadas por urbanistas, para enfrentar a destruição das interações sociais plurais intrínsecas à própria noção de cidade? Neste livro, Rogerio Proença Leite consegue construir uma argumentação que, fundamentada em uma observação sensível e atenta de uma área enobrecida — o Bairro de Recife —, abre uma via que escapa da polarização extrema dessas opções. Uma via que recusa o otimismo ingênuo pós-moderno tanto quanto a determinação sombria da vida das cidades sob o triunfo mercantil e gerenciado de suas relações. Pois o autor parte, em sua pesquisa, desse caráter mercantil e autoritário das operações de gentrification no bairro, sobretudo observada na tentativa do plano de forjar uma pluralidade de contatos na especialização dirigida de lazer, turismo e cultura a que o bairro foi direcionado, que de fato não esconde o encolhimento das interações sociais nas fronteiras das semelhanças seletivas (sobretudo de classe). Mas é exatamente sobre essa paisagem que Rogerio se aventurou, em busca de espaços públicos possíveis, direcionando seu olhar sobre toda uma outra cena, aquela dos usos cotidianos dos espaços enobrecidos e das interações com suas margens. Neles, encontrou o que chama de “lugares”, espaços que se tornam públicos através de disputas práticas e simbólicas pela recuperação do sentido espontâneo da vida do bairro. Diante dessas ações que teimosamente 12
insistem em romper a homogeneidade social e arquitetônica de um espaço que, apesar de cheio de barulho e festa, aparece como semicongelado de interações sociais plurais e de história, Proença insistiu na pesquisa dos “contra-usos” do espaço, que podem tornar visíveis publicamente as diferenças e a pluralidade. Nesse sentido, a desordem provocada desde que o mercado se pôs como o único mecanismo de transformação da cidade encontra alguns limites em lugares plenos de sentido atribuídos ao contexto do bairro, a sua história e às talvez frágeis ações que, constantemente, reiniciam um modo plural de agir e reapropriar-se do espaço urbano como espaço público. Isso aparece na forma sensível com que o autor nos convida a percorrer o bairro, na qual o próprio espaço relaciona-se com sua heterogeneidade, ao mudar suas paisagens conforme o suceder das horas do dia e da noite e, em conseqüência, modificar-se no tempo, no espaço, nas regras de ocupação, nos sujeitos que o freqüentam. Desde as contradições mostradas pela favela do bairro, área jogada no abandono e sem serviços públicos, cruzada pela crítica desesperançada de seus discriminados habitantes postos à margem por quaisquer dos planos “enobrecedores” do bairro — “Fora de Portas”, no linguajar local —, até a criatividade que pode ser encontrada nos espaços contíguos que ficaram livres da intervenção enobrecida, Rogerio conduz-nos a ver experiências e relações sociais potencialmente públicas, que podem explicitar-se a qualquer momento — ou seja, há um espaço entre o plano e a experiência, feito de conflitos potenciais e tensões cotidianas reais construídas a partir da intervenção enobrecedora, que envolvem negociações locais passíveis de ser amplificadas para a cidade, na forma de opinião pública. Este é o caso das catadoras de lata e meninos impedidos de circular livremente e ganhar algum dinheiro com os freqüentadores dos bares, dos quais se ocupa uma ação social tão atenta a sua presença quanto indiferente a ela, quando não estão na área enobrecida do bairro. Mas esta é uma situação que pode, em certas ocasiões, apresentar fronteiras porosas e admitir os outsiders que, através dos “contra-usos do espaço”, emitem “ruídos contraenobrecedores” nos espaços homogêneos, para usar os termos do autor. Mais complexos do que suporíamos, portanto, os efeitos das operações de gentrification operam sobre um fundo não domesticado: o olhar e a escuta detalhada e antenada do autor em seu percurso revelam pessoas 13
que ocupam, de modo imprevisível, certos pedaços do bairro vizinhos à área enobrecida, simultaneamente interagindo e resistindo à pasteurização social e arquitetônica sobre o próprio pano de fundo constantemente instabilizado pela violência do disciplinamento da paisagem. Não por acaso, são esses “lugares” que fizeram surgir as criações culturais recentes mais marcantes do Recife (como o movimento Manguebeat), as verdadeiras invenções que carregam o sentido da história da cidade e acolhem tudo aquilo que o bairro enobrecido expulsa e congela. E não se trata de uma visão romântica do autor. Não falta aí a distinção entre o sentido de uma desordem vital na qual convivem, em uma sociabilidade democrática e publicamente exercida — ironicamente dita, hoje em dia, “alternativa” —, vários tipos e estilos de comportamento e interações circulando em fronteiras flexíveis, e seu oposto, a desordem autoritária da intervenção enobrecedora, excludente das diferenças sob a capa de um pluralismo ilusório. A importância dessa discussão não se esgota nos achados feitos pelo autor a partir do enobrecimento do Bairro do Recife. Ela incide diretamente no debate mundial sobre as figuras e os destinos das cidades contemporâneas que, na crise do plano moderno, parece voltar-se para versões distintas de valorização local, recusando o universalismo abstrato dos valores urbanos, seu tempo homogêneo, sua base mensurável. A questão, então, passa a ser a forma de recuperar a localidade como lugares de sentido que possam ser ancorados, seja no vínculo de pertencimento dos habitantes a seu lugar (à maneira de Kevin Lynch), seja reaprendendo a importância dos usos da cidade como “práticas do espaço” (ao modo de Certeau); ou, na direção contrária, dando aos locais significados de base empresarial, que transformam os pedaços da cidade (no sentido de Magnani) em seu oposto, “fragmentos” funcionais para a acumulação, com o que se montam as falsas localidades culturais espacializadas, cujo sentido fica interditado aos cidadãos (a crítica de Otília Arantes). Rogerio Proença Leite sabe que não se pode entender esse debate com clareza sem entender a experiência real dos cidadãos atingidos pelas operações da gentrification. Em outros termos, sua narrativa resiste a optar entre a figuração de sujeitos que, em territórios minados, descobrem com satisfação a cidade enobrecida e os negócios que ela sustenta e seu oposto, a desfiguração completa de sujeitos e espaços urbanos que, impotentes, 14
se submetem alienadamente à dominação completa da lógica do falso, promovida pelos gordos ganhos do capital imobiliário. A noção de espaços públicos, construídos a partir de espaços comuns cujos trajetos ordenam relações e fronteiras diferenciadas (Antônio Augusto Arantes), permite, em sua análise, que se veja a possibilidade de formas cotidianas de apropriação política de lugares, e é nessa possibilidade que reside a originalidade de seu trabalho. Sem reivindicar tais espaços como conceitos plenos ou fixos que se realizam sem fissuras nas relações sociais e espaciais da cidade, ele os reivindica como descobertas de lugares de conflito que, não chegando a ser movimentos sociais organizados por um princípio político, constroem públicos ativos, capazes de escolhas, simbolizações e práticas de seus espaços. Em seu vocabulário, sujeitos capazes de construir socialmente espaços abertos ao outro, em que desponta o caráter público da cidade, ou pelo menos sua possibilidade renovada. Assim, o autor revela algo fundamental: que o bairro vai além da ilusão da gentrification traçada pelo plano arquitetônico, ou seja, vai além dos usos planejados (mercantis, estratégicos, de apropriação do passado, saneadores), pois estes se rompem na produção real da heterogeneidade social e cultural de seus espaços. Isso só se descobre percorrendo atentamente, como faz Rogerio, os itinerários distintos que cruzam os espaços enobrecidos e suas margens, atravessando-os e escutando-os na forma em que pessoas se apresentam, nas histórias que contam, nas cenas que protagonizam relações que rompem as fronteiras segmentadas pelo plano. Isso não quer dizer que as fronteiras de classe se tenham abolido, ou que o caráter fraturado e desigual dos bairros se tenha dissolvido nos contrausos do bairro enobrecido, que os efeitos perversos deixem de existir, ou que a face antipública e policial cesse ali de se mostrar. Em certo sentido, esses padrões repressivos fazem parte da história da cidade, e o autor está longe de esquecer a especificidade do Bairro do Recife e de sua história, em si mesma uma história de intervenções várias empreendidas pelos poderes públicos desde o período holandês. Talvez por isso mesmo, por saber que Recife, como cada cidade deste mundo, é única e capaz de imaginar-se como cidade viva distinta de intervenções planejadoras, Rogerio pôde compreender seus conflitos em relação à homogeneidade imposta de uma solução técnica e mercantil. Por mais que uma visão renovada de preservação do patrimônio histórico construa um modelo 15
intrinsecamente ligado à valorização imobiliária e mercantil dos espaços da cidade, adequando-a a justificativas culturais, e por mais que uma abordagem estritamente sociológica costume transformar as soluções do momento como “estudo de caso” do real objeto de análise, o modelo construído, sem história, de intervenção, os espaços enobrecidos ainda carregam suas singularidades enraizadas na história e na experiência social de neles habitar. Daí a importância da entrada de Rogerio nos diversos períodos do dia no espaço enobrecido, sobretudo por detalhar a experiência e o julgamento das pessoas diferentemente nele situadas e a conexão possível entre elas. Do olhar inquieto e discordante dos indesejados habitantes da favela, a gentrification surge como uma perturbação destrutiva de esperanças e oportunidades e aparece como emblemática dos desafios a tornar congruente a experiência de vida no bairro e as modificações excludentes feitas pelas intervenções de enobrecimento. O itinerário de observação e escuta feito pelo autor revela essa perturbação como permanente e generalizada, mas apenas em alguns pontos ela se transforma efetivamente em lugares de sentido, com expressão pública. Para estes, o entorno talvez se tenha tornado vulnerável, mas não evanescente. A perturbação do contexto gera os “contra-usos” de que fala Proença: os conflitos sobre a ordem desse território tornam-se públicos, menos pelo descontentamento ou indignação que pelo direito, nos diz o autor, de pertencer ao bairro e à cidade, de se movimentar nele livremente, de ter espaços de criação e sociabilidade que se recusam a se fundir com a mesmice. Afinal, a tragédia dos processos de gentrification parece estar no mimetismo planejado das diferenças reais e em sua transformação em motivo de intervenção autoritária, criando barreiras e exclusões. Talvez seja adequado, aqui, terminar este prefácio com duas citações importantes. Uma é de Hannah Arendt, que diz: A razão pela qual comunidades políticas desenvolvidas [...] tão freqüentemente insistem na homogeneidade [...] é que esperam eliminar, tanto quanto possível, as distinções e diferenças que, por si mesmas [...], mostram com impertinente clareza aquelas esferas onde o homem não pode mudar e atuar à vontade, isto é, os limites do artifício humano. O “estranho” é um símbolo assustador pelo fato da diferença em si, da individualidade em si, e evoca essa esfera onde o homem não pode atuar nem mudar e na qual tem, portanto, uma definida tendência a destruir (Origens do totalitarismo). 16
A outra citação é do próprio autor. Proença começa seu livro citando um mote medieval que diz: “Os ares da cidade libertam”, para concluir, no final, com uma qualificação desse mote: “Não são os ares de uma cidade enobrecida que libertam, mas as formas cotidianas de apropriação política dos lugares, que publicizam e politizam as diferenças, atribuindo sentidos e qualificando os espaços da cidade como espaços públicos”. Maria Célia Paoli
17
INTRODUÇÃO
Um antigo adágio medieval dizia que os ares da cidade libertam. Seria possível continuar atribuindo esse mesmo provérbio às cidades contemporâneas? Haveria espaço para o cidadão e sua vida pública, principalmente em um tipo específico de cidade que é reinventada como vitrine do consumo da tradição pelo city marketing e suas políticas contemporâneas de patrimônio cultural? Esta pode ser considerada a pergunta-chave deste livro — originalmente apresentado como tese de doutorado ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UNICAMP —, cujo problema central de pesquisa recai sobre as políticas de patrimônio no Bairro do Recife Antigo,1 a partir das quais desenvolvo o argumento sobre o papel dos lugares sociais na construção do espaço público e sua contribuição para a repolitização das cidades-patrimônio. O problema do qual trata este livro foi possivelmente colocado pela primeira vez por Walter Benjamin em 1935, quando, ao comentar as reformas urbanas de Paris — feitas por Haussmann no contexto do bonapartismo autoritário pós-1848 —, lembrava que a intenção de adequar a capital francesa às necessidades de circulação que a cidade industrial reclamava foi também uma operação política. O “embelezamento estratégico” de Paris (Benjamin, 1997) pretendia, além de criar uma imagem moderna de cidade, disciplinar os usos do espaço urbano: a abertura de grandes e largas avenidas não só dificultava a construção das barricadas operárias como ajudava a ação da cavalaria de Bonaparte. 18
Mais de cem anos depois, as práticas de intervenção urbana continuam a “embelezar” estrategicamente as cidades históricas por meio de políticas de gentrification2 do patrimônio cultural. No entanto, ao contrário de evitar barricadas, essas políticas erguem suas próprias fronteiras — ao mesmo tempo em que removem outras — quando segmentam e disciplinam certos espaços urbanos para uso extensivo de lazer, turismo e consumo. As novas barricadas urbanas reeditam política e espacialmente formas históricas de desigualdade e exclusão social quando restringem os usos dos lugares da vida cotidiana pública aos moradores e freqüentadores dessas áreas. A adjetivação “pública” para a noção de vida cotidiana, utilizada ao longo deste livro, tem como objetivo distinguir um tipo de processo que não se confunde com os usos e costumes banais da existência urbana, nem do cotidiano privado, do qual igualmente se diferencia. José de Souza Martins (2000) já sublinhou os limites de uma aproximação conceitual feita por uma historiografia que torna o cotidiano correlato à vida privada. Nesse caso, gostaria de destacar que a noção de “cotidiano público”, repetidamente aqui utilizada, também não tem nenhuma pretensão metodológica de retomar uma abordagem fenomenológica do cotidiano, que realça sobremaneira os processos de conhecimento e percepção racionalizados: a noção de cotidiano adotada aqui, ao contrário, refere-se a processos interativos, representativos e simbólicos relacionados à experiência vivida que constroem sociabilidades de rua, enquanto espaço de uma vida pública. Nesse sentido, a “rua que interessa”, para usar uma expressão de Magnani (1993), não é o espaço urbano em si, mas espaço social da rua, cujos significados construídos pelas ações cotidianas o diferenciam e o tornam uma categoria sociológica inteligível. Um certo tipo de intervenção urbana nesses espaços da vida cotidiana pública tem-se proliferado no Brasil nas últimas duas décadas em muitas das suas cidades históricas, desenvolvendo políticas de gentrification, cujo resultado mais visível é a alteração da paisagem urbana, com a transformação de degradados sítios históricos em áreas de entretenimento urbano e consumo cultural. O termo gentrification, que será discutido mais detalhadamente no primeiro capítulo, é aqui utilizado para designar a transformação dos significados de uma localidade histórica em um segmento do mercado, considerando a apropriação cultural do espaço 19
a partir do fluxo de capitais. Esse processo, estudado por autores como Harvey (1992), Featherstone (1995), Smith (1996) e Zukin (1995), tem resultado muitas vezes em uma relocalização estética do passado, cujo padrão alterado de práticas que mimetizam o espaço público torna o patrimônio passível de ser reapropriado por alguns segmentos da população e por seus visitantes. Antigas áreas “marginais” das grandes cidades vão-se transmutando em complexos centros de lazer, com sofisticados bares, restaurantes e galerias de arte. Numa apropriação quase privada do espaço urbano, essas práticas segmentam áreas centrais das cidades históricas e as transformam em cenário de disputas por um fragmentado espaço de visibilidade pública. Sobretudo para a crítica pós-moderna (Harvey, 1992), essa noção de fragmentação urbana tem sintetizado esse caráter espacializado das relações sociais na experiência urbana contemporânea. Os marcos visíveis dessa fragmentação inscrevem-se na cidade de modo plural, revelando um complexo e multifacetado espectro. É possível perceber esse caráter fragmentário em diferentes campos da vida cotidiana pública: na construção de territorialidades que se conflituam em praças e ruas e demarcam fluidas fronteiras identitárias, cuja disputa pelo espaço urbano faz da cidade uma “guerra dos lugares” (Arantes, 1997); na clivagem dos espaços habitacionais, de lazer e trabalho, em que sofisticados “enclaves fortificados” se erguem como fortalezas à parte da cidade, cuja lógica urbanística se rende ao sofisticado aparato da segurança particular e da vigilância eletrônica de seus espaços privatizados (Davis, 1993, Caldeira, 1997); ou ainda nas intervenções urbanas das áreas centrais de cidades históricas que muitas vezes segmentam política e economicamente ruas e bairros, através dos processos de gentrification que têm transformado em mercadoria o patrimônio cultural (Zukin, 1995; Smith, 1996). As experiências recentes que exemplificam essa tendência são muito diversas e possuem, evidentemente, suas próprias singularidades. Diferentes localidades integram essa perspectiva orientada pelo (e para) o mercado, combinando intervenção no patrimônio, requalificação dos usos da cidade e melhorias na infra-estrutura urbana.3 Essas políticas urbanas têm dividido opiniões e recolocado o debate sobre o patrimônio cultural em torno de temas caros às ciências sociais, tais como identidade, cidadania, memória e democracia cultural. São estes alguns dos conceitos 20