Provas de liberdade
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Universidade Estadual de Campinas Reitor José Tadeu Jorge Coordenador Geral da Universidade Alvaro Penteado Crósta
Conselho Editorial Presidente Eduardo Guimarães Esdras Rodrigues Silva – Guita Grin Debert João Luiz de Carvalho Pinto e Silva – Luiz Carlos Dias Luiz Francisco Dias – Marco Aurélio Cremasco Ricardo Antunes – Sedi Hirano
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Rebecca J. Scott Jean M. Hébrard
Provas de liberdade uma odisseia atlântica na era da emancipação
Tradução Vera Joscelyne
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Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990. Em vigor no Brasil a partir de 2009.
ficha catalográfica elaborada pelo sistema de bibliotecas da unicamp diretoria de tratamento da informação Sco85p
Scott, Rebecca J. (Rebecca Jarvis), 1950Provas de liberdade: Uma odisseia atlântica na era da emancipação / Rebecca J. Scott, Jean M. Hébrard; tradução: Vera Joscelyne – Campinas, sp: Editora da Unicamp, 2014. 1. Tinchant, Família. 2. Negros – Atlântico, Oceano, Região – Migração. 3. Negros – Atlântico, Oceano, Região – Condições sociais. 4. Negros – Atlântico, Oceano, Região – Biografia. 5. Escravos – Atlântico, Oceano, Região – Migração. 6. Escravos – Atlântico, Oceano, Região – Condições sociais. 7. Escravos – Atlântico, Oceano, Região – Biografia. 8. Fumo – Comércio. I. Hébrard, Jean M. ( Jean Michel), 1944. II. Joscelyne, Vera Lúcia Mello. III. Título. cdd 305.896
301.45196 920.93014493 301.4493 isbn 978-85-268-1069-3 338.476797
Índices para catálogo sistemático:
1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8.
Tinchant, Família Negros – Atlântico, Oceano, Região – Migração Negros – Atlântico, Oceano, Região – Condições sociais Negros – Atlântico, Oceano, Região – Biografia Escravos – Atlântico, Oceano, Região – Migração Escravos – Atlântico, Oceano, Região – Condições sociais Escravos – Atlântico, Oceano, Região – Biografia Fumo – Comércio
305.896 305.896 301.45196 920.93014493 305.896 301.4493 920.93014493 338.476797
Copyright © by Rebecca J. Scott e Jean M. Hébrard Copyright © by President and Fellows of Harvard College Copyright © 2014 by Editora da Unicamp Título original: Freedom papers: an Atlantic odyssey in the age of emancipation Direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19.2.1998. É proibida a reprodução total ou parcial sem autorização, por escrito, dos detentores dos direitos. Printed in Brazil. Foi feito o depósito legal. Direitos reservados à Editora da Unicamp Rua Caio Graco Prado, 50 – Campus Unicamp cep 13083-892 – Campinas – sp – Brasil Tel./Fax: (19) 3521-7718/7728 www.editora.unicamp.br – vendas@editora.unicamp.br
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Para nossos companheiros Peter Railton e Martha Jones
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Sumário
Abreviações..................................................................................................................... 11 Prólogo: O fabricante de charutos escreve para o general..................................... 15 1. “Rosalie, mulher negra de nação Poulard”. . ........................................................ 21 2. “Rosalie... minha escrava”. . ..................................................................................... 39 3. A cidadã Rosalie....................................................................................................... 75 4. A travessia do Golfo................................................................................................. 97 5. A terra dos direitos do homem............................................................................... 121 6. Joseph e seus irmãos. . ................................................................................................ 141 7. “É preciso fazer com que o termo direitos públicos signifique alguma coisa”. . ........................................................................................................ 169 8. Horizontes de comércio. . .......................................................................................... 191 9. Cidadãos para além da nação.. .............................................................................. 219
Epílogo: “Por um motivo racial”................................................................................ 235 Agradecimentos e colaborações. . .................................................................................. 261 Índice onomástico.. ........................................................................................................ 271 Caderno de imagens..................................................................................................... 277
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Joseph [José] TINCHANT 1827-1899 Casado com Stéphanie Gonzales
Louis Alfred DUHART 1814-1870
Pierre TINCHANT 1833-1866
Michel Étienne Henri VINCENT ca. 1730-1804
Juste [Jules] TINCHANT 1836-1902
Juste Théodore
Étienne Hilaire dit Cadet
Antoine Édouard TINCHANT 1841-1915 Casado com Louise Debergue
Marie-Louise dite Résinette
Marie Françoise dite Rosalie [VINCENT] ca. 1767-?
François Ernest TINCHANT 1839-1923 Casado com Hubertine Plomdeur Depois casado com Marie Catherine Léonardine Yonck
Élisabeth dite Dieudonné VINCENT 1799-1883
Joseph TINCHANT 1766-?
Jacques TINCHANT ca. 1798-1871
Marie Françoise dite Suzette BAYOT ca. 1778-1840
Nota: Os termos dit e dite (dito, dita) eram usados na linguagem francesa dos registros jurídicos para indicar um apelido ou pseudônimo. Usamos uma linha contínua (-) para denotar um casamento reconhecido pelo Estado; uma linha interrompida (---) para significar um relacionamento conjugal não reconhecido pelo Estado. Nomes pelos quais os indivíduos são identificados com maior frequência no texto estão sublinhados.
François Louis TINCHANT 1824-1900 Casado com Octavie Rieffel
Pierre DUHART 1810-1877
Louis Nicolas François DUHART 1772-1849
Três gerações da família Vincent/Tinchant
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Abreviações
Arquivos AANO Archives of the Archdiocese of New Orleans, New Orleans
(Arquivos da arquidiocese de Nova Orleans, Nova Orleans)
ADPA Archives départementales des Pyrénées-Atlantiques, Pau
(Arquivos departamentais dos Pirineus Atlânticos, Pau) AC-Gan: Archives communales de Gan (Arquivos comunais de Gan)
AGI Archivo General de Indias, Seville (Arquivo Geral das Índias,
Sevilha)
AGR Archives générales du Royaume, Bruxelles (Arquivos Gerais
do Reino, Bruxelas) MJ: Ministère de la Justice (Ministério da Justiça)
ANC Archivo Nacional de Cuba (Arquivo Nacional de Cuba) AP: Asuntos Políticos (Assuntos Políticos) CCG: Correspondencia de los Capitanes Generales (Cor-
respondência dos Capitães Generais) FMG: Fondo Máximo Gómez (Fundo Máximo Gómez)
ANS Archives nationales du Sénégal (Arquivos Nacionais do
Senegal)
ASVG Direction générale Victimes de la Guerre, Service archives
et documentation, Bruxelles (Direção geral Vítimas da Guerra, Serviço de arquivos e documentação, Bruxelas)
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BL Baker Library, Historical Collections, Harvard Business
School (Biblioteca Baker, Coleções Históricas da Escola de Administração de Empresas) R.G.Dun: R.G. Dun & Co. Collection (Coleção R. G. Dun & Cia)
CADN Centre des archives diplomatiques de Nantes (Centro dos
arquivos diplomáticos de Nantes)
CARAN Centre d’accueil et de recherche des Archives nationales,
Paris (Centro de acolhimento e pesquisa dos Arquivos nacionais, Paris) Mi: Microfilm des Archives nationales (Microfilme dos Arquivos nacionais) SOM: Séries Outre-mer (Série Além-mar)
CEGES-SOMA Centre d’études et de documentation Guerre et sociétés
contemporaines, Studie-en Documentatiecentrum Oorlog en Hedendaagse, Maatschappij, Bruxelles (Centre de estudos e de documentação Guerra e sociedades contemporâneas, Bruxelas) SRA: Services de renseignement et d’action (Serviço de informação e de ação)
CO, NO Conveyance Office, New Orleans (Cartório de registro de
transmissão de propriedades, Nova Orleans) COB: Conveyance Office Books (Registro de transmissão de propriedades)
DGHR Direction générale Human resources de l’armée belge, Quar-
tier Reine Élisabeth, Bruxelles (Arquivos do Departamento de Relações Humanas do Exército da Bélgica, Quarteirão Rainha Élisabeth, Bruxelas)
FA FelixArchief, Antwerp (Arquivo Felix, Antuérpia) MA: Modern Archief (Arquivo Moderno) MGR-SGB Mahn-und Gedenkstätte Ravensbrück/Stiftung Brandenbur-
gische Gedenkstätten, Ravensbrück (Memória e Memorial de Ravensbrück/Fundação do Memorial de Brandemburgo, Ravensbrück)
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abreviações
MMA Mobile Municipal Archives, Mobile, Alabama (Arquivo NAUK
NONARC NOPL
RA TFP
UFL
UNO
USNA
Municipal de Mobile, Mobile, Alabama) National Archives of the United Kingdom, Kew (Arquivos Nacionais do Reino Unido, Kew) CO: Colonial Office Records (Documentos da Secretaria Colonial) T: Treasury Records (Documentos do Tesouro) WO: War Office Records (Documentos da Secretaria da Guerra) New Orleans Notarial Archives Research Center (Centro de Pesquisa dos Arquivos Notariais de Nova Orleans) New Orleans Public Library (Biblioteca Pública de Nova Orleans) CA: City Archives (Arquivos da Cidade) LD: Louisiana Division (Divisão da Luisiana) Rijksarchief te Antwerpen, Antwerp (Arquivos do Estado de Antuérpia, Antuérpia) Tinchant Family Papers (Documentos da Família Tinchant) FC: Courtesy of Françoise Cousin (Cortesia de Françoise Cousin) II: Courtesy of Isabelle Ivens (Cortesia de Isabelle Ivens) MK: Courtesy of Michèle Kleijnen (Cortesia de Michèle Kleijnen) MLVV: Courtesy of Marie-Louise Van Velsen (Cortesia de Marie-Louise Van Velsen) PS: Courtesy of Philippe Struyf (Cortesia de Philippe Struyf ) University of Florida George A. Smathers Libraries, Gainesville (Biblioteca George A. Smathers da Universidade da Flórida, Gainesville) JP: Jérémie Papers (Documentos de Jérémie) SC: Special Collections (Coleções Especiais) University of New Orleans, Earl K. Long Library (Universidade de Nova Orleans, Biblioteca Earl K. Long) LSCD: Louisiana and Special Collections Department United States National Archive (Arquivo Nacional dos Estados Unidos) 13
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Outros AGH
exp. fol. leg. RG
sig.
Association de généalogie d’Haïti (Associação de Genealogia do Haiti). expediente (arquivo) folio legajo (maço) Record Group (Grupo de documentos) signatura (número de chamada)
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Prólogo: O fabricante de charutos escreve para o general
Em 1899, a luta militar pela independência de Cuba do governo espanhol, que durara décadas, já havia terminado. O cenário, no entanto, não era o esperado pelos patriotas cubanos quando a guerra começara. Nos últimos meses do conflito, os Estados Unidos tinham intervindo e, conforme as tropas espanholas se retiravam da ilha, a autoridade foi transferida não para as figuras que comandaram a rebelião, mas para a ocupação militar norte-americana e o governo militar subsequente. Durante todo o verão e o outono daquele ano, cubanos de todas as partes da ilha escreveram ao general Máximo Gómez, o respeitado líder que havia sobrevivido à luta, para lhe falar sobre as dificuldades enfrentadas naquela que eles imaginaram se tornaria uma Cuba livre e independente. Muitas vezes sem terra e sem trabalho ou recursos, veteranos comuns procuravam seu antigo comandante em busca de conselho e assistência. Em centenas de cartas, eles expressavam suas aspirações à cidadania em uma nova nação, aspirações que agora pareciam frustradas. Uma carta, datada de setembro de 1899, escrita em inglês no papel timbrado de uma empresa, no entanto, vinha de uma fonte incomum e levava um pedido igualmente incomum. O autor não era cubano e sim um comerciante de charutos de Antuérpia chamado Édouard Tinchant. Ele se dirigiu ao general Gómez da seguinte forma: Ardentemente solidário desde o princípio com a causa cubana, tenho sempre me orgulhado de ser um de seus mais sinceros admiradores. Ficarei extremamente honrado se o senhor tiver a bondade de me autorizar a usar seu ilustre nome para a marca de um de meus melhores artigos, com seu retrato adornando as etiquetas, na forma da prova em anexo1.
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Na carta, Tinchant sugere que ele talvez “não fosse totalmente desconhecido a alguns dos sobreviventes da última luta”, referindo-se aos 30 anos de desafios cubanos ao governo espanhol desde a Guerra dos Dez Anos (1868 a 1878). Explica, também, que tinha sido “um contribuinte constante e hu milde para o Fundo para Cuba, e muitos são seus compatriotas, os cubanos, e seus seguidores a quem dei alguma ajuda”. A esperança de Tinchant era que alguns dos colegas de Gómez, presumivelmente aqueles que tinham estado exilados em Nova Orleans na década de 1860, pudessem ainda “lembrar-se de mim como um membro da Companhia C do Sexto Regimento de Voluntários da Luisiana, divisão Banks, em 1863; como representante do 6o Distrito da cidade de Nova Orleans, na Convenção Constitucional do estado da Luisiana em 1867-1868; e como um fabricante de charutos em Mobile, Alabama, de 1869 até 1877”. Falando de veterano para veterano, Tinchant estava dando a Gómez uma pista sobre sua própria política e identidade. O Sexto Regimento de Voluntários da Luisiana era uma unidade do exército da União recrutada durante a Guerra Civil entre os homens de cor livres ou recentemente libertados em Nova Orleans. A convenção de 1867-1868 da Luisiana tinha elaborado uma das Constituições estaduais mais radicais jamais vistas, começando com uma garantia enfática de que todos os cidadãos do estado, independentemente da cor, teriam os mesmos direitos “civis, políticos e públicos”. Como era possível que um homem da Bélgica tivesse sido um soldado da União e um representante eleito para aquela assembleia? Tinchant provavelmente suspeitava que Máximo Gómez iria se perguntar a mesma coisa e, por essa razão, ele já dava indicações para a resposta: Nascido na França em 1841, sou descendente de haitianos já que tanto meu pai quanto minha mãe nasceram em Gonaives no começo deste século. Tendo se estabelecido em Nova Orleans após a Revolução, meu pai, embora em circunstâncias modestas, partiu da Luisiana para a França com o único objetivo de criar seus seis filhos em um país em que nenhuma lei abominável ou preconceito ignorante pudesse impedir que eles se tornassem HOMENS.
Aqui, então, estava a questão crucial, uma evocação da Revolução Haitiana e um apelo implícito ao antirracismo que, Tinchant sabia, Gómez endossava, com ênfase particular em uma maturidade e masculinidade honradas. A carta de Édouard Tinchant retratava um mundo atlântico em que várias lutas sobre raça e direitos estavam entrelaçadas, e no qual ideias e conceitos
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prólogo: o fabricante de charutos escreve para o general
eram intercambiados junto com ajuda mútua, lembranças e charutos. Para um historiador, no entanto, a questão inicial levantada por essa carta é direta: Seria possível que um comerciante de charutos belga, em sua pessoa e sua família, personificasse uma conexão entre três das maiores lutas antirracistas do “longo século XIX”: a Revolução Haitiana, a Guerra Civil e a Reconstrução nos Estados Unidos, e a Guerra Cubana pela independência? Ou era Édouard Tinchant um hábil fabulista tentando convencer o homem mais famoso de Havana a acrescentar brilho àqueles que eram, muito provavelmente, charutos enrolados na Bélgica e não em Cuba? Para ver se, ou como, o relato de Édouard pode ser coeso, podemos acompanhar o rastro do itinerário de sua família, usando os registros mantidos por padres, tabeliães, oficiais e recenseadores locais em Cuba, na Luisiana, no Haiti, na França, no México e na Bélgica. Surpreendentemente, esses registros acabam por nos levar a um período ainda mais antigo, para um lugar que a carta de Édouard Tinchant não mencionou: o vale médio do rio Senegal na África Ocidental, na época em que cativos africanos eram deportados para as Américas para serem vendidos como escravos. O retrato que emerge é o de uma família com um compromisso obstinado: exigir dignidade e respeito. Além disso, membros de cada uma de suas gerações mostravam-se conscientes do papel crucial dos documentos para a reivindicação de seus direitos, e se organizavam para que esses documentos fossem produzidos — registros sacramentais quando levavam uma criança para ser batizada, registros notariais quando estabeleciam um contrato, cartas ao editor de jornal quando envolvidos em um debate público, correspondência privada quando transmitiam notícias entre eles próprios. Para muitos membros da família a nacionalidade individual e a cidadania formal não estavam claramente definidas, mas uma pessoa ainda podia disputar espaço colocando palavras no papel. Por exemplo, os documentos de alforria elaborados para proteger os membros das primeiras gerações da escravidão ou de uma nova escravização revelam-se criações de extrema complexidade, com um poder ao mesmo tempo mais frágil e mais real do que se poderia imaginar. Uma odisseia familiar que começou com uma passagem da Senegâmbia para Saint-Domingue no final do século XVIII, continuou até Santiago de Cuba, Nova Orleans, Porto Príncipe, Pau, Paris, Antuérpia, Veracruz e Mobile, com várias viagens de volta à Luisiana e à Bélgica. A cada passo do caminho esses viajantes interpretavam e transmitiam para outros a trilha que a família tinha seguido, e enquadravam a viagem em termos que poderiam validar as escolhas que tinham feito e a posição social que esperavam obter. A 17
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carta de Édouard Tinchant para Máximo Gómez foi um desses reenquadramentos, mas houve muitos outros. Um lugar crucial para a história da família é a cidade de Nova Orleans. Em 1809, milhares de refugiados originalmente vindos da colônia franco-caribenha de Saint-Domingue — recentemente transformada na nação independente do Haiti — chegaram à Luisiana após terem sido expulsos de seu primeiro exílio em Cuba. Um desses refugiados era a mãe de Édouard Tinchant, Élisabeth Vincent. Portanto, embora Édouard Tinchant tenha ocultado alguns dos detalhes da história de sua vida para que esta se ajustasse a suas metas, ele era realmente de ascendência haitiana — embora não exatamente da maneira que sugeria. E foram os anos de sua mãe em Nova Orleans, durante os quais ela se casou com o homem chamado Jacques Tinchant, que deixaram os traços arquivísticos fundamentais para narrar a história dessa parte da família. A história que se desenvolve é tanto pública quanto privada, pois Édouard Tinchant e seus antepassados e descendentes repetidamente buscavam driblar ou desafiar diferentes variantes do preconceito racial e da exclusão. Quando ele se apresentou em 1867-1868 para participar na elaboração da notável Constituição estadual da Luisiana, na época da Reconstrução, Édouard encorajava seus colegas a defender os direitos civis das mulheres, independentemente da cor, e a reconhecer uniões conjugais que não tinham sido formalizadas pelo matrimônio. Nesse esforço, vemos o reflexo de uma lembrança familiar dos obstáculos que tinham confrontado as gerações antes dele. Embora Édouard não tivesse como saber, sua insistência no direito ao casamento e sua rejeição ao estigma — descrevendo a si próprio como um homem de cor e um “filho da África” — também prefigurou os desafios com que alguns dos que vieram depois dele iriam se deparar. Édouard Tinchant morreu exilado na Inglaterra, tendo trocado o sul dos Estados Unidos pela Bélgica em 1878, após o colapso da Reconstrução, e tendo fugido da Bélgica durante a invasão alemã na Primeira Guerra Mundial. A história que se inicia com a carta a Máximo Gómez poderia logicamente se concluir com o exílio de Édouard e sua morte em 1915. Mas em 1937 um artigo na imprensa britânica deu à sobrinha-neta belga de Édouard — Marie-José Tinchant — um momento de breve visibilidade pública na Inglaterra, no ano em que o desfecho da invasão da Etiópia por Mussolini e a formação do Eixo Roma-Berlim eram manchetes em todos os jornais. O episódio começou quando os pais do noivo belga de Marie-José contestaram os procedimentos preparatórios do casamento em um cartório de Londres. Entrevistada por um jornalista, Marie-José Tinchant explicou, “Não sou uma moça branca... 18
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prólogo: o fabricante de charutos escreve para o general
tenho cor, e os pais de André não querem sequer ouvir falar de nossa união”. Mas ela insistiu: “Nós nos casaremos”. O destino de Marie-José Tinchant após seu casamento e suas atividades subsequentes na resistência belga aos nazistas tornou-se assim um epílogo dramático para a odisseia de sua família2. Este livro é um experimento que pode ser caracterizado como de micro-história posta em movimento. Ele se apoia na convicção de que o estudo de um local ou evento cuidadosamente escolhido, examinado bem de perto, pode revelar dinâmicas que não estão visíveis através das lentes mais familiares de região e nação. Nesse caso, seguimos uma cadeia interconectada de eventos definidos pelo itinerário de uma família. É claro, não há nada “micro” no mundo atlântico do século XIX, mas mesmo nesse quadro tão amplo, a análise mais profunda pode surgir da intensa atenção ao particular. Não reivindicamos qualquer tipicidade ou representatividade para a família Vincent/Tinchant. Nossa investigação é moldada, em vez disso, pelas vicissitudes de uma genealogia e um padrão de atividade que não poderíamos ter previsto. Começamos com um conjunto de pistas bastante específicas e enigmas interpretativos que surgiram de uma descoberta imprevista nos arquivos cubanos. Estes, por sua vez, nos levaram ao âmago do problema da liberdade e dos fenômenos de raça, racismo e antirracismo. A história dessa família se desenvolveu em uma narrativa de escolhas individuais e coletivas condicionadas pela escravidão, pela guerra e pela hierarquia social. Apesar disso, os membros dessa família abriram seu caminho com discernimento e habilidade através da era da emancipação, cujas complicações se tornam mais visíveis à medida que seguimos suas trilhas sinuosas. Essas vidas foram caracterizadas por um movimento contínuo de pessoas e de papéis através do Caribe, do Golfo do México e do próprio Atlântico. Os capítulos que se seguem normalmente começam com uma chegada e terminam com uma partida, refletindo fases diferentes dessa odisseia. A cada passo do caminho, ademais, alguém usou papel e tinta, ou fez com que outros usassem, construindo um arquivo de movimento e de memória.
Notas 1
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Édouard Tinchant para Máximo Gómez, 21 de setembro de 1899, sig. 3868/4161, leg. 30, Fondo Máximo Gómez, Archivo Nacional de Cuba. Veja “Wedding-Day Bid to Stop a Marriage”, Daily Express (Londres), 10 de abril de 1937, 13, e “Fled to Wed Secretly in London”, Daily Mail (Londres), 9 de abril de 1937, 11.
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