Sentidos de milícia

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sentidos de milĂ­cia


universidade estadual de campinas Reitor José Tadeu Jorge Coordenador Geral da Universidade Alvaro Penteado Crósta

Conselho Editorial Presidente Eduardo Guimarães Esdras Rodrigues Silva – Guita Grin Debert João Luiz de Carvalho Pinto e Silva – Luiz Carlos Dias Luiz Francisco Dias – Marco Aurélio Cremasco Ricardo Antunes – Sedi Hirano


Greciely Cristina da Costa

sentidos de milĂ­cia Entre a lei e o crime


Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990. Em vigor no Brasil a partir de 2009.

ficha catalográfica elaborada pelo sistema de bibliotecas da unicamp diretoria de tratamento da informação C823s

Costa, Greciely Cristina da, 1980Sentidos de milícia: Entre a lei e o crime / Greciely Cristina da Costa. – Cam­ pinas, sp: Editora da Unicamp, 2014.

1. Análise do discurso. 2. Denominação (Linguística). 3. Ideologia. 4. Rio de Janeiro (RJ) – Milícia. I. Título. cdd 401.41 410 145 355.31098153 e-isbn 978-85-268-1255-0

Índice para catálogo sistemático:

1. Análise do discurso 2. Denominação (Linguística) 3. Ideologia 4. Rio de Janeiro (RJ) – Milícia

Copyright © by Greciely Cristina da Costa Copyright © 2014 by Editora da Unicamp

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401.41 410 145 355.31098153


Para meus pais, Braz e Alaide, com amor!



agradecimentos

Este livro apresenta uma versão de minha tese de doutorado, cuja pesquisa desenvolvida foi orientada pela professora Eni Puccinelli Orlandi, no Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp. Antes de passarmos à introdução dele, gostaria de registrar meus agradecimentos a todos aqueles que fizeram parte de minha formação e contribuíram, cada um a sua maneira, para que este trabalho fosse possível, pois eu confesso que, quando idealizava a escrita da tese, a vislumbrava em primeira pessoa do singular, porque acreditava que a tese seria a realização de um trabalho meu, “independente”: uma, entre várias, de minhas ilusões. No decorrer da pesquisa, fui percebendo que seria impossível escrevê-la no singular, tendo em vista a quantidade de sujeitos envolvidos em meu trajeto. Quero dizer que essa tese, agora na versão livro, não é apenas escrita na primeira pessoa do plural por uma questão formal, mas sim porque ela foi construída por, além de um autor, um sujeito. Esse nós materializa, de certa forma, a contribuição, o apoio, a presença de vários outros, autores ou não, que, de maneira menos ou mais visível, fazem parte dessa pesquisa, por meio de orientações, leituras compartilhadas, discussões formais e informais, interlocuções. Muito obrigada a todos: À Eni, em especial, sempre, pelo acolhimento de ideias, pelo compartilhar de formulações, pela confiança, pelos incentivos –


que foram inúmeros durante esses anos –, pela contribuição para o avanço de meu percurso teórico, profissional e pessoal, pela orientação sempre generosa, enriquecedora, cuidadosa e atenciosa, e pelo carinho! Minha enorme admiração e muito, muito, muito obrigada! Ao Ignacio Cano, pela generosidade em me conceder importante parte de meu material de análise. À Marie-Anne Paveau, pelas discussões profícuas, que me ajudaram a compreender, respeitar e valorizar as diferentes escolhas teóricas. À Francine Mazière, pela atenção, pela gentileza e pelos sorrisos com que me acolheu em Paris. Ao Jean-Jacques Schaller, pela interlocução sensível, por compartilhar comigo a inquietação em direção ao social, pelas leituras e pelas questões. À Mónica Zoppi-Fontana, pelas aulas geniais, pela oportunidade de realizar o estágio na Universidad de Buenos Aires (UBA), pela leitura preciosa nas etapas de aferimento da pesquisa. Ao José Horta Nunes, pela valiosa contribuição durante os momentos de discussão sobre a pesquisa. À Cristiane Dias, pela força e pelo exemplo de generosidade e trabalho. À Vanise Medeiros, pela contribuição teórica e pela emoção com que leu meu texto. Aos professores do IEL, pelos ensinamentos diretos e indiretos. Ao João Massarolo, pelas pistas levantadas no que diz respeito à imagem. Ao Marcos Barbai, pelas orações e pela ternura. A todos os colegas do IEL, pela interlocução e amizade. A todos os meus amigos, pela presença constante, ainda que distante. Agradeço, imensa e incansavelmente, a toda a minha família, principalmente à minha mãe, Alaide; ao meu pai, Braz; aos meus irmãos, Marcelo e Gisele; à minha cunhada, Gisele, e aos meus so­


brinhos, Gabrielle e João Nicolas, pela confiança, pelo apoio, pelos esforços, pelo amor, pela vida! Ao Silas, pela paciência, pela persistência, pelo incentivo, pelo companheirismo, pelo amor! Ao CNPq, pela concessão de bolsa no Brasil e na França durante o período de meu doutoramento.



Então, a gente não sabe mais o que está certo e o que está errado. Eu não sei se milícia é boa, se polícia é boa, se é ruim, se o governo é bom; não sei o que é que é pior! (um dos entrevistados)



sumário

apresentação Eni Puccinelli Orlandi......................................................................................................... 15

introdução..............................................................................................................................

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I. O discurso sobre e os lugares de mediação.................................................. 33

A constituição do discurso sobre. . ..................................................................... “Não há sentido sem interpretação” ................................................................. Ideologia e evidência . . ................................................................................................. As formações imaginárias e a construção discursiva do referente . . .............................................................................................................................. A entrevista e suas projeções no discurso . . ...................................................

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II. Espaço e sujeitos: Condições de produção de significação................ 51

Espaço político-simbólico ......................................................................................... 51 Milícia, Estado e a individuação do sujeito ............................................... 53 Favela: Um espaço determinado ......................................................................... 65 A denominação e os sentidos entre espaço e sujeitos ........................... 78 As políticas de segurança pública e o extermínio premiado .............................................................................................................................. 93 Polícia: Controle e violência . . .................................................................................. 101 III Milícia: Denominação e redenominação........................................................ 109


Repetir para criminalizar? ...................................................................................... 109 Silêncio e deslocamentos .................................................................................... 133 IV. Discurso de moradores sobre a milícia: Dissonância de

dizeres............................................................................................................................................ 155

V. Discurso jurídico sobre a milícia.. ........................................................................... 171

Estabilização e apagamento ............................................................................. 171 Denominação em um projeto de lei ............................................................. 177 Denominação: Equívocos e recobrimento ................................................. 184 Circulação e imposição: Lei da milícia ...................................................... 187 VI Discurso de imagens sobre a milícia.. ................................................................. 197

Imagens para milícia. . .......................................................................................... 197 Corpo significante e corpo metaforizado .................................................. 204

considerações finais.. ....................................................................................................... 217 referências bibliográficas....................................................................................... 225 anexos................................................................................................................................................ 231 Anexo 1................................................................................................................................. 231 Anexo 2................................................................................................................................. 233 Anexo 3................................................................................................................................. 236


apresentação

Temos acompanhado no Brasil, mas também no mundo, em geral, a presença constante das múltiplas práticas da violência. A autora deste livro toma em mãos, para análise, algumas delas, que são tanto mais sensíveis sócio-histórica e simbolicamente porque se dão na dança de sentidos promovida justamente por aqueles que supostamente tratam de nossa segurança. Pondo em cena a tensão entre o legítimo, o legal e o ilegal, este trabalho fala de sentidos que saem fora do lugar quando o enquadramento do espaço é a favela, e o imaginário da segurança e da criminalidade fazem funcionar o discurso da (e sobre a) milícia. Interrogando o funcionamento dessa denominação – milí­ cia –, a autora se pergunta: por que chamar a polícia de milícia? E esse gesto, que questiona, produz uma reflexão aguda, perspicaz e de muita relevância política e social. Uma denominação que re­ cobre a violência policial ao dar outro nome à polícia em acontecimentos em que se enredam a política, as práticas de segurança, a criminalidade. No dicionário, a palavra milícia significa em re­ lação à força militar, enquanto em outras fontes lexicográficas desliza para grupo criminoso, e em estudos de especialistas é definida como grupo armado com domínio de território ou grupo de extermínio. Com uma escrita precisa, e teoricamente bem construída, Greciely C. da Costa nos mostra que o próprio fato de dar nome, ou de renomear, segue à risca a política da palavra: de 15


Apresentação

nome em nome, explicitando as relações de força, travadas entre traficantes, polícia e Estado, a imagem de milícia se constitui. Na banalização da violência policial nas favelas, em que o temor à polícia pelos moradores atesta a tragédia humana diante da impunidade policial, lá está a milícia. E se controle é termo particular da polícia, comando pertence ao narcotraficante e domínio é a palavra-chave da milícia: domínio imposto, forçado, violento, sem possibilidade de oposição. Palavra cuja significação é recheada de indistinções, silêncios, falhas e equívocos, mas com efeito de sentido fatal. No espaço equívoco em que se instala a milícia, sentidos de controle, de coerção, de extorsão se movem atingindo a torto e a direito determinados sujeitos. Mas que não são quaisquer. Há um espaço estigmatizado, a favela, espaço criminalizado, condenado à marginalidade e à negação de direitos ao longo de sua história e que, como diz a autora, afeta, ao mesmo tempo, a constituição de seus sujeitos, na construção da imagem estereotipada de “fave­ lado”. E a mídia segue a lógica da significação desse espaço: é comunidade quando fala da pacificação e das UPPs, é favela quando fala do favelado, do traficante. No entanto, não é tão simples essa divisão, pois resulta de uma mistura explosiva de espaço e sujeito em certas condições de produção, que fazem significar operações policiais inseridas em políticas públicas. Estas mesmas que mantêm o crime funcionando porque nos fazem entrar em uma conta que não se fecha: temos o crime porque o Estado falta, e quando o Estado lá está. O lugar da autoridade, que pode significar a presença da segurança, também é lugar do crime, porque este não é considerado como o do criminoso, já que se aloja no lugar da autoridade. E a milícia fica impune em sua especialidade, brotando daí tanto a ideia de violência legítima como a da especialização no extermínio. A criminalização do espaço da favela é correlata, desse modo, à imagem da milícia como prática de segurança. De seu lado, o sujeito morador da favela procura escapar desses sentidos, não significando seu espaço como favela e negando-se em sua 16


Sentidos de milícia

própria identidade. Substitui um nome por outro. Favela é comunidade. Para o IBGE são “aglomerados subnormais”; também são chamados bolsões de pobreza por especialistas. São etiquetas trocadas, mas as práticas não se dissolvem nem se transformam na substituição dos nomes. Ao contrário, especializam-se e reforçam-se. E a repressão é o que é oferecido ao morador, seja em que nome ele se envelope. Entram em cena as UPPs, separando, na zona sul, os prote­ gidos e os criminalizados, e o discurso, como diz a autora, continua sendo aquele de guerra contra o narcotraficante, contra o crime organizado. Força policial ou agente de segurança, palavras se somam enquanto nomeações e renomeações se espalham como fogo e água. E a polícia ganha um qualificativo: pacificadora. Mas pode ser também polícia comunitária na indicação legislativa, sem perder a marca de equívocos que as nomeações e renomeações possibilitam sempre, e ainda que se associem sentidos de milícia e polícia. A pesquisadora, em sua reflexão, passa por diferentes discursos, levando em conta também os dos moradores da favela, e o que encontra é a dissonância de dizeres que os constituem: o morador entrevistado, ao falar, insere o dizer do outro, projeta-o, cita-o, o reproduz de maneira a falar pelo miliciano. Sem deixar de observar que os roteiros de entrevistas já trazem assertivas sobre milícia usando palavras como tomar conta, dominar, controlar, que evocam o sentido de dominação como estruturante deste espaço, o da favela, que, como a autora nos mostra, se configura como um espaço ilegal, sobretudo em certas circunstâncias: quando há uma incursão da polícia na favela, todos se tornam suspeitos, e, sendo a polícia representante do Estado, tem sua legalidade garantida, mesmo quando executa um morador da favela, lugar de marginalidade. Círculo vicioso que alimenta os trajetos de sen­ tidos que acabam esbarrando nos das milícias, pois a chegada destas se dá como instauração de uma autoridade em um espaço do crime. E assim se perfilam, em uma relação complicada, a cidade, 17


Apresentação

o Estado, a lei e os sujeitos a partir do domínio de favelas sus­ tentado por práticas violentas da milícia, a qual está ancorada em um discurso moral de enfrentamento da criminalidade seme­ lhante ao da polícia, como nos mostra Greciely. É a partir do “lugar” que se constroem as imagens do sujeito e do outro, e do que é criminalidade. Para as milícias nem faltam leis, uma lei imposta pela milícia, ou, como diz a autora, um dispositivo normativo da milícia. Que não está escrito, nem sancionado, nem submetido ao Estado, mas que é eficaz no domínio do espaço e das relações sociais nas áreas miliciadas. Como acontece no Brasil usualmente: há lei que não pega; por outro lado, como podemos observar, não é preciso ser lei para “pegar”. Basta o uso da intimidação. Nesse caso, não é uma lei do Estado, mas funciona do mesmo modo pois deriva de sua Lei. Força paralela, no mesmo modelo, com os mesmos efeitos. Indistinção. Funcionando como se fosse. Nesse passo, não podemos deixar de acentuar a excelência da análise da formação da denominação Milícia Privada, Milícia Par­ ti­cular, Grupo (de extermínio), Esquadrão. Mostrando a dificul­ dade exibida nos textos em conceber a milícia e lhe conceder existência jurídica, a autora passa em revista os processos de de­no­ minação e de textualização, pela análise de discurso, mostrando o funcionamento de equívocos e recobrimentos. Ambiguidades e indeterminação. A discursividade do discurso jurídico sobre a milícia reafirma a dificuldade em enunciar que a milícia é a polícia, ficando esse sentido interditado. Mas, na prática, há normas que se estruturam como as regras do Código Civil, do Código Penal, em suma, dos regimentos de lei, e funcionam de tal modo que materializam a “lei” da milícia ao evocar um dizer já significado em outra instância (a da Lei), ressignificando-a em outro espaço, o da favela, marginalizado, submetido a esse domínio, rarefeito de sociabilidade em que já se perdeu o direito de ir e vir. Mas, na incompletude e na possibilidade sempre de os sentidos serem outros, as ressignificações e redenominações deixam 18


Sentidos de milícia

margem para a resistência. E uma denominação emerge e desliza por outros processos discursivos: o de contramilícia. O que faz a autora retomar sua questão do início – por que chamar a polícia de milícia? – e, pensando os deslizamentos de sentidos, os des­ locamentos de lugares, a indistinção e indeterminação de sujeitos, que percorreu em sua análise, ela nos faz lembrar do inacaba­ mento, agora voltado para as próprias questões que nos colocamos. Respondidas, compreendidas ou não, são interrogações que produzem seus efeitos no percurso de nossas reflexões, e que nos lançam em novos desafios do entendimento. Às vezes inesperados. Outras, não. Campinas, 16 de agosto de 2014 Eni Puccinelli Orlandi

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