Guerra santa
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universidade estadual de campinas Reitor José Tadeu Jorge Coordenador Geral da Universidade Alvaro Penteado Crósta
Conselho Editorial Presidente Eduardo Guimarães Esdras Rodrigues Silva – Guita Grin Debert João Luiz de Carvalho Pinto e Silva – Luiz Carlos Dias Luiz Francisco Dias – Marco Aurélio Cremasco Ricardo Luiz Coltro Antunes – Sedi Hirano
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Jean Flori
guerra santa formação da ideia de cruzada no ocidente cristão tradução Ivone Benedetti
revisão técnica Néri de Barros Almeida
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Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990. Em vigor no Brasil a partir de 2009.
ficha catalográfica elaborada pelo sistema de bibliotecas da unicamp diretoria de tratamento da informação F663g
Flori, Jean. Guerra santa: Formação da ideia de cruzada no Ocidente cristão / Jean Flori; tradução: Ivone Benedetti; revisão técnica: Néri de Barros Almeida. – Campinas, sp: Editora da Unicamp, 2013. 1. Guerra – Aspectos religiosos. 2. Cristianismo – História das doutrinas – Idade Média – 600-1500. 3. Cruzadas. I. Ivone Castilho Benedetti. II. Néri de Barros Almeida, 1965-. III. Título.
cdd 909.07 isbn 978-85-268-1022-8 261.873 Índices para catálogo sistemático:
1. Guerra – Aspectos religiosos 2. Cristianismo – História das doutrinas – Idade Média – 600-1500 3. Cruzadas
909.07 261.873 909.07
Título original: La guerre sainte: La formation de l’idée de croisade dans l’Occident chrétien de Jean Flori Copyright © 2009 by Éditions Flammarion Copyright © 2013 by Editora da Unicamp
Direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19.2.1998. É proibida a reprodução total ou parcial sem autorização, por escrito, dos detentores dos direitos. Printed in Brazil. Foi feito o depósito legal.
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sumário
Prefácio à edição brasileira
a formação da ideia de cruzada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9 siglas e abreviaturas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13 introdução.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15 1
cruzada, peregrinação e guerra santa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19 A primeira cruzada e sua problemática.. ........................................................................ 19 Como interpretar a cruzada? Apanhado das diversas visões historiográficas .......................................................................................................................... 25
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império cristão .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35 Carlos Magno, Roma e os lugares santos ........................................................................... 36 Os cristãos e a guerra no império romano.. ...................................................................... 40 Santo Agostinho: Da guerra santa à guerra justa.. ........................................................ 42 De um império romano ao outro .......................................................................................... 44 A defesa de Roma ........................................................................................................................ 49 Uma “indulgência” de guerra santa? ................................................................................... 53 Império romano-germânico.. ................................................................................................... 57 O clero e a guerra . . ...................................................................................................................... 58
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da paz de deus à cruzada? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65 “Paz de Deus” na idade de ferro? Interpretação tradicional ..................................... 66 Retoques necessários. . ................................................................................................................. 68 A Igreja e a paz de Deus: Problemática ............................................................................. 74 As pazes do Maciço Central .................................................................................................... 76 As pazes na Aquitânia.. ............................................................................................................. 80 Extensão das pazes ..................................................................................................................... 88 As milícias de paz de Bourges (1038) ................................................................................. 92 A trégua de Deus ......................................................................................................................... 95 Conclusão ....................................................................................................................................... 99
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a violência sagrada dos santos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 07 O poder crescente dos santos .................................................................................................. 1 08 Milagres dos santos ..................................................................................................................... 1 11 A violência de Santa Fé ............................................................................................................ 1 12 A violência de São Bento
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........................................................................................................ 1 19
dos santos guerreiros aos guerreiros santos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 31 Santos militares ............................................................................................................................ 1 32 Dos reis aos advogados [advocati]: Sacralização litúrgica dos defensores de igrejas ......................................................................................................................................... 1 38 Sob as bandeiras dos santos .................................................................................................... 1 47 Sob o signo da cruz. . ................................................................................................................... 1 49 Guerreiros, santos e mártires
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sob a bandeira de são pedro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 67 O vexillum de São Pedro. . ........................................................................................................ 1 69 Combates sacralizados e guerreiros santificados por São Pedro.. ........................... 1 77 Leão IX e os mártires de Civitate ......................................................................................... 1 79 Alexandre II e os mártires da Pataria ................................................................................ 1 85
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gregório vii e a libertação da igreja . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 97 Reforma e liberdade da Igreja . . .............................................................................................. 1 97 Autoridade pontifical e poder monárquico ....................................................................... 2 01 O poder de São Pedro ................................................................................................................ 2 05 Direito de propriedade de São Pedro.. ................................................................................. 2 06 São Pedro e a Espanha .............................................................................................................. 2 10 O patrocínio de São Pedro ....................................................................................................... 2 14 Gregório VII e os milites. O “serviço” a São Pedro ....................................................... 2 17
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Milites, milites sancti Petri .................................................................................................... 2 19 “Soldados de Cristo” ................................................................................................................... 2 20 Servir a Deus ou ao diabo ....................................................................................................... 2 23 8
cristãos e pagãos: demonização dos adversários da cristandade até o ano 1000 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2 33 Poitiers (732): Nascimento da cristandade ocidental? ................................................. 2 33 Nascimento de uma caricatura: Percepção dos muçulmanos por parte dos cristãos do Oriente . . .................................................................................................................... 2 36 A imagem dos muçulmanos entre os cristãos do Ocidente.. ....................................... 2 42 Os mártires de Córdova ............................................................................................................ 2 45 Exportação do espírito dos mártires de Córdova ........................................................... 2 47 Crônicas asturianas e sacralização da reconquista ...................................................... 2 49 Epopeia e guerra santa. . ............................................................................................................ 2 55
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guerra santa e reconquista cristã depois do ano 1000 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2 67 Uma nova “mutação” do ano 1000?. . ................................................................................... 2 67 Reconquista cristã no Ocidente ............................................................................................. 2 68 Guerra justa e guerra santa .................................................................................................... 2 72 Guerra contra os pagãos ........................................................................................................... 2 74 Guerra santa e reconquista na Espanha. O papel de Cluny ...................................... 2 77 Papado e reconquista espanhola........................................................................................... 2 81 Guerra santa e reconquista no Ocidente
.......................................................................... 2 93
10 da guerra santa à cruzada .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3 05 Por que a convocação para a cruzada? O Oriente Médio às vésperas da convocação de Urbano II . . ........................................................................................................ 3 05 Projetos de cruzada antes de 1095 ....................................................................................... 3 08 Urbano II e a mensagem de cruzada .................................................................................. 3 14 Jerusalém e os lugares santos. . ................................................................................................ 3 16 Jerusalém, meta da peregrinação ou objetivo militar?.. ............................................... 3 20 Cruzada, paz de Deus e motivações materiais.. .............................................................. 3 22 Indulgência, penitência e remissão dos pecados ............................................................. 3 26 Indulgência.. ................................................................................................................................... 3 26 Pro remissione peccatorum ................................................................................................... 3 27 Milites Christi e guerra santa.. .............................................................................................. 3 33 Outras características da guerra santa.. ............................................................................. 3 34
conclusão: guerra santa, jihad e cruzada .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3 49
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Cruzada e guerra santa ............................................................................................................ 3 52 Jihad e cruzada ............................................................................................................................ 3 56
bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3 63 Ăndice de nomes e lugares.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4 05
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a formação da ideia de cruzada Néri de Barros Almeida
As cruzadas foram um acontecimento em seu próprio tempo. Seus testemunhos se contam entre os mais vastos e diversificados do período. O interesse que despertaram ainda em plena Idade Média, o envolvimento dos grandes personagens de então, entre os quais se contam imperadores, papas e príncipes regionais, aliados ao reconhecimento pelos historiadores modernos de sua importância na dinâmica histórica lhes garantiram um lugar de destaque na memória coletiva. A esse conjunto provavelmente se deve o fato de mais de 900 anos após seu aparecimento, as cruzadas ainda integrarem dimensões da experiência como representação. As cruzadas inspiraram as artes plásticas, a música e a literatura e hoje continuam inspirando o cinema, a teledramaturgia, revistas de vulgarização científica, romances gráficos e formas diversas de entretenimento em que se contam simulações lúdicas e jogos virtuais. Ao lado das heresias e da inquisição, elas também constituem um dos pilares em que se apoia a autocrítica ocidental quando observa seu passado medieval. A palavra “cruzada” tem um lugar importante em nosso vocabulário, ora aplicando-se à violência do fanatismo religioso, ora à firme reunião de forças benéficas em torno de uma causa nobre, geralmente ligada a um 9
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ideário de salvação. Podemos assim falar em “cruzada pela infância” ou “cruzada contra a fome”. A ambivalência que a ideia de cruzada ainda comporta em suas evocações cotidianas expressa a própria complexidade do fenômeno. Mesmo os historiadores não se sentem capazes de produzir um juízo único e definitivo a respeito do que foram as cruzadas. Discutem se estas se definem por seu caráter de expedição militar ou de peregrinação, se os benefícios espirituais devem ser tomados entre seus dados fundamentais, se as expectativas escatológicas se contam entre suas motivações decisivas, se o componente popular foi significativo e qual a importância de Jerusalém em sua deflagração. Não há conceito capaz de impor-se isoladamente como verdadeiro. Nem mesmo os movimentos que devem ser identificados pelo termo “cruzada” são reconhecidos de forma unívoca. Estariam as expedições para o Oriente no mesmo plano que as lutas contra os muçulmanos na Espanha durante a Reconquista ou aquelas contra os pagãos da Europa Oriental, os “hereges” albigenses e os imperadores rebeldes ao papado? Afinal, o que constitui o cerne comum das expedições ocorridas entre fins do século XI e fins do século XIII que a partir de meados do século XII vieram a ser conhecidas como cruzadas? Em Guerra santa temos a oportunidade de acompanhar o percurso de Jean Flori em defesa de um conceito de cruzada. A pergunta da qual parte seu estudo é: como a comunidade cristã, em sua origem pacifista, desenvolveu um pensamento e uma prática em relação à violência bélica que lhe permitiram aderir de forma justificada e legítima a diversas empresas guerreiras a ponto de a Igreja vir a tornar-se a deflagradora direta de um conflito com a extensão e a repercussão das cruzadas? O propósito da obra consiste em demonstrar que essa mudança não foi repentina. A tese que guia a obra é aquela de que a cruzada foi o desdobramento de uma ideia cristã antiga, surgida no longínquo século IV — momento em que são dados os passos decisivos para a institucionalização da Igreja —, que advogava que certos conflitos militares deveriam ser entendidos como desejados por Deus e, portanto, realizados em seu nome e com sua aprovação. Tratar-se-ia de guerras que, em virtude de suas motivações e de seus fins específicos, seriam sacralizadas, ou santas. Dessa forma, Flori entende a cruzada como uma modalidade de guerra santa. Aqui, é necessário um esclarecimento, uma vez que o autor não identifica a guer10
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ra santa ao jihad, esforçando-se por mostrar, ao tratar das relações complexas entre a cristandade e o islã medievais, as diferenças entre os dois tipos de combates sacralizados. Parte dos estudos dedicados às cruzadas procurou compreendê-las a partir da observação do evento já em curso ou de seus resultados. Basta lembrarmos das vertentes que viram nelas a resposta à crise de um feudalismo incapaz de reproduzir-se sem a conquista de novos territórios ou um primeiro movimento da mundialização que mais tarde seria completado pelas Grandes Navegações, responsáveis pela imposição do sistema de valores cristãos fora das fronteiras tradicionais da cristandade. Nesses dois casos, a compreensão do que foram as cruzadas se desloca e o fenômeno que elas propriamente constituem permanece incompreendido. Jean F lori procura apresentar cada um dos elementos que, de seu ponto de vista, integram a trama que tornou as cruzadas possíveis. Dessa forma, seu livro se estende do século IV a 1096, quando, da pregação de Urbano II feita durante o concílio de Clermont (1095), surge a primeira cruzada. Flori produz sua reconstituição atento tanto a ideias quanto a processos demorados e eventos pontuais. Da trama rica e densa proposta pelo autor, que envolve considerações a respeito da evolução das relações entre cristãos e muçulmanos, o aparecimento e a consolidação de um forte movimento penitencial e peregrinatório a partir do século XI e a intensificação de expectativas de ordem escatológica no mesmo período, podemos destacar três questões que nos parecem maiores. Em primeiro lugar, a aproximação entre a Igreja e o império que, ainda na Antiguidade Tardia, transformou a autoridade pública secular em protetora militar da comunidade de cristãos, seja contra inimigos “externos”, seja contra as próprias dissensões internas que ameaçavam sua ordem hierárquica e a paz social. Em segundo lugar, na Idade Média, o prosseguimento dessa política de busca de apoio nas lideranças laicas em ambientes em que a autoridade real ou imperial não se fazia presente ou não se mostrava particularmente sensível a essa ordem de problema, momento em que podemos destacar a situação vulnerável da Sé romana e suas ações para atrair apoio que lhe garantisse proteção armada tanto contra potentados locais quanto contra invasores. Em terceiro lugar, a reforma da Igreja, que, entre os séculos XI e XII, alterou de forma significativa o sistema de autoridade eclesiástico perpetrando uma separação mais nítida, inclusive no domínio material, entre o que 11
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era ou não consagrado, entre o que estava sob a autoridade eclesiástica e o que estava submetido ao arbítrio laico. Um dos resultados dessa reforma foi a reivindicação papal da liderança direta de Cristo sobre os conflitos de ordem militar de seu interesse. Como lembra o autor, com as cruzadas o papa, investido da proteção já não apenas do patrimônio de São Pedro, mas da própria herança de Cristo, “falava como comandante de todos os cristãos, em nome de Cristo”.
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siglas e abreviaturas
AASS: Acta sanctorum Bollandistarum. BEC: Biblioteca da École des Chartes. CCCM: Corpus Christianorum Continuatio Mediaevalis. CSEL: Corpus scriptorum ecclesiasticorum latinorum. HF: Recueil des Historiens des Gaules et de la France (ed. J. Bouquet)
[Coletânea dos Historiadores das Gálias e da França]. Mansi: J. D. Mansi, Sacrorum Conciliorum nova et amplissima collectio MGH: Monumenta Germaniae Historica. SS: Scriptores. PG: Patrologia grega. PL: Patrologia latina. PRG: Pontifical romano-germânico. RHC: Hist. Occ.: Recueil des Historiens des croisades, Historiens occidentaux [Coletânea dos historiadores das cruzadas, historiadores ocidentais]. RIS: Rerum italicarum scriptores. SC: Sources Chrétiennes [fontes cristãs]. 13
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introdução
A convocação do papa Urbano II em Clermont (1095) inaugura uma nova era, a era das cruzadas. A partir daí, e ao longo de toda a Idade Média, a ideia de cruzada estará presente nos espíritos e marcará profundamente as mentalidades dos cristãos do Ocidente, propondo a questão lancinante dos “lugares santos” de Jerusalém, ainda hoje candente, com seu cortejo de ódios e sangue. Em Clermont — hoje já não se duvida —, Urbano II inova. Pela primeira vez um papa se dirige diretamente aos cristãos do Ocidente para incitá-los, em nome da fé e do perdão de seus pecados, a pôr a vida terrena em perigo para ir libertar o Santo Sepulcro, túmulo vazio de Cristo, nas mãos dos muçulmanos havia mais de três séculos. O sumo pontífice completa a convocação com promessas de recompensas espirituais que — acredita-se em geral — têm origem nas remunerações até então vinculadas à peregrinação a Jerusalém. O papa lança assim os alicerces de uma verdadeira instituição, a cruzada, cujos ritos, modalidades e privilégios os papas subsequentes irão definindo e fixando pouco a pouco. Assim considerada, a cruzada nasce em Clermont, e seus historiadores gostam de ressaltar —
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frequentemente com razão — as características inovadoras da iniciativa de Urbano II. No entanto, por mais justa que seja, essa abordagem não é a única. Pode-se também considerar a cruzada como um ponto de chegada, como conclusão lógica e quase inevitável de um lento processo, de uma verdadeira revolução doutrinária que, estendendo-se por vários séculos, conduziu a Igreja da não violência inicial ao uso meritório e sacralizado das armas. Pois a cruzada, já na origem, não é apenas uma peregrinação armada meritória, como se tende a dizer hoje; é também, e talvez acima de tudo, uma “guerra santa”; talvez fosse melhor dizer, aliás, uma guerra sacralizada, a tal ponto o próprio conceito de guerra santa parece inadmissível em nossa época. No entanto, essa noção, que as sociedades ocidentais laicizadas rejeitam hoje com horror, impregnou profundamente, com modalidades diversas, as mentalidades dos homens da Idade Média, tanto cristãos como muçulmanos. Aliás, ainda hoje subsistem vestígios profundos, indeléveis, resíduos, brasas ainda ardentes, sopradas por políticos oportunistas e fanáticos fundamentalistas. A cruzada, portanto, não nasce ex nihilo. Tem uma pré-história, que este livro procura esclarecer explorando sobretudo aqueles séculos que frequentemente são chamados de obscuros, os séculos X e XI. É nesse período, de fato, que, por diversas vias que tentaremos elucidar, ocorre no Ocidente a progressiva sacralização da violência guerreira. A via doutrinária, como se disse, parecia obstruída. Ao contrário do islã que, desde a origem, imitando seu fundador, admitia o uso da guerra e destinava-lhe um espaço nada desprezível em sua própria doutrina, a Igreja cristã estava, nesse ponto, em situação difícil ou mesmo totalmente precária. O cristianismo, tal como pregado nos primeiros tempos, é uma religião de salvação, pacifista, que preconiza a não violência. Imitando Jesus, que jamais se defendia, os antigos mártires da fé ganhavam o céu perecendo pela espada dos “pagãos” sem opor resistência, sem os combater de espada em punho. Trata-se de uma atitude e de uma ideologia diametralmente opostas às das primeiras cruzadas. Apenas essa menção, por mais simplista que seja, possibilita dimensionar o caminho percorrido, a amplitude da revolução doutrinária realizada depois de mais de um milênio. Nesse ponto, a doutrina, portanto, evoluiu consideravelmente ao longo do tempo. O pragmatismo, a adaptação às realidades vividas, pre16
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Introdução
valeceu à teoria, modificando a doutrina antiga, preparando a nova. Sob a pressão das circunstâncias, por meio de tensões sucessivas, a rejeição à guerra foi-se atenuando. Ela logo foi admitida como um mal menor, um mal necessário. Essa primeira mutação ocorreu bem antes da Idade Média, no século IV, numa época em que os imperadores se converteram e em que o império romano se transformou em império cristão. Portanto, não diz respeito ao nosso período e será apenas mencionada aqui ou ali a propósito da época carolíngia, quando Carlos Magno e seus sucessores tentam ressuscitar a antiga ficção de um império romano confundido com a cristandade, a ficção de uma cristandade teocrática concebida segundo imagem bíblica do reino de Israel. Mas esse sonho unitário logo se dissipa, e a sacralização da guerra se efetua mais ainda por outras vias, menos políticas. Envereda pelos caminhos escusos da proteção das igrejas como estabelecimentos, bem mais que da Igreja como assembleia de fiéis. Nos séculos X e XI, esses estabelecimentos — e principalmente os mosteiros — constituíam domínios eclesiásticos que, por sua riqueza, numa sociedade na qual reinava a violência dos milites (palavra que mais tarde será traduzida por cavaleiros), eram alvo da cobiça dos vizinhos laicos. Para defender-se e defender os seus bens, monges e clérigos invocavam os santos padroeiros, que às vezes iam socorrê-los, manejando o cajado e castigando os culpados, sacralizando nesse ato a ação violenta cometida pela “boa causa”. Nem sempre era suficiente, e cabia pensar numa defesa mais “terrena”, quando as prescrições das instituições de paz (paz de Deus e trégua de Deus) mostravam suas limitações. As igrejas recrutavam profissionais de guerra, representantes ou milites ecclesiae, defensores de igrejas. A investidura deles dava ensejo a cerimônias litúrgicas que, por sua vez, contribuíam para sacralizar os combates travados em favor da Igreja. A Igreja de Roma não escapou a essa regra. Mais que outras, estava ameaçada tanto por vizinhos laicos da Itália quanto por invasores estrangeiros, aventureiros normandos ou piratas sarracenos; mais que nas outras, sua resposta foi “exemplar”, criando evolução doutrinária, pois o bispo de Roma, no Ocidente, tornou-se o papa, o representante de São Pedro, o vigário de Cristo. A proteção da Igreja de Roma — patrimônio de São Pedro — dá assim ensejo a uma nova sacralização da guerra travada a favor do papado, à valorização dos guerreiros que a ela se dedicavam. Para re17
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munerá-los, o papa não hesitou em usar promessas de recompensas espirituais que prenunciavam as recompensas da cruzada. Essa sacralização intensificava-se ainda mais quando o inimigo combatido era muçulmano. Numa sociedade medieval com forte predo minância religiosa e de mentalidade dualista, tudo o que não é cristão é “pagão”. Na Espanha da reconquista, assim como nas ilhas do Mediterrâneo, a luta contra o antigo invasor muçulmano logo ganha tons de desforra, de retomada, de “guerra santa”. A cruzada, mais ainda. De que modo uma expedição guerreira conduzida contra os “pagãos” para reconquistar o Sepulcro de Cristo em Jerusalém poderia ter sido menos sacralizada que os combates travados contra esses mesmos adversários ou então contra inimigos cristãos, para a proteção do túmulo de São Pedro? Foi, portanto, no termo de uma lenta trajetória ideológica que nasceu a ideia de cruzada. Esta obra tenta descrever sua formação e sua expansão nos séculos X e XI. Daí resulta uma nova leitura da cruzada que, sem rejeição às recentes contribuições da historiografia, volta a enfatizar — como fez outrora o grande historiador alemão Carl Erdmann, mas com orientações e perspectivas novas — uma dimensão fundamental hoje negligenciada demais: a de guerra santa. Esse reexame precisava, naturalmente, apoiar-se em enorme documentação, tanto em nível de fontes quanto de obras históricas. Para que esta obra não se tornasse volumosa demais, não foi possível expor essa documentação em notas reduzidas, que o autor e o editor, de pleno acordo nesse aspecto, desejavam incluir no rodapé de cada página, para facilitar a leitura. Por isso, tomei a decisão de fazer referência essencialmente às fontes. Estas, em compensação, não aparecem na bibliografia. Inver samente, as referências às obras e aos artigos dos historiadores foram limitadas ao extremo; elas dizem respeito quase unicamente aos autores cujas teses são retomadas, discutidas, contestadas ou corrigidas. Por outro lado, na bibliografia será encontrado o conjunto das obras que foram utiliza das para a redação deste livro, e que contribuíram em maior ou menor grau para sua elaboração.
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cruzada, peregrinação e guerra santa
A primeira cruzada e sua problemática Quando o papa Urbano II lançou sua convocação para a cruzada, no fim de um concílio de paz realizado em Clermont em novembro de 1095, a multidão unânime — segundo os cronistas — respondeu com o seguinte grito: “Deus o quer”. Essa pode ser considerada a expressão espontânea de uma concepção admitida pelo menos por aqueles que emi tiram esse grito, ou seja, a concepção de uma guerra santa que, com quase cinco séculos de atraso, coincidia com a doutrina muçulmana do jihad: um empreendimento guerreiro desejado por Deus só pode ser santificado para aqueles que o aceitam como tal. Todos conhecem as consequências: numerosos pregadores replicaram essa convocação em toda a cristandade ocidental, principalmente na França. O próprio papa, orador talentoso, conseguiu numerosas in tenções de participação, tirando proveito da sensibilidade religiosa dos homens da época. Para comovê-los, lembrava-lhes que em Jerusalém, objetivo ou termo da expedição, o túmulo vazio de Cristo era testemunho do sacrifício que Jesus fizera de sua própria vida na cruz para que eles 19
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Guerra santa: Formação da ideia de cruzada no Ocidente cristão
conquistassem a vida eterna. Naquele dia, porém, ele teria dito, subs tancialmente, que o Sepulcro de Cristo estava nas mãos dos “pagãos” que o haviam usurpado. A terra onde ele vivera, sua “herança”, estava assim espoliada pelas “nações”. Os turcos, inimigos da fé cristã, sujavam as igrejas e profanavam os lugares santos, expulsavam os cristãos de suas casas, apoderavam-se de suas terras, despojavam, molestavam e às vezes matavam os peregrinos. Os cristãos do Oriente pediam socorro a seus irmãos. Tal afronta não poderia permanecer impune; tal escândalo não poderia ser tolerado. Tal formulação da mensagem era extremamente hábil, pois recorria aos dois fundamentos principais da moral medieval, expressos por uma única palavra latina: fides, fé, no sentido atual do termo — porém com uma tônica mais marcada que hoje na crença que une numa mesma comunidade todos aqueles que a compartilhem, distinguindo-os dos outros povos —, mas também de fidelidade, obediência vassálica, a reger as relações entre os homens, especialmente no mundo dos guerreiros, assistência militar em caso de necessidade, solidariedade entre o príncipe e sua gente. A cruzada assim apresentada era, portanto, uma operação militar eminentemente sacralizada, uma “guerra santa” travada pelos cristãos por seu Senhor Jesus Cristo, capaz de recompensar seus cavaleiros fiéis muito mais do que o faziam os senhores e os príncipes deste mundo. Ao mencionar o Santo Sepulcro, o papa também tocava em outro aspecto da expedição: a peregrinação, florescente no século XI. Os peregrinos que iam a Jerusalém visitar o túmulo do Salvador recebiam a garantia da indulgência (diríamos hoje perdão ou remissão) de seus pecados confessados. A peregrinação desempenhava o papel de penitência, cons tituindo frequentemente a sua forma suprema. Conforme proclamou Urbano II, o mesmo ocorreria com a expedição armada realizada para a libertação da Igreja do Oriente. A expedição empreendida sob o signo da cruz era, portanto, uma peregrinação e, como tal, conforme consta, acompanhada pelos privilégios espirituais que a Igreja lhe imputava. Esses dois aspectos, até então bem afastados um do outro e às vezes considerados até incompatíveis, foram então unidos pela primeira vez numa única e mesma ação “piedosa”. Seus motivos se mesclavam e se interpenetravam profundamente na convocação feita em Clermont, nas intenções de partida dos participantes e nas recompensas que lhes foram 20
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