MANUAL DOS CURSOS DE
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LÓGICA GERAL
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UNIVERSIDADE ESTADUAL
DE
CAMPINAS
Reitor JOSÉ TADEU JORGE Coordenador Geral da Universidade ALVARO PENTEADO CRÓSTA
Conselho Editorial Presidente EDUARDO GUIMARÃES E SDRAS R ODRIGUES S ILVA – G UITA G RIN D EBERT J OÃO L UIZ DE C ARVALHO P INTO E S ILVA – L UIZ C ARLOS D IAS LUIZ F RANCISCO D IAS – M ARCO A URÉLIO C REMASCO RICARDO L UIZ C OLTRO A NTUNES – S EDI H IRANO
Comissão Editorial da Coleção Multilíngües de Filosofia Unicamp FAUSTO CASTILHO (coord.) BENTO PRADO (†) – EDUARDO GUIMARÃES FRANKLIN LEOPOLDO E SILVA – OSWALDO GIACÓIA JÚNIOR Assistente ALEXANDRE GUIMARÃES TADEU
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DE
SOARES
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Immanuel Kant
MANUAL DOS CURSOS DE LÓGICA GERAL Edição em alemão e português
Tradução, apresentação e guia de leitura Fausto Castilho
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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELO SISTEMA DE BIBLIOTECAS DA UNICAMP DIRETORIA DE TRATAMENTO DA INFORMAÇÃO
Kant, Immanuel, 1724-1804 . K135 m
Manual dos cursos de Lógica Geral / Immanuel Kant; tradução: Fausto Castilho. – 3a ed. – Campinas, SP : Editora da Unicamp, 2014 . (Coleção Multilíngües de Filosofia Unicamp – Série A – Kantiana I) 1. Lógica. 2 . Filosofia alemã – Séc. XVIII . I. Fausto Castilho. II . Título.
ISBN: 978-85-268-1059-4
CDD 160 193
Índices para catálogo sistemático: 1 . Lógica 2. Filosofia alemã – Séc. XVIII
160 193
© do texto alemão: Berlin und Leipzig, W. de Gruyter, 1923 Tradução de: Kant’s Gesammelte Schriften, Hrsg. von der Königlich Preussischen Akademie der Wissenschaften – Erste Abtheilung: Werke, Berlin und Leipzig, W. de Gruyter, 1923 Bd. 9. S. 11-150: Logik, ein Handbuch zu Vorlesungen Copyright © 2014 by Editora da Unicamp 2a edição, 2003, Editora da Unicamp e Edufu
Direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19.2.1998. É proibida a reprodução total ou parcial sem autorização, por escrito, dos detentores dos direitos.
Printed in Brazil. Foi feito o depósito legal.
Direitos reservados à Editora da Unicamp Rua Caio Graco Prado, 50 – Campus Unicamp CEP 13083-892 – Campinas – SP – Brasil Tel./Fax: (19) 3521-7718/7728 www.editora.unicamp.br – vendas@editora.unicamp.br
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Para Carmen
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Apresentação à segunda edição
Da pequena tiragem feita em 1998 para a primeira edição deste manual restava o irrisório saldo de uns poucos exemplares, dispersos, aliás, aqui e ali. A edição se esgotara. Pensou-se de início na possibilidade de reimprimir pura e simplesmente o texto, publicado pelos co-editores Ifch–Unicamp e Edufu, com o qual se inaugu rara a Coleção do Estudo Acadêmico (CEA), instituída na Universidade Federal de Uberlândia pelos professores Alexandre Guimarães Tadeu de Soares, Marcio Chaves-Tannús e Marcos César Seneda. As consultas que, em ambas as univer sidades, fizeram-se entre os interessados, recomendaram, porém, não a reimpressão, a bem dizer, e sim uma outra edição do livro. Em Uberlândia, o manual seguiria constando da coleção em que figura, mas, em Campinas, passaria a integrar, como seu primeiro título, a seção denominada Kantiana, na Coleção Multilíngües de Filosofia Unicamp, da Editora da Unicamp, dirigida pelo signatário. Reedição, pois, já que o texto impresso em 1998 foi submetido a cuidadosa revisão. Kant incumbiu a Jäsche, seu discípulo e colega na universidade, organizar o material sobre Lógica Geral que, ao longo dos anos, reunira e que resultara dos cursos sobre a disciplina. Principalmente, pôs à disposição do colega o texto de Meier, compêndio que anotara passo a passo para utilização em aula. Foi com base no conjunto das notas ao tratado de Meier — e com o propósito de elas se organizarem na forma de um segundo compêndio, agora de teor estritamente kantiano —, que se gestou o presente volume. Assim, não cabe buscar nele o que Kant ali não consignou e que conhecemos, hoje, de outras fontes. Por exemplo, a diacronia das noções. Embora se trate de um texto oriundo da segunda metade do século XVIII, o manual ainda se inclui entre as melhores introduções que se conhecem, não apenas aos temas do kantismo que nele afloram, como também, e mais ampla mente, aos de toda a Filosofia, em seu mais extenso e diverso questionário. Fausto Castilho Campinas, junho de 2000
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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
À PRIMEIRA EDIÇÃO
.................................................................. 15
INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 25 I II
O conceito de Lógica .............................................................................. 25 Divisões principais da Lógica — Exposição — Utilidade dessa ciência — Esboço de uma história da Lógica...................................... 35 III O conceito de filosofia em geral — A filosofia considerada segundo seu conceito na escola e segundo seu conceito no mundo — Requisitos e fins essenciais da filosofia — As tarefas mais universais e mais altas dessa ciência ........................................ 45 IV Breve esboço de uma história da filosofia ............................................ 57 V O conhecimento em geral — Conhecimento intuitivo e conhecimento discursivo; a intuição e o conceito e, em particular, sua diferença — Perfeição lógica e perfeição estética do conhecimento ....................................................................... 69 VI Perfeições lógicas particulares do conhecimento a) Perfeição lógica do conhecimento segundo a quantidade — Grandeza — Grandeza extensiva e grandeza intensiva — Amplitude e rigor ou importância e fecundidade do conhecimento — Determinação do horizonte de nossos conhecimentos .......................... 83 VII b) Perfeição lógica do conhecimento segundo a relação — Verdade — Verdade material e verdade formal ou lógica — Critérios da verdade lógica — Falsidade e erro — A aparência como fonte do erro — O meio de evitar erros ........................................................................... 101 VIII c) Perfeição lógica do conhecimento segundo a qualidade — Clareza — Conceito de nota em geral — As diversas espécies de notas — Determinação da essência lógica de uma coisa — Diferença entre essência lógica e essência real — A distinção como grau superior da clareza — Distinção estética e distinção lógica — Diferença entre distinção analítica e distinção sintética ........ 119 IX d) Perfeição lógica do conhecimento segundo a modalidade — Certeza — Conceito de assentimento em geral — Os modos de assentir: opinar, crer, saber — Convicção e persuasão — Suspender um juízo e adiar um juízo — Juízos provisórios — Os preconceitos, suas fontes e principais espécies ......................................................... 133
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A probabilidade — Definição do provável — Diferença da probabilidade e da verossimilhança — Probabilidade matemática e probabilidade filosófica — Dúvida subjetiva e dúvida objetiva — Maneira de pensar ou método cético, dogmático e crítico de filosofar — As hipóteses ..................................................................... 165 Apêndice — Sobre a diferença do conhecimento teórico e do conhecimento prático ........................................................................... 175
I DOUTRINA GERAL DOS ELEMENTOS Primeiro capítulo — SOBRE
OS CONCEITOS
§ 1. § 2. § 3. § 4. § 5. § 6. § 7. § 8. § 9. § 10. § 11. § 12. § 13.
O conceito em geral — Diferença entre conceito e intuição.............. Matéria e forma dos conceitos ..................................................... Conceito empírico e conceito puro.................................................... Conceitos dados a priori ou dados a posteriori e conceitos feitos... Origem lógica dos conceitos......................................................... Atos lógicos de comparação, reflexão e abstração.......................... Conteúdo dos conceitos e extensão dos conceitos ............................ Grandeza da extensão dos conceitos ............................................. Conceitos superiores e conceitos inferiores .................................... Gênero e espécie......................................................................... Gênero supremo e espécie ínfima ................................................. Conceito mais amplo e conceito mais restrito — Conceitos recíprocos... Relação do conceito inferior com o superior e do mais amplo com o mais restrito............................................................. § 14. Regras gerais da subordinação dos conceitos ................................. § 15. Condições da produção de conceitos superiores e de conceitos inferiores: abstração lógica e determinação lógica............ § 16. Uso in abstracto e uso in concreto dos conceitos ......................... Segundo capítulo — SOBRE
§ § § §
17. 18. 19. 20.
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OS JUÍZOS
Definição do juízo em geral ........................................................ Matéria dos juízos e forma dos juízos............................................... O objeto da reflexão lógica é somente a forma dos juízos......... Formas lógicas dos juízos: quantidade, qualidade, relação e modalidade............................................................
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181 181 183 185 185 187 189 191 191 191 193 195
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201 201 201 203
§ 21. § 22. § 23. § 24. § 25. § 26. § § § §
27. 28. 29. 30.
§ § § § §
31. 32. 33. 34. 35.
§ § § § §
36. 37. 38. 39. 40.
Quantidade dos juízos: universais, particulares e singulares ............................................................................. Qualidade dos juízos: afirmativos, negativos e indefinidos .......................................................................... Relação dos juízos: categóricos, hipotéticos e disjuntivos.............. Juízos categóricos ...................................................................... Juízos hipotéticos ...................................................................... Modos de ligação nos juízos hipotéticos: modus ponens e modus tollens......................................................................... Juízos disjuntivos ................................................................... Matéria dos juízos disjuntivos e forma dos juízos disjuntivos........ O caráter peculiar dos juízos disjuntivos...................................... Modalidade dos juízos: problemáticos, assertivos; apodíticos ............................................................................. Juízos exponíveis ................................................................... Proposições teóricas e proposições práticas ................................ Proposições demonstráveis e proposições indemonstráveis ...... Proposições fundamentais ou princípios .................................... Proposições fundamentais intuitivas ou axiomas e proposições fundamentais discursivas ou acroamas ................ Proposições analíticas e proposições sintéticas.............................. Proposições tautológicas............................................................. Postulado e problema................................................................. Teoremas, corolários, lemas e escólios......................................... Juízos de percepção e juízos de experiência..................................
Terceiro capítulo — SOBRE § 41. § 42. § 43. I. AS
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AS ILAÇÕES
A ilação em geral .................................................................. 227 Ilações imediatas e ilações mediatas........................................ 227 Ilações do intelecto, ilações da razão e ilações da faculdade judicativa ................................................................................ 227 ILAÇÕES DO INTELECTO
§ 44. A natureza peculiar das ilações do intelecto .............................. § 45. Os modos das ilações do intelecto ........................................... § 46. 1. As ilações do intelecto segundo a quantidade dos juízos: per judicia subalternata ........................................................ § 47. 2. As ilações do intelecto segundo a qualidade dos juízos: per judicia opposita....................................................................
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§ § § § § § § §
48. 2a. Ilações do intelecto per judicia contradictorie opposita ........... 49. 2b. Ilações do intelecto per judicia contrarie opposita .................... 50. 2c. Ilações do intelecto per judicia subcontrarie opposita ........... 51. 3. Ilações do intelecto segundo a relação dos juízos: per judicia conversa sive per conversionem ......................... 52. Conversão pura e conversão modificada ................................... 53. As regras universais da conversão ............................................ 54. 4. Ilações do intelecto segundo a modalidade dos juízos: per judicia contraposita .......................................................... 55. A regra universal da contraposição ............................................ II. AS
§ § § § §
235 235 235 237 237
ILAÇÕES DA RAZÃO OU SILOGISMOS
56. 57. 58. 59. 60.
A ilação da razão em geral ou raciocínio silogístico ................. O princípio universal de todas as ilações da razão .................... Os componentes essenciais da ilação da razão .......................... Matéria e forma das ilações da razão ........................................ Divisão das ilações da razão, segundo a relação, em categóricas, hipotéticas e disjuntivas .......................................... § 61. A distinção própria entre ilações da razão categóricas, hipotéticas e disjuntivas ........................................ § 62. 1. Ilações da razão categóricas ................................................... § 63. O princípio das ilações da razão categóricas ............................. § 64. As regras das ilações da razão categóricas .............................. § 65. Ilações da razão categóricas puras e ilações da razão categóricas mistas ...................................................................... § 66. Ilações da razão mistas por conversão das proposições — As figuras ........................................................ § 67. As quatro figuras dos silogismos ............................................. § 68. Fundamento de determinação da diferença entre as figuras pela diversa posição do conceito médio ....................... § 69. A regra da primeira figura: a única legítima ............................. § 70. A condição para a redução das três últimas figuras à primeira ................................................................................. § 71. A regra da segunda figura .......................................................... § 72. A regra da terceira figura ....................................................... § 73. A regra da quarta figura ........................................................ § 74. Resultados gerais sobre as três últimas figuras ........................... § 75. 2. Ilações da razão hipotéticas ....................................................
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§ § § § §
76. O princípio das ilações da razão hipotéticas ............................. 77. 3. Ilações da razão disjuntivas .................................................... 78. O princípio das ilações da razão disjuntivas ............................. 79. O dilema ............................................................................... 80. Ilações da razão formais e ilações da razão ocultas (ratiocinia formalia e cryptica) ...............................................
III. ILAÇÕES § 81. § 82. § 83. § 84. § § § § § § § § §
85. 86. 87. 88. 89. 90. 91. 92. 93.
257 257 259 259 261
DA FACULDADE JUDICATIVA
Faculdade judicativa determinante e faculdade judicativa refletente ................................................................ As ilações da judicativa refletente ............................................ O princípio dessas ilações ...................................................... Indução e analogia: as duas espécies de ilação da judicativa ............................................................................. Ilações da razão simples e ilações da razão compostas .............. Raciocínio polissilogístico ......................................................... Prossilogismos e epissilogismos ................................................ O sorites ou ilação em cadeia ................................................. Os sorites categóricos e os sorites hipotéticos .............................. Falácia, paralogismo e sofisma ............................................... O salto no inferir .................................................................... Petitio principii — Circulus in probando .................................. Probatio plus e minus probans ..............................................
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II DOUTRINA GERAL DO MÉTODO § § § § §
94. 95. 96. 97. 98.
Maneira e método .................................................................. A forma da ciência — Método ................................................. A doutrina do método: seu objeto e seu fim .............................. Meio de promoção da perfeição lógica do conhecimento................. Condições da distinção do conhecimento ................................. I. PROMOÇÃO
275 275 275 275 277
DA PERFEIÇÃO LÓGICA DO CONHECIMENTO POR DEFINIÇÃO,
EXPOSIÇÃO E DESCRIÇÃO DE CONCEITOS
§ 99. § 100.
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A definição ........................................................................... 277 Definição analítica e definição sintética ..................................... 279
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§ 101. § 102. § 103. § 104. § 105. § 106 § 107. § 108. § 109.
Conceitos dados a priori ou dados a posteriori e conceitos feitos a priori ou feitos a posteriori ......................... Definições sintéticas por exposição ou por construção .................. Impossibilidade de definições sintéticas empíricas ...................... Definições analíticas por decomposição de conceitos dados a priori ou dados a posteriori ...................................... Exposições e descrições .......................................................... Definições nominais e definições reais ...................................... Principais requisitos da definição ................................................ Regras para pôr à prova as definições ....................................... Regras para elaborar as definições .......................................... II. PROMOÇÃO
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DA PERFEIÇÃO LÓGICA DO CONHECIMENTO PELA
DIVISÃO LÓGICA DOS CONCEITOS
§ 110. § 111. § 112. § 113. § 114. § 115. § 116. § 117. § 118. § 119. § 120. GUIA
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O conceito de divisão lógica .................................................. Regras universais da divisão lógica ........................................ Co-divisão e subdivisão ........................................................... Dicotomia e politomia ........................................................... As diversas divisões do método ............................................... 1. Método científico ou método popular .................................. 2. Método sistemático ou método fragmentário .......................... 3. Método analítico ou método sintético .................................. 4. Método silogístico ou método tabular ..................................... 5. Método acroamático e método erotemático ............................ Meditar ...................................................................................
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DE LEITURA PARA A FORMAÇÃO DE UM GLOSSÁRIO BÁSICO
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APRESENTAÇÃO À PRIMEIRA EDIÇÃO
Desde o final dos anos 80, quando se instalou a graduação em filosofia da UNICAMP, o Manual dos cursos de Lógica* esteve presente às aulas de introdução a Kant. Decorre por certo tal escolha de ao menos três ordens de consideração. Primeiramente, era necessário cumprir a decisão de fazer o aluno, já no primeiro semestre, freqüentar as obras dos filósofos no idioma em que foram compostas. E como Kant integra necessariamente o elenco dos modernos de que nunca prescinde o atual estudo acadêmico de filosofia, seu pensamento deve ser objeto de um curso de introdução. Pois bem, se a tarefa é introduzir na filosofia de Kant — e trata-se de uma segunda consideração —, por que não deixar que de algum modo o próprio filósofo a realize, dirigindo os passos de quem se inicia no estudo de seu pensamento nos mesmos termos em que o fez ao longo dos quase 40 anos de magistério na Albertina de Conisberga? Nesses termos, impõe-se a leitura do MCLG, compêndio para os cursos e dos cursos de Lógica, de cuja edição Kant incumbiu, nos anos 1799 e 1800, G. B. Jäsche, docente-livre pela mesma universidade e conhecedor de sua obra. Há todavia uma terceira e bem mais relevante ordem de motivos a respaldar a decisão de fazer o primeiro contato com Kant pela leitura do MCLG. É certo que o compêndio constitui uma obra de iniciação, de modo especial a parte que se intitula justamente “Introdução”. Mas, de um outro ponto de vista, o manual constitui um livro — como direi? — de continuação: é feito para, mas nasce dos cursos de Lógica. Expliquemo-nos. * Immanuel Kant, Logik — Ein Handbuch zu Vorlesungen, Kant’s Gesammelte Schriften, Herausgegeben von der Königlich Preussischen Akademie der Wissenschaften, Erste Abtheilung: Werke, Berlin und Leipzig, 1923, de Gruyter, S. 11-150 (I. Kant, Lógica — Um manual para os cursos, escritos reunidos de Kant, editados pela Real Academia Prussiana das Ciências, primeira seção: Obras. Berlim e Lípsia, de Gruyter, 1923, pp. 11-150). Prefácio de Jäsche, editor da obra, pp. 3-10 (não traduzido). Na edição acadêmica, o curador da edição da obra é Max Heinze, autor de um posfácio intitulado “Introdução”, de notas explicativas e variantes (Einleitung, Sachliche Erläuterungen, Lesarten). Nas referências e nas citações, AK indica a edição acadêmica, o número romano indica o volume, e o segundo número, romano ou algarismo, a página.
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Ele não é o único título da bibliografia kantiana que tem essa origem. Na verdade, as aulas sobre a matéria introdutiva abrangem as três disciplinas do que um dia denominou a filosofia “propriamente dita”: Lógica Geral, Metafísica e Ética. Na Prússia do século XVIII, a universidade é ainda fortemente determinada por seu conceito medieval. Em essência, uma instituição de ensino, uma escola. A relação entre docente e discente, melhor, entre doctrina e disciplina, é a nota que a caracteriza. O aprendizado resulta do ensinado, relação que só perderia força definitória a partir da inauguração da Universidade de Berlim, em 10 de outubro de 1810. Naquela universidade doutrinária do século XVIII, a aula é ministrada sobre um compêndio, de uso forçoso. Ela é ainda entendida como leitura, lectio, Vorlesung, “lição” não só de nome, mas efetivamente. Para a maioria dos docentes, melhor, “lentes” alheios a todo esforço de pensar por si, ler significa literalmente ditar. Entrementes, cresce o anseio por mudanças, conforme se pode depreender, por exemplo, da preciosa análise conceitual que da conjuntura formula O conflito das faculdades,1 documento que, a bem dizer, é um prenúncio da ampla e radical reforma por que passaria a instituição pouco mais de um decênio depois. Mas o ministro Von Zedlitz, em portaria (Rescript) de 17 de outubro de 1778, insiste: “o pior dos compêndios é decerto melhor do que nenhum e os professores, desejando e tendo bastante sabedoria, que melhorem o seu autor o quanto possam”.2 Kant não se fez de rogado. No seu caso, o “autor” na verdade são dois, a saber, Alexander Gottlieb Baumgarten (1714-1762) e George Friedrich Meier (1718-1777), wolffianos ambos. De Baumgarten adota três tratados: um para o curso de metafísica (Metaphysica, 1757, em latim) e dois para o de ética (Ethica philosophica, 1740 (1751) e Initia philosophiae practicae primae, 1760, também em latim). De Meier, discípulo de Baumgarten, para o curso de lógica geral adota o Extrato da doutrina da razão (Auszug aus der Vernunftlehre, 1752), um resumo da volumosa Doutrina da razão. Nosso manual é fruto de uma longa freqüentação do Extrato.3 Em que data Kant passou a utilizar o Extrato? Desde 1755, segundo Heinze, reportando-se às conhecidas investigações de Emil Arnoldt sobre a atividade 1 2
3
Kant, Der Streit der Fakultäten (1798), AK, II, pp. 1-144. E. Adickes transcreve parcialmente a portaria de Von Zedlitz: “Das schlechteste Compendium ist gewiss besser als keines, und die Professores mögen wenn sie so viel Weisheit besitzen, ihren Autorem verbessern, so viel sie können”, cf. Introdução à seção do espólio manuscrito (Einleitung in die Abtheilung des handschriftlichen Nachlasses), AK, XIV, p. XXI. O exemplar anotado por Kant é reproduzido integralmente sob o título George Friedrich Meier, Extrato da doutrina da razão (George Friedrich Meiers Auszug aus der Vernunftlehre, Halle, 1752), AK, XVI, pp. 4-872.
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docente de Kant. A partir de 1765, afirma Jäsche, o qual parece ater-se à Notícia a respeito dos cursos previstos para o semestre de inverno de 1765-1766.4 Mais significativo, porém, talvez seja o fato de que, adotado o manual, ele jamais cedeu seu lugar até o término das atividades docentes do filósofo, em 1797. A partir dos compêndios e no mais das vezes em completa discordância com as soluções neles propostas, Kant, ao longo dos anos, foi elaborando paralelamente uma extensa e abrangente produção. Ela permaneceu inédita até o século XX. Anotações marginais aos tratados, comentários, esclarecimentos, reflexões em folhas interfoliadas ou em papéis avulsos, em suma, um rico material análogo ao que foi posto à disposição de Jäsche. Reunir esse acervo, sistematizálo, preparar-lhe a edição constituem um indiscutível êxito da filologia kantiana no século XX. Além dos escritos da primeira seção, a das Obras — na qual se encontra o MCLG, por ter sido editado sob a supervisão de Kant —, AK reuniu todo o restante material em mais duas seções, a dos Manuscritos e a dos Cursos, e a esta incorporou os apontamentos de aula conhecidos, tanto de alunos como os de outros ouvintes.5 Assim, pois, o terceiro e mais relevante motivo a justificar a leitura do MCLG no curso de introdução a Kant reside em que a comparação entre os manuais wolffianos e a dita produção paralela pode abrir uma porta para o que já foi chamado de o laboratório de Kant — proporcionando ao estudante deste autor uma oportunidade de tornar-se um estudioso de Kant, objetivo maior de todo verdadeiro estudo acadêmico. Entretanto, a reflexão paralela não se desenvolve exclusivamente em torno da Lógica e não resulta tão-somente em uma compendiosa kantiana. A conceituação e as proposições desse prodigioso acervo estão alojadas no cerne mesmo das obras maiores. A ida e vinda entre o literário e a escola são, de resto, no que concerne a filosofia, um tema preferencial da história da filosofia moderna. Em nossa época, a história da filosofia fez ver que não é por ser produzida fora da escola que uma obra não pode ter sua origem na escola. Kant já formulara a distinção rigorosa, se bem que ainda indicativa, entre dois conceitos de filosofia 4
5
E. Arnoldt, Digressões críticas no domínio da investigação kantiana (Kritische Excurse im Gebiete der Kantforschung), Ges. Werke, V, 2, Schöndörffer, Berlim, 1909; AK, IX, p. 505; Notícia da organização de seus cursos no semestre de inverno de 1765-1766 (Nachricht von der Einrichtung seiner Vorlesungen in dem Winterhalbenjahre von 1765-1766), AK, II, pp. 303-13. Cf. Wilhelm Dilthey, Prefácio (Vorwort), AK, I, pp. V-XV; cf. Adickes, AK, XVI, pp. XVIILX.
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que chamou conceito de filosofia na escola (Schulphilosophie) e conceito de filosofia no mundo (Weltphilosophie), ou conceito cosmopolítico da filosofia.6 Dois conceitos distintos e não obstante indissociáveis. Através dessa distinção ainda indicativa, já se delineia, em certo sentido, a perspectiva que permitiria um passo adiante da investigação. Desde o século XIX procura a historiografia rastrear nos chamados autores — Espinosa, Descartes, Leibniz, por exemplo — as remissões à escola que se ocultam sob a obra. Por fim, chega-se ao reconhecimento de que o vigor e a efetiva novidade da filosofia alemã, a partir do final do século XVIII, não se devem a nenhuma vis misteriosa, mas pura e simplesmente ao que um kantiano, Max Wundt, denominou die deutsche Schulphilosophie, a filosofia alemã de escola. Essa tradição detém a chave do acesso às obras, nas quais Kant confronta seus autores. Aos poucos foi-se dissipando a tenaz e confortável ilusão de que a filosofia habita as composições que vez por outra os filósofos entregam ao público ledor. Ilusão que faz caso omisso principalmente de tudo o que antecede e de tudo o que sucede o fato literário: põe-se de parte o elaborado na escola e a subseqüente recepção da obra na escola, rompendo-se, portanto, a circularidade que hoje move a reflexão filosófica. Não que os historiadores da filosofia moderna postulem, a exemplo de alguns intérpretes atuais de Platão, a passagem do escrito ao não escrito, que lhes parece um pressuposto do correto entendimento dos diálogos. Mas, ao mesmo tempo que eles, só que muito antes deles — afinal, os apologistas da tradição platônica indireta só formularam as proposições contrárias a Cherniss em 1959 —, a distinção kantiana já propunha a redução da obra ao rigor fundamentado (Gründlichkeit), isto é, a devolução do produto ao seu laboratório. Finalmente, mais um fruto se pode colher no estudo do MCLG: assim como em toda a Schulphilosophie, também no kantismo o vocabulário técnico constitui elemento de fundamental significação. Numa carta a Marcus Herz, de meados do “decênio silencioso”, Kant situa a questão da terminologia na base do projeto crítico: “uma Crítica [...] uma ciência estritamente formulada [...] requer mesmo para sua fundamentação expressões técnicas de todo suas”.7 Nas atuais circunstâncias — dada a total ausência no secundário tanto da germanística como da romanística —, o aluno que ingressa na graduação em filosofia tem de estudar ao mesmo tempo a filosofia e a língua alemã. Por se tratar de um livro de estudo e não propriamente de leitura fluente, o tradutor não 6 7
Cf. a presente edição do MCLG, pp. AK23-27. An Marcus Herz. 24. Nov. 1776: “eine Critic, eine förmliche Wissenschaft, ... die zu ihrer Grundlegung sogar ganz eigener technischer Ausdrücke bedarf”, AK, X, p. 199.
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hesitou em grifar — os grifos do tradutor independem dos do autor — e intercalar no texto traduzido termos, locuções e até frases inteiras em alemão, a fim de chamar a atenção não só para o fundo conceitual, mas também para o pertinente vocabulário técnico. O mesmo propósito inspira o apêndice denominado “Guia de leitura”. Foi concebido na esperança de que ajude em duas tarefas: de uma parte, ordenar semanticamente a matéria em torno de certos temas preferenciais a fim de facilitar o acesso ao texto; de outra parte, pôr em relevo os termos e as proposições com que Kant introduz esses temas, sobretudo quando recorre a conceitos dispostos em pares e seqüências de opostos, dando ao leitor a possibilidade de formar por si mesmo um glossário inicial da filosofia kantiana, tanto em alemão como em português. Mas deve ficar claro que não vai nisto nenhuma veleidade de fazer lexicologia, ramo da filologia kantiana iniciada já em 1786 com o célebre Wörterbuch zum leichtern Gebrauch der Kantischen Schriften de Schmid,8 antes mesmo do aparecimento da edição B da Kr. r. V. Não foram poucas as dificuldades de tradução. Há, em primeiro lugar, as que nascem da diferença de época. O alemão da Aufklärung é ao extremo gramaticalizado. Na universidade, a gramaticalização da linguagem é acentuada pelo emprego em filosofia do chamado Deutschlateinischer Kathederjargon — jargão teuto-latino ou latino-alemão de cátedra —, um híbrido finalmente rejeitado pelos usuários de ambos os idiomas. Na sociedade, os excessos são em grande medida um efeito do indisputado ascendente do francês e de sua rígida codificação, que vem do século XVII e se estende da gramática à retórica e à poética. A linguagem de Kant ilustra perfeitamente esse estado de coisas: preferência pela subordinação, profusão de conectivos, pontuação funcional etc. É o oposto mesmo do nosso modo de escrever propenso à parataxe, econômico das palavras de ligação, que o leitor supre ou não mentalmente, que pontua apenas para secundar a curva da respiração. Nesse sentido, o tradutor tudo fez por trazer o texto traduzido para mais perto do atual modo de dizer. Mas há naturalmente um limite à consecução desse propósito: a fidelidade ao conteúdo do texto kantiano.
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Aliás, republicado em 1976, em edição fac-similar pela “Wissenschaftliche Buchgesellschaft” de Darmstadt.
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A ortografia da época foi conservada, assim como o faz a edição acadêmica, a qual reproduz as edições de época. Especial cuidado cercou a tradução de alguns termos. Schluss é um gênero e o raciocínio apenas uma espécie sua; foi traduzido por ilação, reservando-se inferência — apesar de ilação e inferência provirem ambos do verbo inferre — para designar a derivação que ocorre no raciocínio ou ilação da razão, estritamente considerada. Kant distingue três faculdades de conhecimento ditas superiores: o intelecto (Verstand), a razão (Vernunft) e a faculdade judicativa (Urtheilskraft: força do juízo). A última recebe esse nome porque a expressão faculdade-de-julgar é demasiado extensa e, assim, incômoda; posso abreviar mais ainda a designação da faculdade, dizendo pura e simplesmente a judicativa; finalmente, a faculdade e o seu ato devem ter designações próprias, reservando-se juízo à designação exclusiva do ato de julgar. Cada uma das três faculdades superiores exerce uma espécie própria de ilação. Kant as denomina respectivamente ilação do intelecto, ilação da razão (ou raciocínio, ou silogismo) e ilação da judicativa. Apesar da sobrecarga léxica, mantemos o tempo todo os nomes dessas distintas funções. Procuramos manter também a distinção entre Folge e Consequenz, conseqüente e conseqüência, embora Kant nem sempre o faça. De qualquer maneira, procuramos não dizer conseqüência onde se deve dizer conseqüente, para evitar confusão entre as proposições que pertencem à matéria da ilação e a relação entre elas, que pertence à sua forma. Grund é sempre traduzido por fundamento, mesmo nos compostos como, por exemplo, Beweisgrund, usualmente traduzido por matéria da prova e que vertemos para fundamento da prova. Há, no entanto, exceções, como, por exemplo, a de princípio de razão suficiente, que deveria ser traduzido em todo rigor por princípio do fundamento suficiente, mas neste caso nos rendemos ao uso consagrado. Meus agradecimentos vão a todas as pessoas que de alguma maneira contribuíram para que o livro fosse publicado. Registro em primeiro lugar o nome do professor-doutor Paulo Miceli, diretor do Ifch–Unicamp, que de bom grado aquiesceu em co-patrocinar a presente edição, mediante o compromisso de adquirir um determinado número de exemplares da tiragem inicial. Estou grato a Marilza Aparecida Silva por haver montado e revisado os fascículos de uma primeira publicação parcial do manual pelo Ifch–Unicamp. Meus mais sinceros agradecimentos aos professores Alexandre G. de Soares e Marcos Seneda, da Universidade Federal de Uberlândia: ao primeiro pela sugestão e depois pelos bons
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