Capitalismo e colapso ambiental
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universidade estadual de campinas Reitor José Tadeu Jorge Coordenador Geral da Universidade Alvaro Penteado Crósta
Conselho Editorial Presidente Eduardo Guimarães Elinton Adami Chaim– Esdras Rodrigues Silva Guita Grin Debert – Julio Cesar Hadler Neto Luiz Francisco Dias – Marco Aurélio Cremasco Ricardo Antunes – Sedi Hirano
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Luiz Marques
capitalismo e colapso ambiental
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Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990. Em vigor no Brasil a partir de 2009.
ficha catalográfica elaborada pelo sistema de bibliotecas da unicamp diretoria de tratamento da informação M348c
Marques, Luiz. Capitalismo e colapso ambiental / Luiz Marques. – Campinas, sp: Editora da Unicamp, 2015. 1. Capitalismo. 2. Ecologia. 3. Desmatamento. 4. Abastecimento de água. 5. Impacto ambiental. I. Título.
cdd 330.122 301.31 333.7513 628.1 e-isbn 978-85-268-1308-3 363.7 Índices para catálogo sistemático:
1. 2. 3. 4. 5.
Capitalismo Ecologia Desmatamento Abastecimento de água Impacto ambiental
330.122 301.31 333.7513 628.1 363.7
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agradecimentos
Ao longo dos anos de sua pesquisa e redação, este livro beneficiou-se de múltiplas contribuições de amigos e colegas e é chegado o momento prazeroso de registrar minha gratidão. Alcir Pécora, Alfredo Nastari, Armando Boito, Breno Raigorodsky, Carlos Marigo, Carlos Spilak, Célio Bermann, Claudia Valladão de Mattos, Daniela Cabrera, Edgardo Pires Ferreira, Fernando Chaves, Francisco Achcar, Francisco Foot Hardman, Henrique Lian, José Arthur Giannotti, José Pedro de Oliveira Costa, José Roberto Nociti Filho, Leandro Karnal, Lia Zatz, Luciano Migliaccio, Maristela Gaudio, Martha Gambini, Martino Lo Bue, Mauro de Almeida, Nádia Farage, Néri de Barros Almeida, Paula Cox Rolim, Pérsio Arida, Ricardo Abramovay, Roberto do Carmo, Ruy Fausto, Stela Goldenstein e Wiliam Daghlian nutriram-me com estimulantes conversas sobre os mais diversos aspectos das crises ambientais de nossos dias. Alguns deles tiveram a generosa disponibilidade de ler em momentos diversos de sua redação partes do manuscrito, enriquecendo-o com críticas importantes e sugestões. Muito deste livro amadureceu nas tardes de domingo passadas na companhia de Chico Achcar, amigo querido e exemplo de sempre. Armando deu-me muito de seu tempo e de seu conhecimento na discussão crítica da noção de Estado-Corporação. Foot leu e releu com empenho a Introdução e nossa sintonia tem para mim um valor incalculável. Roberto do Carmo leu o capítulo 7, sobre demografia, e influiu de modo substancial em seu conteúdo. A ele devo a oportunidade de propor o conteúdo do capítulo 5, sobre a regressão ao carvão, num seminário do Núcleo de Estudos Populacionais (Nepo) da Unicamp. A Ruy Fausto devo a possibilidade de publicar uma versão inicial desse capítulo na sua bela revista Fevereiro. Num seminário sobre vegetarianismo
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coordenado por Nádia Farage, pude apresentar alguns dados e argumentos sobre o impacto ambiental do carnivorismo, desenvolvidos no capítulo 10. José Pedro de Oliveira Costa forneceu-me informação preciosa e estimulante sobre o passado e o presente da questão ambiental no Brasil. William Daghlian manteve-me informado sobre notícias e análises publicadas na imprensa norte-americana e sua leitura de parte do manuscrito foi muito encorajadora. Graças à mediação de Henrique Lian, uma versão muito inicial deste texto passou pelo crivo da revisão técnica de Marco Antônio Fujihara. Fernando Chaves desincumbiu-se com seu habitual esmero de todos os gráficos. Não poucos dos meus interlocutores mantêm vivas discordâncias com as teses centrais deste livro, mas não avaliam talvez em sua justa medida a importância de seus argumentos para o que aqui se propõe. Obviamente, as falhas do livro permanecem de minha exclusiva responsabilidade. Uma palavra de agradecimento vai também aos colegas e alunos de graduação e pós-graduação do Departamento de História da Unicamp. Aos primeiros, por acolherem minhas propostas de cursos sobre a questão ambiental; aos segundos, pelas discussões desenvolvidas em classe e fora dela. Só Lúcia Helena Lahoz Morelli e eu sabemos o quanto este texto lhe deve. É a segunda vez que tenho o privilégio e o prazer de tê-la como revisora na Editora da Unicamp. É com sentida gratidão que reconheço sua secreta e providencial presença em muito do que vai aqui escrito. Este livro seria outro ou, mais provavelmente, nem existiria sem a quantidade imensurável de críticas e contribuições recebidas de Sabine Pompeia, minha mulher. Devo-lhe, mais ainda que isso, a motivação e o encorajamento constante para levar a termo a ingrata empresa de perscrutar o colapso socioambiental que se desenha em nosso horizonte. A ela, a Elena e a Leon, nossos filhos, dedico, como sempre, este trabalho.
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sumário
abreviações.. ................................................................................................................... 11 introdução. . ................................................................................................................... 13 parte i
a convergência das crises ambientais 1. diminuição das mantas vegetais nativas..................................... 65 1.1 A curva global ascendente do desmatamento (1800-2013)............ 65 1.2 A evolução do desmatamento por regiões. . .............................................. 72 1.3 O caso brasileiro (1964-2014). . ..................................................................... 76 1.4 O recrudescimento do corte raso e da degradação na Amazônia.. ....................................................................................................................... 85 1.5 A extração ilegal de madeira camuflada na extração ilegal. . ............. 89 1.6 Fragmentação e degradação das florestas. . ................................................ 91 1.7 Diminuição das áreas de proteção ambiental......................................... 94 1.8 Ponto crítico: A floresta colapsa................................................................... 95 1.9 O desmatamento e os “rios voadores”.. ....................................................... 98 1.10 A grande coalizão do desmatamento no Brasil................................... 100 2. água, solos e insegurança alimentar............................................. 2.1 Declínio dos recursos hídricos.. ..................................................................... 2.2 Rios, lagos e reservatórios.. ............................................................................... 2.3 Aquíferos fósseis e renováveis.. ....................................................................... 2.4 Secas e aridez.......................................................................................................... 2.5 Degradação dos solos e desertificação. . ...................................................... 2.6 O elo mais fraco ...................................................................................................
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111 111 115 126 130 134 141
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3. lixo, efluentes e intoxicação industrial. . ................................ 3.1 Esgotos .. .................................................................................................................... 3.2 Resíduos sólidos urbanos................................................................................. 3.3 Plástico...................................................................................................................... 3.4 Plástico nos cinco giros oceânicos.. .............................................................. 3.5 Pesticidas industriais.. ......................................................................................... 3.6 POPs e mercúrio................................................................................................... 3.7 Material particulado e ozônio troposférico. . ........................................... 3.8 Terras-raras.............................................................................................................. 3.9 Lixo eletrônico.. .....................................................................................................
161 166 168 171 176 179 188 195 198 201
4. combustíveis fósseis. . ....................................................................................... 4.1 A poluição nos processos de extração e transporte.............................. 4.2 A devastação dos ecossistemas tropicais................................................... 4.3 A crescente escassez de petróleo convencional...................................... 4.4 Subsídios à indústria de combustíveis fósseis......................................... 4.5 Petróleo e gás não convencionais. A devastação maximizada.. ....... 4.6 Colapso por desintoxicação ou por overdose?.......................................
213 213 220 223 231 232 239
5. a regressão ao carvão.. ................................................................................... 251 5.1 Os quatro fatores que favorecem o avanço do carvão. . ....................... 256 5.2 Mil cento e noventa e nove novas usinas termelétricas movidas a carvão.......................................................................................................... 262 5.3 “A nuvem começa com o carvão”.................................................................. 264 5.4 O mais poluente dos combustíveis fósseis.. .............................................. 265 5.5 Chuvas ácidas......................................................................................................... 269 5.6 O Brasil, a siderurgia e o carvão vegetal.................................................... 271 6. mudanças climáticas. . ..................................................................................... 6.1 O aquecimento global. . ...................................................................................... 6.2 “Não há pausa no aquecimento global”. . ................................................... 6.3 Projeções para 2050 e para 2100.. ................................................................. 6.4 “Tarde demais para 2ºC?”................................................................................ 6.5 Um aquecimento médio de 2ºC pode ainda ser considerado
277 283 288 290 292
seguro?.............................................................................................................................. 294 6.6 O buraco na camada de ozônio no Ártico. . .............................................. 295 6.7 Elevação do nível do mar e eventos meteorológicos extremos...... 299
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7. agravamento da pressão demográfica.......................................... 313 7.1 O fim do otimismo demográfico.................................................................. 316 7.2 Além da adição aritmética: Urbanização, turismo, automóveis e consumo.............................................................................................. 321 7.3 Duas premissas. . ..................................................................................................... 326 8. colapso da biodiversidade terrestre............................................ 8.1 A sexta extinção. . ................................................................................................... 8.2 As duas vias da extinção.................................................................................... 8.3 Anfíbios e répteis. . ................................................................................................ 8.4 Primatas .. .................................................................................................................. 8.5 Outros mamíferos terrestres........................................................................... 8.6 Aves............................................................................................................................. 8.7 Artrópodes terrestres e o declínio dos polinizadores.........................
329 333 339 342 344 346 352 354
9. colapso da biodiversidade no meio aquático........................ 9.1 Sobrepesca, fazendas aquáticas e poluição. . ............................................. 9.2 Eutrofização, hipóxia e anóxia....................................................................... 9.3 Até 170% a mais de acidificação oceânica até 2100............................ 9.4 Os corais, “ecossistemas zumbis”.................................................................. 9.5 Águas-vivas.............................................................................................................. 9.6 Aquecimento das águas e declínio do fitoplâncton............................
365 367 373 378 381 384 385
10. antropoceno. rumo à hipobiosfera................................................ 391 10.1 Hipobiosfera. Espécies funcionais e não funcionais ao homem.............................................................................................................................. 405 10.2 Grandes represas: Um “fato socioambiental total” do Antropoceno. . ................................................................................................................ 408 10.3 O aumento do consumo de carne.. ............................................................. 421 10.4 Tanatosfera. O metano e o efeito estufa descontrolado.. ............... 428 11. o salto qualitativo das crises ao colapso............................. 447 11.1 O todo é diverso da soma das partes. . ....................................................... 447 11.2 Os prognósticos científicos são com frequência conservadores................................................................................................................ 450 11.3 Mudanças não lineares nos ecossistemas e nas sociedades ......... 454 11.4 Singularidade da expectativa contemporânea de um colapso global................................................................................................................................. 455
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parte ii
três ilusões concêntricas 12. a ilusão de um capitalismo sustentável ................................... 471 12.1 O mercado capitalista não é homeostático.. .......................................... 475 12.2 Milton Friedman e a moral corporativa. . ................................................ 478 12.3 Seis aspectos da impossibilidade de um capitalismo sustentável....................................................................................................................... 481 12.4 A regulação por um mecanismo misto.................................................... 489 12.5 Plutosfera: O maior nível de desigualdade da história humana ............................................................................................................................ 497 12.6 “O decrescimento não é o simétrico do crescimento”.. .................... 501 13. mais excedente = menos segurança. . .............................................. 513 13.1 Do efeito-teto ao princípio da acumulação infinita......................... 516 13.2 O caráter primitivo da pulsão de acumulação monetária.. ............. 517 13.3 Espaço vital da espécie e esgotamento das energias centrífugas. . ..................................................................................................................... 519 13.4 Predominância das forças centrípetas na Antiguidade mediterrânea.................................................................................................................. 523 13.5 O emblema de Carlos V e a afirmação das forças centrífugas...... 535 13.6 Tecnolatria, destino manifesto e distopia.............................................. 539 14. a ilusão antropocêntrica....................................................................... 14.1 Três ênfases históricas da presunção antropocêntrica.. .................... 14.2 A quarta afronta: Os efeitos de retorno negativo.............................. 14.3 A cisão esquizofrênica da ciência e o grande bloqueio mental....
549 550 562 578
conclusão: do contrato social ao contrato natural.... Descentralização e compartilhamento do poder......................................... Nem Nação, nem Império....................................................................................... Um poder de arbitragem e de veto emanando da sociedade. . ................. A nova importância da ciência.............................................................................. Contrato natural..........................................................................................................
595 599 601 604 605 607
índice dos principais nomes citados..................................................... 613 referências bibliográficas............................................................................ 617
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abreviações
AIE – Agência Internacional de Energia EPA – Environmental Protection Agency (EUA) FDA – U.S. Food and Drug Administration FMI – Fundo Monetário Internacional FSP – Folha de S. Paulo (jornal)
Inpa – Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia Inpe – Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais IPCC – Intergovernmental Panel on Climate Change LM – Le Monde LMdB – Le Monde diplomatique Brasil MIT – Massachusetts Institute of Technology NS – New Scientist Noaa – National Oceanic and Atmosphere Administration NYT – The New York Times OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico OESP – O Estado de S. Paulo (jornal) OMM – Organização Meteorológica Mundial OMS – Organização Mundial da Saúde Pnas – Proceedings of the National Academy of Sciences Pnuma – Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente STF – Supremo Tribunal Federal TG – The Guardian TWP – The Washington Post UICN – União Internacional para a Conservação da Natureza UNCCD – Convenção das Nações Unidas de Combate à Desertificação Usda – United States Department of Agriculture
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capitalismo e colapso ambiental USGS – United States Geological Survey WRI – World Resources Institute WWF – World Wildlife Fund
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introdução
Em 1856, Alexis de Tocqueville abre suas reflexões sobre a Revolução Francesa com uma advertência: “Nada é mais apropriado a trazer de volta filósofos e estadistas à modéstia que a história de nossa Revolução; pois jamais houve evento maior, remontando mais no tempo, mais bem preparado e menos previsto”1. Desde Tocqueville, o princípio mesmo da previsibilidade histórica, caro aos séculos XVIII e XIX2, foi aos poucos posto em causa. Em 1928, antes portanto de Karl Popper, Paul Valéry emitia seu certificado de óbito: “Nada foi mais arruinado pela última guerra que a pretensão de prever”3. Justamente porque é da essência da história a imprevisibilidade, não surpreende que os mais decisivos processos e eventos históricos dos últimos cem anos não tenham sido previstos: a carnificina da Primeira Guerra Mundial, as armas químicas e nucleares, a crise de 1929, o totalitarismo, as revoltas de 1968, o choque do petróleo de 1973, o muro de Berlim e sua queda, a implosão da União Soviética, a pulverização dos partidos comunistas ocidentais, a ascensão da China à posição de potência imperialista, o impacto da informática e da rede, o assalto das correntes fundamentalistas às três religiões monoteístas, a regressão mental ao criacionismo, a invasão do Iraque, as guerras civis nos países árabes, a escalada da dívida pública nos países industrializados, a “crise asiática” de 1997 e, enfim, a de 2007-20084, com seus desdobramentos igualmente imprevistos. Os raríssimos estudiosos que previram essas catastrophae ou peripécias do drama histórico não ganharam audiência em geral senão ex post facto e justamente por tal feito5. Um aspecto da história, outrora considerado periférico, mostrou-se, contudo, menos imprevisível: os impactos das sociedades industriais sobre a na13
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tureza e seus contraimpactos, objeto deste livro. Desde 1820, Lamarck (1744-1829), um dos primeiros naturalistas a introduzir o termo “biologia”, anteviu o liame causal entre civilização industrial e colapso ambiental6: O homem, por seu egoísmo tão pouco clarividente em relação a seus próprios interesses, por sua inclinação a explorar tudo o que está à sua disposição, em suma, por sua incúria por seu porvir e pelo de seus semelhantes, parece trabalhar para o aniquilamento de seus meios de conservação e a destruição de sua própria espécie. Destruindo por toda a parte os grandes vegetais que protegiam o solo para obter objetos que satisfazem sua avidez momentânea, ele conduz rapidamente à esterilidade o solo que ele habita, causa o esvaimento dos mananciais, afasta os animais que neles encontravam sua subsistência e faz com que grandes partes do globo, outrora férteis e povoadas em todos os sentidos, tornem-se agora nuas, estéreis, inabitáveis e de sertas. [...] Dir-se-ia que o homem está destinado a exterminar a si próprio, após tornar o globo inabitável.
É claro que os termos em que o naturalista francês formula o problema, os do “egoísmo” humano, pertencem mais ao seu século que ao nosso. Mas Lamarck prevê de modo certeiro a tendência ao colapso desencadeado por crescentes desequilíbrios ambientais antropogênicos, e sua percepção dessa dinâmica não difere substancialmente da que sustenta hoje a ciência ou historiadores da ciên cia, como Erik M. Conway, da Nasa, e Naomi Oreskes, de Harvard, em seu notável livro-manifesto The Collapse of Western Civilisation, de 2014. Na realidade, desde o século XIX um número crescente de cientistas, e nos últimos 40 anos a comunidade científica em peso, vêm advertindo que os desequilíbrios ambientais como um todo – isto é, não apenas as mudanças climáticas, mas o que o Centro de Resiliência de Estocolmo chamou em 2009 os nove limites de segurança planetários7, quatro dos quais hoje já ultrapassados8 – decorrem preponderantemente da ação dos homens sobre o meio ambiente. Não cessam de alertar para o fato de que o aumento desses desequilíbrios e a ultrapassagem desses limites já estão acarretando rupturas nos ecossistemas capazes de produzir – acima de tudo pelo desmatamento e pela liberação crescente de metano no Ártico (vide capítulos 1 e 10) – uma radical mudança de estado nas coorde nadas da biosfera que propiciam a vida no planeta tal como a conhecemos e dela podemos desfrutar.
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introdução
Esse consenso científico estendeu-se ao longo da segunda metade do sé culo XX para outras áreas do saber, bem como para diversos setores da sociedade e do Estado, de modo que ciência e política mostram-se hoje mais imbricadas que nunca. Em seu histórico discurso na Rio+20 em 2012, José Mujica, ex-presidente do Uruguai, afirmou provocativamente: “A grande crise não é ecológica; é política”. Sem desconhecer o caráter especificamente ambiental dessas crises, Mujica afirma aqui sem ambages que nenhuma reflexão sobre elas será fecunda sem o reconhecimento de seu caráter político. De fato, o que decidirá da evolução dessas crises será, acima de tudo, a capacidade das sociedades de, informadas pelos consensos científicos, dotarem-se de formas de governo radicalmente democráticas, sem as quais não será possível reagir a tempo à lógica econômica predatória da biosfera9. Na Conclusão, voltarei rapidamente à questão crucial dessas novas formas de democracia cujo exame situa-se, contudo, além das ambições deste livro.
1. A grande inversão e os limites da
consciência ambiental
A história mostra-se imprevisível não apenas no que se refere à trama de eventos que determina suas desconcertantes inflexões, mas também no âmbito da longa duração. Durante milênios a segurança das sociedades em face da escassez, das intempéries e de outras adversidades dependeu fundamentalmente da capacidade de acumular excedente pelo incremento contínuo de ocupação do solo, tecnologia, produtividade do trabalho, bens de produção e de consumo. A situação histórica atual tornou-se subitamente não apenas diversa, mas inversa em relação a esse longo passado. Pois as crises ambientais de nossos dias, desencadeadas justamente pelo êxito das sociedades industriais em multiplicar incessantemente o excedente, não apenas impõem novas formas de escassez, mas sobretudo geram ameaças mais sistêmicas à nossa segurança. A razão de ser deste livro é a demonstração de que a equação “mais excedente = mais segu rança”, decantada em nossa forma mentis ao longo de milênios, converteu-se hoje na equação “mais excedente = menos segurança”. A dificuldade de perceber essa inversão, sua gravidade e a extensão de suas implicações é o principal obstáculo cognitivo a uma tomada de consciência 15
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mais generalizada dos impasses ambientais que nos ameaçam. Diante do totem da taxa de crescimento do PIB, que adquiriu foros de dogma religioso10, a degradação dos ecossistemas (quando reconhecida) é ainda considerada um “custo” ou efeito colateral inevitável e um problema contornável graças a inovação tecnológica contínua, ganhos de eficiência, aperfeiçoamento de protocolos de segurança e melhor gestão de risco. Embora ilusória, essa crença na possibilidade de um crescimento econômico contínuo é compreensível para os 91,6% da humanidade adulta desprovida de tudo e sedenta de um mínimo de conforto material, posto que esses mais de 90% da humanidade adulta detêm apenas 16,7% da riqueza global, como mostra a pirâmide abaixo. Mas, definitivamente, o problema não está aqui: satisfazer as carências básicas desses 91,6% da hu manidade adulta aumentaria de modo irrelevante o impacto humano sobre os ecossistemas ou mesmo o diminuiria. Por exemplo, fornecer energia elétrica a 1,3 bilhão de pessoas, mesmo a partir de usinas movidas a combustíveis fósseis, implicaria, segundo a AIE, um aumento de apenas 0,8% do consumo desses combustíveis e um aumento de apenas 0,7% nas emissões de dióxido de car-
Figura 1 – Pirâmide global da riqueza em 2013. Baseado em The Crédit Suisse Global Wealth Report 2013 (em rede). Observação: Riqueza é aqui entendida como o conjunto dos ativos de um indivíduo adulto.
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introdução
bono11. Até o final de 2015, haverá 2,7 bilhões de pessoas sem acesso à infraestrutura sanitária básica12. Provê-las dessa infraestrutura implicaria diminuição, e não aumento, de seu impacto ambiental. A Figura 1 captura onde reside, portanto, o problema. A riqueza da humanidade adulta (cerca de 4,7 bilhões de pessoas) é de 240,8 trilhões de dólares (2013). Mais de dois terços (68,7%) dos indivíduos adultos, situados na base da pirâmide da riqueza, possuem 3% (7,3 trilhões de dólares) da riqueza global, com ativos de no máximo 10 mil dólares. No topo da pirâmide, 0,7% de adultos possui 41% da riqueza mundial (98,7 trilhões de dólares). Somados, os dois estratos superiores da pirâmide – 393 milhões de indivíduos ou 8,4% da população adulta – detêm 83,3% da riqueza mundial. No capítulo 12, item 12.5 (Plutosfera: O maior nível de desigualdade da história humana), abordarei a anatomia da pequena pirâmide formada pelo vértice dessa pirâmide. Aqui importa notar que não apenas a desigualdade dos ativos é crescente, mas também a desigualdade das rendas. Thomas Piketty mostra que “desde os anos 1970, as desigualdades aumentaram nos países ricos, e nomeadamente nos Estados Unidos, onde a concentração de renda retornou nos anos 2000-2010 ao nível recorde dos anos 1910-1920, ou mesmo o ultrapassou ligeiramente”13. Paul Krugman reitera que desde 1979 houve queda de renda real (corrigida pela inflação) para os 20% mais pobres da população dos EUA, “enquanto a renda do 1% mais bem pago do mercado quase quadruplicou e a renda do 0,1% mais rico cresceu ainda mais”14. O fenômeno é geral. Segundo a Oxfam, sete entre dez pessoas vivem em países onde a desigualdade econômica aumentou nos últimos 30 anos15. Para satisfazer a avidez de 393 milhões de indivíduos – os 8,4% da popu lação mundial adulta detentora de 83,3% da riqueza mundial –, move-se a economia do planeta, máquina produtora de crises ambientais, a começar pelas mudanças climáticas: “os 500 milhões de pessoas mais ricas do mundo produzem metade das emissões de CO2, enquanto os 3 bilhões mais pobres emitem apenas 7%”16. Essa estrutura da riqueza e da renda e essa tendência à concentração de ambas confirmam um mecanismo ínsito no coração do sistema econômico, que impulsiona uma parcela diminuta da humanidade a acumular de modo irracional, isto é, como um fim em si. Tal mecanismo, que não é senão o da acumulação do capital, é autorreprodutivo inclusive ideologicamente. A crença 17
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de que de sua manutenção dependem a segurança e a prosperidade das sociedades constitui, como dito acima, o grande obstáculo cognitivo a impedir a percepção de que esse mecanismo acumulativo está, ao contrário, nos impelindo em direção a um colapso socioambiental. Na Antiguidade, a ausência de senso de limite suscitou a sentença atribuída a Epicuro: “em relação ao desejo ilimitado, mesmo a maior riqueza é pobreza”17. Em nossos dias, a verdade desse mote não apenas se radicaliza – jamais a economia foi tão perfeitamente concebida para satisfazer a ansiedade dos ricos de se tornarem mais ricos –, mas assume uma nova dimensão, pois, se é fato que as crises ambientais ainda afetam muito mais os pobres, seu agravamento acabará por arrojar ricos e pobres na mesma precariedade. Contrariamente ao jardim guardado que protegeu da Peste Negra a onesta brigata de dez jovens do Decameron, de Boccaccio, não há hoje muralha capaz de pôr os ricos ao abrigo dos efeitos das crises ambientais, dado seu caráter sistêmico: poluição do ar, dos solos e da água, envenenamento alimentar, aquecimento global, secas, escassez hídrica, desertificação, incêndios devastadores, eventos meteorológicos extremos, enchentes, ondas de frio e calor capazes de ameaçar a segurança energética, elevação do nível do mar, subsidência dos deltas, cidades obstruídas por carros e lixo, com graus crescentes de insalubridade sanitária, química e hídrica. É claro que essa perspectiva não inquieta sobremaneira os que controlam os fluxos de investimentos. A PricewaterhouseCoopers sabatinou 1.322 dirigentes de empresas para o Fórum Econômico Mundial de Davos de 2015. A pesquisa mostra que a principal preocupação dos entrevistados é a regulamentação da atividade econômica (78%). Ao avaliarem quais devem ser as prioridades dos governos, apenas 6% deles apontam o combate às mudanças climáticas18. O que dizer, entretanto, da quase indiferença da grande maioria mais imediatamente vulnerável à crise planetária dos ecossistemas? A marginalização (política, econômica, educacional etc.) e a luta esfalfante pela sobrevivência explicam essa quase indiferença. Mas não se subestime o poder explicativo de outro fator: as promessas da sociedade de consumo. Como afirmava Ivan Illich há 40 anos, a sociedade de consumo “comporta dois tipos de escravos: os intoxicados e os que ambicionam sê-lo; os iniciados e os neófitos”19. Embora muitos tenham, desde Ivan Illich, meditado sobre essa nova servidão voluntária ao consumismo, é preciso retornar a ela, mesmo correndo o risco da obvie18
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introdução
dade. O capitalismo assenta sua legitimidade no conforto tangível, e antes inimaginável, que trouxe a parcelas importantes das sociedades industriais e “emergentes” contemporâneas. À medida, contudo, que as crises ambientais começam a ameaçar essas conquistas, o capitalismo investe: (1) na ideia de que apenas o crescimento econômico pode continuar a garanti-las, ainda que obtido a um custo ambiental maior; e (2) na geração de novas necessidades de consumo, que parecerão tanto mais naturais e mesmo imprescindíveis quanto mais estimuladas pelo crédito, pela publicidade e por outros mecanismos indutores de comportamento. Os velhos servos de que fala Illich anseiam por sempre novas “necessidades” e as recebem cotidianamente na veia. Os novos servos, ou aspirantes a sê-lo, deixam-se embalar pela ilusão de que, cedo ou tarde, serão incluí dos no banquete imaginário de um “primeiro mundo” – ele próprio em processo de pauperização –, graças a uma virtuosa combinação de mercado, boa “política econômica” e tecnologia. Esse consenso de que o crescimento econômico contínuo é uma condição de possibilidade de uma sociedade segura e próspera é obviamente funcional às corporações e a seu espectro político “clássico”. Mas tem sido subscrito também pela maioria esmagadora das agremiações de esquerda, ou que assim se denominam. Parte delas, hoje no poder (dos Partidos Social-Democratas, Socialistas e ex-Comunistas na Europa ao Partido dos Trabalhadores no Brasil), não apenas integra esse consenso, mas reivindica maior competência que a dos governos supostamente situados à sua direita para garantir taxas mais robustas de crescimento econômico. Quanto às esquerdas que não romperam com suas raízes históricas, permanecem elas ancoradas num fundamental automatismo ideológico: uma concepção da história, herdada de Marx, centrada no protagonismo das forças produtivas e na quase identificação entre o desenvolvimento destas e o “progresso” histórico. Entre os loci classici dessa ideia no pensamento de Marx, pode-se recordar a passagem na Contribuição à crítica da economia política (1859)20: Em certo estágio do seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que é apenas sua expressão jurídica, com as relações de propriedade, no interior das quais se tinham movido até então. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações transformam-se em seus entraves. Inaugura-se então uma época de revolução social.
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capitalismo e colapso ambiental
Essa resistência da esquerda a devolver essa espécie de Mecânica da história ao século XIX não a deixa perceber que, ao longo do século XX, as relações de produção capitalistas não entravaram (muito pelo contrário) o desenvolvimento das forças produtivas e que, justamente por isso, o traço distintivo do capitalismo no século XXI é a tendência ao colapso ambiental. Diante dessa tendência definidora de nosso século, conservar o que resta da biosfera tornou-se a condição primeira de possibilidade não apenas de avanços sociais (os quais serão cada vez mais improváveis e efêmeros, a se manter o paradigma desenvolvimentista), mas da simples manutenção de qualquer sociedade organizada. Não percebendo a radical novidade da situação histórica atual, e muito menos sua gravidade, as esquerdas em sua maioria ainda dissociam a agenda social da agenda ecológica, reservando a esta última um espaço secundário em seu ideá rio e em seus programas, isso quando não a desqualificam como um estratagema de dominação imperialista21 ou mesmo como um “ardil do capitalismo”22. Atardadas na concepção de um planeta estoque-de-recursos (e ainda mais grave: estoque infinito), as esquerdas distinguem-se da direita apenas por reivindicar mais investimentos nas áreas sociais e uma melhor distribuição de renda e dos serviços. No mais, subscrevem a premissa que legitima como universal o ponto de vista do capital, a saber, a da bondade e mesmo da necessidade de acumu lação contínua de excedente e de energia. Escapa-lhes que a única crítica que vai à raiz do sistema capitalista é a crítica dessa premissa e do tipo suicidário de sociedade que ela implica. Não percebem, enfim, que essa demissão – tão trágica quanto outrora o foi seu desprezo pelas liberdades “burguesas”23 – permite aos setores conservadores edulcorar e neutralizar o potencial crítico do movimento ecológico24. A protelação de um aggiornamento, melhor seria dizer de um svecchiamento, de parte da esmagadora maioria da esquerda é a maior responsável pela incipiência atual das alternativas políticas às crises socioambientais que se alastram e se agravam. A reforçar esse obstáculo cognitivo ou bloqueio mental comum à quase totalidade do espectro ideológico, agem sobre as sociedades ao menos três mecanismos psicológicos tendentes a dificultar uma tomada de consciência da gravidade das crises ambientais e a fortiori uma ação política racional e proporcional à gravidade das crises.
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