Imaginando JoĂŁo Cabral imaginando
universidade estadual de campinas Reitor José Tadeu Jorge Coordenador Geral da Universidade Alvaro Penteado Crósta
Conselho Editorial Presidente Eduardo Guimarães Esdras Rodrigues Silva – Guita Grin Debert João Luiz de Carvalho Pinto e Silva – Luiz Carlos Dias Luiz Francisco Dias – Marco Aurélio Cremasco Ricardo Luiz Coltro Antunes – Sedi Hirano
Cristina Henrique da Costa
imaginando joĂŁo cabral imaginando
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990. Em vigor no Brasil a partir de 2009.
ficha catalográfica elaborada pelo sistema de bibliotecas da unicamp diretoria de tratamento da informação C823i
Cristina Henrique da Costa Imaginando João Cabral imaginando / Cristina Henrique da Costa. – Campinas, sp: Editora da Unicamp, 2014.
1. João Cabral de Melo Neto, 1920-1999. 2. Imaginação na literatura. 3. Ensaios brasileiros. 4. Poesia brasileira. 5. Simbolismo (Literatura). 6. Surrealismo (Literatura). I. Título. cdd B869.15 801.92 B869.45 809.915 e-isbn 978-85-268-1248-2 809.042
Índices para catálogo sistemático: 1. 2. 3. 4. 5. 6.
João Cabral de Melo Neto, 1920-1999 Imaginação na literatura Ensaios brasileiros Poesia brasileira Simbolismo (Literatura) Surrealismo (Literatura)
B869.15 801.92 B869.45 B869.15 809.915 809.042
Copyright © by Cristina Henrique da Costa Copyright © 2014 by Editora da Unicamp “As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade da autora e não necessariamente refletem a visão da Fapesp.” Direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19.2.1998. É proibida a reprodução total ou parcial sem autorização, por escrito, dos detentores dos direitos. Printed in Brazil. Foi feito o depósito legal. Direitos reservados à Editora da Unicamp Rua Caio Graco prado, 50 – Campus Unicamp cep 13083-892 – Campinas – sp– Brasil Tel./Fax: (19) 3521-7718/7728 www.editora.unicamp.br – vendas@editora.unicamp.br
Je suis dur Je suis tendre Et j’ai perdu mon temps À rêver sans dormir À dormir en marchant Partout où j’ai passé J’ai trouvé mon absence Je ne suis nulle part Excepté le néant Mais je porte accroché Au plus haut des entrailles À la place où la foudre a frappé trop souvent Un cœur où chaque mot a laissé son entaille Et d’où ma vie s’égoutte au moindre mouvement Tard dans la vie — Pierre Reverdy*
* “Eu sou duro/ eu sou terno/ e perdi muito tempo/ a sonhar sem dormir/ a dormir caminhando/ e por onde passei/ encontrei minha ausência/ estou em parte alguma/ excetuado no nada/ mas eu trago agarrado/ na víscera mais alta/ justo onde cai o raio com tanta frequência/ o coração por cada palavra golpeado/ em que a vida se esgota a cada movimento.” Tarde na vida. A presente tradução é de autoria do poeta, tradutor e professor Marcelo Diniz, a quem agradeço calorosamente por sua contribuição.
Para Jean-Luc Amalric
dedicatória
Dedico este livro a todos os que, dentro da atual instituição universitária, sofrem com os porta-vozes do utilitarismo globalizado e seu discurso da eficiência bibliométrica. Isso nada tem a ver com o interesse, o gosto e a beleza da pesquisa intelectual inventiva e séria. Lembro as saudáveis palavras de G. Bachelard: “Il y a en l’homme une véritable volonté d’intellectualité. On sous-estime le besoin de comprendre quand on le met [...] sous la dépendance absolue du principe d’utilité. Nous proposons donc de ranger sous le nom de complexe de Prométhée toutes les tendances qui nous poussent à savoir autant que nos pères, plus que nos pères, autant que nos maîtres, plus que nos maîtres”1. Não consigo imaginar Bachelard perdido em relatórios; não consigo ver nossos grandes críticos tendo que receber notas e avaliações quantitativas. Não consigo apresentar nenhum trabalho em 20 minutos. Nesta era de crise das humanidades, uma crise imposta por quem dirige e sofrida por quem gosta de inventar ideias novas,
quero ainda lembrar que o desejo de saber não é desejo de poder, embora possa ser vontade de não obedecer. Não esqueço aqueles companheiros de universidade que, quaisquer que sejam suas opiniões políticas, continuam sonhando com o mundo intelectual insubmisso e criativo.
Nota 1 G. Bachelard, La psychanalyse du feu, 1949, p. 30. [“Há no homem uma ver-
dadeira vontade de intelectualidade. Subestimamos a necessidade de compreender quando a colocamos [...] sob a dependência absoluta do princípio de utilidade. Proponho portanto chamar de complexo de Prometeu todas as tendências que nos impelem a saber tanto quanto nossos pais, e mais do que eles, tanto quanto nossos mestres, e mais do que eles.” Traduzido por mim.]
agradecimentos
Parte sempre delicada: devemos muito a muitos. Queremos ex primir outra coisa, queremos falar do nosso afeto, como prova do nosso reconhecimento. Não limitando o afeto, tento aqui res tringir-me àqueles que objetivamente estão ligados à fabricação deste livro. Em primeiro lugar, agradeço a Jean-Luc Amalric, que foi sem dúvida quem mais me ajudou, suportando as tarefas que eu tive que deixar de fazer, lendo-me, e aceitando a invasão do nosso ambiente pelo trabalho. Em segundo lugar, agradeço a David Amalric e Sonia Amalric, que souberam passar pelo processo de abstração materna, mas de volveram-no e continuam devolvendo-o pelo avesso, respondendo à ausência pela presença, com a afirmação de seu constante e concreto afeto. Em terceiro lugar, agradeço a Antonia Amalric, que precisou ficar muitas horas sem a companhia de sua mãe por causa de uma força chamada escrever um livro.
Vêm então três mulheres que foram fundamentais: Lúcia Cunha da Silva, Tânia Henrique da Costa e Dora Henrique da Costa. Quando eu comecei a escrever, morei na casa da primeira, passei os fins de semana na casa da segunda, e a terceira cozinhou e me emprestou um carro. Essas funções materiais são apenas as marcas visíveis de um apoio situado em outra parte. Estávamos, no entanto, num período difícil. Agradeço ainda a Fernando Limeira de França pelas preciosas informações sobre Pernambuco, e pelos valores pernambucanos que, vivendo, ele transmite. Agradeço também calorosamente a Noni Ostrower e ao Instituto Fayga Ostrower (www.faygaostrower.org.br) por terem au torizado a reprodução neste livro de uma série completa de qua tro serigrafias realizadas pela artista plástica Fayga Ostrower. As serigrafias, assinadas e numeradas, ilustram o poema O rio, integrando uma edição de luxo comemorativa dos 20 anos do Prêmio de Poesia do IV Centenário de São Paulo, publicada no Rio de Janeiro (Fontana, 1974), em formato 36 x 50 cm, e em tiragem de cem exemplares. Agradeço enfim a Rodrigo Cabral de Melo, filho primogênito do poeta e proprietário do quadro Paisagem zero, de Vicente do Rego Monteiro. Esse quadro inspirou a João Cabral um poema homônimo de grande relevância para o presente ensaio. Quando estava escrevendo a tese, Rodrigo recebeu-me em sua residência e fotografou o quadro para mim. Agora, gentilmente autoriza sua reprodução, possibilitando ao leitor ter debaixo dos olhos a fonte pictórica que está na origem do poema cabralino.
sobre as serigrafias de fayga ostrower
Conheci Fayga Ostrower desde sempre como amiga de meus pais. Na época em que estava escrevendo a tese e pensando em João Cabral, em 2001, fui conversar com ela sobre sua experiência de ilustração do poema O rio, e ela presenteou-me com uma reprodução de um dos quatro trabalhos que fizera para o poema. Quando este livro ficou pronto, ao contemplar a série completa das serigrafias de Fayga fiquei muito impressionada com a beleza do conjunto, com a sensibilidade da artista, e com a concordância entre as tonalidades cromáticas do seu olhar plástico e meu próprio discurso crítico. João Cabral, que interpretou poeticamente tantos artistas ao longo de sua obra, encontra-se por sua vez interpretado nessas serigrafias em cores e em formas certas: nem totalmente abstrato, nem totalmente figurado — situado no exato espaço da imaginação —, ardentemente aéreo, aquático, incandescente, canavieiro. Além disso, o ritmo das serigrafias diz muito da importância do movimento na obra do poeta. Inicialmente ordenadas em função da progressão narrativa e referencial do poema O rio que as inspi-
rou, as serigrafias de Fayga também funcionam como pequenas sínteses da personalidade de João Cabral, razão pela qual tomei a liberdade de apresentá-las aqui numa ordem diferente, mais sugestiva para acompanhar minha leitura.
sumário
introdução................................................................................................................................ 19 primeira parte salvando o sujeito questão de leitura............................................................................................................ 31 1
2
os primeiros poemas................................................................................................... Variações pirandellescas e simbolismo .............................................................. O problema Pirandello: Recusando a divisão racional........................... O lócus do invisível, ou o poeta desistindo de ver...................................... Outra variante pirandellesca................................................................................... Poesia mallarmeana em “Poesia”.......................................................................... Realidades límpidas e surrealismo........................................................................ tinha uma pedra do sono no meio do caminho............................. A pedrinha no sapato.................................................................................................... Processos de desvalorização do livro: Questões teóricas........................... Dialéticas racionais........................................................................................................ Processos de integração do livro..............................................................................
35 35 41 45 50 52 55 73 73 75 89 95
3
o caminho da(s) pedra(s) do sono................................................................. 109 Perdas e proibições.......................................................................................................... 109 O sono feliz.......................................................................................................................... 120 Pierre Reverdy e Murilo Mendes .......................................................................... 134 A imaginação, ou sono de matéria....................................................................... 140 segunda parte o poeta incandescente
4
resolvendo o problema da estrutura................................................... 155 A posição do problema................................................................................................. 155 Exercícios estruturais e figuras................................................................................ 161
5
além do signo, um trabalho de superação...................................... 193 Inconformado com a morte, o corpo................................................................... 193 Pondo a boca no mundo............................................................................................. 196
6
infundindo luzes.......................................................................................................... 215 Simbolismo solar.............................................................................................................. 215 Sol que arde......................................................................................................................... 217 O fogo criador e o sol vazio....................................................................................... 219 Sol intransigente inimigo........................................................................................... 221 A vingança do oculto calor, que as coisas todas cria ................................... 228 Amiga poesia...................................................................................................................... 234 A abóboda luminosa..................................................................................................... 239 A luz interior..................................................................................................................... 244 terceira parte moído pelo engenho
7
atravessando um deserto.................................................................................... 263 O que diz, afinal, a pedra?....................................................................................... 263 Figuração humana......................................................................................................... 281 Psicologia da composição e o tempo impossível ...................................... 283
8
o complexo referencial de joão cabral............................................. 321 A lógica especulativa da lacuna ............................................................................ 321
A paisagem referencial lacunar/l(ac)unar e a Zona da Mata............ 328 Geografia da fome cabralina .................................................................................. 334 Psicologia de João Cabral......................................................................................... 340 Aplicação da psicologia: “Além disso, por que só a mulher deve monopolizar essa liberação de ânimo? O poeta deveria demonstrar seu estado de espírito até no ato de descrever um açucareiro”............. 347 O complexo referencial................................................................................................. 352 Doce João Cabral............................................................................................................. 356 9
o arquétipo da moenda.......................................................................................... 369 A crítica dos valores ou o negativo intransferível....................................... 369 Psicanálise do açúcar: Quer inverno ou verão mele o discurso........ 384 Questões de identidade................................................................................................ 391 Pernambucanidade cabralina e cabralinidade pernambucana........ 406 A máquina do poema: Moenda............................................................................. 410 Uma faca só lâmina ou só existe o que pode ser imaginado................ 417
bibliografia............................................................................................................................... 441 caderno de imagens......................................................................................................... 449
introdução Que Stendhal confessasse haver escrito um de seus livros para cem leitores, cousa é que admira e consterna. O que não admira, nem provavelmente consternará é se este outro livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinquenta, nem vinte, e quando muito dez. Dez? Talvez cinco.
Quando comecei a interessar-me pela obra poética de João Cabral de Melo Neto, o objetivo era produzir um trabalho acadêmico que me abrisse portas na universidade francesa. Foi na minha tese, já há tantos anos, que descobri algumas das ideias, mas não todas, que tentei desenvolver melhor neste livro. A tese era em francês, e, embora pudesse publicá-la, sempre adiei essa possibilidade tendo em mente o leitor brasileiro, em quem já pensava, aliás insistentemente, como destinatário natural de meu apego crítico ao poeta pernambucano. Para esse leitor refiz tudo, mudei tudo, e deixei muita coisa de lado, ficando o texto como está aqui1. Quando chegou a hora do enfrentamento, percebi a dificuldade de concretizar minha ânsia de Brasil: para o leitor brasileiro: sim, mas qual? Com certeza o livro é para leitores já familiarizados com João Cabral. Principalmente para os que não conseguem entender como esse poeta pode ser ao mesmo tempo tão fácil e prazeroso e tão difícil e intelectual. Essa contradição mágica foi o que sempre me interessou. A tarefa que enfrentei pode ser resumida da 19
cristina henrique da costa
seguinte forma: tratou-se para mim de ler João Cabral escrevendo um livro legível sobre essa leitura. Em nome dessa política do legível, o livro discute abertamen te com a crítica cabralina, e questiona o conceito de racionali dade que se aplicou sempre ao poeta. O método de “libertação pela imagem” inspirado em Bachelard esteve presente durante todo o percurso, guiando a busca de certa lógica pessoal de João Cabral: uma lóg ica que se atribui aqui à sua capacidade fasci nante de imaginação. É, sem dúvida, a imaginação que “alarga o horizonte percep tivo” do poema “De um avião”, no qual se assiste ao progressivo distanciar da paisagem até que enfim “as cores das coisas que são Pernambuco fundem-se todas nessa luz de diamante puro”. É também pela imaginação que se revive o homem invisível, e sem ar madura rígida, aquele “que ficou mais oculto: o homem, que é o núcleo do núcleo de seu núcleo”. É ainda a imaginação que em presta corpo ao desejo em “Mulher vestida de gaiola”, em que o enigma de um pássaro “de fora” está em querer justamente “invadir o espaço de nada” que a mulher lhe tira. João Cabral, é inegável, nunca se cansou de imaginar um mundo pessoal, ou seja, um mundo afetivo, pleno de sentimento, e subjetivo. A palavra está lançada: trata-se aqui de desfazer o mito do poeta objetivo e realista (que ele felizmente não foi), mos trando que houve um mal-entendido: a linguagem metapoética, que “define” conceitualmente a poesia que se lê em João Cabral, é exatamente nele o processo que é preciso ultrapassar. E, aliás, é para essa ultrapassagem interna e corruptora de teoria que o poeta vive apontando. Tanto a vontade de fazer poesia quanto a veemência no dizer poético são valores que nele se fundam na sua capacidade de imaginar “outra coisa”, solicitando a mobilização do subjetivo. O desafio de ir além das palavras e o gosto de continuar fazendo nada têm de racional, de conceitual, de realista. Pelo contrário, são 20