Um espaço para ciência

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universidade estadual de campinas Reitor José Tadeu Jorge Coordenador Geral da Universidade Alvaro Penteado Crósta

Conselho Editorial Presidente Eduardo Guimarães Esdras Rodrigues Silva – Guita Grin Debert João Luiz de Carvalho Pinto e Silva – Luiz Carlos Dias Luiz Francisco Dias – Marco Aurélio Cremasco Ricardo Antunes – Sedi Hirano

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Simon Schwartzman

um espaço para a ciência a formação da comunidade científica no brasil

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Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990. Em vigor no Brasil a partir de 2009.

ficha catalográfica elaborada pelo sistema de bibliotecas da unicamp diretoria de tratamento da informação Sch95e

S­chwartzman, Simon, 1939Um espaço para a ciência: A formação da comunidade científica no Brasil / Simon S­chwartzman. – 4. ed. – Cam­pinas, sp: Editora da Unicamp, 2015.

1. Ciência – Brasil – História. 2. Ciência e tecnologia – Aspectos sociais. 3. Ensino superior – Brasil. I. Título. cdd 509.81 301.243 e-isbn 978-85-268-1260-4 378.81

Índices para catálogo sistemático:

1. Ciência – Brasil – História 2. Ciência e tecnologia – Aspectos sociais 3. Ensino superior – Brasil

509.81 301.243 378.81

Copyright © by Simon Schwartzman Copyright © 2015 by Editora da Unicamp 1. ed., 1979, Companhia Editora Nacional 2. ed., 1991, Pennsylvania State University Press

3. ed., 2001, Ministério de Ciência e Tecnologia, Centro de Estudos Estratégicos

Direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19.2.1998. É proibida a reprodução total ou parcial sem autorização, por escrito, dos detentores dos direitos. Printed in Brazil. Foi feito o depósito legal.

Direitos reservados à Editora da Unicamp Rua Caio Graco prado, 50 – Campus Unicamp cep 13083-892 – Campinas – sp – Brasil Tel./Fax: (19) 3521-7718/7728 www.editora.unicamp.br – vendas@editora.unicamp.br


Sumário

Apresentação .............................................................................................................. 9 Prefácio (2001)............................................................................................................. 13 Prefácio à edição inglesa (1991)................................................................ 29 Prefácio à primeira edição (1979)............................................................ 33 Introdução....................................................................................................................... 41 Sísifo .................................................................................................................................. O desenvolvimento de uma comunidade científica........................................................ A busca da ciência.............................................................................................................. Ciência, tecnologia e as profissões................................................................................... Um sumário........................................................................................................................

41 46 52 56 65

primeira parte

os fundamentos 1. A herança do século XVIII........................................................................... 71

Os temas principais............................................................................................................ 76 As novas universidades..................................................................................................... 78 Portugal e a ciência moderna........................................................................................... 83

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A contrarreforma................................................................................................................ A reforma de Pombal......................................................................................................... O Estado, a Igreja e a educação no Brasil ........................................................................ Projetos para uma universidade brasileira......................................................................

87 92 94 99

2. A ciência no Império....................................................................................... 105

Ciência colonial: Os naturalistas....................................................................................... 108 Ciência imperial: O século XIX........................................................................................... 111 A educação superior........................................................................................................... 118 Engenharia e mineração.................................................................................................... 121 Medicina e cirurgia............................................................................................................ 126 A ciência imperial em perspectiva.................................................................................... 131 3. O auge e o declínio da ciência aplicada..................................... 139

Da Velha República à Revolução de 1930........................................................................ 140 A “ilustração brasileira” .................................................................................................... 143 Da astronomia tradicional à matemática moderna....................................................... 148 Da medicina sanitária à pesquisa biomédica.................................................................. 155 A pesquisa geológica e o nacionalismo econômico........................................................ 167 São Paulo assume a liderança.......................................................................................... 175 4. A Revolução de 1930 e as primeiras universidades....... 187

A “Educação Nova” e a Igreja Católica.............................................................................. 187 À procura de alternativas.................................................................................................. 192 A Reforma Francisco Campos............................................................................................ 199 Um projeto liberal: A Universidade do Distrito Federal ................................................. 205 Um modelo a ser seguido: A Universidade do Brasil ...................................................... 211 Uma nova elite para uma nova nação: A Universidade de São Paulo.......................... 217 5. As raízes das tradições científicas ................................................... 233

Da agronomia à genética.................................................................................................. 233 Partindo de Manguinhos: Os novos institutos de pesquisa biológica........................... 239 Química: Limites e possibilidades do modelo alemão ................................................... 245

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Gleb Wataghin e a física dos raios cósmicos.................................................................... 254 O esforço de guerra............................................................................................................ 259 Desenvolvimentos do pós-guerra..................................................................................... 262 Bernhard Gross e a física de materiais............................................................................. 264 segunda parte

crescimento 6. A profissionalização da ciência........................................................... 271

Os pioneiros........................................................................................................................ 272 Segunda geração: Inícios da profissionalização.............................................................. 278 Segunda geração: As ciências exatas............................................................................... 282 Cientistas modernos: A terceira geração.......................................................................... 286 Fontes de apoio financeiro................................................................................................ 291 A Fundação Rockefeller no Brasil...................................................................................... 296 Centralização administrativa e a pesquisa científica ..................................................... 303 7. Modernização do pós-guerra............................................................... 309

Cientistas como intelligentsia.......................................................................................... 312 Energia nuclear e o Conselho Nacional de Pesquisas...................................................... 315 As novas universidades de elite........................................................................................ 318 Expansão da educação superior....................................................................................... 329 8. O grande salto à frente................................................................................. 333

Ciência e tecnologia para o desenvolvimento ................................................................ 333 A reforma de 1968 da educação superior........................................................................ 338 Os novos programas de pós-graduação........................................................................... 342 Instituições de alta tecnologia.......................................................................................... 346 Big science e alta tecnologia............................................................................................ 357

Epílogo................................................................................................................................ 365 Pujança e decadência........................................................................................................ 365 Política: Do governo militar ao civil................................................................................. 368 Educação superior de massas .......................................................................................... 372

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Tecnologia e economia...................................................................................................... 377 O demônio........................................................................................................................... 380

Referências bibliográficas............................................................................... 383 Apêndice........................................................................................................................... 399 Lista de entrevistas ........................................................................................................... 399 Outras entrevistas.............................................................................................................. 404

Índice onomástico................................................................................................... 405

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Apresentação

Esta edição de Um espaço para a ciência se baseia na tradução para o português, publicada em 2001 pelo Ministério de Ciência e Tecnologia, de The Space for Science – The Development of the Scientific Community in Brazil, editada em 1991 pela Pennsylvania State University Press, que consistiu em uma revisão de Formação da comunidade científica no Brasil, publicada em 1979 pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e pela Companhia Editora Nacional. Esta edição inclui o Prefácio à primeira edição, de autoria de José Pelúcio Ferreira, recupera o texto original em português das entrevistas e citações, além de várias correções e ajustes de redação. Entre 2001 e 2015, a ciência brasileira cresceu bastante. O número de artigos publicados por autores brasileiros em revistas científicas indexadas, que era próximo de 1.500 em 1980, havia chegado a 31 mil em 2009, pelos dados do Institute of Scientific Information, e a 53 mil em 2012, pela base de dados Scopus, correspondente a 2,5% da produção científica internacional1. Uma análise dos dados de publicações dos grupos de pesquisa brasileiros identificou, para 1

Dados do Ministério de Ciência e Tecnologia, http://www.mct.gov.br/index.php/ content/view/8499/Numero_de_artigos_brasileiros_da_America_Latina_e_do_ mundo_publicados_em_periodicos_cientificos_indexados_pela_ThomsonISI_e_ Scopus.html, acessados em janeiro de 2015.

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2010, quase 730 mil publicações de todos os tipos, das quais 73,3%

originárias de São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Minas Gerais, sendo o estado de São Paulo, sozinho, responsável por 33,5% desse total. O número de pesquisadores era de 147 mil2. O número de estudantes matriculados no ensino superior chegou a 7,3 milhões em 2013 em cursos de graduação, a 113 mil em cursos de mestrado e a 88 mil em cursos de doutorado, com cerca de 15 mil doutores sendo graduados anualmente. O número de posições docentes de nível superior era de 383 mil, dos quais 125 mil com doutorado. O volume de recursos públicos investidos em ciência e tecnologia chegou a 1,74% do PIB em 2012, comparado com 1,34% em 20003. Esses dados colocam o sistema brasileiro de ciência e tecnologia como o maior da América Latina e o terceiro entre os países em desenvolvimento, depois da China e da Índia. Uma análise mais detalhada, no entanto, mostra uma situação bem menos rósea: o impacto internacional dos artigos científicos publicados por brasileiros é baixo, a grande maioria dos estudantes de nível superior está em cursos públicos ou privados de má qualidade, e o número de patentes registradas por brasileiros é extremamente baixo e não tem aumentado4. Apesar de exceções significativas, o sistema de ciência e tecnologia do país se mantém isolado, e uma Lei de Inovação, promulgada em 2004, que tinha por objetivo criar pontes mais efetivas de colaboração entre o mundo acadêmico e o setor produtivo, não parece ter produzido os resultados esperados. Se, no passado, a pressão por resultados práticos e de curto ­prazo, a impaciência com o trabalho e as ameaças à liberdade de pesquisa eram as grandes limitações ao desenvolvimento e ao fortaleci­mento da comunidade científica brasileira, hoje a situação parece ter se 2

Chiarini et al., 2014. Dados do Ministério de Ciência e Tecnologia e do Censo do Ensino Superior de 2013. 4 Pedrosa & Queiróz, 2014 3

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in­vertido. A comunidade acadêmica hoje está fortemente orga­ nizada, com a grande maioria de seus participantes com contratos estáveis de trabalho nas universidades públicas e tendo acesso a bol­ sas e recursos de pesquisa proporcionados pelas agências dos ministérios de Ciência e Tecnologia e de Educação, além das fundações estaduais de amparo à pesquisa. Existem associações científicas e profissionais em todas as áreas de conhecimento, cujas reuniões anuais atraem centenas e milhares de participantes. O risco, hoje, é o isolamento e a complacência. O outro lado da autonomia acadêmica e da autorregulação das atividades de pesquisa, mantida através dos mecanismos clássicos de avaliação por pares e da participação de cientistas na coordenação das agências de fomento como o CNPq e a Capes, é o fortalecimento do corporativismo e do conservadorismo intelectual, que faz com que comu­ nidades profissionais e acadêmicas resistam à inovação e se protejam das influências e da competição profissional e intelectual que possam vir de outros países e setores, ao mesmo tempo em que aumentam seus custos. Esse é um problema que ocorre em todo o mundo, mas parece ser particularmente severo no Brasil, sobretudo em áreas com menos tradição e com padrões acadêmicos mais frágeis, e que coloca em questão os formatos tradicionais de avaliação da pesquisa e da pós-graduação que tiveram seu papel no passado5. A solução que tem sido buscada nos países científica e tecnologicamente mais desenvolvidos é evoluir do formato tradicional da ciência acadêmica universitária para um formato novo, típico do que tem sido chamado de “sociedade do conhecimento”, em que as fronteiras entre conhecimento e aplicações se confundem, a transdisciplinaridade prevalece sobre as disciplinas tradicionais, os formatos organizacionais

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Schwartzman, 2010.

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e as fontes de financiamento se flexibilizam e diversificam, e a comunidade científica e tecnológica não pode mais se governar exclusivamente por critérios internos, mas precisa também responder de forma clara e explícita às demandas e necessidades dos diversos setores da sociedade que a financiam e que dependem de seus resultados6. A outra tendência internacional é entender que a excelência científica e tecnológica não se obtém pela simples acumulação de experiências e pela passagem do tempo, mas requer concentra­ ção de investimentos muito significativos, baseados em critérios claros de excelência e relevância, e menos tolerância com a pesquisa rotineira e burocrática. Não é uma transição simples, mas necessária, e a perspectiva his­tórica que este livro proporciona pode, quem sabe, ajudar na busca desses novos caminhos.

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Gibbons et al., 1994.

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Prefácio (2001)

Sou muito grato ao Ministério de Ciência e Tecnologia pela publicação desta nova versão de Formação da Comunidade Científica no Brasil. A primeira edição, de 1979, foi feita pela Com­ panhia Editora Nacional, então sob intervenção do BNDES, com recursos da Finep. Sem objetivo comercial, ela nunca chegou às livrarias, tendo sido distribuída, no entanto, para bibliotecas, autoridades, cientistas e estudiosos do assunto. No final dos anos 1980 surgiu a possibilidade de preparar uma versão inglesa do texto, que foi publicada pela Pensylvania State University Press, nos Estados Unidos, em 1991. Para essa edição, o texto original foi reescrito e atualizado, e a estrutura original do livro foi profundamente alterada. A nova versão brasileira, que agora se publica, é uma retradução ao português da versão inglesa de 1991. Isso foi feito porque não teria sentido voltar ao texto original de 1979, já superado; e a preparação de uma nova versão em português significaria um longo trabalho de pesquisa e reinterpretação das informações, o que terminaria por inviabilizar esta reedição. Sou muito grato a Sérgio Bath e Oswaldo Biato pelo excelente trabalho de tradução. Acredito que o principal mérito deste livro talvez tenha sido o de ajudar a estabelecer a área de estudos sociais e históricos sobre a ciência e a tecnologia no Brasil, campo que se expandiu e se trans-

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formou muito desde então. Muitos dos temas e informações tratadas têm sido objeto de estudos mais detalhados e aprofundados, o que torna a tarefa de refazer a história da ciência brasileira algo muito mais difícil do que foi a preparação da primeira edição deste trabalho. Enquanto essa nova visão histórica da ciência brasileira não surge, este livro, agora mais acessível, poderá continuar como fonte de pistas, indicações, ideias e temas sobre o tema da ciência, da tecnologia e da educação superior no país. Muitas coisas ocorreram desde a primeira edição deste livro mais de 30 anos atrás. O campo de estudos sociais sobre a ciência se alterou profundamente, a ciência brasileira se transformou bastante e minha própria maneira de ver a questão também se transfor­mou. Eu poderia descrever minhas preocupações, ao iniciar este trabalho na década de 1970, como uma tomada de posição entre dois polos do que se poderia chamar, hoje, de uma visão modernista, enlightened, do papel da ciência na sociedade moderna. Uma dessas visões era representada, no Brasil dos anos 1920 e 1930, pelo ma­temático Amoroso Costa, que defendia a “ciência pura”, e, na tradição sociológica, por Max Weber, que procurava distinguir com clareza a ciência da política; por Robert K. Merton, autor das ideias seminais, nos anos 1940, sobre os sistemas de valores que deveriam acompanhar a cultura da ciência; e por Joseph Ben-David, que pesquisava o surgimento, o desenvolvimento e a transformações do scientific role, do papel dos cientistas nas sociedades modernas. A outra posição, dominante entre cientistas, militares e economistas brasileiros, talvez pudesse ser traçada a Auguste Comte, e tinha como expoentes, nos anos 1930, o cientista britânico J. D. Bernal e o francês Frédéric Juliot-Curie, ambos influenciados pelo marxismo. Os dois campos compartiam a ideia de que as ciências empíricas eram um componente central das sociedades modernas e que era importante desenvolvê-las ao máximo, para que os valores da objetividade e da razão, e os produtos tecnológicos derivados de

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suas aplicações, pudessem ser utilizados para o benefício de todos. Para os primeiros, a ciência fazia parte de um movimento civilizatório e cultural muito amplo, centrado nos valores da liberdade, da individualidade e da racionalidade, que se justificava por si mesmo, pelos valores e pelos “demônios” que levavam as pessoas a defendê-los, independentemente de seus possíveis usos e implicações prá­ ti­cas. Mais do que isso, diria Merton. Quando os valores da “Re­ pública da Ciência” não são respeitados, quando a inteligência e a raciona­lidade são colocadas a serviço do poder, a lógica da força prevalece sobre a força da lógica e da inteligência, os frutos do conhecimento se voltam contra seus criadores, e a própria sobrevivência da atividade científica se torna impossível. Entre os do segundo polo, predominavam os cientistas naturais, os tecnólogos e engenheiros, e não os sociólogos ou filósofos. Esses cientistas acreditavam que, com seus métodos, suas tecnologias e sua eficiência, estavam destinados a tirar o mundo do atraso e da ignorância e a instaurar o reino da razão, no qual os próprios cientistas, naturalmente, exerceriam o poder para o benefício de todos. Enquanto os primeiros buscavam identificar o lugar próprio da co­ munidade científica, seus valores, sua cultura e suas instituições, os segundos se preocupavam em buscar e estabelecer os vínculos entre a ciência e o poder econômico, político e militar. Enquanto os primeiros temiam o pacto faustiano entre a ciência e o poder, os segundos não queriam outra coisa. O uso da tecnologia e de princípios su­postamente científicos para a organização da vida social e econômica nos regimes autoritários europeus no pré-guerra, tanto na União Soviética quanto na Alemanha, assustava os do primeiro grupo e fascinava os do segundo. Pesquisando o tema da ciência em tempos do regime político militar, que buscava levar à frente um projeto autoritário de moder­ nização e desenvolvimento, eu me filiava com clareza ao primeiro grupo, defendendo a comunidade científica contra o uso instru-

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mental da tecnologia, buscando inserir nossa escassa tradição científica em nossa também escassa tradição liberal e democrática. É pro­vável que esse ato explícito de subversão não tenha sido percebi­ do, talvez porque o que se discutia no Brasil, naqueles tempos como agora, não era a oposição entre dois projetos modernistas, o liberal e o autoritário, mas a oposição entre o “tradicional” e o “moderno”, fazendo com que as diferenças entre os distintos projetos modernizadores se confundissem – o que explica, aliás, a fácil convivência entre a esquerda e a direita brasileiras no apoio a projetos tecnológicos como a política de informática e o programa nuclear, apesar dos alinhamentos opostos dos dois grupos na Guerra Fria. Nos anos 1970 e 1980, os estudos sociais da ciência passaram por uma grande revolução, que consistiu na “desconstrução” das ideias modernistas e culminou naquilo que ficou conhecido no final dos anos 1990 como a “guerra das ciências”, as science wars. Liberais ou autoritários, os modernistas concordavam que o conhecimento cien­ tífico era distinto do conhecimento comum, que havia uma de­ marca­ção clara que separava o pensamento racional do pensamento irracional, os especialistas e iniciados dos leigos, que havia uma Razão, com R maiúsculo, que podia ser identificada e conhecida, e que era o dever e o destino dos cientistas trabalhar para torná-la cada vez mais nítida e brilhante. De repente, sociólogos e antropólogos, muitos deles oriundos das ciências naturais, começam a observar os cientistas como quem observa os índios em suas tribos e chegam à conclusão de que não existe, na verdade, tanta diferença assim entre os dois mundos, o da ciência e o do sentido comum1. Por trás da aparência de lógica e racionalidade, que surge nas publi­ cações científicas e nos produtos tecnológicos acabados, assim como nas declarações públicas dos cientistas, existe um mundo total­mente

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Latour & Woolgar, 1979; Knorr-Cetina, 1981.

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humano de decisões baseadas em interesses, ideias aproximadas e tentativas, disputas de poder, decisões oportunistas sobre temas e prioridades e o uso da retórica para conquistar aliados e derrotar os inimigos. Os conhecimentos científicos não seriam diferentes de outros tipos de conhecimento, e as escolhas de temas e as práticas dos cientistas estariam tão influenciadas por variáveis sociológicas, culturais e políticas como quaisquer outras práticas humanas2. Na ciência, como na vida, vale tudo – everything goes, como diria o filósofo Paul Feyerabend3. O “método científico” não pas­saria de uma construção ex-post, de existência problemática e duvidosa. Uma vez aberta a caixa de Pandora, tudo passava a ser possível. Para alguns, no extremo, a ciência não seria senão um exercício de poder de homens ocidentais e brancos contra as mulheres orientais e negras, em diversas combinações. O racionalismo e a ciência que o acompanha seriam simplesmente uma forma peculiar de ver a rea­lidade, distinta, mas não superior, e muitas vezes pior que outras formas, baseadas na intuição, na religião, nas experiências senso­riais e espirituais de vários tipos, ou na visão feminina do mundo. Todos os confrontos de ideias e argumentos seriam, na realidade, conflitos de poder. Para os países em desenvolvimento, não faria sentido ten­ tar trazer e incorporar a tradição científica oriental, com suas insti­ tuições e seus supostos. Cada um deveria buscar e desenvolver suas formas próprias de conhecer, interpretar e modificar a realidade, e lutar, politicamente, contra o predomínio do paradigma cientí­fico ocidental. Colocada nesses termos, a nova sociologia da ciência se transforma em um projeto intelectual antimodernista, filiado a e não muito distinto de todas as correntes de pensamento que, desde 2

Bloor, 1976. A influência das ideias do “segundo Wittgenstein” foi muito grande nesse entendimento. Veja, a respeito, Bloor, 1983. 3 Feyerabend, 1975.

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Galileu, resistiram ao avanço da ciência moderna. Na América Latina, ainda que não tanto no Brasil, surgem os que pretendem substituir a ciência ocidental e seus princípios meritocráticos e técnicos por uma outra ciência de raízes mais nativas, baseada quem sabe em prin­cípios comunitários, ou nas tradições místicas e espirituais das populações indígenas, ou empobrecidas4. Essas visões extremas e radicais derivadas da nova sociologia do conhecimento não são difíceis de refutar e foram objeto de um ata­ que cerrado de cientistas que, mais uma vez, brandiam os argumentos da racionalidade e da lógica contra o irracionalismo e o obscurantismo5. Mas a força da nova sociologia da ciência não está nesses extremos, e sim em colocar a nu aquilo que todos, de alguma forma, já sabíamos – que a prática da ciência é diferente de sua ideologia e justificação, e que, por isso, não é possível continuar a defender, de forma ingênua e irrefletida, a superioridade do conhecimento científico e das coisas que propõem os cientistas e tecnólogos, sobre to­dos os demais. A verdade, diz Bruno Latour em um pequeno livro, é que “nunca fomos modernos”, no sentido de que nunca acreditamos plenamente na existência de um mundo do conhecimento científico e da técnica desligado e desconectado do mundo de carne e osso das pes­soas, dos animais e dos objetos da natureza6. Isso não significa que todos os tipos de conhecimento se equivalem e que o valor e a relevância dos conhecimentos científicos e das tecnologias sejam simples expressões de relações de poder. Mas, justamente por sua força e seu potencial, tanto para o bem quanto para o mal, é que não podemos continuar a tratar a atividade científica como um

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Eu discuto essa perspectiva com algum detalhe em “O espelho de Morse”, em Schwartzman, 1997. 5 Sokal & Bricmont, 1997. 6 Latour, 1993.

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campo idealizado da Razão e do Bem, sem entender, em mais profun­ didade, como a atividade científica se estrutura, se organiza, busca seus recursos, estabelece suas verdades e reordena os atores e objetos que dela participam, ou que são por ela influenciados. O principal efeito da nova sociologia da ciência – e não só dela – foi abalar profundamente a crença nas virtudes absolutas da ciência e da técnica, justamente em uma época em que a ciência assume um papel cada vez mais significativo no reordenamento da economia mundial e abre novas e insuspeitadas fronteiras no conhecimento dos fenômenos da vida e do meio ambiente. Temos mais ciência do que nunca, nunca dependemos tanto dela como agora e nunca tivemos tanta clareza sobre seus problemas, limites e também possibilidades. Na perspectiva de hoje, o confronto entre as duas visões “modernas” a respeito da organização e do papel da ciência nas sociedades contemporâneas parece ultrapassado. A preocupação atual, muito mais pragmática e concreta, é como melhor usar os recursos que a ciência pode proporcionar, sem cair na sedução fácil dos projetos modernistas e sem colocar a atividade de pesquisa na camisa de força do planejamento tecnocrático, ou da lógica de curto prazo dos negócios de mercado. Em 1993-1994, tive a oportunidade de coordenar um trabalho de elaboração de uma proposta de política científica para o Brasil, que, como ocorre com trabalhos dessa natureza, não chegou a ser utilizado de forma mais explícita pelos que o financiaram (o Ministério de Ciência e Tecnologia e o Banco Mundial), mas não deixou de gerar um conjunto significativo de estudos e análises, que creio terem proporcionado uma nova visão a respeito de onde estamos e para onde deveremos tratar de ir neste tema7. Uma das contribuições mais interessantes para o estudo

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Schwartzman; Bertero; Krieger & Galembeck, 1995.

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foi feita pelo professor Lewis Branscomb, da Universidade de Harvard, que apresentou um trabalho sobre as modificações recentes no sistema de ciência e tecnologia nos Estados Unidos8. O que Branscomb mostra é que, na experiência americana, as duas faces do projeto modernista, a acadêmica e liberal e a tecnocrata e autoritária, longe de se oporem, na realidade se complementavam, já que eram os gigantescos investimentos públicos na pesquisa militar que abriam espaço e davam recursos para a ciência acadêmica que se desenvolvia sobretudo nas universidades. O fim da Guerra Fria e a explosão das novas tecnologias voltadas para produtos de consumo de massa e para as comunicações em escala global pareciam sinalizar o fim dos investimentos públicos na pesquisa militar. A consequência foi forçar a pesquisa acadêmica a estabelecer laços muito mais fortes e também mais difíceis com um novo parceiro, o setor privado. As formas tradicionais de organização da atividade científica, em departamentos acadêmicos estruturados em disciplinas científicas bem delimitadas, sistemas de mérito baseados nas competências intelectuais e o compartilhamento dos conhecimentos científicos por todos os que tivessem a necessária competência para entendê-los pareciam então antiguidades destinadas a desaparecer. Havia agora novo “modo” de produção científica, muito mais pragmático, interdisciplinar, ad hoc e contaminado por interesses comerciais e empresariais do que antes9. O estudo de 1993-1994 dizia que, 25 anos depois, o sistema brasileiro de ciência e tecnologia ainda estava configurado nos termos do “modelo Geisel”, estabelecido em meados dos anos 1970 e já em decadência no início dos anos 1980. Apesar de sua brevíssima du-

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Branscomb, 1995. Sobre o “modo II” de organização da atividade científica, veja Gibbons; Trow; Scott; Schwartzman; Nowotny & Limoges, 1994.

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