A histĂłria do Departamento de Enfermagem do Hospital de ClĂnicas da Unicamp
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universidade estadual de campinas Reitor José Tadeu Jorge Coordenador Geral da Universidade Alvaro Penteado Crósta
Conselho Editorial Presidente Eduardo Guimarães Elinton Adami Chaim – Esdras Rodrigues Silva Guita Grin Debert – Julio Cesar Hadler Neto Luiz Francisco Dias – Marco Aurélio Cremasco Ricardo Antunes – Sedi Hirano
Coleção Memória Unicamp Comissão Editorial Eduardo Guimarães (coordenador) Carola Dobrigkeit Chinellato - Julio Cesar Hadler Neto Mónica Graciela Zoppi-Fontana – Paulo César Montagner Unicamp Ano 50 Comissão Editorial Itala M. Loffredo D’Ottaviano Eduardo Guimarães
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Wilma Aparecida Nunes Maria Itayra Padilha
A história do Departamento de Enfermagem do Hospital de Clínicas da Unicamp Os desafios da tra jetória de busca pela excelência do cuidado
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Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990. Em vigor no Brasil a partir de 2009.
ficha catalográfica elaborada pelo sistema de bibliotecas da unicamp diretoria de tratamento da informação Bibliotecária: Helena Joana Flipsen – crb-8ª / 5283
N922h
Nunes, Wilma Aparecida. A história do Departamento de Enfermagem do Hospital de Clínicas da Unicamp: os desafios da trajetória de busca pela excelência do cuidado / Wilma Aparecida Nunes, Maria Itayra Padilha. – Campinas, sp: Editora da Unicamp, 2015. 1. Hospital das Clínicas (Campinas, SP) – História. 2. Enfermagem – História. I. Padilha, Maria Itayra. II. Título cdd 610.9
e-isbn 978-85-268-1307-6 610.7309 Índices para catálogo sistemático:
1. Hospital das Clínicas (Campinas, SP) – História 2. Enfermagem – História
Copyright © by Wilma Aparecida Nunes Maria Itayra Padilha Copyright © 2015 by Editora da Unicamp
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Agradecimentos
À Reitoria da Universidade Estadual de Campinas pela liberação integral no período de elaboração deste estudo, em consonância com sua política de compartilhar saberes. À enfermeira doutora Flora Marta Giglio Bueno, que, como diretora do Departamento de Enfermagem, me propôs este desafio e não poupou esforços para viabilizar este projeto. À professora doutora Maria Itayra Coelho de Souza Padilha, à qual manifesto minha profunda gratidão pelo acolhimento no Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Santa Catarina, oferecendo-me suporte seguro na construção deste trabalho, propiciando-me uma rica interlocução com seu grupo de pesquisa e concedendo-me o privilégio de desfrutar de sua preciosa amizade. Aos ex-diretores do Departamento de Enfermagem do Hospital de Clínicas da Unicamp pela oportunidade de compartilhar comigo suas memórias, enfatizando nessa trajetória as experiências vivenciadas como profissionais participantes e condutores da equipe de enfermagem na instituição. Às equipes do Sistema Central de Arquivos (Siarq), na pessoa de Telma Maria Muraro, e do Centro de Memória da Unicamp (CMU) pela receptividade, pelo empenho e auxílio, permitindo o acesso aos dados solicitados e pactuando comigo a responsabilidade de preservação dos documentos desta pesquisa. Ao Antonio Alberto Ravagnani pela enorme disponibilidade, pelo empenho e pela cumplicidade na busca de imagens que pudessem traduzir fielmente os fatos relatados. À Filomena Beatriz Godoy Pereira pela generosa solidariedade, compartilhando os fatos que emanam de nossas lembranças, e pelas sólidas contribuições à elaboração deste estudo. À Telma Rodrigues da Silva pela criteriosa revisão e pelas sugestões na construção do texto. À Maria Aparecida Moreira Mendes pela incansável e recorrente capacidade de ajudar.
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Ao Sérgio Simionato pela disponibilidade e colaboração, diagra mando e organizando o texto. À Lúcia Maria Rocha de Oliveira, que se empenhou em garimpar alguns documentos necessários para validar as informações aqui registradas. A todos que, embora não nomeados, me brindaram com a presença afetiva e inesquecível, pelo apoio e pela solicitude, bem como pelo privilégio da convivência.
Dedico ao meu amado filho Alexandre Henrique, algumas vezes privado do tempo que apliquei na elaboração deste trabalho, mas sempre presente com suas incontáveis manifestações de afeto e carinho. Wilma Aparecida Nunes
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Sumário
Prefácio ........................................................................................................................................
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Introdução ................................................................................................................................. 11 O ponto de partida.. .................................................................................................................. 11 O percurso ................................................................................................................................. 13 Fundamentação teórica .......................................................................................................... 14 1. A era da Santa Casa ............................................................................................................ 25 A Santa Casa de Misericórdia e o Asilo de Órfãs ................................................................ 25 A Escola de Enfermagem Madre Maria Teodora ................................................................. 38 A Faculdade de Medicina na Santa Casa . . ............................................................................. 40 A enfermagem nas mãos de leigas ........................................................................................ 43
2. O nascimento do Hospital de Clínicas da Unicamp ................................ 65 A luta por uma Faculdade de Medicina e a fundação da Unicamp .................................. 65 O nascimento do Hospital de Clínicas da Unicamp ............................................................ 71 A gestão de enfermagem no Hospital de Clínicas ............................................................. 75
3. Entrevistas: uma tessitura alinhavada com lembranças . . ........................... 101 Maria Cecília Cardoso Benatti. . ............................................................................................. 102 Maria Lydia Figueiró de Godoy ............................................................................................... 109 Luiz Cietto .................................................................................................................................. 115 Ryoko Tsuda Bellentani ........................................................................................................... 125 Maria Cecília Ayres Botto de Oliveira . . ................................................................................ 133 Leda Fernandes ......................................................................................................................... 149 Márcia Inês Furcolin ............................................................................................................... 160 Willians José Morales Pinsetta ............................................................................................ 172 Vera Médice Nishide.. ................................................................................................................ 175 Flora Marta Giglio Bueno ....................................................................................................... 181 Considerações finais ............................................................................................................. 190 Bibliografia ............................................................................................................................... 192
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Prefácio
Com muita satisfação recebi o convite das professoras Wilma Aparecida Nunes e Maria Itayra Padilha para prefaciar esta obra de rara oportunidade e raro interesse, sobre a trajetória de formação do Departamento de Enfermagem do Hospital de Clínicas da Unicamp, que se confunde com o universo da criação da própria Faculdade de Ciências Médicas e da Universidade. Como parte desta história se desenrolou intimamente ligada temporalmente com a minha própria pessoal, desde o meu ingresso na Faculdade de Medicina, em meados da década de 1960, identifico com facilidade em minha memória vários momentos registrados neste livro-documento e atesto sua fidelidade aos fatos transcorridos. Seu conteúdo está extremamente bem organizado, a partir de uma sistemática cuidadosa de recuperação e cruzamento de informações, documentos e depoimentos, que permitiram um precioso resultado, que deverá se juntar ao acervo a respeito existente (não tão farto, tampouco facilmente disponível e organizado) e enriquecê-lo na perspec tiva de vários atores da área focalizada no trabalho. O livro utiliza fartamente material originado, principalmente, de entrevistas de personagens que construíram esse departamento (e de suas preciosas lembranças) e que de certo modo organizaram o seu caminho, desde a Santa Casa e o Hospital Irmãos Penteado – hospitais que nos abrigavam nos primeiros tempos –, relatando as primeiras contratações de enfermeiras realizadas pela faculdade e a preparação do quadro de pessoal que no futuro (1985-1986) iria formar o corpo de enfermagem para o Hospital que se construía no campus universitário. A leitura deste trabalho, além do resgate histórico que se faz com ciência e método, é muito agradável e permite recuperar, com muita elegância e bastante fidelidade, os caminhos que evoluíram para a consolidação do atual modelo de atuação da enfermagem em nosso princi pal Hospital de Clínicas, um dos mais importantes da região e do es tado de São Paulo, cumprindo os desafios da busca permanente da excelência do cuidado. João Luiz Pinto e Silva 9
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Introdução
O ponto de partida
A elaboração deste trabalho se fez a partir da confluência de vontades. Por um lado, havia o interesse em produzir o registro de um percurso, a documentação de histórias de lutas, avanços e retrocessos, negociações e conquistas, sobre as quais se assenta a configuração atual do Departamento de Enfermagem. Por outro, existia uma clara sedução pelo diálogo com as histórias de vida. O trabalho em si constituiu-se em tarefa árdua, pois era impositiva a necessidade de garimpar as informações, buscar fontes documentais e orais; entretanto sempre se apresentava cativante, despertando novos interesses, promovendo encontro com outros personagens e proporcionando um mergulho mais profundo e enriquecedor na trajetória desses atores que, uma vez convidados, aceitaram contribuir para a composição desta obra. Primeiramente, passei a conviver com aqueles personagens que antes eram apenas guias para meus deslocamentos pela cidade, porque estavam ali nas placas das ruas, nas esquinas, nas praças, orientando meus percursos. Em determinado instante, iniciei um diálogo profícuo com eles, pois passamos a compartilhar segredos que os demais transeuntes desconheciam, enquanto anonimamente percorriam os mesmos trechos que guardam as marcas de vida do povo campineiro. Essa experiência permanece, quando me deparo com os brasões, ou os detalhes arquitetônicos de algumas construções, que, atualizadas, passam agora a configurar e expor os novos símbolos da economia capitalista. Ao aprofundar nas informações que trouxeram à tona os detalhes da construção da Santa Casa de Misericórdia de Campinas, fiquei estarrecida com meu antigo comportamento de aluna ignara. Por inúmeros dias, como aluna, encontrei-me com o padre Vieira, bem à frente, na entrada principal; transitei pelos corredores, fiz preces na Capela de Nossa Senhora da Boa Morte, absolutamente alheia aos enormes esforços que foram despendidos para a conclusão e manutenção do hospital. Sentei-me ainda, para reuniões com as colegas de classe, sob a jabuticabeira que resistiu bravamente a todas aquelas adaptações conduzidas 11
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para transformar um prédio centenário em espaço adequado para a aprendizagem no século XX – sem imaginar quantas órfãs teriam sentido o doce sabor daquelas frutas. Compilar informações e apresentá-las de forma compreensível exige uma metodologia. O primeiro contato que tive com esse tipo de estu do – no qual o autor em parte recorre à história por seus personagens – foi com a leitura do trabalho conduzido por Ecléa Bosi (1987). Fiquei encantada com a proposta, nos termos da autora, de “quem deseja compreender a própria vida revelada do sujeito” (Bosi, 1987, p. 2). Foi dona Risoleta – uma das personagens da obra Lembranças de velhos – que me cativou quando disse “agradeço por estar recordando e burilando meu espírito” (idem, p. 294). Com ela, obtive informações das ilustres famílias campineiras e apreendi nuanças da trajetória dos negros na Campinas imperial. Das incontáveis experiências suscitadas pela fala dessa personagem, fui construindo um ideário do estilo de vida estabelecido naquela época e me ative aos detalhes de uma obra – que meu filho também gosta de apreciar – especialmente construída para os negros, na praça em frente à Igreja de São Benedito, exibindo um pequerrucho sendo amamentado por uma mulher negra. O valioso nessa experiência é que, se, por um lado, os livros históricos inserem os personagens nos eventos, nos documentos, apresentam datas, são validados com carimbos e assinaturas, por outro, dona Risoleta os apresenta mediante o retorno ao seu cotidiano; uma experiência denominada por Bergson “imagem-lembrança” e explicitada por Bosi como sendo aquela que “traz à tona da consciência um momento único, singular, não repetido, irreversível da vida” (idem, p. 11). A outra etapa deste estudo previa o encontro com os gerentes do hospital. O momento da entrevista constituiu, para alguns, a possibilidade de recuperar a antiga convivência: foram conversas construtivas e prazerosas, que trouxeram à tona os meandros de uma realidade da qual, em parte, fui coadjuvante, uma vez que, como aluna, iniciei meus estudos na Unicamp em 1980 e, posteriormente aprovada em concurso público no ano de 1985, passei a atuar na Enfermaria de Emergência na Santa Casa. Desse modo, compartilho com esses colaboradores os mesmos espaços de onde algumas experiências foram emergindo de um passado não tão distante. Essa interlocução propiciou condições para um desvelar dos fatos sob o foco de diferentes olhares e diversas inter12
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pretações, para constituir, colaborativamente, esse repertório de informações, que definitivamente não se extinguem com a conclusão deste projeto, mas, ao contrário, dão início às inúmeras possibilidades de diálogo e de outras versões que se possam dar aos fatos.
Figura 1 – Monumento em homenagem à Mãe Preta, Largo São Benedito, Campinas (SP). A arte é de Júlio Guerra, fundição de Antonio Di Giordono, e é uma réplica do que existe no Largo do Paissandu, na cidade de São Paulo.
O percurso
A proposta deste estudo é compor a trajetória do Departamento de Enfermagem do Hospital de Clínicas da Unicamp, apresentando os fatos que subsidiaram sua origem, bem como percorrer sua história sob o ponto de vista de enfermeiros que ocuparam a função de gerentes ao longo desses anos. A necessidade de estabelecer um ponto de partida me inseriu no espaço da Santa Casa de Misericórdia de Campinas e, por esse motivo, fiz da construção desse hospital o marco inicial do percurso. Essa instigante etapa do trabalho desvela o mecanismo de organização assistencial vivenciado por longo tempo dentro das instituições hospitalares, com o Serviço de Enfermagem, que depois passou a Divisão de Enfermagem e Departamento de Enfermagem, sendo conduzido sob os auspícios de religiosas integrantes da Comunidade de São José de Chambéry, que permaneceram em Campinas por cerca de um século. No início da década de 1970, as freiras se retiram, encerrando também as atividades da Escola de Enfermagem Madre Maria Teodora, 13
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responsável pela formação de muitas enfermeiras leigas, contratadas para substituí-las. Esse fato definirá uma nova conformação gerencial para a equipe de enfermagem, com outra rede de relações de saber e poder sendo tecida entre os profissionais, dentro dessa instituição de saúde. O crescimento da Faculdade de Ciências Médicas (FCM), a fundação da Unicamp, o inevitável aumento de demandas foram fatores que contribuíram para colocar em curso o empreendimento previamente estabelecido de se construir um hospital-escola no campus da Universidade. Nesse momento, os fatos relatados vão se delineando sob um cenário de transição, com os pacientes e profissionais sendo gradativamente deslocados do prédio da Santa Casa para o recém-construído Hospital de Clínicas da Unicamp. Ao fim deste volume, encontram-se os textos transcriados a partir de entrevistas realizadas com os dez enfermeiros que ocuparam a Direção do inicialmente Serviço de Enfermagem e depois Departamento de Enfermagem. Apresenta-se agora a oportunidade de compartilhar informações e apresentar os fatos sob uma gama de diversificados olhares e múltiplas interpretações, contemplando um período entre a década de 1970 e os dias atuais. Ao longo dessa composição, foram entremeadas imagens que servem para ilustrar muitos relatos e reproduzir visual mente muitas das percepções aqui apresentadas.
Fundamentação teórica
A história possui uma duplicidade intrínseca, porque por um lado trata da realidade, ou seja, algo prático, e por outro se converte em discurso e se encerra dentro de um texto que se organiza em unidades de sentido. O fato inegável é que a história, ao ser construída como leitura do passado, alicerçada nas bases documentais para lhe conferir legitimidade, está sendo elaborada sob a ótica do presente (Certeau, 2011). Esse ir e vir decorrente da temporalidade, esta oposição passado-presente remete ao pensamento de Le Goff (2013) que aponta a interligação absolutamente necessária e o respeito imprescindível do historiador com o tempo. Para o autor, é fato inerente à história estabelecer a conexão de “seus quadros de explicação cronológica à duração do vivido” (Le Goff, 2013, p. 28), portanto a utilização de data, a definição de periodicidade 14
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é tarefa fundamental ao trabalho do historiador, como também um fator essencial para traçar o fio condutor da própria história. A possibilidade de transitar ao longo dessa trajetória e explorar essa fonte inesgotável de interpretações está expressa no texto a seguir: O passado é uma construção e uma reinterpretação constante e tem um futuro que é parte integrante e significativa da história. Isto é verdadeiro em dois sentidos. Primeiro, porque o progresso dos métodos e das técnicas permite pensar que uma parte importante dos documentos do passado está ainda por se descobrir. Parte material: a arqueologia decorre sem cessar dos monumentos desconhecidos do passado; os arquivos do passado continuam incessantemente a enriquecer-se. Novas leituras de documentos, frutos de um presente que nascerá no futuro, devem também assegurar ao passado uma sobrevivência – ou melhor, uma vida –, que deixa de ser “definitivamente passado”. À relação essencial presente-passado devemos, pois, acrescentar o horizonte do futuro (Le Goff, 2013, p. 28).
Uma tarefa complexa para os historiadores contemporâneos – de dicados à observação e reflexão sobre o passado, no processo de ela boração do discurso historiográfico – é a rapidez dos acontecimentos conduzindo-os à percepção de eterno presente. Tal fato lhes causa in quietação justamente pela indefinição dessas fronteiras temporais, im prescindíveis para compor o “regime de historicidade” ao qual estão afeitos (D’Alessio, 2003). Diehl (2008), ancorado em pressupostos teóricos, oferece alguns subsídios para elucidar as recentes mudanças nos parâmetros da historiografia contemporânea. Nessa oportunidade, ele aponta como o conhecimento histórico se altera, em termos de sentido e significado, em face dessas mudanças, enfatizando o uso da memória seja no campo social ou cultural. O autor menciona novas formas de produção de conhecimento e assinala como são infinitas as possibilidades de leituras do passado, a partir dos desdobramentos metodológicos decorrentes de reconstituições que emergem da memória coletiva ou individual. A memória histórica desperta forte interesse popular, segundo Burke (2008), que atribui tal fato a uma ameaça às identidades, decorrente da in tensidade e rapidez das mudanças sociais e culturais; o autor menciona que o cerne desse temor está no risco da eventual separação entre aquilo que se foi e o que se é. Na concepção de Chaui, ao se descrever a 15
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substância social da memória, fica claro que a forma de lembrança é tanto individual quanto social: “O grupo transmite, retém e reforça as lembranças, mas o recordador, ao trabalhá-las, vai paulatinamente individualizando a memória comunitária e, no que lembra e no como lembra, faz com que fique o que signifique” (1987, p. xxx). Empenhada em alicerçar o futuro profissional da enfermagem sob a égide da esperança de superação dos modelos vigentes, Barreira (1999) se debruça sobre a trajetória histórica da profissão, valorizando a construção de uma memória coletiva ancorada na reflexão crítica de seus caminhos, a fim de obter subsídios que colaborem para interpretar sua inserção na sociedade e permita decodificar os determinantes de sua identidade profissional. Entretanto, para realizar estudos consis tentes, faz-se necessário utilizar ferramentas que deem legitimidade aos resultados. Nesse sentido, é imperativo percorrer todas as etapas da metodologia selecionada, sem isentar o papel fundamental do pes quisador, incumbido de dar “voz e vida aos fatos”, conforme afirmam Padilha e Borenstein (2005, p. 579). Existe no Brasil uma linha de pesquisa em história da enfermagem atrelada a programas de pós-graduação, cuja produção vem fortalecendo os vínculos entre ensino, pesquisa e extensão, consolidando a produção dos grupos de pesquisa nos órgãos de fomento e desvelando contextos históricos e culturais dessa categoria profissional (Padilha et al., 2012). O trabalho em saúde, no qual se insere a enfermagem, constitui o setor terciário da economia, cuja característica fundamental é a pro dução de serviços consumidos individual ou coletivamente pelos sujeitos – nesse caso, sujeitos-objetos de cuidado – que expressam as de mandas decorrentes do processo saúde-doença. Para melhor compreensão do processo de trabalho da enfermagem, há que se remeter às origens das marcas e determinações históricas, sociais e políticas de sua institucionalização, amplamente assimiladas e propagadas pela sua idealizadora Florence Nightingale (Felli & Peduzzi, 2005). A transformação do hospital em espaço de cura na segunda metade do século XIX traz em seu bojo dois aspectos de ordenamento absolutamente necessários para a concretização dessa condição, quais sejam: a consolidação da medicina como ciência e a organização moral do grupo da enfermagem sob os auspícios de um modelo gerencial, cujo cerne expõe uma tecnologia de 16
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cuidar fundamentada nos estatutos do poder disciplinar, preconizado pela escola nightingueliana (Nunes, 1999). São duas as características marcantes e inerentes às produções científicas da enfermagem brasileira, por um lado o caráter predominantemente acadêmico e por outro a nítida influência do modelo americano, que, objetivando afirmação científica, o faz sob uma perspectiva predominantemente positivista. Tal perspectiva remete essa produção a uma corrente filosófica do século XIX, que identifica a ciência com a verdade. Nightingale, cujo trabalho esteve pautado na experiência vivenciada durante a guerra, transpõe suas crenças pessoais para a enfermagem moderna e ratifica que o conhecimento se adquire pelo método experimental, para superar esse modelo: Faz-se necessário, para um conhecimento e avaliação mais críticos, um maior aprofundamento teórico-metodológico dessa corrente, realizando-se não só uma crítica externa (significado, importância e valor histórico), como também uma crítica interna (sentido e valor do conteúdo das ideias; circunstâncias históricas, ambientais e de pensamento que as influenciaram) do seu significado, da evolução desse significado e do sentido atual que ele expressa (Almeida et al., 1996, p. 36).
A dicotomia inerente à prática da enfermagem constata-se no estudo que investigou a produção publicada na área de pediatria, subdividindo seu achado em duas categorias denominadas textos analíticos, resvalando de forma tênue o processo de trabalho em saúde, e textos prescritivos, consubstanciados fundamentalmente pela técnica, pela execução prática de uma atividade sobre o corpo humano vitimado pela doença – entendida nesse caso como alteração morfológica e/ou funcional dele. As autoras apresentam a hipótese para o predomínio das produções prescritivas, essencialmente direcionadas para os executores dessas atividades – um grupo composto por profissionais com baixo nível de escolaridade, compondo a ampla maioria da enfermagem e afeitos a seguir “normas, técnicas e regulamentos que instrumentalizavam seu trabalho na medida em que expõem o que fazer e como fazer, ainda que não apresentem as explicações lógicas e científicas de cada ação” (Rocha et al., 1993, p. 89). A partir dessa lógica organizacional do trabalho hospitalar, as atividades administrativas tradicionalmente ficaram sob a responsabilidade 17
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do enfermeiro, que se ocupou com a estrutura do ambiente e em prover o necessário para a manutenção de um espaço adequado ao processo de tratamento do paciente, enquanto se empenhava em conciliar a atividade de diferentes profissionais envolvidos no cuidado. As repercussões dessa dinâmica ocupacional são constatadas no agir dos enfermeiros, que deslocam sua atenção para as atividades formais e burocráticas em detrimento de demandas da própria equipe de enfermagem e do pa ciente. O modelo gerencial contemporâneo, entretanto, pressupõe o enfermeiro no centro de uma práxis criadora, gerenciando conheci mento e informação, valorizando o envolvimento profissional e a interdependência, elegendo essencialmente os valores humanos como foco de sua atuação (Trevisan et al., 2006). Essa premissa pressupõe a aproximação do enfermeiro do foco de sua ação, o paciente, entretanto não exclui o papel tradicional e consolidado da enfermeira na organização do hospital e do trabalho, colocando sob sua égide uma gama de ações que envolvem recrutamento, seleção, programa de desenvolvimento, avaliação de desempenho, enfim, ações responsáveis pela conformação de uma atividade clássica gerencial, conforme explicitado neste texto: “Desde a institucionalização da enfermagem moderna evidencia-se a dimensão prática do saber administrativo. Tal saber, embora não se encontre devidamente registrado, a execução da atividade administrativa legitimou-se no trabalho e sempre esteve presente na organização da Enfermagem” (Formiga & Germano, 2005, p. 223). Ao ocupar espaço administrativo no hospital, a enfermagem a ssume posição de direção e gerência, conforme evidencia a própria origem do termo do latim administratione – que, ao longo do tempo, e em função de mudanças substanciais de paradigmas políticos, econômicos e tecnológicos, foi substituído pelos termos “gerência” ou “gestão”, para expressar o recurso estratégico que os dirigentes utilizam para congregar esforços em torno de um objetivo comum. Nessa perspectiva, fica em evidência o aspecto cooperativo das pessoas, em torno da meta a ser atingida, e cabe ressaltar que, no caso específico do enfermeiro, espera-se que seja o gerenciamento das unidades de trabalho (Greco, 2004). Esse comportamento funcional, no Brasil, está ratificado na legislação, pois a lei n. 7.498/86, que dispõe sobre a regulamentação do exercício da enfermagem, no artigo 8o, em seus itens a, b, c, expressa claramente 18
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as atividades gerenciais sob a responsabilidade privativa do enfermeiro, quais sejam: Direção do órgão de Enfermagem integrante da estrutura básica da instituição de saúde, pública ou privada, e chefia de serviço e de unidade de enfermagem; organização e direção dos serviços de Enfermagem e de suas atividades técnicas e auxiliares nas empresas prestadoras de serviços; planejamento, organização, coordenação, execução e avaliação dos serviços de assistência de Enfermagem (Lei do Exercício Profissional, 1986).
Na análise elaborada por Jorge et al. (2007) sobre o comportamento gerencial da enfermagem, fica em evidência a multidimensionalidade e amplitude de posições assumidas no espaço de atuação do profissional, que oscila de posturas fundamentadas em modelos tecnicistas e reducionistas, centrados na assistência proposta pelo modelo biomédico que limita a autonomia profissional, por um lado, e as iniciativas incipientes de um modelo mais participativo em consonância com os princípios do SUS, por outro. Ao enfatizar, nesse contexto, o descompasso entre as exigências do mercado e os pressupostos teóricos trabalhados pelos órgãos formadores dos profissionais da área, ficam expostas as estratégias para a superação dessas marcas conforme explicitado a seguir: Construir espaços para uma gestão compartilhada que atenda as expectativas humanas em relação ao cuidado com o paciente/cliente, integrando os membros da equipe de Enfermagem, motivando-os a encontrar estratégias para minimizar as dificuldades do cotidiano com posturas éticas e fortalecidas pelo aprimoramento da profissão por meio de pesquisas, educação permanente, estudos e discussões em grupos de interesse na temática que favoreçam a melhoria do cuidado de Enfermagem (Jorge et al., 2007, p. 86).
O sistema organizacional da enfermagem assenta-se na definição de um modelo de atendimento ao paciente. Segundo Clark (2010), o primeiro escalão e o escalão intermediário são os espaços de planejamento do trabalho. Consequentemente, nesse nível, define-se a modelagem do clima organizacional e determina-se a forma pela qual se oferece tal atendimento. Uma escolha fundamentada em habilidades, experiência técnica, disponibilidade de recursos humanos e financeiros, perfil do 19
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usuário que, em última análise, define também a complexidade dos procedimentos a serem executados. O modelo de assistência americano aponta cinco métodos tradicionais de assistência: atendimento integral ao paciente, enfermagem funcional, enfermagem de equipe ou modular, enfermagem primária e gerenciamento de caso. O cliente é o cerne da atenção das organizações atualmente, embora não seja esse, ainda, o principal foco de sua cultura. Constata-se que o sistema contemporâneo de gestão em saúde demanda a necessidade das decisões a serem tomadas pelos donos do conhecimento, que, no caso específico da assistência de enfermagem, é tarefa inerente ao trabalho do enfermeiro, cujo núcleo de competência se assenta sobre o cuidado (Ruthes et al., 2010). A proposta de historicizar o processo de trabalho de um grupo de profissionais dedicados à organização dentro de uma instituição de saúde de nível terciário – referência em uma região metropolitana, cuja filosofia está focada na assistência, no ensino e na pesquisa – é ambiciosa e não se esgota no escopo deste estudo, que servirá como marco inicial para inúmeras outras possibilidades que serão desveladas a partir dos múltiplos olhares da história. Os conceitos de história – sendo tomada como conjunto de fatos passados – e de historiografia – como obras de história e fontes documentais e de historiador, como profissional com formação regular e reconhecida na área – são explicitados por Falcon (2013), restritos aos limites do tema central do texto por ele elaborado, mas de que podemos lançar mão nesta construção. Nesse sentido, não posso assumir com este trabalho os pressupostos do ofício, pois não detenho o arcabouço teórico necessário para me constituir em uma intérprete da opinião coletiva nem a legitimidade para colocar-me em tal condição. Vou me pautar no pressuposto de Le Goff (2003), quando afirma que, seja pela sorte ou infelicidade, a história pode ser feita por amadores. O que pretendo é traçar, subsidiada pela memória – um dos objetos da história – e por fontes documentais, a trajetória histórica de um grupo de profissionais que construíram e constituíram o fazer gerencial de uma equipe de enfermagem em um hospital-escola. Trata-se de um estudo exploratório, histórico-social, descritivo qualitativo do tipo documental, realizado no período compreendido entre outubro de 2013 e setembro de 2014, cujas fontes primárias foram constituídas por meio de documentos escritos arquivados no Sistema 20
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