Descalço sobre a terra vermelha

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universidade estadual de campinas Reitor José Tadeu Jorge Coordenador Geral da Universidade Alvaro Penteado Crósta

Conselho Editorial Presidente Eduardo Guimarães Esdras Rodrigues Silva – Guita Grin Debert João Luiz de Carvalho Pinto e Silva – Luiz Carlos Dias Luiz Francisco Dias – Marco Aurélio Cremasco Ricardo Luiz Coltro Antunes – Sedi Hirano

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Francesc Escribano

descalço sobre a terra vermelha A vida do bispo Pedro Casaldáliga

2a edição

tradução Carlos Moura

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Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990. Em vigor no Brasil a partir de 2009.

ficha catalográfica elaborada pelo sistema de bibliotecas da unicamp diretoria de tratamento da informação Es19d

Escribano, Francesc Descalço sobre a terra vermelha: A vida do bispo Pedro Casaldáliga / Francesc Escribano; tradução: Antônio Carlos Moura Ferreira. – 2a ed. – Campinas, sp: Editora da Unicamp, 2014. 1. Casaldáliga, Pedro, 1928-. 2. Estrutura agrária. 3. Reforma agrária. 4. Posse da terra. 5. Agricultura e Estado. 6. Igreja Católica – Clero – Biografia. 7. Igreja e problemas sociais – São Félix do Araguaia (MT). 8. Brasil – Condições rurais. I. Ferreira, Antônio Carlos Moura. II. Título.

cdd 981.172 338.18 333.1 922.2 333.31 261.8 333.33 338.10981 e-isbn 978-85-268-1239-0 Índices para catálogo sistemático: 1. Casaldáliga, Pedro, 1928- 2. Estrutura agrária 3. Reforma agrária 4. Posse da terra 5. Agricultura e Estado 6. Igreja Católica – Clero – Biografia 7. Igreja e problemas sociais – São Félix do Araguaia (MT) 8. Brasil – Condições rurais

981.172 333.1 333.31 333.33 338.18 922.2 261.8 338.10981

Copyright © by prelazia São Félix do Araguaia Copyright © 2014 by Editora da Unicamp Título original: Descalç sobre la terra vermella Vida del bisbe Pere Casaldàliga 1a edição, 2000 Editora da Unicamp Direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19.2.1998. É proibida a reprodução total ou parcial sem autorização, por escrito, dos detentores dos direitos. Printed in Brazil. Foi feito o depósito legal. Direitos reservados à Editora da Unicamp Rua Caio Graco prado, 50 – Campus Unicamp cep 13083-892 – Campinas – sp – Brasil Tel./Fax: (19) 3521-7718/7728 www.editora.unicamp.br – vendas@editora.unicamp.br


O autor e o biografado deste livro dedicam a versão brasileira ao tradutor, Antônio Carlos ­Moura Ferreira, companheiro incondicional da caminhada e irmão universal, por sua soli­ dariedade em todas as Causas da Libertação.

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Agradecimentos

Este livro é resultado de um esforço coletivo, alcançado graças à fi­g ura exponencial de Pedro Casaldáliga. Para esta edição, contri­ buíram o autor do livro, os editores catalães, o professor Jorge Llagostera, com a tradução de alguns poemas e das legendas, José Ruiz Guillén, com a tradução do Epílogo, o responsável pela tra­ dução e seus familiares, todos abrindo mão de qualquer benefício financeiro com esta edição, já que os recursos obtidos com a venda deste livro serão destinados à prelazia de São Félix e seus programas de defesa dos direitos humanos.

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Sumário

Apresentação (Paulo Miceli).............................................................................................. 11 1 Os primeiros passos............................................................................................................. 13 2 Abrindo os olhos.. .................................................................................................................. 27 3 O Pai dos Desvalidos......................................................................................................... 41 4 Um remo e um chapéu de palha............................................................................... 51 5 Vocação de vocações............................................................................................................. 67 6 O pequeno Vietnã................................................................................................................ 79 7 Txeramunha............................................................................................................................ 99 8 João Bosco.. ................................................................................................................................. 115 9 A Pátria Grande.. ................................................................................................................. 129 10 O caminho de Roma.......................................................................................................... 149 11 Novas fronteiras.................................................................................................................... 161 12 O dia de hoje.. .......................................................................................................................... 171

Epílogo.................................................................................................................................................. 181 Bibliografia.. ...................................................................................................................................... 191 1 . Obras de Casaldáliga publicadas no Brasil......................................... 191

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2. Obras de Casaldáliga publicadas somente fora do Brasil....... 191 3. Outras obras sobre Casaldáliga.................................................................... 192 4. Discos e fitas................................................................................................................ 192 5. Vídeos................................................................................................................................ 193 Caderno de imagens. . ................................................................................................................. 195

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Apresentação

Obediente a um imenso relógio imaterial, a Natureza tem seu ritmo e equilíbrio para fazer e refazer, fazer e desfazer... Montanhas que tocam nuvens, depressões abissais, oceanos e planícies, plantas e bichos, tudo muda de forma e lugar. Sempre e sempre. Não há beleza que não passe, nem matéria que seja eterna ou luz que, um dia, não se apague, seja a do sol ou de mil sóis, se houvesse. Por isso, no tempo efêmero da existência humana, nada pode começar do nada. Se o deserto vem depois da floresta, é porque a monótona e estridente sinfonia das motosserras ignora latitudes e longitudes. Se o lixo vem depois das paisagens, é porque a pobre Utopia do presente ameaça acorrentar irresponsavelmente o futuro. Se a destruição vem depois da criação, é porque os que prestam culto à divindade da cobiça desmedida, de costas para a Vida Plena, gastam sua paixão na adoração do lucro, reduzindo o preço da vida humana a razões contábeis e discursos econômicos. Um rio, muitos rios, de que valem se não for para produzir riqueza? O transporte barato importa bem mais do que a vida de um pu­ nhado de índios e ribeirinhos que pouco podem fazer por si. Abandonados no coração da floresta, onde, há alguns anos, ainda valia o lento arrastar do tempo da Natureza, devem ceder o leito de suas canoas e voadeiras a barcaças imensas que carregam para longe todo o sal e a seiva, sugados com voracidade, daquela terra. Devem ceder, de novo e sempre, ou lutar, assim como agora, 11

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quando parecem forçados a abandonar sua terra e sua história, que só é incompreensível para quem, hipocritamente, finge não compreender. Donos de um passado que custa reter, correm o ­risco, cada vez mais presente, de não chegar ao amanhã, barrados por cercas, projetos e outras armas. A luta não é apenas deles e pode parecer pequena, quando se contempla o mundo pelo olhar estreito do egoísmo. É uma luta distante para quem vê a miséria e passa adiante, sem admitir que não há escolha senão entre os riscos da responsabilidade e a fútil serenidade da covardia. Pedro Casaldáliga viu e não passou adiante, quando quatro crianças mortas, postas em caixas de sapatos, mostraram ao recém-chegado a primeira imagem de uma sociedade injusta. Escolheu ficar naquele fim de mundo, envolvido com seus silêncios e distâncias, para começar uma luta sem recuos e sem fronteiras. No princípio, batalhou consigo mesmo, mas, logo depois, chamou para si as dores dos esquecidos dos homens e, com o trabalho de sua vida inteira, pôs-se em combate para impedir que se lhes usurpasse toda a dignidade. Casaldáliga atingiu, como poucos, a serenidade dos corajosos. Para ele, jamais importou quantas vezes sua vida esteve na mira, felizmente descalibrada, dos assassinos de encomenda. Pedro é águia, em cujo casarão nasceu. Por isso, seu voo é alto, para melhor medir a pequenez das ambições cotidianas. Mas, além da ave que simboliza a valentia, deve encarnar também a natureza daquela que simboliza a Paz. Pedro Casaldáliga é pomba e é águia. É um guerreiro em missão de paz. Arquiteto de um novo mundo, é um homem, com paixão, a serviço da Utopia. Paulo Miceli

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Os primeiros passos

Conservo uma imagem nítida e contundente de meu primeiro encontro com Pedro Casaldáliga: ainda posso ver sua figura, de aspecto extraordinariamente frágil, a meu lado, enquanto passeávamos pelas ruas poeirentas de São Félix, e poderia repetir quase de memória cada uma de suas palavras: — Quando cheguei aqui, a primeira coisa que vi foram os corpos de quatro crianças mortas, que deixaram na porta de minha casa. — Tentava escutá-lo e, ao mesmo tempo, seguir o voo de suas mãos, umas mãos finas e longas que desenhavam no ar o que seus olhos haviam visto: — Quatro meninos mortos, colocados em caixas de sapatos, essas foram as boas-vindas que recebi. — Levantou o braço, como se quisesse apagar aquela lembrança e, com uma voz truncada pela emoção, concluiu: — Às vezes, se não fosse pela esperança cristã... Imagino que Pedro Casaldáliga deva ter chorado muitas vezes desde que chegou ao Brasil, mas eu fui testemunha daquelas lágrimas e também da paixão que evidenciavam. Impressionaram-me porque estava chorando a sua gente. Casaldáliga nasceu e se fez homem na Catalunha, mas, se é alguma coisa mais que isso, ele o é porque a encontrou aqui, ou porque lha deu este Brasil. Um país onde nunca faltaram motivos para chorar, nem causas pelas quais lutar. Já se passou muito tempo desde aquele primeiro encontro, em 1985. Espero que as coisas tenham mudado e que a região que en13

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tão me impressionou seja agora um pouco menos selvagem. Es­ pero, também, tornar a ver Pedro Casaldáliga com a mesma força e a mesma determinação daquela vez. De momento, uma coisa não mudou muito: as dimensões do pequeno avião que cobre o tra­jeto de Brasília a São Félix do Araguaia, um bimotor minúsculo que faz um barulho insuportável. Da janela, contemplo o imenso tapete verde da mata do Mato Grosso, salpicada às vezes por nuvens baixas que não passam de fumaça espessa das quei­ madas provocadas pelos pecuaristas para preparar as novas pastagens. São quilômetros e quilômetros de verde, água e terra ver­ melha. De tanto em tanto, vê-se uma casa isolada, um pequeno povoado, que permite intuir que lá embaixo, além de árvores, também há gente. A prelazia de São Félix do Araguaia é extraordinariamente extensa: 150 mil km2, um território equivalente à terça parte de toda a Espanha. Muita terra para muito pouca gente: a população de toda a região não chega aos cem mil habitantes. Diante dessa imensidão, pergunto-me o que as pessoas vieram buscar aqui e por que Casaldáliga escolheu este lugar. No bimotor, viajamos apenas quatro pessoas. O aspecto de meu companheiro de assento chamaria menos atenção se ele fi­ gurasse como extra num filme americano de caubóis; não destoaria nada. Veste um conjunto perfeito de jeans, um grande chapéu branco e botas de montaria. Depois de trocar com ele as quatro frases que a boa educação impõe, ele descobre logo que sou estrangeiro e o motivo de minha viagem. Pela maneira de falar, pelo volume da voz e por sua forma de olhar — de alto a baixo, como se ainda não tivesse descido do cavalo —, deduzo que é um tra­ balhador qualificado de algum dos numerosos latifúndios da região. — Então você vai ver o bispo dom Pedro — diz ele. — É um bom homem. — Pode ser que as coisas tenham mudado, se alguém que trabalha para os latifundiários da região faz essa avaliação de Casaldáliga. Não saberia dizer se ele realmente é sincero. Por isso, depois de comentarmos três ou quatro tópicos sobre o 14

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Brasil e a Espanha, tento escavar um pouco a definição de “bom homem”. — É um bom homem, mas o seu tempo já passou — acrescenta o caubói. — Há alguns anos, quando dom Pedro chegou a São Félix, fez coisas muito boas para melhorar a vida dos pobres da região. Mas agora são outros tempos e é preciso um outro tipo de gente e um outro estilo. — Não é necessário insistir muito para que este personagem pitoresco se solte, dizendo o que pensa: — É um radical, dedica-se mais à política que à religião. Talvez fizesse bem em deixar a política, que é uma coisa que não combina muito com um homem de Igreja. Mas isto que eu lhe disse — concluiu —, não significa que eu não considere dom Pedro um bom homem —. Depois desses argumentos, considero mais prudente voltar à conversa sobre o Brasil e a Espanha até o fim da viagem. O Araguaia, rio que bordeja a região de São Félix de sul a norte, vai-se fazendo maior à medida que o bimotor começa a planar lentamente na direção da pista de pouso. Sinto curiosidade de tornar a ver Casaldáliga, saber como se encontra, desejo poder es­ cutá-lo outra vez... São muitas as perguntas que tenho sobre sua vida, sobre o que tem feito e o que ainda faz neste Brasil. Ele tem mais de 70 anos e há 30 vive aqui. Trinta anos sem retornar à sua Catalunha natal, que mudaram definitivamente sua vida, que o converteram em uma figura tão admirada e venerada quanto perse­ guida e criticada. Pergunto-me o que esta terra lhe pôde dar, para fazer com que este padre crescido no ambiente de pós-guerra civil da Espanha, oriundo de uma família de direita, tenha se torna­do um dos símbolos da Igreja revolucionária da América Latina. Quando o pequeno avião baixa, o calor e a poeira me golpeiam e não me deixam respirar. São quase 12 horas de um dia quente do final de julho. Há 30 anos, por esta mesma época, na temporada da seca, Casaldáliga chegou a esta região do Brasil em que o ano tem somente duas estações, marcadas pela chuva e pela seca. No fim da longa pista de aterrissagem, o que poderíamos chamar de aeroporto é simplesmente um barracão com uma ba15

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lança. Dois empregados se encarregam das bagagens enquanto três ou quatro pessoas esperam os passageiros. Entre estes se encontra Pedro Casaldáliga. Um longo abraço e uma constatação: está igual. Os cabelos muito mais brancos, os olhos um pouco mais cansados, mas iguais. Continua tão magro como sempre, tanto que no primeiro golpe de vista dá uma sensação de fragilidade, que aumenta quando você olha seus pés: caminha praticamente descalço, com umas havaianas minúsculas que se conver­ teram em símbolo de identidade de todos os que trabalham na prelazia de São Félix, a ponto de, aqui, chamarem as havaianas de “prelazia”. Casaldáliga traz o mesmo calçado que a maioria dos moradores da região, como um sinal lógico e evidente de seu compromisso, que começou a forjar-se pouco tempo após sua chegada e agora é uma realidade visível da cabeça aos pés. Vamos para sua casa. — Você já a conhece, é a mesma de sempre — diz-me —, e está com sorte porque há um quarto livre. Estava para chegar o amigo José Maria Vigil, mas ele avisou que vai atrasar uns dias. — De fato, é uma sorte. A casa costuma estar sempre cheia de gente: amigos, agentes pastorais da prelazia ou, simplesmente, pessoas que estão de passagem e que pedem um lu­ gar para dormir. É um costume que não mudou com os anos. Por outro lado, no caminho que vai do aeroporto para a casa do bispo, começo a perceber que São Félix, sim, mudou. Apesar da pobreza de seu povo e da distância do resto do mundo, podem-se agora ver nas ruas, nas casas e nos pequenos comércios alguns sinais tímidos de modernidade. Os anos passam, e São Félix já não é a mesma cidade que conheci alguns anos atrás; tampouco é o po­ voado perdido que Casaldáliga encontrou quando chegou aqui. Pedro Casaldáliga chegou à região de São Félix do Araguaia no final de julho de 1968; o maio francês e a Primavera de Praga eram os símbolos de um mundo que estava em efervescência e transformação, e a Igreja avançava em seu processo de aggiorna­ mento, especialmente na América Latina, com a conferência dos bispos em Medellín. Aquele ano, qualquer lugar do planeta 16

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parecia mais interessante que as florestas do interior do Brasil. — Ainda que possa parecer estranho a você, o fato de eu vir para o Brasil está relacionado com minha condição de catalão — reconhece Casaldáliga. — Os claretianos, minha congregação, pediam voluntários para duas missões: uma no Mato Grosso e outra no altiplano da Bolívia. Então pensaram que eu, que falava o catalão e o castelhano, teria mais facilidade com o português. E vim para o Brasil. Para Casaldáliga, o “Mato Verde” assinalado no mapa* plas­ mava todos os sonhos acumulados durante muitos anos de carreira religiosa. A missão era uma destinação feliz, apesar de, naquele momento, ele não ter uma ideia muito clara de onde ficava. Tinha participado de um curso de cinco meses em Petrópolis, no Cenfi, um centro de formação para missionários estrangeiros, que eram preparados para se adaptar ao Brasil, mas o que ele encontrou ao chegar a São Félix superava qualquer expectativa. Era impossível imaginar. Estudava no Cenfi um numeroso e heterogêneo grupo de padres e freiras procedentes de diversos países europeus. Casaldáliga, em uma carta dirigida aos amigos da Catalunha, admira a determinação daquele grupo e se mostra gratamente surpreso pelo fato de as religiosas não serem nem feias, nem ingênuas. Ali ele recebeu uma formação intensiva que tinha de prepará-lo para enfrentar tanto uma doença tropical como um líder indígena. O curso lhe serviu também para livrar-se de algumas ideias que tinha sobre o país e para que começasse a intuir por onde viriam os problemas com que teria de conviver. O Brasil, no fim da década de 1960, era um país pobre, governado por um regime militar. Uma combinação ideal para a injustiça social e política. Chegar a São Félix não foi fácil. Foram sete dias de viagem num caminhão, a maior parte deles no meio da mata. Sete dias e

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Nos mapas que circulavam até a década de 1970, a única cidade que aparecia no nordeste do Mato Grosso era “Mato Verde”, antiga denominação do município de Luciara. (N. do T.)

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sete noites, de Rio Claro, passando por Goiânia e Barra do Garças, até chegar a São Félix do Araguaia. Os últimos quilômetros foram os mais duros, porque a estrada, que ainda estava sendo aberta, era praticamente inexistente em muitos trechos. Casaldáliga viajava acompanhado por Manuel Luzón, outro missionário claretiano. Ambos iam compartilhar a aventura de fundar a missão de São Félix e, na medida em que se aproximavam de seu destino, aumentava a sensação de chegar a um mundo de onde o retorno era impossível. O contraste era brutal. De um lado, uma natureza incrível, de uma beleza primitiva, especialmente o enorme e majestoso Araguaia; de outro, uma sensação de abandono total: não existia lá nem correio, nem telefone, nem energia elétrica. A prefeitura estava a mais de 700 km ao sul, em Barra do Garças. O povoado de São Félix era somente um punhado de casinhas na beira do rio. Apenas 600 habitantes, que, para quebrar o isolamento, contavam unicamente com três jipes velhos e desmantelados. Não havia um único médico em toda a região. Mas ao menos tinham uma professora: uma senhora com apenas um ano e meio de estudo, que mal podia cumprir suas obrigações porque estava frequentemente embriagada. Tento imaginar como deveriam sentir-se os dois missionários no meio daquele panorama desolador. — Tenho repetido muitas vezes — diz Casaldáliga — que minha primeira sensação foi das distâncias. As distâncias... Eu sou eu e as minhas distâncias. Não somente distâncias geográficas, mas também culturais, pastorais... Isto aqui era terra de ninguém. De repente me senti no meio de 150 mil quilômetros quadrados e com a missão de percorrer todo esse território... Talvez por isso, quando cheguei aqui, trouxe somente livros, nada mais. Disse a mim mesmo: — Vamos para aquele fim de mundo e, se não tivermos livros, não aguentaremos... Os dois missionários sentiam-se perdidos em um mundo desconhecido. Eram poucos e eram estrangeiros. O que Casaldáliga sentia naquele momento se reflete em seu diário pessoal. “Talvez”, 18

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escrevia ele, “eu necessite aqui, mais do que nunca, do diálogo interior, em meio a tantos silêncios... Chegamos à Missão dia 30 de julho e já pensei e senti e temi e esperei e me alegrei com muitas coisas. Dos homens, da natureza, de Deus...” Os primeiros passos teriam de ser dados com muita cautela e com escassos recursos. A casa onde foram morar tinha pouco mais de 30 m2, e a igreja era extremamente rústica, um barracão de adobes com telhado de Brasilit. O que fazer, por onde começar? Eles não eram os únicos religiosos em toda a região; tinham de conviver com outras missões — adventistas, pentecostais e ba­ tistas — e o diálogo era difícil. O espírito ecumênico de Taizé, uma experiência que naqueles tempos fascinava Casaldáliga, es­ tava muito distante da ideologia desses outros missionários. O restante do panorama da região era deprimente: “Muita ignorância, rancores políticos, interesses e miséria”, escrevia, numa carta a amigos da Catalunha, “[...] Escrevam também. E sobretudo rezem... As pessoas aqui são simples e cordiais. Ignorantes, também. Mas com vontade de sair desse estado de sofrimento, de dor, de iso­lamento. O rio está a exatos sete metros de nossa casa. Um panorama maravilhoso”. Os habitantes de São Félix, as pessoas às quais Casaldáliga se referia em sua carta, são, em sua maioria, migrantes vindos do Nordeste do Brasil, que chegaram aqui fugindo da seca brutal que impossibilitava a vida em sua terra de origem. Tinham somente duas possibilidades: a miséria das favelas das grandes cidades ou a aventura da selva amazônica. Alguns líderes religiosos e políticos da época — como, por exemplo, o padre Cícero Romão Batista, espécie de Moisés dos nordestinos, que anunciou grandes secas e desgraças para convencer as pessoas a emigrarem — estimularam-nos a adentrar esse “Mato Verde”, desenhando-o como uma terra cheia de oportunidades e de riquezas. Uma terra imensa onde todo mundo poderia ter seu pedaço de chão para plantar. A realidade era, e ainda hoje é, bem diferente: o Mato Grosso e outros estados da Amazônia legal são regiões onde a vida se combina 19

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com a morte. Uma terra dura e violenta como poucas. Não parecia o melhor lugar do mundo para onde se dirigir aquela autêntica legião de deserdados que foi para lá. — Era gente perdida na imensidão — explica-me Casaldáliga —, gente vinda de enxurrada, como falam aqui, retirante. Esse povo impressionou-me por sua pobreza, mas também por sua alegria. As festas são festas, e aos domingos nos vestimos para ir à missa, para ir ao baile, mesmo não tendo quase nada em casa. Existe aqui um sentido da dignidade pessoal, e evidentemente há um grande sentido de festa, que é muito africano, é muito indí­ gena, é muito criollo, muito mestiço e muito latino-americano. Por outro lado, também tive a sensação de que era um povo dominado: sim senhor, sim senhora. A famosa política de cabresto, como dizem por aqui. Nós lutamos muito para mudar os critérios de es­colha dos padrinhos de batismo. As pessoas sempre escolhiam para padrinho de seus filhos o comerciante, o político... Tivemos de lutar muito para convencê-los a escolher padrinhos que significassem alguma coisa, que fossem padrinhos da fé de seus filhos, e não simplesmente um comerciante, um fazendeiro ou um polí­tico. Essa dependência dos poderosos vem ainda da época da escravidão. Casaldáliga deveria ganhar a confiança daquele povo, mas não era fácil. Ele e Manuel começaram atuando mais como enfer­ meiros do que como sacerdotes. A saúde era um problema avassalador, que suplantava qualquer outra obrigação missionária. As doenças tropicais, sobretudo a malária, atacavam sem miseri­ córdia, especialmente as crianças. Dificilmente ele poderá esquecer aquele enterro das quatro crianças, que foi um dos primeiros sepultamentos coletivos que celebrou assim que chegou a São Félix. Dois daqueles “anjinhos”, como suas mães os chamavam chorando, eram filhos de prostitutas. Casaldáliga recorda claramente o que confessou a seu companheiro Manuel Luzón: — Ou vamos embora daqui agora mesmo, ou nos suicidamos, ou encontramos uma solução para isto tudo. 20

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