FRAGMENTOS
DE UMA DEUSA
UNIVERSIDADE ESTADUAL
DE
CAMPINAS
Reitor JOSÉ TADEU JORGE Coordenador Geral da Universidade FERNANDO FERREIRA COSTA
Conselho Editorial Presidente PAULO FRANCHETTI ALCIR PÉCORA – ANTÔNIO CARLOS BANNWART – FABIO MAGALHÃES GERALDO DI GIOVANNI – JOSÉ A. R. GONTIJO – LUIZ DAVIDOVICH LUIZ MARQUES – RICARDO ANIDO
Giuliana Ragusa
FRAGMENTOS A
DE UMA DEUSA
REPRESENTAÇÃO DE
AFRODITE
NA LÍRICA DE
SAFO
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA B I B L I OT E C A C E N T R A L D A U N I C A M P
R128f
Ragusa, Giuliana. Fragmentos de uma deusa: a representação de Afrodite na lírica de Safo / Giuliana Ragusa. – Campinas, SP: Editora da U NICAMP , 2005. 1. Afrodite. 2. Safo. 3. Poesia lírica grega. 4. Poesia grega. I. Título.
e-ISBN 85-268-1325-0
CDD 884.01 881.01
Índices para catálogo sistemático: 1. Poesia lírica grega 2. Poesia grega
884.01 881.01
Copyright © by Giuliana Ragusa Copyright © 2005 by Editora da UNICAMP Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada, armazenada em sistema eletrônico, fotocopiada, reproduzida por meios mecânicos ou outros quaisquer sem autorização prévia do editor.
Para JoĂŁo, que inventou o amor para me fazer feliz.
AGRADECIMENTOS Este livro consiste na dissertação de mestrado, com alterações, que defendi em agosto de 2003, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, onde fiz minha graduação e cujo corpo docente tenho hoje a alegria de integrar. Neste momento, quero registrar alguns agradecimentos. À minha orientadora e amiga Paula da Cunha Corrêa. Foi estimulada por seu curso de graduação sobre lírica grega que segui para a Grécia; foi por ter contado com sua generosidade e sua confiança que pude lá aportar. Paula ensinou-me a língua grega e, generosamente, cuidou de minha formação. Sob sua orientação segura, aberta e atenciosa concluí este estudo, com o qual se encerra o primeiro ciclo de trabalhos iniciado em 1999 e, ao mesmo tempo, abre-se um novo. Aos professores Angélica Chiappetta, Filomena Hirata e Jaa Torrano, cujos cursos de pós-graduação ampliaram não apenas a minha formação geral, mas os horizontes de minhas pesquisas. Às professoras Patricia Rosenmeyer e Silvia Montiglio, do Departamento de Estudos Clássicos da Universidade de Wisconsin (Madison, EUA). Ambas me acolheram de maneira atenciosa e generosa, no primeiro semestre de 2000. Ao amigo querido Severino Albuquerque, professor do Departamento de Espanhol e Português da mesma universidade americana, por seu apoio e amizade em Madison e desde então. Às professoras Adriane da Silva Duarte (FFLCH–USP) e Haiganuch Sarian (MAE–USP), que integraram as bancas do exame de qualificação e de defesa do mestrado. Suas leituras atentas contribuíram para este estudo e foram, em ambas as ocasiões, muito estimulantes.
Agradeço duplamente à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Primeiro, pela bolsa de mestrado entre 2001 e 2003 e segundo, pelo auxílio à publicação, amparado em estimulante parecer ad hoc. De 1995 a 2003, vivi um intenso período de amadurecimento intelectual. Da graduação à pós-graduação, trilhei um longo percurso ainda fresco em minha memória, que agregou as mais diversas emoções e acabou por envolver os que me rodearam — e me rodeiam — de uma forma ou de outra. A todos — professores, familiares, colegas e amigos — quero dizer muito obrigada pelo apoio — em especial a Mariana, amiga querida. Por fim, agradeço a meu marido, amigo e companheiro, João Roberto Faria, cuja importância foi decisiva para que eu chegasse até aqui. Sinto-me especialmente afortunada por ter ao meu lado alguém que conhece bem o caminho que começo a percorrer e que já experimentou as alegrias, as frustrações e as ansiedades inerentes à carreira acadêmica. João apoiou-me de todas as formas possíveis, inclusive como leitor incansável, tarefa que lhe roubou uma fatia expressiva de seu tempo tão escasso. A ele meu amor, admiração, amizade e profunda gratidão por tudo, sempre.
SUMÁRIO LISTA DE ABREVIAÇÕES.........................................................................................................11 PREFÁCIO...................................................................................................................................13 INTRODUÇÃO...............................................................................................................................17 Parte I PRESENÇA DE SAFO NO CENÁRIO HISTÓRICO- CULTURAL DA G RÉCIA ARCAICA 1 A LÍRICA GREGA ARCAICA E SAFO...................................................................................23 2 A MULHER E A SEXUALIDADE NA GRÉCIA ARCAICA...................................................55 3 AS ILHAS DE LESBOS E CHIPRE E OS PERCURSOS HISTÓRICO-CULTURAIS ENTRE A GRÉCIA ARCAICA E O ORIENTE.........................79 Parte II PRESENÇA DE AFRODITE NA
LÍRICA DE
SAFO
NOTA PRÉVIA.......................................................................................................................101 4 CHIPRE, CITERA E CRETA: A GEOGRAFIA MÍTICO-RELIGIOSA E POÉTICA DE AFRODITE...........................................................103 5 O NOME “AFRODITE” E OS EPÍTETOS DA DEUSA EM SAFO..............................145
GIULIANA RAGUSA
6 CENÁRIOS DE AFRODITE: A NATUREZA, O SAGRADO E O EROTISMO................193 7 O FR. 1 V: UMA 8 AFRODITE EM
PRECE DE
“SAFO”
PARA
AFRODITE....................................261
DEZ FRAGMENTOS: APELOS E MENÇÕES ................................... 339
Parte III ENCERRAMENTO IMAGEM EM FRAGMENTOS...............................................................................................387 BIBLIOGRAFIA............................................................................................................................395 Anexo 1 QUADRO DA
TRANSLITERAÇÃO
DO GREGO PARA O PORTUGUÊS ................................................................ 423
Anexo 2 TEXTO GREGO E TRADUÇÃO DO CORPUS DE 14 FRAGMENTOS DE SAFO................................................... 424 Anexo 3 TEXTO GREGO E TRADUÇÃO DE OUTROS FRAGMENTOS DE SAFO INTEGRALMENTE CITADOS NO LIVRO ................................... 437
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LISTA DE ABREVIAÇÕES
LISTA
DE ABREVIAÇÕES
Obras Chantraine — C HANTRAINE , P. Dictionnaire étymologique de la langue grecque. Paris: Klincksieck, 1984-1990. D — D AVIES , M. (ed.). Poetarum melicorum Graecorum fragmenta I. Oxford: Clarendon Press, 1991. LSJ — LIDDEL, H. G.; SCOTT, R. e JONES, H. S. Greek-English lexicon with a revised supplement, 9a ed. Oxford: Clarendon Press, 1996. PLF — L OBEL, E. e P AGE, D. Poetarum Lesbiorum fragmenta. Oxford: Clarendon Press, 1997 [1a ed.: 1955]. PMG — PAGE, D. L. (ed.). Poetae melici Greci. Oxford: Clarendon Press, 1962. Voigt ou V — VOIGT, E.-M. (ed.). Sappho et Alcaeus: fragmenta. Amsterdã: Athenaeu, Polak & Van Gennep, 1971. W — W EST , M. L. (ed.). Iambi et elegi Graeci, 2 a ed. Oxford: Oxford University Press, 1989 (vol. 1), 1992 (vol. 2) [1as eds.: 1971-1972].
Periódicos AJA — American Journal of Archaeology AJPh — American Journal of Philology ATTI — Atti dell’Istituto Veneto di Scienze, Lettere ed Arti Venezia AW — Ancient World
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GIULIANA RAGUSA
BCH — Bulletin de Correspondance Hellénique CA — Classical Antiquity CJ — Classical Journal CPh — Classical Philology CQ — Classical Quarterly CR — Classical Review EL — Études de Lettres G&R — Greece and Rome GRBS — Greek, Roman & Byzantine Studies HSCP — Harvard Studies in Classical Philology HThR — Harvard Theological Review JHS — Journal of Hellenic Studies JSS — Journal of Semitic Studies MD — Materiali e Discussioni per l’Analisi dei Testi Classici MH — Museum Helveticum MPhL — Museum Philologum Londinense NGR — National Geographic Research PhQ — Philological Quarterly QS — Quaderni di Storia QUCC — Quaderni Urbinati di Cultura Classica REG — Revue des Études Grecques RFIC — Rivista di Filologia e di Instruzione Classica RhMus — Rheinisches Museum RHR — Revue de l’Histoire des Religions SCO — Studi Classici e Orientali SIFC — Studi Italiani di Filologia Classica SMEA — Studi Micenei ed Egeo-Anatolici T APA — Transactions and Proceedings of the American Philological Association ZPE — Zeitschrift für Papyrologie und Epigraphik
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PREFÁCIO
PREFÁCIO Je suis belle, ô mortels, comme un rêve de pierre. B AUDELAIRE
Em abril de 1820, ao revirar as terras que ficavam próximas de um teatro antigo à procura de pedras para fazer um muro, Yorgos, um camponês grego da ilha de Melos, descobriu uma magnífica escultura do século II a.C. Comprada, roubada ou adquirida dos turcos pelos franceses por meio da diplomacia, conforme alegam os relatos contraditórios, logo após a sua exposição no acervo do Museu do Louvre, ela tornou-se um ícone da arte ocidental, conhecida hoje como a Vênus de Milo (que é o nome da ilha em grego moderno). A poesia lírica grega do período arcaico, como grande parte dos sítios arqueológicos na Grécia, é um terreno árido, pouco atraente, e quase nada revela — com a exceção dos raros tesouros, como por milagre, preservados em bom estado — aos olhos distraídos, desinformados ou sem treino. Assim, para formarmos uma parca idéia do que pode ter sido a obra de Safo, a célebre poeta de Lesbos (c. 630 a.C.), é necessário perscrutar detalhada e judiciosamente, como se faz neste livro, além dos fragmentos poéticos que possuímos, todos os possíveis indícios e testemunhos que a fortuna nos legou, lançando mão não apenas das fontes literárias e dos recursos da filologia clássica e teoria literária, mas valendo-nos também de estudos de diversas áreas, tais como os da arqueologia, história e religião/mitologia. Este livro, portanto, é notável por uma série de razões. Primeiro porque Giuliana Ragusa, seduzida pela chamada “Ode a Afrodite”, de 13
PAULA DA CUNHA CORRÊA
Safo (Fr. 1 V), chegou à pós-graduação em letras clássicas vinda de outra área de estudos literários e, com enorme dedicação, entusiasmo e uma incansável busca da perfeição, em pouco tempo e de forma praticamente autodidata, armou-se de todos os instrumentos necessários para empreender a laboriosa tarefa de resgatar, dentre os fragmentos supérstites de Safo, a representação da deusa. Na primeira parte do livro, de forma clara e simples, mas sem furtar o leitor de todas as dificuldades envolvidas, a autora desenvolve uma discussão sobre questões metodológicas e problemas da definição do gênero; examina as diversas abordagens e perspectivas de leitura dos poemas, apresentando um quadro do contexto histórico e cultural dos versos de Safo, compostos num período de importantes relações entre a Grécia e o Oriente. Depois, na segunda parte, com mão segura e criteriosa, Giuliana recolhe, da análise dos 14 fragmentos de Safo em que Afrodite figura, quatro aspectos: a sua geografia poética e mítico-religiosa, o nome e os epítetos da deusa, o cenário e, por fim, os contextos em que é invocada ou mencionada. Essas facetas de Afrodite não são contempladas abstratamente, mas, sempre iluminadas contra o pano de fundo da tradição poética em que Safo se insere e com a qual dialoga, elas são comparadas com representações da deusa em outros autores e gêneros, particularmente com as da épica homérica, dos poemas hesiódicos e dos três Hinos homéricos a ela dedicados. Ao se deparar com estilhaços de mármore, papiros carcomidos e manuscritos corruptos, é difícil resistir à tentação de pretender recompor o todo original. Assim, desde a sua descoberta, a Afrodite de Melos suscitou inúmeras hipóteses de reparos e interpretações, principalmente dos braços perdidos, para os quais foram sugeridas diversas poses. Coube a Félix Ravaisson, o arqueólogo responsável pela restauração da estátua em 1871, o trabalho de corrigir as intervenções sofridas, removendo as partes adicionadas à estátua e, contra o costume de sua época, exibi-la quase da forma como foi encontrada na ilha de Melos. Os únicos acréscimos que Ravaisson admitiu, e que nela ainda hoje se conservam, são a extremidade do nariz, o lábio inferior, o dedão do pé direito e detalhes do drapejado. 14
PREFÁCIO
Infelizmente, a Afrodite de Safo não teve sorte semelhante, porque a obra da poeta de Lesbos nos chegou em um estado muito mais fragmentário. Dos nove livros compilados pelos alexandrinos, sabemos que apenas o primeiro continha 1.320 versos (o equivalente a 330 estrofes sáficas) dispostos em provavelmente 60 a 70 poemas. Embora os outros livros possam ter sido menores (o oitavo, por exemplo, contava com aproximadamente 130 versos), de tudo restou-nos um único poema na íntegra, a célebre Ode a Afrodite (Fr. 1 V), preservada por Dionísio de Halicarnasso em seu tratado Sobre o arranjo das palavras, e uma dúzia de textos mais substanciais dentre os 200 e poucos fragmentos menores. Portanto, ao extrair de tais destroços uma figuração da deusa, só pode restar-nos, como diz a própria autora, “uma imagem fragmentária da Afrodite ali representada”. Além disso, sobre a Afrodite de Safo acumularam-se, com o passar dos séculos, espessas camadas de leituras. Nesse sentido, notável também é o empenho de Giuliana em atentar o leitor, ao longo de seu estudo, para diversas interpretações, antigas e modernas, que revestem os versos de elementos alheios à sua poética. E se a autora resiste ao impulso de restaurar-nos uma figura completa da Afrodite de Safo, não é tanto pela afeição que os amantes da poesia grega arcaica têm ou acabam adquirindo por fragmentos e imagens lacunares ou trincadas, cujas cicatrizes parecem conferir-lhes vida e realidade, mas, sobretudo, por um rigor científico e o desejo de não cercear a imaginação dos leitores, após prover-lhes com toda a informação que lhes possa ser útil. Por fim, não se pode deixar de assinalar a relevância da publicação deste trabalho, que, embora defendido como dissertação de mestrado, em virtude da rara maturidade e diligência da pesquisadora, é mais propriamente uma tese de doutoramento, nos velhos e bons padrões de excelência acadêmica. Este livro oferece ao leitor brasileiro, além de uma sólida base para a leitura dos poemas de Safo, visões inovadoras e excelentes traduções de uma seleção de fragmentos que, mesmo em ruínas, compõem um dos mais belos monumentos da poesia ocidental. Paula da Cunha Corrêa 15
INTRODUÇÃO
INTRODUÇÃO Intitulado Fragmentos de uma deusa: a representação de Afrodite na lírica de Safo, este livro consiste no estudo da personagem divina como a concebe a poeta de Lesbos. Para tanto, concentra-se em um corpus definido a partir de um critério: a presença textual de Afrodite nos poemas. Assim, com base na edição de Eva-Maria Voigt, Sappho et Alcaeus: fragmenta (1971), esse corpus se compõe de 14 fragmentos líricos, a saber: 1 V, 2 V, 5 V, 15 V, 22 V, 33 V, 73a V, 86 V, 96 V, 102 V, 112 V, 133 V, 134 V e 140 V. A designação “fragmentos” revela já um dos muitos desafios que cercam este trabalho: o sério comprometimento da integridade material dos textos de Safo. Esse é um problema inerente à lírica grega arcaica, que, devido a causas e circunstâncias variadas, sofreu danos, mutilações, reduções e corrupções ao longo de sua conturbada transmissão. Diante disso, o título do trabalho explica-se claramente: se o objeto no qual a personagem divina Afrodite está representada se encontra em fragmentos, a compreensão dessa representação será, inevitavelmente, fragmentária. A idéia do fragmentário, do estilhaçado, do lacunoso perpassa, portanto, todo este estudo, pois não se limita apenas à poesia sáfica, mas atinge igualmente outras áreas que a cercam, gerando novos desafios relativos: 1) às dificuldades de abordagem e de definição da lírica grega antiga; 2) ao precário conhecimento que se tem da Grécia arcaica e, notadamente, da Lesbos de então; 3) à pouca informação sobre a situação da mulher em tal contexto sócio-histórico e cultural; 4) aos dados desencontrados e historicamente não comprovados da “biografia” de Safo; 17
GIULIANA RAGUSA
5) aos estereótipos e às lendas em torno da poeta e de suas canções; 6) às grossas e viciadas camadas de leitura que se sobrepõem aos poemas tornados, assim, quase invisíveis; 7) às dificuldades de estabelecer uma visão orgânica da literatura e da tradição literária gregas; 8) às obscuridades quanto à circulação da lírica que chamamos “literária”, mas que foi produzida em um mundo arcaico eminentemente oral; 9) à enorme bibliografia crítica produzida no decorrer de séculos de estudos clássicos. Eis uma síntese da realidade enfrentada por aquele que se dedica à lírica grega arcaica. Para uns, decerto, o quadro é desolador. Afinal, como é possível trabalhar com cacos de poemas? Para outros, dentre os quais me incluo, ele é, sim, desolador e potencialmente frustrante, mas, ao mesmo tempo, é a promessa de uma empreitada desafiadora com um sabor de aventura, pois mergulhar em tal quadro é percorrer um trajeto cheio de riscos, desvios, descaminhos, abismos e, eventualmente, pequenas conquistas e descobertas recompensadoras. Além de todos os desafios que a lírica grega arcaica oferece a quem dela se aproxima, no contexto acadêmico brasileiro há mais um a ressaltar: a escassa produção crítica a seu respeito, ao contrário do que acontece no exterior — sobretudo na Europa e nos Estados Unidos. No caso específico de Safo, há algumas traduções, mas apenas uma obra de estudo publicada, que será oportunamente referida. Assim, outro desafio se anuncia: passar pela sempre crescente fortuna crítica de Safo em língua estrangeira — para não falar das edições e traduções de seus fragmentos — e buscar travar com ela um diálogo equilibrado de modo a construir uma leitura independente, mas não autocentrada. Dito isso, cabe indagar: por que estudar a representação de Afrodite na lírica de Safo? Há pelo menos quatro razões: a primeira, porque diante da condição precária dos textos, o estudo temático parece ser o caminho mais certo para uma visão minimamente integralizadora tanto da poesia sáfica e da deusa ali representada quanto da tradição literária à qual a poeta pertence; a segunda, porque Afrodite predomina no que restou da poesia de Safo e, muito embora nela não seja a única deidade referida, parece ter sido privilegiada; a terceira, porque as características da representação da deusa concebida pela poeta suscitam uma série de 18
INTRODUÇÃO
relações interessantes não apenas com outras imagens poéticas da divindade, mas também com elementos dos seus cultos e dos seus mitos, bem como da percepção que dela tinham os antigos; e a quarta, porque o estudo do binômio Safo–Afrodite abre um panorama estimulante que não pode ser ignorado e que pode ser sintetizado em outro binômio, Grécia arcaica–Oriente. Já está sinalizado, portanto, o tipo de abordagem aqui adotada: uma abordagem que se concentra nos fragmentos de Afrodite dispersos na lírica sáfica, mas que procura estar atenta a outras representações poéticas, míticas e cultuais da deusa, bem como a elementos extraliterários pertinentes à análise interpretativa dos textos do corpus. Dessa maneira, o que se pretende é articular uma leitura tão vertical e ampla da Afrodite de Safo quanto possível. Como se organiza este trabalho? Na intenção de estruturá-lo segundo a metodologia e as posições que o norteiam, ele foi dividido da seguinte maneira: a parte I, intitulada “Presença de Safo no cenário histórico-cultural da Grécia arcaica”, propõe-se a discutir os desafios anteriormente comentados, a fim de, ao expô-los, traçar um panorama crítico minimamente compreensível do cenário histórico-cultural que cerca e permeia a poesia de Safo. Feito isso, a passagem para a análise da presença de Afrodite nos fragmentos sáficos será sustentada, espero, por um entendimento necessário do objeto deste estudo: a poeta de Lesbos, sua lírica e a personagem divina Afrodite nela representada. Essa etapa contém três capítulos. A parte II, “Presença de Afrodite na lírica de Safo”, concentra-se no estudo da representação de Afrodite em Safo. Na intenção de compreender e realçar a especificidade de tal representação, os cinco capítulos dessa etapa perseguem, a partir de uma abordagem interdisciplinar que privilegia a análise interpretativa dos fragmentos, quatro aspectos da presença da deusa nos textos: primeiro, sua geografia insular míticoreligiosa e poética; segundo, o nome e os epítetos atribuídos a Afrodite; terceiro, os cenários nos quais ela se insere; e quarto, se a deusa recebe um apelo ou se é mencionada pela voz dos poemas. Finalizadas essas partes, cujos capítulos se pretendem conclusivos em si mesmos, passo ao encerramento, chamado “Imagem em fragmen19
GIULIANA RAGUSA
tos”. Aqui, volto à idéia que percorre todo o estudo, a do fragmento, para refletir criticamente sobre o percurso trilhado e menciono um grupo de fragmentos não incluídos no corpus por não trazerem, textualmente, uma clara indicação da presença de Afrodite, que, todavia, não seria descabida. Seguem-se a Bibliografia e três anexos. O Anexo 1 traz um quadro da transliteração do grego para o português; o Anexo 2, o texto grego e a tradução dos fragmentos do corpus; e o Anexo 3, o texto grego e a tradução de outros fragmentos de Safo integralmente citados ao longo dos capítulos. Esclareço que todas as traduções para a língua portuguesa incorporadas ao trabalho, salvo quando indicado, foram feitas por mim.
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