A psicanálise é um exercício espiritual?
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universidade estadual de campinas Reitor José Tadeu Jorge Coordenador Geral da Universidade Alvaro Penteado Crósta
Conselho Editorial Presidente Eduardo Guimarães Esdras Rodrigues Silva – Guita Grin Debert João Luiz de Carvalho Pinto e Silva – Luiz Carlos Dias Luiz Francisco Dias – Marco Aurélio Cremasco Ricardo Antunes – Sedi Hirano
Coleção Psicanálise e seus Litorais: Arte, Ciência e Filosofia Comissão Editorial Ana Maria Medeiros da Costa – Angela Maria Resende Vorcaro Cláudia Thereza Guimarães de Lemos – José Antonio Rocha Gontijo Nina Virgínia de Araújo Leite (coordenadora)
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Jean Allouch
a psicanálise é um exercício espiritual? resposta a michel foucault
Tradução
Maria Rita Salzano Moraes Paulo Sérgio de Souza Jr.
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Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990. Em vigor no Brasil a partir de 2009.
ficha catalográfica elaborada pelo sistema de bibliotecas da unicamp diretoria de tratamento da informação AL57p
Allouch, Jean. A psicanálise é um exercício espiritual?: Resposta a Michel Foucault / Jean Allouch; tradução: Maria Rita Salzano Moraes e Paulo Sérgio de Souza Jr. – Campinas, sp: Editora da Unicamp, 2014. 1 . Foucault, Michel, 192 6- 1984 . 2 . Lacan, Jacques, 1901 - 1981 . 3 . Freud, Sigmund, 1856 - 1939 . 4 . Psicanálise. 5 . Espiritualidade. I . Título.
cdd 150.195 150.1952
248 isbn 978-85-268-1068-6
Índices para catálogo sistemático:
1. Foucault, Michel, 1926-1984 2. Lacan, Jacques, 1901-1981 3. Freud, Sigmund, 1856-1939 4. Psicanálise 5. Espiritualidade
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Título original: La psychanalyse est-elle un exercice spirituel? Réponse à Michel Foucault Copyright © Éditions EPEL, 2007 Copyright © 2014 by Editora da Unicamp
Cet ouvrage, publié dans le cadre du Programme d’Aide à la Publication Universitaire – PAP Universitaire du Consulat général de France à São Paulo, bénéficie du soutien du Ministère français des Affaires Étrangères et du Développement International (MAEDI). Este livro, publicado no âmbito do Programa de Apoio à Publicação Universitária – PAP Universitário do Consulado geral da França em São Paulo, conta com o apoio do Ministério francês das Relações Exteriores e do Desenvolvimento Internacional (MAEDI).
Direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19.2.1998. É proibida a reprodução total ou parcial sem autorização, por escrito, dos detentores dos direitos. Printed in Brazil. Foi feito o depósito legal. Direitos reservados à Editora da Unicamp Rua Caio Graco Prado, 50 – Campus Unicamp cep 13083-892 – Campinas – sp – Brasil – Tel./Fax: (19) 3521-7718/7728 www.editora.unicamp.br – vendas@editora.unicamp.br
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sumário
apresentação à edição brasileira (Oswaldo Giacoia Junior).................................................................................................... 7
prefácio à edição brasileira (Ernani Chaves).......................................................................................................................... 11
dedicatória.............................................................................................................................. 27 capítulo 1 – então, combinado!...................................................................... 35 Uma esquivada................................................................................................................. 36 Spicanálise........................................................................................................................... 52 1. Dinheiro.................................................................................................................... 57 2. Transmissão............................................................................................................. 59 3. Passar por um outro......................................................................................... 63 4. Salvação..................................................................................................................... 64 5. Catharsis.................................................................................................................... 66 6. Fluxo associativo................................................................................................. 67 capítulo 2 – da espiritualidade em lacan e em freud......... 89 Spicanálise II..................................................................................................................... 89
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Do crédito de que goza a espiritualidade em Lacan................................. 98 Caráter espiritual dos objetos da análise.......................................................... 115 1. Schreber................................................................................................................................ 115 2. A bela açougueira......................................................................................................... 119 3. Um caso de Maurice Bouvet............................................................................ 124 4. Serguêi Pankêief (chamado de “o Homem dos Lobos”)........ 124 Espiritualidade do significante....................................................................................... 132
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apresentação à edição brasileira
Sabemos que as relações de Foucault com a psicanálise são tensas. Nos termos da História da sexualidade, a psicanálise toma parte no conjunto das operações que promovem a “fixação do dispositivo da sexualidade na forma da família”, o que nos permitiria “compreender um certo número de fatos: que a família se tenha tornado, a partir do século XVIII, o lugar obrigatório dos afetos, de sentimentos de amor; que a sexualidade tenha, como ponto privilegiado de eclosão, a família; que, por essa razão, ela nasça incestuosa”1. Essa genealogia do dispositivo da sexualidade é construída à contracorrente das análises que fazem da repressão seu conceito cardinal, localizando a origem da idade repressiva no século XVIII e na sociedade vitoriana, portanto, com a consolidação do capitalismo industrial e da ordem burguesa. É contra a “hipótese repressiva” que a História da sexualidade se erige como história efetiva das proveniências; ao fazê-lo, ela parece caminhar
1 M. Foucault, La volonté de savoir, Paris, Gallimard, 1976, p. 143.
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na mesma direção apontada por Deleuze e Guattari: “em lugar de participar de uma empreitada de liberação efetiva, a psicanálise toma parte na obra de repressão mais geral, que consistiu em manter a humanidade europeia sob o jugo de papai-mamãe, e de não acabar com esse problema”2. No entanto, em 1982, por ocasião do curso A hermenêutica do sujeito3, Foucault parece modificar consideravelmente esse diagnóstico. Naquele curso, Foucault pondera que, se não podemos assimilar o marxismo e a psicanálise à estrutura própria da ciência, no entanto, em saberes desse tipo, que não constituem ciências em sentido estrito, encontramos de forma nítida certas exigências próprias da espiritualidade. Se considerarmos um e outra, sabemos bem que, por razões totalmente diferentes, mas com efeitos relativamente homólogos, no marxismo como na psicanálise, o problema do que se passa com o ser do sujeito (do que deve ser o sujeito para que tenha acesso à verdade) e a consequente questão acerca do que pode ser transformado no sujeito pelo fato de ter acesso à verdade, essas duas questões absolutamente características da espiritualidade, serão por nós reencontradas no cerne mesmo destes saberes, ou, em todo caso, de ponta a ponta em ambos4.
Ora, isso significa dizer que também no marxismo e na psicanálise reencontramos as mesmas velhas exigências fundamentais 2 G. Deleuze & F. Guattari, L’anti-Oedipe: Capitalisme et schizophrenie, Paris, Minuit, 1972, p. 59. “Au lieu de participer à une entreprise de libération effec-
tive, la psychanalyse prend part à l’oeuvre de répression bourgeoise la plus générale, celle qui a consisté à maintenir l’humanité européenne sous le joug de papa-maman, et à ne pas finir avec ce probleme-lá.” 3 M. Foucault, A hermenêutica do sujeito, trad. Márcio Alves da Fonseca, Salma Tannus Muchail, São Paulo, Martins Fontes, 2004. As citações de passagens desse livro referem-se a essa edição. 4 Idem, p. 39. 8
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do cuidado de si e do conhecimento de si, ou seja, da espiritua lidade como condição de acesso à verdade. Foucault, no entanto, permanece cauteloso e reticente a esse respeito; tanto é assim que termina por formular uma pergunta radical, esclarecendo que pretende respondê-la: “É possível, nos próprios termos da psicanálise, isto é, dos efeitos do conhecimento, portanto, colocar a questão das relações do sujeito com a verdade, que — do ponto de vista, pelo menos, da espiritualidade e da epiméleia heautoú — não pode, por definição, ser colocada nos próprios termos do conhecimento?”5. Cabe lembrar que é precisamente nesse contexto que Foucault se refere àquilo que constitui o interesse e a força das análises de Lacan: ele foi o único que, depois de Freud, teria recentralizado a questão da psicanálise justamente no plano das relações entre o sujeito e a verdade6. Ora, essa ponderação torna ainda mais urgente a necessidade de uma retomada da pergunta acima formulada, bem como de uma tentativa de resposta. Em face do que Jean Allouch denomina de “abstenção ativa” por parte de Foucault, bem como do apelo que este dirige ao psicanalista, para que encare sua própria posição de um ponto de vista até então inédito, ou seja, a partir da perspectiva da espiritualidade, a decisão corajosa de Allouch, no instigante livro que o leitor agora tem em mãos, consiste em aceitar a sugestão: ele topa o desafio, rende-se à convocação de Michel Foucault, para um diálogo desarmado com a psicanálise. Oswaldo Giacoia Junior
5 Idem, p. 41. 6 Cf. idem, p. 40.
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Poucas afirmações de Foucault causaram tanto eco nos meios psicanalíticos quanto aquela proferida na segunda hora da aula de abertura do curso de 1981-1982, em 6 de janeiro de 1982, inti tulado A hermenêutica do sujeito, segundo a qual a psicanálise — e o marxismo, não devemos esquecer — continua uma antiga tradição, que remonta à filosofia grega, aquela que ele chama de “espiritualidade”. Não se trata, como Foucault acrescenta de imediato, de relacionar a psicanálise à religião, pois este termo — “espiritualidade” — deve ser tomado num sentido muito espe cífico, o qual, na esteira dos estudos de Pierre Hadot, ele define como o problema a respeito do que se passa com o ser do sujeito (do que deve ser o ser do sujeito para que ele tenha acesso à verdade) e a consequente questão acerca do que pode ser transformado no sujeito pelo fato de ter acesso à verdade; estas duas questões, repito, absolutamente características da espiritualidade, serão por nós reencontradas no cerne mesmo
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destes saberes [o marxismo e a psicanálise — EC], ou, em todo caso, de ponta a ponta em ambos1.
Declaração que, desde a publicação do curso na França e posteriormente no Brasil, mobilizou os psicanalistas na tentativa de entendê-la. Não sem um certo mal-estar, certamente, uma vez que, logo em seguida, Foucault identifica o que ele está chamando de “psicanálise”, como se, propositadamente, ele quisesse dizer que não se trata, de modo algum, de toda psicanálise, mas de uma vertente bem específica, qual seja, a criada por Jacques Lacan. Sobre isso, ele é taxativo: “E parece-me que todo o interesse e a força das análises de Lacan estão precisamente nisto: creio que Lacan foi o único depois de Freud a querer recentralizar a questão da psicanálise precisamente nesta questão das relações entre sujeito e verdade”2. Mais ainda: há uma frase no manuscrito que não foi lida, mas acrescentada pelos editores nessa mesma página há pouco referida, na qual Foucault afirma que a ausência desta questão, o fato de ela não ter sido pensada teoricamente, acarretou “um positivismo, um psicologismo para a psicanálise”. A referência, tão positiva à psicanálise e, em especial, a Lacan, parece ter aberto uma nova via de acesso ao tema das relações entre Foucault e a psicanálise. Tema antigo em sua obra, tal como podemos constatar desde a publicação dos seus Dits et écrits, em 1994. O leitor e o pesquisador interessados podem dispor, hoje, da possibilidade concreta de reconstruir, à maneira de Foucault, isto é, arqueologicamente, seu longo trajeto de confrontação com a psicanálise, desde a década de 1950. Confrontação que ora o aproximou dela, que ora o afastou — como na História da loucura, em 1 M. Foucault, A hermenêutica do sujeito, 2. ed., trad. Márcio Alves da Fonseca, Salma Tannus Muchail, São Paulo, Martins Fontes, 2006, p. 39. 2 Idem, p. 40.
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1961 —; que ora voltou a reencontrá-la com entusiasmo, como em As palavras e as coisas, em 1966; que nunca deixou de reconhecê-la
na sua ruptura com a psiquiatria, como na quinta conferência de A verdade e as formas jurídicas, proferida em maio de 1973, no Rio de Janeiro, mas que não deixou de incluí-la no “dispositivo psi” que rege, em grande parte, a sociedade disciplinar em Vigiar e punir, de 1975; ou ainda em A vontade de saber, primeiro volume da História da sexualidade, de 1976, no qual se reúnem novamente a crítica contundente à relação estabelecida por Lacan entre o desejo e a lei, e mesmo à relação entre poder e repressão, mas também o elogio à eficácia política da crítica psicanalítica da teoria da degenerescência na época do nazismo. Mesmo o Prefácio a O uso dos prazeres, o segundo volume da História da sexualidade, publicado em maio de 1984, ou seja, um mês antes de sua morte, continua criticando a consequência que significaria continuar insistindo num “pensamento comum”, que faz da sexualidade um “invariante” e considera suas formas históricas singulares apenas os efeitos “dos mecanismos diversos de repressão a que se encontra exposta toda sociedade”. Com isso, continua Foucault, coloca-se “fora do campo histórico o desejo e o sujeito do desejo”, fazendo com que a “forma geral da interdição dê conta do que pode haver de histórico na sexualidade”3. Não é meu objetivo aqui refazer arqueologicamente a relação entre Foucault e a psicanálise. Quis, entretanto, apontar, nos exemplos acima, que essa relação é sempre agônica; trata-se sempre de uma confrontação, jamais de uma aceitação tácita ou do elogio ditirâmbico sem fundamento. E, se insisto em apontar essa confrontação, é porque o leitor apressado, desatento — ou aquele que 3 M. Foucault, História da sexualidade, II, trad. Maria Thereza da Costa
Albuquerque, rev. téc. José Augusto Guilhon Albuquerque, Rio de Janeiro, Graal, 1984, p. 10. 13
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pensa encontrar nas palavras de Foucault um refrigério —, pode descansar em paz com um... “Mas Foucault disse que se trata de espiritualidade!”, depois de um dia inteiro ouvindo seus pacientes no divã. E, por que, nesse caso específico, se trata ainda de uma confrontação? Talvez uma questão cronológica e uma distinção entre os cursos proferidos no Collège de France e os livros publicados possam nos ajudar. Em primeiro lugar, nos dois livros pu blicados após o curso A hermenêutica do sujeito, isto é, os dois últimos volumes da História da sexualidade, não há nenhuma menção explícita à relação entre psicanálise e espiritualidade. Ou seja, mais de dois anos depois do curso, quando da redação final daqueles dois últimos livros, cuja redação e correção das provas o próprio Foucault, apesar de seu estado terminal, ainda fez, ele deixa de fazer qualquer referência à relação entre psicanálise e espiritualidade. Ao contrário, em especial em O uso dos prazeres, ele se contrapõe em gênero, número e grau à interpretação que Lacan fez do Banquete platônico no Seminário 8, quando, por exemplo, Lacan afirma que a única diferença entre a “homossexualidade contemporânea e a perversão grega” se encontra apenas na “qualidade dos objetos”. Os “ginasianos aqui”, continua Lacan, são “espinhentos e cretinizados pela educação que recebem”. Entre os gregos, ao contrário, havia “condições favoráveis” para que os jovens fossem “o objeto de homenagem, sem que tivessem que ir buscar esses objetos nas esquinas recônditas, na sarjeta. Essa é toda a diferença. Mas a estrutura, esta, nada tem de diferente”4. Eis uma passagem que desagradaria inteiramente a Foucault. E não venham dizer que o seminário de Lacan foi proferido no final da década de 1950, que depois foi tudo bem diferente, e porque o nó borromeano, a fita de Moebius, a lógica do matema etc., etc., 4 J. Lacan, O seminário, livro 8: A transferência, trad. Dulce Duque Estrada, rev. téc. Romildo do Rêgo Barros, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1992, p. 39.
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etc. Ou seja, as palavras estão lá, com todas as letras, e são lidas, relidas, interpretadas e reinterpretadas nos cursos sobre Lacan nas universidades e nas escolas de formação, pois se trata de um se minário fundamental sobre a questão da transferência. Ora, essa passagem não ilustra tão bem a crítica de Foucault no Prefácio a O uso dos prazeres? Ela não só está nos antípodas de Foucault por sua indiferença à historicidade em nome do “invariante”, ou melhor, da “estrutura”. Ela reforça também a crítica de Foucault à continuidade entre psicanálise e discurso médico-psiquiátrico na História da loucura — cuja redação coincide, curiosamente, com o semi nário de Lacan —, uma vez que este insiste em caracterizar a homossexualidade como perversão, mesmo que aqui o termo possa não significar a mesma coisa. À arqueologia foucaultiana, qual quer diferença não é suficiente para excluir o solo comum a um determinado discurso. Finalmente, a referência às “esquinas re cônditas” e à “sarjeta” reitera os clichês a propósito da “caça” na homossexualidade masculina. Mas, para um francês ilustrado, que leu “Sodoma e Gomorra” na Recherche proustiana, essa afirmação pode ser inteiramente banal. E mesmo que um clichê — como diz Adorno — tenha também seu conteúdo de verdade, ele não é, certamente, a verdade, e corre o risco, como é o caso, de reiterar preconceitos. Como bem lembra Allouch — que não se refere ao “uso dos prazeres” nesse caso —, a confrontação em torno do Banquete aparece, também com clareza, nas primeiras aulas de A hermenêutica do sujeito, quando esse diálogo platônico está, justamente, em questão. Esse desvio, talvez demasiado longo, tem a finalidade de situar minha posição diante do tema Foucault e a psicanálise, qual seja, a de que não se pode, em hipótese nenhuma, tomar as declarações de Foucault a respeito, sem imediatamente levar em consideração que há sempre, no mínimo, duas faces, uma que ora toma a psicaná lise como aliada, outra que ora se distancia drástica e radicalmente 15
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dela. E, se pintei em cores fortes a distância crítica, é porque a recepção, no Brasil, da referência à psicanálise como espiritualidade dá margem, em geral, a um entusiasmo apressado, à reiteração tautológica da afirmação de Foucault, a quase nenhum esforço de in terpretação. Até porque, em especial nas dissertações e teses, talvez pelo tempo exigido pelas agências de fomento, ignora-se a obra como um todo, foca-se no estudo de um curso, algumas entrevistas, o que limita demais a interpretação. Aqui, coloca-se rapidamente o problema da utilização dos cursos de Foucault no Collège de France. Se eles são importantes, necessários, indispensáveis, eles não são a obra toda nem a obra por excelência. Sempre que possível, é necessário que eles possam dialogar com a obra publicada. Se eles ajudam a explicá-las, se muitas vezes neles se encontra um material rico e muitas vezes inexplorado nas obras publicadas, por outro lado, eles revelam também os impasses e as tensões da obra. Um pensamento de Foucault vive muito mais desses impasses e tensões, das zonas de atrito que ele cria, do que de suas possíveis soluções. Com essa atitude, respeita-se o caráter experimental e antidogmático de seu pensamento, ou seja, aposta-se muito mais nas pistas desviantes que ele abre do que no caminho aplainado que nos poderia conduzir a uma benfazeja satisfação. É nessa perspectiva que o livro de Jean Allouch que ora apresento não deixa de ser um oásis em meio ao deserto, uma vez que, em meio à vasta literatura internacional sobre o tema, trata-se de uma tentativa de “responder” à instigante questão que Foucault legou aos psicanalistas. Mas quem responde, o faz sempre colo cando perguntas! E, nesse sentido, a proposição do autor é desde já alvissareira, na medida em que, longe de aderir sem mais à bela formulação de Foucault, ele a inquire, desconfia dela, no melhor espírito cartesiano, afasta-se criticamente ao pôr em questão, ao duvidar da afirmação de Foucault. Afinal de contas, pergunta ele, desconfiado, devemos aceitar, sem mais, a genealogia proposta por 16
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Foucault, que insere a psicanálise no interior das práticas da espi ritualidade nascidas entre os gregos? Como assim “espiritualida de”? O que essa expressão poderia significar para Freud e para Lacan? Esta expressão, “a psicanálise é uma forma de espiritualidade”, tem fundamento, pergunta-se Allouch? Seu livro pretende, portanto, responder a essa pergunta. Mas de maneira fundamentada. É em decorrência dessa atitude de dar uma resposta fundamentada a uma questão tão importante, tão fascinante quanto com plexa, que destaco a primeira qualidade deste livro: trata-se de um esforço de qualidade inquestionável de rastrear, na obra hoje disponível de Foucault, as referências importantes à psicanálise e ao personagem mais diretamente envolvido com ela, Lacan, que, como vimos, fora mencionado explicitamente por ele como a exceção em meio aos psicanalistas que “esqueceram” a “questão das relações entre verdade e sujeito”. Mas também, segunda observação importante a propósito deste livro, é que seu autor termina sua Dedicatória dizendo que atender à convocatória de Foucault — o que talvez a maioria dos psicanalistas não tenha feito, pois isso representaria deslocar-se de sua zona de conforto — significaria “render-se” a ele no sentido de “depor as armas”, de suspender os juízos, diria eu numa aproximação selvagem da famosa “epoché” husserliana, de deixar de lado advertências e preconceitos, cautelas desnecessárias e entregar-se, de peito aberto, a essa tarefa que Foucault, quer se queira ou não, legou aos psicanalistas. Com isso, Allouch também nos convida, a mim, a você, leitor futuro deste livro, a também nos rendermos aos seus propósitos, a baixarmos nossas armas e, assim, podermos, de fato, ler este livro com a atenção e o cuidado que ele merece. Este livro surpreende também por seu estilo. Escrito por um psicanalista lacaniano, ele poderia naufragar na conhecida imitatio que lacanianos fazem do estilo do mestre. Nesse caso, a cópia é sempre capenga e inferior, para isso basta ler — mesmo quando se 17
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depõe as armas — a maioria dos artigos publicados em revistas das escolas lacanianas. Allouch, ao contrário, não se deixa prender nessa armadilha. Seu livro tem o melhor da escola universitária francesa, comprometida com a “explicação do texto”. Escrita clara e, muitas vezes, bem-humorada. E que não recua diante das dificuldades e da complexidade de seu objeto. Extensa pesquisa bibliográfica, tanto de um lado, ou seja, dos estudos sobre Foucault, quanto do outro, no campo psicanalítico. Conhecimento apurado dos textos de Foucault, os quais percorre com leveza e rigor ao mesmo tempo. E posição crítica, seja em relação a Foucault, seja em relação a Freud e Lacan. Afinal de contas, ele quer dar a Foucault uma resposta “fundamentada”. Destaco, a seguir, o que considero importante e interessante nas diversas partes que compõem o livro, para, ao final, me posicionar diante da “resposta” de Allouch: Será que ele deu uma, várias ou... nenhuma? “Então, combinado!” — ou seja, vamos partir para o trabalho, uma vez depostas as armas — é o primeiro capítulo. Aqui, o ponto de partida é uma ideia simples, mas bastante esclarecedora e muito correta, a meu ver: a de que os cursos O poder psiquiátrico, Os anormais e A hermenêutica do sujeito constituem uma genealogia da psicanálise. Ora, vocês poderiam dizer que muitos já afirmaram isso. Eu contra-argumentaria dizendo que não me lembro de ter lido uma análise da declaração de Foucault em A hermenêutica do sujeito que a colocasse na esteira de uma “genealogia da psicanálise”, tal como o faz Allouch. Porque essa filiação genealógica muda bastante a configuração, por meio da qual a relação entre psicanálise e espiritualidade passa a ser examinada. Mais ainda, a proposição de Allouch nos convida a pensar que a “arqueologia da psicanálise”, com a qual o próprio Foucault nomeou seu empreendimento em A vontade de saber, encontra seu complemento necessário nos cursos acima mencionados. Assim, teríamos tanto uma arqueologia — uma “arqueologia da escuta”, pois se trata de filiar a psicaná18
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lise aos dispositivos da confissão5 —, quanto uma genealogia, ao inserir a psicanálise no circuito das relações entre poder, saber e verdade. Com isso, Allouch pode dirigir uma série de questões ao campo psicanalítico, um campo que estaria, há algum tempo, passando, pelo menos na França e, em especial, após a morte de Lacan, por uma longa crise. Afinal de contas, como combater as promessas de cura rápida oferecidas pelas “psicoterapias comportamentais breves”? Como o próprio campo lacaniano enfrentou os novos desafios impostos pelo crescente processo de medicalização? Como se enfrentou a progressiva transformação do sujeito em indivíduo? E, mais ainda — e agora numa ressonância absolutamente direta das análises de Foucault —, de que maneira, não psicológica, pode haver “cuidado de si”? Ou ainda mais radical: Será que a “frente psi”, criada para resistir politicamente a essas investidas, cumpriu esse papel ou foi, em parte, cooptada? Allouch denuncia essa cooptação, sem usar a palavra, mas considera um recuo dentro das hostes lacanianas, em contraposição ao próprio Lacan, que insistia em dizer que não se deve “psicoterapiar” o psiquismo, ou ainda transformar a psicanálise em uma espécie de “pastoral”, com prometida com o bem público. Ou seja, o autor vai se aproximando da questão central de seu livro de uma forma inusitada, como se ele estivesse colocando Foucault, de início, contra a parede: afinal de contas, nesse cenário, em parte tão desolador, como aventar que a psicanálise possa ser uma “espiritualidade”? A análise que Allouch faz nesse capítulo da “função psi” em Foucault é muito bem feita e muito bem fundamentada, redundando na possibili5 Denomino “arqueologia da escuta” para lembrar as sucessivas designações com as quais Roberto Machado caracterizou, ainda em 1982, a “trajetória da
arqueologia de Foucault”: arqueologia do silêncio para a História da loucura, arqueologia do olhar para O nascimento da clínica e arqueologia do saber para As palavras e as coisas (cf. R. Machado, Ciência e saber: A trajetória da arqueologia de Foucault, Rio de Janeiro, Graal, 1982; 2. ed., 2006, Jorge Zahar). 19
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dade de unir psicanálise e espiritualidade, criando um neologismo interessante: “spicanálise”, palavra que suspenderia os efeitos que o prefixo “psi” contém aos olhos de Foucault. O capítulo expõe, a partir da ideia de uma genealogia da psicanálise, os pontos nevrálgicos constituídos por essa genealogia: o dinheiro, a transmissão, o passar por um outro, a salvação, a catharsis e o fluxo associativo. O segundo capítulo é o mais surpreendente e interessante. Trata-se de entender o que poderia ter significado, tanto para Freud como para Lacan, o termo “espiritualidade” ou, ainda, “exercícios espirituais”. Questão aparentemente esdrúxula, mesmo para os mais tarimbados estudiosos de Freud e Lacan, mas que o exaustivo trabalho do arqueólogo Allouch acaba revelando como extre mamente importante e, em alguns aspectos, decisiva para a sua argumentação. Quem poderia imaginar, entre os foucaultianos, que o próprio Lacan poderia ter sido uma fonte para a aproximação de Foucault entre psicanálise e espiritualidade? Pois bem, mas Allouch mostra claramente isso, citando uma passagem da sessão do seminário de 15 de fevereiro de 1967, ainda inédito, acerca da “lógica da fantasia”. Vale a pena citar, desde já, essa passagem. Ela fala por si só: Antes deveríamos era encontrar os nossos modelos no que permanece tão incompreendido e, no entanto, tão vivo daquilo que a tradição nos legou de fragmentário dos exercícios [grifado em minha versão desse seminário] do ceticismo, na medida em que eles não são simplesmente esses malabarismos resplandecentes entre doutrinas opostas, mas, ao contrário, verdadeiros exercícios espirituais, que certamente correspondiam a uma práxis ética, que dá sua verdadeira densidade àquilo que nos resta de teórico nesse plano e sob essa rubrica6.
6 Ela se encontra na p. 95 desta tradução. Allouch encontra grifada, como ele
mesmo diz, a palavra “exercício” no seu manuscrito. 20
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