A terra austral conhecida

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a terra austral conhecida


universidade estadual de campinas Reitor Fernando Ferreira Costa Coordenador Geral da Universidade Edgar Salvadori De Decca

Conselho Editorial Presidente Paulo Franchetti Alcir Pécora – Christiano Lyra Filho José A. R. Gontijo – José Roberto Zan Marcelo Knobel – Marco Antonio Zago Sedi Hirano – Silvia Hunold Lara Coleção Mundus Alter Comissão Editorial Alcir Pécora Antonio Edmilson Martins Rodrigues Carlos Antônio Leite Brandão Carlos Eduardo Ornelas Berriel (coord.) Hilário Franco Jr.


Gabriel de Foigny

A terra austral conhecida

tradução, introdução e notas

Ana Cláudia Romano Ribeiro


Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990. Em vigor no Brasil a partir de 2009.

ficha catalográfica elaborada pelo sistema de bibliotecas da unicamp diretoria de tratamento da informação F692t

Foigny, Gabriel de. A terra austral conhecida / Gabriel de Foigny; tradução, introdução e notas: Ana Cláudia Romano Ribeiro. – Cam­ pinas, SP: Editora da Unicamp, 2011.

1. Utopias na literatura. 2. Ficção francesa – Século XVII. 3. Literatura francesa – História e crítica. I. Ribeiro, Ana Cláudia Romano. II. Título. cdd 809.933 843.4 840.09 isbn 978-85-268-0953-6 Índices para catálogo sistemático:

1. Utopias na literatura 2. Ficção francesa – Século XVII 3. Literatura francesa – História e crítica

809.933 843.4 840.09

Título orignal: La terre australe connue Copyright © by Ana Cláudia Romano Ribeiro Copyright © 2011 by Editora da Unicamp

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A coleção mundus Alter é composta de uma série de utopias literárias, essenciais para a compreen­são do imaginário polí­tico mo­derno. Trata-se de uma co­leção de traduções para a língua por­tu­guesa desses textos, inéditos em português, que inventaram e des­cre­veram mundos outros, que são na verdade ima­gens in­ vertidas do nosso próprio mundo. Longe de servirem para o escapismo político, as utopias são, comumente, retratos irônicos, cáusticos e satíricos da época de seus autores. Como ale­goria, a utopia formaliza as con­tradições do momento presente de sua com­posição, e a for­malização literária da com­pleta remissão dos males sociais é, em si mesma, a utopia. Ado­tando a forma de relatos de via­gens ima­gi­nárias, de tratados e projetos so­ciais, as utopias foram, em seu meio milênio de história, interlocu­toras contínuas das so­ciedades que as produ­ziram e de suas teorias po­ líticas, cons­tituindo muitas vezes elas pró­prias uma teoria e uma proposição política. Cada volume desta série, com­posta da tra­ dução acompanhada por notas críticas e his­tóricas, é sem­pre o resultado do trabalho dos maiores especialistas na obra traduzida. Carlos Eduardo O. Berriel



Agradecimentos O presente livro baseia-se em parte do meu trabalho de doutorado realizado no Programa de Pós-Graduação em Teo­ ria e História Literária do Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, com finan­ cia­mento da Fapesp, e na Università degli Studi di Firenze, sob a coorientação da pro­fessora Maria Moneti e com suporte da Capes. Ao meu orien­tador, Carlos Eduardo O. Berriel, agra­ deço especialmente. A redação foi finalizada na Università degli Studi di Milano, que me atribuiu uma bolsa da Fondazione Cariplo (Progetto UniALA), e me acolheu na pessoa dos professores Livio An­ tonielli (diretor da Scuola Dottorale Humanae Litterae), Maria Colombo (diretora da Sezione di Francesistica), Jole Morgante e Emilia Perassi (diretora da Sezione di Iberistica). Também sou grata aos professores Hilário Franco Jr., An­ tonio Edmilson Rodrigues, Edgar De Decca, Alcir Pécora, Su­ sani França e Claudio De Boni pelo vivo apoio e interesse, ao Helvio Moraes, pelo diálogo constante, e a Eduardo Rocha, Yvone Greis, Ivone Gallo e Laura Machado pelas leituras aten­ tas da primeira versão da Introdução.



Sumário

Introdução.................................................................................................................................................11

a terra austral conhecida ou

a descrição desse país até agora desconhecido, de seus modos e de seus costumes Ao leitor......................................................................................................................................................57 1

Do nascimento de Sadeur e de sua educação............................................. 65

2

Da viagem de Sadeur ao reino do Congo....................................................... 77

3

Dos acidentes que conduziram Sadeur à terra austral...................... 88

4 Descrição da terra austral............................................................................................ 101 5

Da constituição dos austrais e de seus costumes.................................. 114

6 Da religião dos austrais.................................................................................................. 137 7

Dos sentimentos dos austrais sobre esta vida...........................................153

8

Das atividades dos austrais........................................................................................ 166

9 Da língua austral e dos estudos neste país................................................... 174 10 Dos animais da terra austral......................................................................................181 11 Das raridades úteis à Europa que se encontram no país austral................................................................................................................................. 188 12 Das guerras habituais dos austrais..................................................................... 196 13 Do retorno de Sadeur até a ilha de Madagascar....................................216 14 Da estadia de Sadeur na ilha de Madagascar............................................232


Bibliografia

Edições de a terra austral conhecida, de gabriel de foigny ...................... 239

Traduções de A terra austral conhecida........................................................................ 241

Outras obras de gabriel de foigny................................................................................. 241

Referências bibliográficas...................................................................................................... 242

Dicionários consultados........................................................................................................ 245


Introdução

1676. Gabriel de Foigny, um ex-monge franciscano francês, residente em Genebra e convertido ao calvinismo, publica A terra austral conhecida, um relato, escrito em primeira pes­ soa, atribuído a um certo Nicolas Sadeur, filho de franceses. Nessa autobiografia, Sadeur narra sua vida, suas viagens e sua acidental descoberta da terra austral, situada em uma parte do mundo desconhecida em sua época, a massa austral des­ crita pelos antigos, habitada por antípodas: a terra australis incognita1. A maior parte de seu relato consiste na descrição dessa terra ideal, antípoda e utópica, habitada por her­ma­ froditas perfeitamente racionais, vivendo em uma so­cie­dade radicalmente igualitária, sem política nem religião.

1

Sobre o mito do continente austral e sobre os antípodas, ver, por exemplo, Ray­ naud, 1893; Chocheyras, Bosetti et al., 1984; Linon, 1990; Racault, 1991, pp. 305-10, além da introdução de A.-M. Beaulieu à edição de Les trois mondes, de La Pope­ linière, publicada em 1582 (La Popelinière, 1997).


Figura 1 – Mapa de Abraham Ortelius (1574), em que se vê a imensa e desconhecida terra austral, Biblioteca Nazionale Centrale di Firenze.

Figura 2 – Mapa anônimo de 1630, Bibliothèque Nationale de France. 12 | gabriel de foigny


Figura 3 – Mapa de Jean Guérard (1634), Bibliothèque Nationale de France.

Pequena história de um utopista setentrional e de sua utopia austral Supõe-se que Gabriel de Foigny tenha nascido em 1630, na Picardia (norte da França), em Foigny, povoado pertencente à comuna de La Bouteille2. Acerca de seus anos de formação, sabe-se apenas que ele entra para a ordem franciscana e torna-se um Cordelier de l’Observance, nome dado, na França, aos frades menores conventuais da família 2

Cf. Lachèvre, 1968; Bovetti-Pichetto, 1978, pp. 5-73; Ronzeaud, 1990. O vilarejo de Foigny contava com uma importante abadia cisterciense que, todavia, em 1667, possuía apenas oito religiosos, segundo o relato do abade de Clairvaux, Pierre Henri.

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franciscana que se dedicam aos estudos, à pregação doutrinal e às atividades apostólicas3. O vilarejo de Foigny não distava muito do castelo de Vervins, um dos bastiões dos huguenotes. Essa região fora palco de violentos confrontos entre católicos e protestantes durante as guerras de religião do século XVI e continuou a ser o palco de tensões político-religiosas nas décadas seguintes. Vale lembrar que o século do autor de A terra austral conhecida começa pouco depois de ter sido pro­ mulgado o Édito de Nantes (1598), ponto culminante do projeto pacificador de Henrique IV, documento que au­ torizava a existência da comunidade político-religiosa hu­ guenote dentro do Estado monárquico e católico francês. A coexistência de duas religiões, porém, logo se viu com­ pro­metida quando o rei foi assassinado (1610): em um pri­ meiro momento, Maria de Medicis, católica e pró-espanhola, assume a regência; em seguida, Luís XIII, atingindo a maioridade e associado a Richelieu, seu primeiro-ministro, dá ao Estado um caráter contrarreformístico, reacendendo as guerras de religião. As restrições oficiais aos praticantes da religião reformada se intensificam a partir de 1657, quando começa a vigorar a legislação real visando à estrita aplicação do Édito de Nantes, que, de sua criação até esse momento, já havia passado por várias revisões em detrimento dos refor­ mados. As medidas decorrentes dessa nova legislação serão aplicadas com empenho renovado a partir de 1661, início do 3

É plausível imaginar que ele tenha recebido uma educação geral bastante sa­ tisfatória, que incluía o estudo da música. O ramo dos conventuais era parti­ cularmente dedicado às atividades escolásticas e científicas, sendo conhecido pela posse de ricas bibliotecas e por perpetuar os studia generalia; além disso, a ordem franciscana se distinguia desde o período medieval por sua rica tra­ dição musical. Cf. Aubert, 1977, verbete François (Ordre de Saint), II. Les frères mineurs conventuels.

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reinado pessoal de Luís XIV, e resultarão na revogação do Édito, em 1685, ápice de um conturbado e brutal processo de unificação político-religiosa4. Gabriel de Foigny exerce as funções de predicador fran­ ciscano até 1666, quando parte para Genebra e abjura o cato­ licismo. A década de 1660 é particularmente violenta, pois nesse momento o Estado francês acirra seu posiciona­men­to a favor da repressão da “heresia”, traduzindo em ações impe­ rativas a fórmula une loi, une foi, un roi. Como não foram encontrados documentos referentes aos primeiros 36 anos da vida de Foigny, não se sabe qual foi seu papel nesse con­ texto histórico, nem se o clima contrarreformista contri­buiu de algum modo para sua decisão. Tampouco se conhecem os motivos pelos quais Foigny escolheu a cidade-modelo de Calvino, onde, apesar de a inquisição imposta pelo reforma­ dor ter se atenuado, ainda reinava uma atmosfera de intran­ sigência, mantida sobretudo pelas instâncias do poder re­ ligioso criadas por Calvino, o Consistório5 e a Venerável Companhia6, que atuavam paralelamente aos órgãos políti­ cos: Conselho Geral, Conselho dos Duzentos, Conselho dos Sessenta e Pequeno Conselho7. 4 Sobre os conflitos religiosos na França do século XVII, há uma vasta bibliogra­ fia. Ver, por exemplo, Garrisson, 1985. 5 O Consistório era um tribunal do comportamento composto por pastores da cidade, por 12 anciãos nomeados pelo Pequeno Conselho e por um síndico que presidia as sessões. A pena máxima aplicada por esse órgão consistia em privar da Santa Ceia os culpados de delitos que não se enquadravam nos crimes julga­ dos pelo Pequeno Conselho. 6 Formada por pastores das cidades, das paróquias rurais e por professores da Escola de Teologia, a Venerável Companhia era o órgão responsável pelas ques­ tões religiosas do Estado (estudos teológicos, administração e direção da Igreja, consagração dos ministros e eleição de seus membros). 7 O Pequeno Conselho, que administrava Genebra, era também chamado de Conselho Ordinário ou Pequeno Conselho dos Vinte e Quatro ou ainda Conse­ lho Estreito. Compunha-se de quatro síndicos (chefes de família eleitos por um ano pelo Conselho Geral), quatro síndicos veteranos e 17 conselheiros. Os qua­

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Foigny permanece até 1684 em cidades do território atualmente pertencente à Suíça, sendo este o único período documentado de sua vida, durante o qual foi alvo de vários processos movidos pelo Consistório e pela Venerável Com­ panhia, frequentemente levados ao Pequeno Conselho8. Ao chegar a Genebra, Foigny solicita ao Consistório uma autorização para residir nessa cidade e para abjurar o cato­ licismo e, à Venerável Companhia, uma ajuda financeira. Um mês depois, consegue trabalhar como professor de música e corretor de provas tipográficas, mas mal consegue se sustentar. Recorre então à Bourse Française, associação destinada a dar assistência a refugiados de origem francesa, a qual não lhe dá mais do que um escudo, e, novamente, à Venerável Companhia, que lhe paga dois meses do aluguel de seu do­micílio. Advertido de que não poderia permanecer na cidade caso não conseguisse se sustentar, decide então se casar com uma genebrina, Léa de la Maison, viúva Ducrest. Entrementes, ele recebe outro auxílio da Bourse Française e tenta desfazer as tratativas matrimoniais. A viúva, injuriada, recorre ao Conselho, que, por já ter recebido outras queixas

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tro síndicos, eleitos por um ano, exerciam a “justiça criminal”, assistidos por mais quatro membros. As poucas informações disponíveis sobre a vida de Gabriel de Foigny, que com­ preendem os anos de 1666 a 1684, provêm dos arquivos do Consistório, da Vene­ rável Companhia e do estado de Genebra, Lausanne, Morges e Berna, cidades onde ele viveu. Esses documentos se encontram em parte transcritos e comen­ tados por Frédéric Lachèvre no volume XII da coleção publicada entre 1909 e 1928, Le libertinage au XVIIe siècle, no qual se encontra a primeira reedição da primeira edição de A terra austral conhecida. Maria Teresa Bovetti Pichetto, em sua edição da Terra austral conhecida em italiano (1978), informa que retomou as pesquisas das fontes documentais para buscar informações sobre os períodos em que Foigny viveu na França, consultando documentos conservados nos Ar­ quivos do departamento de Chambéry, pertencentes aos franciscanos da Obser­ vância em Saboia, documentos conservados no Arquivo de Estado de Turim sobre os “Regolari tanto di qua che di la da Monti”, e os arquivos comunais e paroquiais de La Bouteille sem, no entanto, encontrar informações relevantes.

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a respeito de Foigny, decide submetê-lo a um interrogatório. Acusado de portar-se ambiguamente em relação à moral e à religião, acaba por ser expulso de Genebra. Em 17 de outubro de 1666, Foigny chega a Lausanne munido de seu certificado de abjuração e consegue receber um pequeno auxílio financeiro do governo local. Reconciliase com Léa de la Maison, com quem acaba se casando, e solicita às autoridades de Berna permissão para mudar-se para esta cidade. Enquanto isso, sustenta-se dando aulas de francês, latim, geografia e música a alunos estrangeiros. Em Berna, com o propósito de se reabilitar perante as acusações das autoridades religiosas, Foigny submete aos censores Les Attraits au service divin. Estamos em 1668. Ape­ sar de não autorizarem sua publicação, os censores julgam o livro “útil e edificante” e dão a Foigny uma soma para enco­ rajá-lo a prosseguir no bom caminho. Circunstâncias favoráveis levam Foigny a candidatar-se a regente de um colégio de Morges. Com a ajuda da família de um de seus alunos alemães, consegue o cargo e começa a le­ cionar em 1o de março de 1669. Foigny tenta, então, publicar seu livro nessa cidade. O Consistório local, porém, dá um parecer muito diverso daquele emitido pelas autoridades de Berna, acusando Les Attraits au service divin de papismo e misticismo. Advertido pelos pastores de Morges da hetero­ doxia de Foigny, o Consistório de Berna o convoca para dis­ cutir as asserções contestáveis de seu livro e decide por con­ firmar o veto de publicação. Em abril de 1671, Foigny é promovido a primeiro-regente do colégio de Morges, mas vê-se envolvido em novos con­fli­ tos, e é novamente obrigado a provar a ortodoxia de sua fé calvinista perante os censores de Berna. Pouco tempo depois, durante um culto, no momento da distribuição da Santa Ceia, a terra austral conhecida | 17


bêbado, o ex-monge vomita na mesa da comu­nhão. O Con­ sistório o condena a pagar uma multa, a submeter-se a repri­ mendas públicas e a pedir desculpas à comunidade. Seguemse novos atritos com algumas autoridades, que resultarão em mais um processo e na demissão de Foigny, que, além disso, será convidado a deixar a cidade. Em 1o de março de 1672, ele recebe uma autorização para retornar a Genebra com sua família (mulher e três filhos). Apoiado pelo síndico, Foigny concorre à vaga de cantor no templo de São Pedro, mas, em novembro de 1673, após um longo litígio envolvendo interesses diversos de vários grupos, outro músico é nomeado. Enquanto tenta obter o cargo de cantor, Foigny sustentase dando aulas particulares aos filhos das famílias estrangei­ ras e também publica a gramática latino-francesa que havia escrito em Morges, La facilité et l’élégance des langues latine et françoise, dedicada ao seu mecenas, o príncipe alemão Fer­ dinand de Wurtemberg. No ano seguinte, Foigny a reedita, acrescida de L’usage du jeu royal, um método lúdico que tem por objetivo ensinar as gramáticas latina e francesa em ape­ nas seis meses9. Não tarda, porém, para que surja um novo conflito: pais de alunos reclamam junto ao Consistório da concorrência que faz Foigny ao Colégio de Genebra, cujos métodos ele declaradamente despreza. Em 1673, é publicado um almanaque de teor satírico, Le grand Garantus, no qual Foigny fornece “informações as­ tronômicas, indicações práticas”, além de narrar “historie­ 9 Uma das fontes da ideia do aprendizado lúdico está no livro VII da República, numa passagem em que Platão sugere que as crianças sejam educadas de modo a aprender brincando. Esse princípio será retomado por Matthias Ringmann na Grammatica figurata, de 1509, um jogo de cartas que tem por objetivo ensinar gramática, no qual Foigny pode ter se inspirado para compor seu jeu royal.

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tas divertidas, para instruir divertindo”10. Uma nota de um docu­mento do Conselho de Genebra, datado de 22 de agos­ to de 1673, dá a entender que um concorrente, de nome Gentil, de Lausanne, teria comprado e destruído todos os exemplares desse almanaque; até hoje nenhum volume foi encontrado. Lachèvre informa que Foigny teria, em seguida, elaborado um jogo de cartas do qual tampouco foi encon­ trado exemplar. Em 1674, com a intenção de se proteger dos ataques de seus inimigos, Foigny decide reeditar os Psaumes de Marot et Bèze11, acrescentando comentários e orações de sua autoria com o objetivo de testemunhar sua devoção à religião refor­ mada. Todavia, por não ter pedido prévia autorização à Igre­ ja de Genebra, é alvo de mais um processo, seus anexos são condenados por conterem “erros, impiedades e incongruên­ cias”, e a venda do livro é vetada. Inicia-se um conflito entre os pastores do Consistório e o Conselho — instituição que se mostrava favorável a Foigny —, que se concluirá em finais de agosto de 1675 com o confisco de todos os exemplares do livro, condenados à destruição. 1676 é o ano de publicação de sua utopia. O frontispício diz: “La terre australe connue: c’est-à-dire, la description de ce pays inconnu jusqu’ici, de ses moeurs & de ses coûtumes. Par M. Sadeur. Avec les avantures qui le conduisirent en ce Con­ tinent, & les particularitez du sejour qu’il y fit durant trentecinq ans & plus, & son retour. Réduites et mises en lumières par les soins & la conduite de G. de F.; Vannes, par Iaques Verneuil, ruë S. Gilles, 1676”. Dessas informações, a única não ficcional é a data de publicação. 10 Lachèvre, 1968, p. 27. 11 Os famosos Psaumes de Marot et Bèze foram editados inúmeras vezes ao longo do século XVII.

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De A terra austral conhecida, bem como das outras obras de Foigny, não se conhecem os manuscritos, nem os detalhes acerca de sua redação. É possível, no entanto, retraçar um pouco da história dessa utopia lendo o processo ao qual ela foi submetida, após ter sido publicada e, por fim, caído nas mãos da Venerável Companhia. O resumo desse processo, que exporemos aqui, ilustra significativamente a relação de Foigny com as autoridades político-religiosas calvinistas12. Em 10 de novembro de 1676, informada da publicação, a Venerável Companhia solicita o parecer de alguns professores de teologia acerca desse livro que, segundo ela, contém “quantidade de impertinências”. Em 24 de novembro, o pastor A. Mestrezat julga-o conde­ nável por conter “várias falsidades, impertinências, diversas fábulas, impiedade e outros disparates”. Além disso, vem à tona a informação de que o texto não fora publicado por Jac­ ques Verneuil, e sim por La Pierre. Em 1o de dezembro, Mestrezat e Després13 reforçam o juí­ zo já enunciado: o livro de Foigny “é repleto de extrava­ gâncias, falsidades e mesmo coisas perigosas, infames e ím­ pias”, principalmente nos capítulos V (“Da constituição dos austrais e de seus costumes”) e VI (“Da religião dos austrais”). Foigny é convocado para responder pelas “coisas intoleráveis contidas neste livro”. Em 8 de dezembro, a Venerável Companhia o interroga acerca da autoria do livro, do manuscrito e de sua impres­são.

12 Nossa fonte é o artigo de Kirsop, 1980-1981, e o livro de Lachèvre, no qual se encontram transcritos os principais trechos do processo da Terra austral conhecida, que começa em 10 de novembro de 1676 e se estende até 15 de setembro de 1677. Lachèvre, por sua vez, recebeu essas informações de arquivistas suíços (Lachèvre, 1968, pp. 33-51). 13 Després e Mestrezat eram professores da Academia de Genebra desde 1663.

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