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universidade estadual de campinas Reitor José Tadeu Jorge Coordenador Geral da Universidade Alvaro Penteado Crósta
Conselho Editorial Presidente Eduardo Guimarães Elinton Adami Chaim – Esdras Rodrigues Silva Guita Grin Debert – Julio Cesar Hadler Neto Luiz Francisco Dias – Marco Aurélio Cremasco Ricardo Antunes – Sedi Hirano Unicamp Ano 50 Comissão Editorial Itala M. Loffredo D’Ottaviano Eduardo Guimarães
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Márcia Abreu (org.)
rom a nc e s e m movi me nto a circulação transatlântica dos impressos (1789-1914)
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Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990. Em vigor no Brasil a partir de 2009.
ficha catalográfica elaborada pelo sistema de bibliotecas da unicamp diretoria de tratamento da informação
Bibliotecária: Maria Lúcia Nery Dutra de Castro – CRB-8a / 1724 R661
Romances em movimento: a circulação transatlântica dos impressos (1789-1914) / Márcia Abreu, organizadora. – Campinas, sp: Editora da Unicamp, 2016. 1. Ficção – História – Séc. XIX. 2. Literatura – História. 3. Livros – História. 4. Tradução e interpretação. I. Abreu, Márcia. II. Título
cdd - 808.3
e-isbn 978-85-268-1447-9
- 809 - 002.9 - 418.02
Copyright © Márcia Abreu Copyright © 2016 by Editora da Unicamp Esta publicação conta com o apoio da Fapesp (processo n. 2016/13794-3) As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade do(s) autor(es) e não necessariamente refletem a visão da Fapesp.
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agradecimentos
Os estudos apresentados neste livro foram desenvolvidos no interior do projeto de cooperação internacional “A circulação transatlântica dos impressos – A globalização da cultura no século XIX”. Mais de 40 pesquisa dores de diferentes países trabalharam juntos por cinco anos a fim de esclarecer as conexões culturais mantidas por Inglaterra, França, Portugal e Brasil. Muitos não se ocuparam de romances, mas o diálogo com eles sempre enriqueceu as perspectivas e análises daqueles que estudaram as obras ficcionais e seu papel no estabelecimento e na manutenção dessas conexões. Por isso, gostaríamos de agradecer a Jean-Yves Mollier, que coordenou o grupo junto com Márcia Abreu, assim como aos demais pesquisadores: Adelaide Machado, Ana Cláudia Suriani, Anaïs Fléchet, Andréa Borges Leão, Brigitte Thiérion, Cláudia Poncioni, Daniela Callipo, Daniel Melo, Eliana Dutra, Giselle Venâncio, Graça dos Santos, Isabel Lustosa, Jacqueline Penjon, James Raven, Jean-Claude Yon, João Luís Lisboa, José Santos Alves, Júlio Rodrigues da Silva, Katia Aily Franco de Camargo, Leopoldo Bernucci, Lúcia Granja, Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves, Luiz Carlos Villalta, Mariana da Silva Lima, Marisa Lajolo, Marisa Midori Deaecto, Orna Messer Levin, Roger Chartier, Rogério Monteiro, Sebastien Rozeaux, Tânia de Luca, Tânia Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira, Teresa Payan Martins, Valéria Guimarães e Vanda Anastácio. Gostaríamos de agradecer também aos estudantes de graduação e de pós-graduação que trabalharam conosco, incansavelmente, ao longo de to-
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dos estes anos. Eles foram numerosos demais para ser nomeados indivi dualmente aqui, mas todos podem ter certeza de que seus nomes estão vivamente marcados em nossas lembranças. Este trabalho não teria sido possível sem os vários apoios financeiros que recebeu ao longo destes anos. Gostaríamos de agradecer o generoso financiamento concedido pela Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), assim como o auxílio recebido do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), da Universidade Estadual Paulista (Unesp), da Universidade de Lisboa (UL), da Universidade Nova de Lisboa (Nova), da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade de Versailles Saint-Quentin-en-Yvelines (UVSQ). Significativo apoio foi dado também por numerosos arquivos e bibliotecas que são mencionados nos capítulos convenientes.
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sumário
nota introdutória: circulação transatlântica dos impressos – a globalização da cultura no século xix – Márcia Abreu e Jean-Yves Mollier.. ............................................................................................... 9 apresentação: a ficção como elemento de conexão cultural – Márcia Abreu...................................................................................................... 15
parte 1 – trajetórias 1. narrativas que viajam: os romances em português editados em paris – Paulo Motta Oliveira.. ...................................................... 35 2. coleções de romances franceses na rota do atlântico – Valéria Augusti................................................................................................... 61 3. ficção britânica no extremo sul do brasil: o acervo oitocentista da biblioteca rio-grandense – Maria Eulália Ramicelli............................... 93 4. romances brasileiros em portugal: a conexão das casas chardron e garnier – Juliana Maia de Queiroz................................................................ 121
parte 2 – traduções 5. circuitos e travessias: o caso de a família elliot – Sandra Guardini Vasconcelos.............................................................................. 135
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6. romance brasileiro em tradução alemã: o guarany e innocencia, produto nacional e best-seller no longo século xix – Wiebke Röben de Alencar Xavier.. ....................................................................... 159 7. um brasil para francês ler: das traduções de o guarany e de innocencia ao exotismo dos romances de adrien delpech – Ilana Heineberg. . ................................................................................................. 189
parte 3 – romances de sucesso 8. romances-folhetins sem fronteiras: o caso de alexandre dumas – Maria Lúcia Dias Mendes................................................ 223 9. o gosto literário pelos romances no gabinete português de leitura do rio de janeiro – Alexandro Henrique Paixão.......................... 255 10. o romance policial e a literatura brasileira: recepção, significados e apropriações – Ana Gomes Porto.......................................... 279 11. circulação e permanência da literatura naturalista francesa no brasil (1850-1914) – Pedro Paulo Garcia Ferreira Catharina........................ 307 12. biblioteca do solteirão: o livro pornográfico nas conexões brasil-europa no final do século xix – Leonardo Mendes.......................... 337
parte 4 – leituras 13. uma comunidade letrada transnacional: reação aos romances na europa e no brasil – Márcia Abreu................................................................. 365 14. avaliação da literatura em finais do século xix: mudança e permanência nos discursos críticos – Leandro Thomaz de Almeida.......... 395 sobre os autores............................................................................................. 421 índice remissivo.. ............................................................................................. 425
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nota introdutória
circulação transatlântica dos impressos – a globalização da cultura no século xix Márcia Abreu e Jean-Yves Mollier
Engana-se quem pensa que a globalização é uma novidade do nosso tempo. Frederick Cooper, um ferrenho crítico da globalização de cunho neoliberal em curso no século XX, mostra claramente a existência de conexões planetárias há centenas de anos, desde, por exemplo, o Império Mongol, que, no século XIV, se estendia da China à Europa Central.1 As viagens marítimas, realizadas a partir do século XVI, ampliaram ainda mais as terras em con tato, interligando partes da Ásia, da América, da África e da Europa, como mostra Serge Gruzinski.2 Os historiadores Kevin H. O’Rourke e Jeffrey G. Williamson acreditam que o grande salto para a constituição de um mer cado integrado de bens, trabalho e capital ocorreu na segunda metade do século XIX, e avaliam que os mercados mundiais estavam quase tão bem interligados na década de 1890 como na de 1990.3 Esse crescente movi mento de integração planetária foi dramaticamente interrompido com as duas grandes guerras mundiais e ainda mais abalado com a Guerra Fria. Por isso, o “longo século XIX”, na feliz expressão de Hobsbawm,4 pode ser mais bem compreendido se forem consideradas as intensas trocas entre 1
Cooper, 2001, pp. 189-213. Gruzinsky, 2004. Idem, 2012. 3 Cooper, 2001, p. 194. 4 O “longo século XIX” compreende o período entre a década de 1780 (marcada pela Revolução Industrial e pela Revolução Francesa) e 1914 (com o início da Primeira Guerra Mundial). Ver Hobsbawm, 1962, 1975, 1987. 2
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diferentes partes do globo. Elas foram favorecidas por transformações técnicas como a ampliação da rede ferroviária, o desenvolvimento dos transportes marítimos, a criação da telegrafia elétrica, a introdução da prensa a vapor e a mecanização da fabricação de papel. Foram também beneficiadas pela significativa ampliação no número de leitores, devido ao crescimento demográfico, ao aumento das concentrações urbanas e à expansão dos sistemas educacionais. Editores, livreiros e empresários teatrais souberam tirar partido dessa situação, procurando alargar o mercado de compradores de livros, jornais e revistas, bem como atingir espectadores em regiões muito distantes de seus locais de origem. Souberam, também, buscar as melhores condições tipográficas e econômicas para impressão de obras, descentralizando, de maneira notável, os polos da composição dos escritos, da impressão dos textos e da venda dos livros. Essas conexões eram também favorecidas pelo intercurso de letrados, que mantinham intensas trocas culturais, seja pessoalmente, seja por meio de seus escritos. Trata-se de uma época particularmente interessante, pois, ao mesmo tempo em que se intensificavam as articulações comerciais e culturais, ocorriam processos de constituição de Estados nacionais independentes, com a afirmação das peculiaridades locais como alicerce da soberania política. Entretanto, esses movimentos não se fizeram como fenômenos restri tos ao interior das fronteiras de cada país, mas como parte de um conjunto de trocas e contrastes (políticos, econômicos, culturais e sociais) com outras nacionalidades. Como ressaltam Michel Espagne e Michael Werner, “a própria definição do que é uma literatura nacional é praticamente impossível sem o recurso continuado a elementos de culturas estrangeiras”.5 Ou, como lembra Anne-Marie Thiesse, “nada pode ser mais internacional do que a formação das identidades nacionais”. 6 O conceito de circulação afeta diretamente a ideia de fechamento sobre um território, especialmente quando se consideram os territórios nacio5
Espagne & Werner, 1994, p. 7. Thiesse, 2001.
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nais. As pesquisas aqui reunidas deixaram claro que as fronteiras nacionais não são um empecilho para o trânsito de livros, revistas, espetáculos e impressos em geral. Revelam também que as noções de centro e periferia são pouco apropriadas. Se a França é reconhecida por todos como lugar de produção das obras mais valorizadas e apreciadas, como ponto de passagem importante para a produção de traduções, como lugar relevante para impressão de livros, são evidentes também os esforços para tornar produções de fora conhecidas e apreciadas na França, seja por iniciativa governamental, seja por decisões editoriais e comerciais. Mas, quando se consideram as relações entre outros lugares que não a França, como, por exemplo, Portugal e Brasil, vê-se que havia outros centros e eles nem sempre eram fixos. A antiga colônia destaca-se em diversos aspectos, como na rapidez na produção de traduções de romances folhetinescos ou na quantidade de leitores. Assim, não há um centro fixo nem uma periferia absoluta, como um fim de linha da cadeia de transmissão da cultura. Há múltiplos centros e eles não ocupam pontos fixos. Por isso, o conceito de circulação é tão apropriado, pois ele enfatiza a ideia de movimento e não estabelece lugares fixos de partida e de chegada. Essa complexa situação é descrita e analisada nos três volumes que compõem a coleção “Circulação transatlântica dos impressos – A globalização da cultura no século XIX”, fruto de trabalhos desenvolvidos no projeto homônimo por uma equipe internacional de pesquisadores.7 As investi gações observam os atores das trocas entre os países (livreiros, editores,
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O projeto, desenvolvido por pesquisadores de Brasil, França, Portugal e Inglaterra, teve início em 2010 e contou com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), da Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), da Universi dade Estadual Paulista (Unesp), da Universidade de Lisboa (UL), da Universidade Nova de Lisboa (Nova), da Universidade de São Paulo (USP), da Universidade de Versailles Saint-Quentin-en-Yvelines (UVSQ). Há mais informações sobre o projeto no site http:// www.circulacaodosimpressos.iel.unicamp.br/ e no diretório dos Grupos de Pesquisa do CNPq.
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diretores de revistas, escritores, tradutores, críticos, trupes teatrais), assim como as instituições e os espaços onde elas ocorriam (bibliotecas, gabinetes de leitura, redações de jornais e revistas), dando especial atenção à circulação de letrados, bem como de romances, periódicos e espetáculos teatrais. Os 37 trabalhos reunidos na coleção analisam o processo de difusão das culturas francesa, portuguesa, brasileira e inglesa em escala transatlântica, num momento de supremacia econômica inglesa e de nítida preponderância cultural francesa; explicam a ação dos diversos mediadores que tornaram as trocas culturais possíveis e refletem sobre a maneira pela qual a constituição da nacionalidade brasileira se processou em interação com impressos, editores e livreiros estrangeiros. Eles esclarecem os múltiplos circuitos percorridos pelos impressos e medem a velocidade com que publicações, pessoas e ideias circulavam, revelando a existência de importante sincronia no interesse por determinadas obras em distintos pontos da Europa e do Brasil. Embora a cultura letrada não estivesse igualitariamente distribuída, tendo em vista a proeminência de Inglaterra e França na produção e na difusão de livros, a perspectiva adotada nessa coleção não coloca esses países como baliza de toda a produção cultural ou como referência para avaliação e análise daquilo que ocorria no restante do mundo. Ao contrário, presta-se atenção, por exemplo, nos esforços de divulgação da cultura brasileira no exterior, ao mesmo tempo em que se observam as diligências feitas por escritores, editores e empresários europeus para difundir sua produção para públicos cada vez mais amplos, a fim de consolidar sua relevância e ampliar seus lucros. Observam-se, assim, a permeabilidade entre as culturas e a interdependência entre os países. Desse modo, perdem relevância as ideias de imitação e de atraso cultural, que resultam da supervalorização de algumas das nações mais desenvolvidas da Europa e de uma falta de atenção aos modos específicos de produção da cultura letrada nas diferentes partes do globo, seus fluxos e conexões, que são muito mais intensos do que normalmente se supõe. Evitando tanto o eurocentrismo quanto o exotismo, enfatiza-se a ideia de circulação,
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nota introdutória
pois o que interessa é observar o movimento entre Europa e Brasil e não o fluxo de ideias e mercadorias da Europa para o Brasil. Ou seja, interessa pensar mais em termos de conexão do que de dependência cultural, mais em termos de apropriação do que de influência. Propõe-se, assim, uma compreensão mais acurada da cultura oitocentista, explicada em suas complexas relações transnacionais.
bibliografia COOPER, Frederick. “What is the concept of globalization good for? An African historian’s perspective”. African Affairs. Oxford, 100/399, 2001, pp. 189-213. ESPAGNE, Michel & WERNER, Michael. “Avant-propos”. In: ESPAGNE, Michel & WERNER, Michael. Philologiques III. Qu’est-ce qu’une littérature nationale? Approches pour une théorie interculturelle du champ littéraire. Paris, Éditions de la Maison des Sciences de l’Homme, 1994. GRUZINSKY, Serge. Les quatres parties du monde – Histoire d’une mondialisation. Paris, Éditions de La Martinière, 2004. . L’Aigle et le dragon – Démesure européenne et mondialisation au XVIe siècle. Paris, Fayard, 2012. HobsbawM, Eric. The age of revolution, 1789-1848. London/New York, Weidenfeld & Nicolson/World Publishing, 1962. . The age of Capital, 1848-1875. London, Weidenfeld & Nicolson, 1975. . The age of Empire, 1875-1914. London, Weidenfeld & Nicolson, 1987. THIESSE, Anne-Marie. La création des identités nationales – Europe XVIIIe – XIXe siècle. Paris, Éditons du Seuil, 2001.
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a ficção como elemento de conexão cultural Márcia Abreu
Os estudos aqui reunidos pretendem compreender a ficção oitocentista, questionando três pilares das histórias literárias convencionais: o fechamento sobre um território nacional, a concentração sobre a produção dos textos e a busca de explicações para a criação literária em grandes questões político-econômicas.1 Desde o século XIX, letrados de diversas partes do mundo empreenderam esforços para escrever histórias literárias como uma forma de legitimar a existência das novas nações que surgiam tanto nas Américas quanto na Europa. Para fazê-lo, construíram uma narrativa cen1
Quando me refiro à história da literatura convencional ou tradicional, penso em obras historiográficas que começaram a ser preparadas no início do século XIX (e que ganharam impulso ao longo do XX) que associam parte da produção literária escrita em dada língua a uma nação, fazendo retroceder os conceitos de nação e de literatura (de maneira anacrônica) ao mais antigo texto poético ou ficcional escrito nessa língua. No caso da Inglaterra, em geral, principia-se com “Beowulf ”, na França com as “chanson de geste”, em Portugal com os “cancioneiros” medievais. No Brasil, à questão linguística se sobrepõe o fato histórico da descoberta, o que faz com que muitas histórias literárias principiem com a “Carta de Caminha”, ainda que não se trate de escrita poética ou ficcional estrito senso. Definido um “marco inicial”, histórias literárias desse tipo apresentam uma seleção de textos, tidos como de elaboração estética superior, organizados por períodos que podem ter por balizas acontecimentos históricos e/ou a publicação de uma obra que marcaria uma virada estética. Em geral, agrupam-se os textos por “escolas literárias”, como Romantismo ou Modernismo, apresentando o que seriam suas “características principais”. Esse tipo de produção é ainda muito difundido e bastante utilizado como material de formação em cursos de letras.
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trada apenas em escritos produzidos em língua nacional, de preferência por nativos do país, criando a falsa ideia de que a vida literária de determinada nação seria autônoma e se sustentaria sem contatos externos, com exceção apenas das referências estéticas internacionais, apresentadas como modelos para as produções locais. Além de se fechar sobre um território, a historiografia literária convencional concentra-se sobre a produção dos textos, pensados como entidades imateriais, como puro artefato linguístico, sem imaginar que a maneira como eles encarnam-se em livros e difundem-se entre os leitores pode ter alguma importância para a compreensão da vida cultural. O interesse do público, sobretudo quando ele se apresenta na forma de massa de leitores de obras de sucesso, é ignorado ou repudiado, uma vez que a produção pela qual se interessa a historiografia tradicional é a chamada Alta Literatura ou Literatura Canônica, para a qual a quantidade de leitores atingidos é indiferente. Portanto, não se busca compreender as obras considerando as condições materiais em que os livros foram produzidos e circularam na sociedade, nem tampouco se consideram as reações dos leitores (sejam eles especialistas ou não). Extraem-se algumas explicações sobre a produção literária da trajetória dos autores, entendidos como cria dores singulares, comprometidos apenas com a criação estética e pouco preocupados com a reação dos leitores, com a concorrência com outros escritores ou com questões financeiras do mundo editorial. Recorre-se também às grandes questões políticas e econômicas (como a ocorrência de revoluções ou o modo de produção de bens e mercadorias), interpretando os textos como fruto da situação sociopolítico-econômica em que viveu o autor. Finalmente, na perspectiva tradicional, é possível escrever uma história da literatura baseada em fontes secundárias, consultando livros já publicados para obter informações sobre o contexto, para conhecer a vida do autor e para ler suas obras (em qualquer edição, saliente-se). Neste livro, assumimos uma diferente perspectiva. Alargamos o espaço considerado para além da nação, demos importância à leitura e aos leitores (entre os quais se destacam os letrados coetâneos) e prestamos atenção às condições materiais de produção e circulação dos impressos. Além disso,
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contamos especialmente com fontes primárias (tais como anúncios de publicações à venda; correspondência; pareceres de censura; catálogos de editoras, livrarias e gabinetes de leitura; registros de leitura e textos críticos coetâneos), a fim de saber quais eram as preferências dos leitores em certo momento; que relação mantinham os escritores com os livreiros e editores, com os críticos, com o público e com seus colegas; quais eram as obras à disposição, como eram editadas e em que suporte circulavam; quais eram as concepções sobre a produção ficcional no período e como as narrativas eram avaliadas; que lugar ocupavam os romances na vida social e que re lação mantinham com o mundo das mercadorias. Essa mudança de paradigmas e de fontes provoca alterações significa tivas na história da ficção oitocentista, transformando o conjunto de obras relevantes, a base geográfica e a cronologia, como está evidente nos 14 capítulos aqui apresentados. Por meio deles se constrói uma história transnacional em que editores e livreiros, gabinetes de leitura e bibliotecas, escritores de sucesso e autores canônicos são igualmente importantes e na qual o tempo não flui sempre para frente, apagando o que ficou para trás. Na primeira parte do livro – “Trajetórias” –, são examinadas as co nexões entre o mercado editorial brasileiro e o europeu, com destaque para o francês. O trabalho de Paulo Motta Oliveira, intitulado “Narrativas que viajam: Os romances em português editados em Paris”, apresenta a atuação de editores como Pillet Aîné, T. Barrois, J. Smith, J. P. Aillaud, Baeulé et Jubin, que se ocuparam com a publicação, em Paris, de livros em português, vendidos tanto na própria cidade como exportados para Portugal e Brasil. A abundância de editores, a elevada quantidade de títulos publicados e sua constância ao longo do século permitem acreditar que a edição em língua portu guesa não era mau negócio. A pesquisa deixa evidente que o bem-sucedido mercado livreiro francês não pode ser explicado apenas pelo fato de os franceses serem um povo culto e ávido devorador de livros, mas também por sua capacidade de espalhar sua produção livresca pelo mundo.
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O mesmo ocorre com editores e livreiros portugueses que tinham os leitores brasileiros como parte importante de seu público. Isso fica evidente no capítulo de Valéria Augusti, “Coleções de romances franceses na rota do Atlântico”, que apresenta as negociações travadas entre a diretoria do gabinete de leitura paraense e o livreiro português Antonio Maria Pereira para a definição dos títulos, das formas de pagamento e dos meios de fazer chegar os livros de Lisboa a Belém do Pará. Ainda que a diretoria fizesse negócios com livreiros instalados em locais mais próximos, na própria cidade ou no Rio de Janeiro, a distância não parecia ser um elemento decisivo para a compra das publicações, já que o Pará estava conectado à Europa por navios de várias nacionalidades, que mantinham rotas regulares e frequentes, ligando o Norte do Brasil a Lisboa, Madeira, Porto, Vigo e Havre, entre ou tras localidades. Assim, a maior parte das narrativas presentes no gabinete foi enviada de Lisboa, muitas vezes depois de ter sido adquirida na França, onde foi escrita e impressa boa parte dos romances que enchiam as estantes da biblioteca. Da mesma forma, no extremo sul do país, um gabinete de leitura contava com centenas de obras europeias em seu acervo, como mostra o capítulo de Maria Eulália Ramicelli, intitulado “Ficção britânica no extremo sul do Brasil: O acervo oitocentista da Biblioteca Rio-Grandense”. Nesse caso, além das transações comerciais com livreiros do Brasil e do exterior, des taca-se a ação de indivíduos que, por razões diversas, se esforçaram para abastecer as estantes da instituição com romances ingleses. Na segunda metade do século XIX, mais de duas centenas de títulos originalmente compos tos em inglês estavam disponíveis para leitura e empréstimo, seja em seu próprio idioma, seja em traduções para português, francês, espanhol e alemão. Esses livros haviam sido impressos em Londres, Edimburgo, Glasgow, Lisboa, Porto, Nova York, Boston, Paris, Rio de Janeiro, Rio Grande, Madri, Sevilha, Leipzig, Berlim e Bruxelas, deixando evidentes as conexões transnacionais mesmo quando se trata de observar apenas a ficção britânica. Não se pense, entretanto, que o fluxo de publicações seguia um único trajeto, partindo da Europa em direção ao Brasil. O caso da venda de ro-
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mances brasileiros em Portugal, estudado por Juliana Maia de Queiroz no capítulo “Romances brasileiros em Portugal: A conexão das casas Chardron e Garnier”, mostra que havia interesse por livros brasileiros na Europa. Também nesse caso, a atuação de livreiros e editores franceses é central, já que a maior parte dos romances brasileiros era exportada para Portugal por meio do francês Baptiste Louis Garnier, que possuía uma livraria no Rio de Janeiro, e que mantinha parceria comercial com o também francês Ernest Chardron, instalado no Porto e em Braga com uma loja sugestivamente denominada “Livraria Internacional”. Os romances não viajavam do Brasil para a Europa apenas em língua portuguesa. Desde o início do século XIX, várias obras brasileiras foram vertidas para o francês, o inglês, o italiano e o alemão, atingindo um pú blico amplo e diversificado, como se vê na segunda parte deste livro – “Tra duções” –, em que são estudadas as traduções de textos brasileiros para o francês e o alemão, bem como se examina a mediação francesa na difusão de romances ingleses. O exemplo da tradução do romance Persuasion, de Jane Austen, analisado por Sandra Guardini Vasconcelos no capítulo “Circuitos e travessias: O caso de A Família Elliot”, é interessante por permitir observar um pro cesso triangular de produção de traduções, que fazia com que muitos dos romances originalmente escritos em inglês ganhassem versão em português a partir da tradução francesa. As fundas modificações inseridas no texto francês transformaram a narrativa de Austen em algo bastante diverso do original, seja pela supressão da ironia, seja pelo acréscimo de sentimentalismo e moralidade. As transformações se ampliaram quando a versão francesa foi traduzida para o português com a mesma liberdade. Assim, quando se observa a presença de um mesmo título em diferentes lugares, é preciso olhar atentamente para o texto, pois, muitas vezes, não se trata da mesma obra, tendo em vista as modificações introduzidas. Esse cuidado não é necessário apenas quando se examinam traduções; já as intervenções dos editores (pela inserção de notas, comentários introdutórios e ilustrações, ou pela exclusão e modificação de passagens) podiam produzir obras
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bastante diversas, tornando igualmente difícil pensar que os leitores dos textos em língua original lessem sempre uma mesma obra. Importantes modificações também eram operadas nos textos quando eles viajavam em sentido inverso, ou seja, do Brasil para a Europa. A Alemanha se interessou por romances de diversos escritores brasi leiros, entre os quais se destacam José de Alencar e Visconde de Taunay, como se vê no capítulo “Romance brasileiro em tradução alemã: O Guarany e Innocencia, produto nacional e best-seller no longo século XIX”, em que Wiebke Röben de Alencar Xavier apresenta as diversas traduções e as múltiplas edições de dois romances brasileiros oitocentistas. O capítulo mostra que os esforços realizados pela elite política e cultural brasileira para constituir e difundir o sentimento nacional brasileiro se fizeram não apenas internamente ao país, mas em articulação com letrados de diversas partes da Europa, com livreiros e editores internacionais, e com a difusão de romances brasileiros em língua estrangeira. Basta lembrar que o imperador do Brasil, D. Pedro II, financiou, no início da década de 1860, a preparação de uma história da literatura brasileira, publicada em Berlim e escrita em francês, por um letrado austríaco: Le Brésil Littéraire. Histoire de la Littérature brésilienne suivie d’un choix de morceaux tirés des meilleurs auteurs brésiliens, de Ferdinand Wolf. As conexões entre diferentes partes do mundo são evidenciadas também na recepção que as traduções de O Guarany para o alemão tiveram, já que o texto foi imediatamente inserido pelos letrados germânicos em um diálogo intercultural que incluía obras europeias e norte-americanas sobre os indígenas, como as escritas por Rousseau ou por Fenimore Cooper. Já as versões de Innocencia parecem ter se tornado par ticularmente atraentes para os leitores de alemão no contexto dos movimentos migratórios que conduziram grandes contingentes de germânicos para o Brasil, no final do século XIX, o que é também forte evidência das conexões mundiais. A França também se interessou por esses romances brasileiros, como se vê no capítulo “Um Brasil para francês ler: Das traduções de O Guarany e de Innocencia ao exotismo dos romances de Adrien Delpech”, em que Ilana
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