História da alfabetização

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universidade estadual de campinas Reitor José Tadeu Jorge Coordenador Geral da Universidade Alvaro Penteado Crósta

Conselho Editorial Presidente Eduardo Guimarães Elinton Adami Chaim – Esdras Rodrigues Silva Guita Grin Debert – Julio Cesar Hadler Neto Luiz Francisco Dias – Marco Aurélio Cremasco Ricardo Antunes – Sedi Hirano

Coleção A espessura da linguagem Comissão Editorial Coordenadoras Eni Puccinelli Orlandi – Mónica Zoppi-Fontana Cármen Lúcia Hernandes Agustini – Freda Indursky Greciely Cristina da Costa – Luiz Francisco Dias Taisir Mahmudo Karim Unicamp Ano 50 Comissão Editorial Itala M. Loffredo D’Ottaviano Eduardo Guimarães

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Mariza Vieira da Silva

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SENTIDOS E SUJEITO DA ESCOLARIZAÇÃO

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Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990. Em vigor no Brasil a partir de 2009.

ficha catalográfica elaborada pelo sistema de bibliotecas da unicamp diretoria de tratamento da informação Bibliotecária: Helena Joana Flipsen – crb-8a / 5283

Si38h

Silva, Mariza Vieira da. História da alfabetização no Brasil: sentidos e sujeito da escolarização / Mariza Vieira da Silva. – Cam­pinas, sp: Editora da Unicamp, 2015. 1. Alfabetização – Brasil – História. 2. Análise do discurso. I. Título.

cdd - 372.4140981 e-isbn 978-85-268-1422-6 - 401.41 Índices para catálogo sistemático:

1. Alfabetização – Brasil – História 2. Análise do discurso

372.4140981 401.41

Copyright © by Mariza Vieira da Silva Copyright © 2015 by Editora da Unicamp

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Ao meu pai querido (in memoriam), com quem aprendi as primeiras letras, que me ajudaram a escrever esta história.

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Sumário

PREFÁCIO..........................................................................................................

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Apresentação...........................................................................................

19

Introdução..................................................................................................

23

CAPÍTULO I – Alfabetização: Do que estamos falando?..........

33

1.

Um tema, um objeto discursivo................................................... Análise de discurso: Uma teoria, um dispositivo de análise................................................................................................

33

CAPÍTULO II – AS Coisas memoráveis.......................................

87

1. Educação................................................................................................

97

2.

53

2. Cultura.................................................................................................... 133 3. História................................................................................................... 158

4. Sociologia.............................................................................................. 220

CAPÍTULO III – So-letrando um Mundo Novo.................. 249 1. Passado-presente-passado.............................................................. 249 2.

3.

A escrita alfabética............................................................................ As bases de um Novo Mundo...................................................... 3.1. Uma política linguística e educacional.................................. 3.2. A construção de um saber...........................................................

263

320 327 352

Considerações finais......................................................................... 413 Bibliografia................................................................................................. 419

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PREFÁCIO

Eni Orlandi

Pensar a escolarização, ou melhor, a história da alfabetiza­ ção, a partir da noção de sujeito e de sentido é algo abso­luta­ mente necessário e inteiramente inaugural. Porque, quando se pensa a história da alfabetização – e se têm ofere­cidas poucas oportunidades –, é quase sempre de uma perspectiva historicista, o que não é o caso desta belíssima e profunda proposta feita, neste livro, por Mariza Vieira da Silva, pes­ quisadora que acumula anos de prática e reflexão sobre essa questão no Brasil, assumindo uma posição de quem vê a história não externamente, mas de uma posição interna a sua reflexão e seu conhecimento sobre a linguagem, sobre a língua e seu ensino. Conjuntamente à perspectiva de tra­ balhar essa história, dada sua formação, ela inclui, nesta re­ flexão, tanto o sujeito como os sentidos. E acrescenta a essas faces da reflexão a questão da política linguística e educacio­ nal na construção desse saber a língua, do saber sobre a(s) língua(s) no Brasil. Por isso, este livro é, ao mesmo tempo, a afirmação de um conhecimento solidamente construído e a de uma po­ sição comprometida com a escola pública, laica e gratuita brasileira, o que torna sua leitura indispensável para qual­ quer educador que tem como objetivo alfabetizar, decidir 9

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sobre como a alfabetização deve ser, ou mesmo conhecer a história da alfabetização no Brasil, pois, como diz a autora, a alfabetização é o marco de passagem da entrada para a universalização de uma educação básica de qualidade para a população. A letra é o passaporte. O que há de especial nesta reflexão é que ela se faz, sem perder nenhum detalhe sobre o conhecimento linguístico, sobre o conhecimento da escrita e o conhecimento da educação, na relação que o percurso da autora traça entre eles, ao colocar como objetivo pensar a alfabetização como ob­ jeto discursivo, ligando a prática pedagógica à constituição do sujeito brasileiro. Trata-se de interferir, com uma reflexão que finca pé no real da língua e no real da história, no processo de produção do conhecimento que resulta na construção de uma posição sujeito e na constituição dos sentidos. Através da análise que faz dos discursos que constituem esse conhecimento, a au­ tora atinge a memória institucional, a qual legitima um lugar de autoridade na constituição de uma autoria na relação com a alfabetização, nas diferentes áreas do conhecimento, instaurando uma leitura dessa história que podemos dizer que funciona como história oficial, produzindo seus efeitos, entre os quais, eu diria, não é menor o que dá uma “fisio­ nomia” ao par alfabetização/analfabetismo, que percorre recorrentemente nossa história de país colonizado. Para tal, a pesquisadora e especialista em história das ideias linguís­ ticas, e especificamente sobre história da alfabetização no Brasil, realiza uma análise discursiva da escrita alfabética, tendo como material de análise e reflexão desde os discursos dos séculos XVI e XVII – principalmente o de jesuítas como 10

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Nóbrega e Anchieta – que toma como um conjunto de formulações, fundadoras do discurso sobre a alfabetização, do processo de escolarização. Mas a autora não fica nesses primórdios, em que se atém ao discurso religioso; ela atravessa, na construção do arquivo, tempos e espaços, e analisa textos de referência em largo período, assim como textos acadê­ mico-científicos que falam da história da alfabetização nos séculos XIX e XX. Trabalhos em que se acentua a ideia de fra­casso, a da proposição da interdisciplinaridade como necessária para tratar as questões da alfabetização e, consequen­ temente, a entrada em cena de muitas áreas de conheci­ mento. Mariza, então, a partir de sua compreensão, procura analisar as relações entre o científico, o ideológico e o pedagógico, nas diferentes produções, como artigos publicados, dis­sertações e teses, e também livros e propostas. Nessa frag­ mentação do objeto está presente a linguística em suas áreas mais reclamadas para esse tema: a psico e a sociolinguística. Se este é um dos resultados a que chega a autora em sua observação e sua análise, suas pesquisas, por outro lado, continuam na busca da compreensão do funcionamento discursivo que lhe deu a direção de uma ressignificação do que seja a alfabetização e sua história no Brasil, pois que é prenhe em sua heterogeneidade linguística e social, ao considerar, ao mesmo tempo, nessa história, o sujeito e a língua. Observando a assimetria entre alfabetização (ação de alfabetizar, no dicionário) e analfabeto (estado, condição), a autora nos confronta com a ordem do não nomeável e diz algo que mostra toda a sua energia teórica e seu real comprometimento com a práxis da alfabetização. Diz ela: “[...] aquele que alfabetiza, que propaga a instrução, tem sempre 11

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de lidar com alguém parasitado internamente por algo externo – a escrita –, com alguém já afetado por um des-conhecimento, por uma falta”. O analfabeto. Desrespeitando a ordem do nomeável, eu ousaria dizer: analfabetado. Mas não. A formulação da autora é profunda e definidora: “alguém parasitado internamente por algo externo”. Uma condição da vida social que se apresenta, no entanto, como falta, desde sempre e irrevogavelmente, pois é da ordem do não nomeável. Eis a condição do sujeito brasileiro em face da es­ crita. Isso não é um obstáculo, mas um estímulo para que a experiente pesquisadora, observadora de tudo quando se trata da escrita, tão afeiçoada à questão da(s) letra(s), desen­ volva e elabore suas perguntas sobre a história da alfa­beti­ zação no Brasil. Se o analfabetismo está sempre implicado na alfabetização, como essa assimetria – alfabetização/ analfabetismo – se produziu historicamente pelo trabalho de uma contradição? É essa história, que reclama sentidos, que a autora nos conta. Com um domínio afinado da teoria e da análise de discurso, desenvolve reflexões que tocam ao mesmo tempo seu objeto de análise – a história da alfabetização no Brasil – e, mais que isso, a própria compreensão do sujeito dessa aná­ lise e dos processos de produção de sentidos aí investidos. Alia seu conhecimento da análise de discurso, das formulações de M. Pêcheux, quando se trata do sujeito, com o que pode ser lido em Lacan, e tira disso resultados para a própria história da alfabetização no Brasil. Da mesma maneira, em relação ao que pode ser tomado como história, produz deslocamentos, quanto à noção de história, de texto e de dados. Isso permite a seu leitor confrontar-se com a alfabetização e 12

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seus inúmeros modos de constituir sentidos, práticas e sujeitos em nossa história. Trilhando as vias da contradição, ela nos mostra como seu trabalho não pretende preencher um vazio de conhecimento que assim se faz pela falta de estudos e pesquisas, ar­quivos e acervos, mas porque os fatos que reclamavam sen­ tido eram a própria rarefação, escassez e opacidade da es­ crita da história, enquanto efeitos de sentido de um excesso ideológico, de um espaço de memória saturado, desse processo de produção de conhecimento. E se propõe a nos contar essa história que, como ela diz, assim se faz porque estamos lidando com o pleno de uma ausência que marca a materialidade das práticas linguísticas e pedagógicas. A lacuna, para a autora, é um efeito de sentido produzido em uma posição de sujeito que tem seus limites e recortes no interior da formação discursiva em que se constituiu. Retoma discursos sobre o passado para compreender a interpretação que está lá presente, dizendo da melhor maneira o que podemos dizer: temos, na verdade, sempre, um longo pas­ sado pela frente. E, na apropriação da escrita, é nos gestos de interpretação do sujeito que a escola atua: no lugar em que o sujeito, diante de um objeto simbólico, sofre a injunção à significação do mundo e de si mesmo. E o faz em meio a práticas sócio-históricas que, como a escolarização, são administradas pelo imaginário. Em sua análise, a autora encontra-se com inúmeras oposições conjugadas nesse discurso sobre a alfabetização, sobre o ensino e, passando em revista muitas delas – como a que existe entre cegueira e inaptidão, a da palavra “primá13

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rias” remetendo a primeiras ou a superficiais etc. –, ela nos mostra que o importante não é defender um dos elementos ou mesmo eliminar a oposição, mas compreender como esta se organizou, discursivamente, em conjunturas históricas específicas. Nessa direção, mostra a autora, está mal colo­ cado, na forma de oposição, o conflito alfabetização versus escola popular, pois o conflito é entre a escola popular de qualidade e a de má qualidade, o que aponta para o fato de que há mais elementos e consequentes deslizamentos nessa relação. Abrindo para uma ampla análise de muitos textos e autores nessa história – que passa por J. R. Pires de Almeida, S. Buarque de Holanda, Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo, N. W. Sodré, Serafim Leite, Gilberto Freyre, Florestan Fernandes, e também autores como E. Ferreiro e L. S. Vigotski –, este livro nos faz leitores de textos fundamentais para conhecer tanto a história das ideias que se conta como as perguntas que a autora faz nesse percurso intenso que ela expõe a nossos olhos e à nossa reflexão. E nossas antigas referências também desfilam nessa análise que é atenta a minúcias e, no entanto, não se perde nelas. Podemos assim compreender melhor P. Vaz de Caminha, M. da Nóbrega, José de Anchieta, A. Thevet, P. M. Gândavo, J. de Léry, frei V. do Salvador e A. Vieira, não em sua generalidade, mas no que tocam em nossa constituição como brasileiros, pen­ sando o imaginário da colonização e a nossa relação com a palavra, com a escrita. Na sua análise cuidadosa, podemos observar como uma geração como a de Anísio Teixeira, por exemplo, instala um processo discursivo em que se defende a educação para to14

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dos, mobilizando para isso a hipótese político-social de que, na relação entre ciência-democracia-educação, ninguém é desprovido de inteligência, logo, tem contribuições a fazer às instituições e à sociedade. Atribuição de inteligência, diz a autora, que se esquece de nossa história de desigualdade eco­nômica, social e política, e, por esse esquecimento, cria uma armadilha que vai excluir os mesmos, isto é, os que não têm a história, a experiência, a convivência adequadas, desejáveis, sendo estes a maior parte dos brasileiros. Construção de um brasileiro genérico, o da imaginação, da afetividade, da irracionalidade, do misticismo etc. Ou, então, constrói-se uma história em que se pensa a alfabetização como parte do processo histórico de escolarização para compreender as representações que se fazem da alfabetização, em que o discurso pedagógico vai-se configurando na constituição de posições sujeitos e sentidos. No desenrolar desses acontecimentos podemos apreciar, de um lado, o culto da persona­ lidade, de outro, a frouxidão das instituições. Ligando os pontos desta ampla reflexão, afirma Mariza Vieira da Silva que a escrita chegou com as caravelas para ficar, e faz parte de nossas raízes como a oralidade, que não se perdeu, mas se transformou. Nem por isso é sem efeito o imaginário da família patriarcal da sociedade brasileira. Trabalhar, nesses discursos, a separação-dispersão necessária do conhecimento, para compreender a relação linguagem/educação/sociedade, é uma tarefa a ser feita continuamente, sem trégua. Seja em autores como os que falam especificamente da história, da socie­ dade, da educação, seja nos que entram em considerações sobre as teorias, políticas e programas que tratam da alfabe15

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tização, iludindo-se com a transparência da linguagem, a oni­po­tência do sujeito em relação à língua, à literalidade e o apagamento da materialidade da linguagem e, eu diria, da história. E as análises e reflexões da autora nos levam à inevitável questão de como compreender os outros sentidos que os sujeitos teimam em dar, saindo do lugar do padre, do coloniza­ dor. Daqueles que, seja na política, na religião, ou na prática do conhecimento, reduzem vidas e cabeças para que caibam, diríamos, no tamanho exato do social já posto; nessa equação em que educar é escolarizar, na medida em que se reconhece uma ideologia jurídica da língua. E escolarizar é ler, escrever e contar em língua nacional. Como pensar, então, a escrita como inserção do sujeito do novo mundo na história, enquanto autor. E ela continua a nos contar esta história da alfabetização: como se escreve a história do homem civilizado brasileiro, como sempre, na contradição entre a palavra funcionando como signo saturado e o conhecimento a ser escrito como em um papel em branco; na relação ambígua e contraditória da aliança-traição, trazida pela coloni­ zação, vêm as letras, mas também a perda da altivez de pertencer a um povo que não se submete. Vai assim aparecendo um novo indivíduo feito de divisão, ambiguidade, contradição, que não pode mais estar no lugar do índio e que ainda não está no lugar do branco, no jogo de memória/esquecimento. Há, dada a colonização, na constituição do sujeito que se produz nessa história que a autora analisa, uma inscrição da violência, e pela violência da inscrição a constituição de

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lugares de significação contraditórios, dadas as práticas sociais e culturais desse sujeito. Desse modo, no desenvolvimento de seu trabalho, Mariza mostra que se a alfabetização, como prática linguística, social e política, e o alfabetizado-letrado ganharam visibi­ lidade como herdeiros, instituindo-se outras condições de pro­dução, também há outros efeitos de sentidos que se produziram para a relação alfabetização-analfabetismo e para a compreensão da assimetria de que nos fala no início de seu livro. Essa assimetria pode, assim, ser compreendida não apenas como uma condição negativa do próprio analfabeto que afeta, sempre, a ação de quem alfabetiza, mas também como uma denegação do alfabetizado no interior de sua prática discursiva de letrado: um sujeito que se apropria da escrita e do sentido que nela e com ela se produz, e também das re­ lações sociais que se constroem. A forma de assujeitamento é histórica e se dá diferen­ temente em épocas distintas, mas também em mundos distintos. E isso também se dá com a forma-sujeito do sujeito-letrado no Brasil, que adquire assim sua especificidade no seu espaço de constituição. Nesse novo espaço de linguagem é que o sujeito deverá se constituir como autor, como senhor de um dizer sempre-já-dividido, estabelecendo uma relação una, coerente e coe­sa com a língua e a história, e construindo um lugar de signi­ficação específico, com direito à interpretação, para sig­ nificar o mundo e a si próprio. Abrem-se, segundo Mariza, linhas de investigação para se formular uma teoria discur­ siva da leitura e da escrita, enquanto inscrição do sujeito17

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-falante na memória histórica do dizer escrito, tendo em vista as noções de filiação discursiva e de autoria, em sua dimensão histórica. A autora conclui levantando questões sobre essa história e deixando uma interrogação sobre o fato de que, se ser alfabetizado, nessa nossa história, é assim uma função de autoria, construir um lugar de interpretação, no Brasil, isso sempre se deu e se dá para poucos. Desloca-se, assim, a questão da oposição entre alfabetização mecânica ou alfabetização crítica (como inerente à escrita) para as possibilidades de ser ou não autor, nessa história que ainda e sempre demanda sentidos. Este livro, ao contar parte importante dessa história, é um marco na reflexão sobre a escrita, sobre a história da alfabetização, sobre a compreensão do sujeito brasileiro. Campinas, 10 de dezembro de 2015

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APRESENTAÇÃO

E é inútil procurar encurtar caminho e querer começar, já sabendo que a voz diz pouco, já come­çando por ser despessoal. Pois existe a trajetória, e a trajetória somos nós mesmos. Em matéria de viver, nunca se pode chegar antes. Clarice Lispector

Este livro é o resultado de uma trajetória de caminhos e des­ caminhos de fascínio pela linguagem, pelo que nela não al­ canço – daí o amor antigo por Clarice –, e de compro­misso social e político com a escola pública, laica e gratuita brasi­ leira, o que tem me levado na busca de uma compreensão do modo como se dá a relação entre língua, sujeito e história no discurso pedagógico e seus efeitos, em termos de produção de sentidos e de posições de sujeito. Na construção de um itinerário de trabalho, um marco importante foi a defesa, em 1998, de uma tese de doutorado sobre a história da alfabeti­ zação no Brasil, sob a orientação da professora doutora Eni Puccinelli Orlandi, no Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, que ora se trans­ forma nesta publicação. O trabalho de edição significou voltar, após tantos anos, às questões de diferentes ordens que estiveram na origem dessa tese, retraçar caminhos, rememorar, o que não se mos­ trou uma experiência simples, não deixando, contudo, de causar contentamento ao ler os arquivos construídos e ana­ lisados, e ao pensar que o escrito, como sempre, fizera já um 19

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percurso independente do meu, pelas possibilidades de produzir sentidos outros. Além disso, o próprio tema ainda guarda atualidade, uma vez que a universalização de uma educação básica de qualidade para toda a população brasileira, em que a alfabetização é o marco de passagem da entrada em uma sociedade letrada, no que ela possa ter de coer­ção e de libertação, de norma e de poesia, está ainda por vir em nosso país. Para tanto, fiz uma revisão bibliográfica sobre os tópicos ali trabalhados, sem pretender, contudo, escrever uma outra tese ou invalidar o que havia sido formulado. Essa revisão deu-se, de modo mais efetivo, em 2009, depois de alguns anos de trabalho já realizado sobre o processo de escolarização do português como língua nacional, por ocasião de um pós-doutorado realizado na École Normale Supérieure Lettres et Sciences Humaines (ENS-LSH), em Lyon, como integrante do projeto História das Ideias Linguísticas (HIL), resultante de uma parceria entre a Universidade Esta­dual de Campinas, a Universidade de Paris 7 e a ENS-LSH. Essa retomada, visando a esta edição, não implicou modificações substanciais. Consistiu em rever a estrutura do texto e deter-me em algumas articulações teóricas, não para justificar interpretações, nem para atualizá-las, mas para trabalhá-las um pouco mais, às vezes, considerando a experiência que consegui acumular em um período durante o qual a Análise de Discurso, fundada por Michel Pêcheux, crivo teórico utilizado para as análises desenvolvidas, consolidou-se no Brasil. Decidi, ainda, apresentar o resultado da revisão bibliográfica, principalmente na forma de notas e de acréscimos à bibliografia inicial. 20

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