Inferno e paraíso

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inferno e paradiso


universidade estadual de campinas Reitor José Tadeu Jorge Coordenador Geral da Universidade Alvaro Penteado Crósta

Conselho Editorial Presidente Eduardo Guimarães Esdras Rodrigues Silva – Guita Grin Debert João Luiz de Carvalho Pinto e Silva – Luiz Carlos Dias Luiz Francisco Dias – Marco Aurélio Cremasco Ricardo Antunes – Sedi Hirano


Tamara Quírico

inferno e paradiso

as representações do juízo final na pintura toscana do século xiv


Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990. Em vigor no Brasil a partir de 2009.

ficha catalográfica elaborada pelo sistema de bibliotecas da unicamp diretoria de tratamento da informação Q48i

Quírico, Tamara. Inferno e Paradiso: As representações do Juízo Final na pintura toscana do século XIV / Tamara Quírico. – Campinas, sp: Editora da Unicamp, 2014. 1. Arte – História. 2. Arte medieval. 3. Arte italiana. 4. Pintura italiana. 5. Juízo Final. 6. Ídolos e imagens. I. Título.

cdd 709 709.023 709.5 759.5 236.9 704.9 e-isbn 978-85-268-1263-5

Índice para catálogo sistemático:

1. Arte – História 2. Arte medieval 3. Arte italiana 4. Pintura italiana

709 709.023 709.5 759.5 236.9 704.9

5. Juízo Final

6. Ídolos e imagens

Copyright © by Tamara Quírico Copyright © 2014 by Editora da Unicamp Direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19.2.1998. É proibida a reprodução total ou parcial sem autorização, por escrito, dos detentores dos direitos. Printed in Brazil. Foi feito o depósito legal. Direitos reservados à Editora da Unicamp Rua Caio Graco prado, 50 – Campus Unicamp cep 13083-892 – Campinas – sp – Brasil Tel./Fax: (19) 3521-7718/7728 www.editora.unicamp.br – vendas@editora.unicamp.br


Para LetĂ­cia e Miguel



agradecimentos

Para a realização deste livro, o auxílio e o apoio de inúmeras pessoas foram imprescindíveis. A elas, todo o meu reconhecimento e o meu agradecimento. Em primeiro lugar, naturalmente, a Maria Beatriz de Mello e Souza, pelo incentivo, pela orientação sempre precisa para o pleno desenvolvimento da pesquisa que originou esta publicação e pela generosidade com que compartilhou comigo seus conhecimentos. Especialmente, porém, por sua amizade, e por ter me mostrado ser possível desenvolver uma pesquisa sobre história da arte medieval no Brasil. É ótimo não se sentir uma voz isolada na multidão… Aos amigos que souberam ouvir com paciência minhas crises e meus dramas. Agradeço particularmente a Patricia Meneses e Matheus Figuinha, que foram de imensa ajuda tanto no período transcorrido na Itália como após o meu retorno ao Brasil. Ambos, de fato, ajudaram-me na pesquisa de


campo, buscando localizar as muitas imagens necessárias para o desenvolvimento do trabalho; com sua amizade, tornaram a saudade e a distância mais amenas. Após minha volta, tornaram-se meus olhos na Itália, localizando fontes textuais e visuais que porventura descobria importantes para a pesquisa. Sem eles, este livro talvez não tivesse se aprofundado tanto. Obrigada por me ajudarem a decifrar e a entender Dante e Giotto. À minha família, que confiou em meu trabalho, soube sempre me apoiar nos momentos de dificuldade e compartilhou comigo minhas alegrias. Agradeço especialmente aos meus pais que, com a educação que me deram e com seu incansável incentivo, fizeram-me chegar até aqui. A Daniel, pelo apoio incondicional. Agradeço, por fim, à Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), por ter me concedido a bolsa PDEE (Programa de Doutorado com Estágio no Exterior), possibilitando desse modo a realização da pesquisa de campo na Itália, período imprescindível de estudo e amadurecimento para que este trabalho pudesse ser plenamente desenvolvido.


Je vais vous dire um grand secret, mon cher: n’attendez pas le jugement dernier. Il a lieu tous les jours. Albert Camus, La Chute



sumário

apresentação.................................................................................................................. capítulo i — a iconografia do juízo final............... Introdução.. ......................................................................................................................... Significações do Juízo Final para as crenças cristãs......................... Origens da iconografia do Juízo Final. . ....................................................... O Cristo juiz......................................................................................................................

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A ressurreição dos corpos e a separação entre eleitos e condenados. . ....................................................................................................................... 46 A relação entre o tema do Juízo Final e o tema da Paixão de Cristo.. .............................................................................................................................. 57

capítulo ii — dante, giotto e as representações do juízo final na toscana............... 67 Introdução.. ......................................................................................................................... 67 O tema do Juízo Final nos ciclos de afrescos toscanos no século XIV............................................................................................................................ 68


Mudanças nos modos de representação do tema do Juízo Final........................................................................................................................... 72 Hipóteses para as mudanças compositivas e iconográficas. . ...... 85 Dante e Giotto................................................................................................................. 96 Os mendicantes, a conversão dos leigos e o tema do Juízo Final........................................................................................................................... 121

capítulo iii — as funções do juízo final como imagem religiosa...................................................................................................... 127 Introdução.. ......................................................................................................................... 127 Funções das imagens.................................................................................................. 127 Modos de compreensão de uma imagem.................................................. 136 Representações do Paraíso e do Inferno no contexto do Juízo Final................................................................................................................... 150

conclusão............................................................................................................................. 179 anexo i — cronologia de pinturas com o tema do juízo final.................................................................................................................. 185 anexo ii — tipologia dos gestos do cristo juiz............................................................................................................................. 189 referências bibliográficas.................................................................. 193 Fontes primárias............................................................................................................ 193 Livros de referência..................................................................................................... 194 Periódicos............................................................................................................................ 198 Referências eletrônicas.. ............................................................................................ 200

caderno de imagens............................................................................................ 201


apresentação

A ideia de que Cristo retornaria ao fim dos tempos para julgar os homens remonta às origens do Cristianismo. A Pa­ rúsia, ou segunda vinda do Senhor, é mencionada em di­ versos trechos da Bíblia e significa não apenas que os corpos res­suscitarão no último dia, como também que todos serão julgados pelo Cristo juiz. Essa noção de julgamento, assim como a decorrente possibilidade de salvação após a morte, é um dos elementos primordiais a consolidar a representação visual do Julgamento Final. O Juízo Final é um dos temas mais relevantes para os cristãos, como bem o indica o Credo estabelecido pelo Concílio de Niceia em 325. Sua importância é imensa, pois é o momento em que o objetivo final da religião cristã se concretiza, quando os eleitos serão apartados em definitivo dos conde­ nados e poderão gozar da eternidade ao lado do Criador. Em sociedades em que o Cristianismo orientava a cultura e a con­cepção de mundo, como eram as do Ocidente medieval, pode-se inferir a importância concedida ao Juízo Final. Para o cristão medieval, a morte não era o fim do destino indivi13


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dual. Conforme escreve Jacques Le Goff, provavelmente o mais importante medievalista das últimas décadas, “o Além é um dos grandes horizontes das religiões e da sociedade. A vida do fiel muda quando pensa que nem tudo é decidido com a morte”1. Os temas da morte e das possibilidades post-mor­tem, desse modo, são indissociáveis ao do Juízo Final tanto na iconografia como nas mentalidades e nas práticas cristãs. Em virtude de sua relevância para o Cristianismo, não é difícil compreender o destaque do tema em diferentes re­ presentações visuais desde a Antiguidade tardia. Uma das primeiras obras conhecidas a evocar o Juízo Final, de fato, é a figuração do Cristo pastor que separa o rebanho, em um sarcófago cristão de fins do século III ou início do IV, atualmente no acervo do Metropolitan Museum de Nova York [Fi­g ura 1]. O Juízo Final possui, sem dúvida, uma grande importância para a cultura cristã, e sua manifestação artística apresenta uma enorme permanência ao longo dos séculos. Além dos di­versos exemplos encontrados em todo o período medieval, como os relevos das portadas das catedrais, assim como afrescos, mosaicos e iluminuras, modelos também são numerosos em outras épocas: podem-se men­cionar o afresco de Michelangelo na Capela Sistina (1541) e telas como as de Jean Cousin (século XVI), Peter Paul Rubens (ca. 1620), Jacob Jordaens (1653), Peter Von Cornelius (1845), John Martin (1853) e Viktor Vasnetsov (1904). Na América es­panhola encontram-se algumas representações em regiões do atual Pe­ru (por exemplo, o afresco na igreja de An­dahuailillas e a tela no Convento de San Francisco em Cuz­co, pintada por

1 La naissance du Purgatoire, 1996, p. 10.

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Apresentação

Diego Quispe em 1675) e da Bolívia (como as telas do Juízo Final e do Inferno pintadas em 1684 por José López de Los Rios para a igreja de Puerto Mayor de Carabuco). Exem­pla­ res tam­bém não se restringem ao Ocidente: o Museu do Vaticano, por exemplo, possui em seu acervo uma pintura vietnamita do século XVIII sobre o tema, e na Ca­tedral de Vank, em Isfahan (Irã), há um afresco pintado em meados do século XVII com uma grande representação do Julgamento. A elaboração da iconografia de um tema tão complexo quanto o do Juízo Final não foi tarefa simples. Vários problemas se impunham aos artistas ao abordar o tema. Por exemplo, como organizar um evento tão vasto e complexo — que recapitula toda a história da humanidade —, com tão grande número de personagens e episódios individuais em uma ­única imagem? Como estabelecer uma coerência nessa profusão de figuras, de modo que a mensagem pudesse ser facilmente apreendida pelos fiéis que observassem a cena? É preciso enfatizar um ponto: no caso de imagens cristãs de modo geral, deve-se considerar que elas são, com frequência, dependentes de um texto fundamental — a Bíblia, e do que aqui está escrito não se pode escapar. Se as Escrituras ­narram, por exemplo, o episódio de Daniel na cova dos leões, nenhum artista poderia supor ser possível representar outro animal que não um leão. A gama de possibilidades que se coloca a partir desses elementos básicos — Daniel e leões —, no entanto, é bastante variada: podem ser representados dois leões, um de cada lado de Daniel, como será comum nas representações medievais do tema, particularmente nos capitéis, mas poderiam ser incluídas dezenas de leões. Pode-se colocar Daniel simplesmente em pé entre os leões, mas é possível igualmente representá-lo colocando suas mãos nas bocas desses animais, tornando mais explícito o texto bíblico, que 15


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descreve como os animais não o atacam durante a noite (conforme Dan 6, 16-22). Mas se percebe como o artista — ou o comitente da obra — possui certa liberdade em relação ao texto. Não se trata, decerto, de liberdade de interpretação teo­lógica, mas da possibilidade de opção por composições iconográficas diversas. Essa liberdade visual que a interpretação de um texto ou de um evento possui é essencial para a compreensão das transformações iconográficas que ocorrem ao longo do tempo nas figurações de temas diversos. É o que ocorre nas representações visuais do Julgamento Final. O Juízo Final, no entanto, não é descrito em uma passagem específica da Bíblia. Há menções a ele em trechos tanto do Antigo como do Novo Testamento que, associados a outras fontes (textuais e orais), possibilitam que se conceba uma imagem — mental e visual — do evento. É preciso considerar ainda que, a rigor, a representação do tema do Juízo Final não é nem imago (imagem de uma figura) nem historia (narrativa de um fato passado), uma vez que não se refere a uma personagem específica, e sim a toda a humanidade, nem se trata de um acontecimento passado, mas de algo que ainda está por vir. Decorrem desses pontos as dificuldades de transposição do tema para uma representação visual. Desde a aparição das primeiras manifestações visuais do tema, a forma de elaboração do Juízo Final foi sofrendo alterações. Mudanças suscitadas não apenas por questões artís­ ticas, de modo a se buscar a melhor forma de figuração do assunto, mas também por transformações mentais nas so­ ciedades do Ocidente. Diversos fatores poderiam ser citados para mostrar como modificações sociais e outros acontecimentos históricos acarretavam novas ideias, mentalidades e crenças que, por sua vez, poderiam alterar a forma de conceber esse tema. 16


Apresentação

Este livro discute a iconografia do tema do Juízo Final. A pesquisa se desenvolveu a partir de pinturas realizadas na região da Toscana com esse tema, e teve como delimitação cronológica básica duas obras sobre o Juízo realizadas nessa região: o mosaico atribuído a Coppo di Marcovaldo e seu ate­ liê, no interior da cúpula do Batistério de San Giovanni, em Florença, realizado na segunda metade do século XIII [Figura 5], e o painel de Giovanni di Paolo, atualmente no acervo da Pinacoteca Nazionale, em Siena, pintado com toda a pro­ babilidade entre 1460 e 1465 [Figuras 33 e 34]. O mosaico florentino é, possivelmente, a mais antiga pintura com o te­ma realizada na região. Entretanto, obras anteriores ao Due­cento, e que não foram executadas na Toscana, embora realizadas na Península Itálica — o afresco de Sant’Angelo in Formis e o mosaico de Torcello —, foram incluídas nas análises devido à sua importância como modelos para obras pos­teriores. De modo análogo, obras realizadas após o marco cronológico final — como o afresco de Fra Bartolomeo em Florença e o de Michelangelo na Capela Sistina — também foram eventualmente discutidas em função de alguma questão específica. Com essa demarcação temporal foi possível inferir as mudanças ocorridas na iconografia do tema no período proposto. A pesquisa se interrompe no século XV porque, como afirma Hans Belting, a partir desse momento começam a surgir outras preocupações com relação às pinturas que são estranhas às concepções medievais sobre as imagens, ligando-se à emergência do humanismo. Conforme escreve o autor, “a imagem se tornou um objeto de reflexão tão logo convidou o contemplador a não considerar literalmente seu tema, mas

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sim a procurar a ideia artística por trás da obra”2. Decerto, é preciso considerar que desde o século XIV a beleza do trabalho encomendado era uma das exigências usualmente encontradas nos contratos, solicitando o comitente que a pintura a ser realizada fosse la più bella che si può — a mais bela pos­ sível. Afinal, a beleza de um trabalho era considerada um dos mais evidentes atributos da santidade da personagem retra­ tada. A partir do Quattrocento, porém, começa-se a falar em arte, “inserindo um novo nível de significado entre a aparência visual da imagem e a compreensão do contemplador”3. A importância do livro ora apresentado está no caráter inédito de sua abordagem e na relevância do tema que, em última instância, não se restringe a um âmbito regional ou mesmo temporal. O trabalho discute questões teológicas que são de longa permanência, como o destino do homem, a vida após a morte, a ressurreição e a salvação. A pesquisa é, nesse sentido, ainda bastante atual: basta mencionar que, em 2004, uma enquete realizada pela revista americana Newsweek revelou que nada menos do que 17% dos norte-americanos esperavam que o mundo acabasse ainda durante suas vidas — quase um quinto da população aguardando o Juízo Final para, no máximo, dali a 50 ou 60 anos. Um dado bastante expressivo e significativo4.­Ele mostra a importância que a escatologia possui ainda hoje para alguns segmentos das sociedades contemporâneas. Assim como ocorrera na Idade Média após o surto de Peste Negra, em 1348, muitos interpretaram

2 Semelhança e presença, 2010, p. 595. 3 Idem, p. 17. 4 Cf. F. Rich, “Em filme, Bush tem direito divino ao poder”. Folha de S.Paulo, 2 de outubro de 2004, p. A1.

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Apresentação

os acontecimentos de 11 de setembro de 2001 como um prenúncio do fim do mundo que estaria se aproximando. Dessa forma, o medo do Julgamento Final e a expectativa da salvação eterna — ou dos tormentos infinitos — que acom­panhavam os cristãos do século XIV ao longo de toda sua vida também serão mais bem compreendidos com este livro; as representações do tema no período foram, com efeito, um reflexo desses anseios. Portanto, o livro servirá também para uma melhor compreensão da sociedade mesma que criou e se perpetuou por meio dessas obras, consideradas atual­mente monumentos artísticos.

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