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universidade estadual de campinas Reitor José Tadeu Jorge Coordenador Geral da Universidade Alvaro Penteado Crósta

Conselho Editorial Presidente Eduardo Guimarães Esdras Rodrigues Silva – Guita Grin Debert João Luiz de Carvalho Pinto e Silva – Luiz Carlos Dias Luiz Francisco Dias – Marco Aurélio Cremasco Ricardo Antunes – Sedi Hirano Comissão Editorial da Coleção Várias Histórias Fernando Teixeira da Silva (coordenador) Jefferson Cano – Margarida de Souza Neves Sueann Caulfield – Ricardo Antunes Conselho Consultivo da Coleção Várias Histórias Claudio Henrique de Moraes Batalha Maria Clementina Pereira Cunha – Robert Wayne Andrew Slenes Michael Hall – Sidney Chalhoub – Silvia Hunold Lara

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Organização

Marcelo Mac Cord Claudio H. M. Batalha

organizar e proteger T r a b a l h a d o r e s , a s s o c i aç õ e s e m u t u a l i s m o no Brasil (séculos XIX e XX)

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Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990. Em vigor no Brasil a partir de 2009.

ficha catalográfica elaborada pelo sistema de bibliotecas da unicamp diretoria de tratamento da informação Or3

Organizar e preteger: Trabalhadores, associações e mutualismo no Brasil (séculos XIX e XX) / organizadores: Marcelo Mac Cord; Claudio H. M. Batalha. – Campinas, sp: Editora da Unicamp, 2014. 1. Mutualismo. 2. Trabalhadores – Brasil. I. Mac Cord, Marcelo. II. Batalha, Claudio Henrique de Moraes, 1957-

cdd 334.7 301.44420981 e-isbn 978-85-268-1265-9 Índices para catálogo sistemático:

1. Mutualismo 2. Trabalhadores – Brasil

334.7 301.44420981

Copyright © by Marcelo Mac Cord Claudio H. M. Batalha Copyright © 2014 by Editora da Unicamp As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade do(s) autor(es) e não necessariamente refletem a visão da FAPESP. Direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19.2.1998. É proibida a reprodução total ou parcial sem autorização, por escrito, dos detentores dos direitos. Printed in Brazil. Foi feito o depósito legal.

Direitos reservados à Editora da Unicamp Rua Caio Graco prado, 50 – Campus Unicamp cep 13083-892 – Campinas – sp – Brasil Tel./Fax: (19) 3521-7718/7728 www.editora.unicamp.br – vendas@editora.unicamp.br


Coleção Várias Histórias

A c oleção Várias H istórias divulga pesquisas recentes sobre a diver­ si­d ade da formação cultural brasileira. Ancoradas em sólidas pesquisas em­pí­r icas e focalizando práticas, tradições e identidades de diferentes ­g rupos sociais, as obras publicadas exploram os temas da cultura a partir da perspectiva da história social. O elenco resulta de trabalhos individuais ou coletivos ligados aos projetos desenvolvidos no Centro de Pesquisa em História Social da Cultura do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (www.unicamp.br/cecult). Volumes publicados 1 – Elciene Azevedo. Orfeu de carapinha. A trajetória de Luiz Gama na imperial cidade de São Paulo. 2 – Joseli Maria Nunes Mendonça. Entre a mão e os anéis. A Lei dos Sexa­ge­ nários e os caminhos da abolição no Brasil. 3 – Fernando Antonio Mencarelli. Cena aberta. A absolvição de um bilontra e o teatro de revista de Arthur Azevedo. 4 – Wlamyra Ribeiro de Albuquerque. Al­gazarra nas ruas. Come­mo­rações da Independência na Bahia (1889-1923). 5 – Sueann Caulfield. Em defesa da honra. Moralidade, moder­nidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940). 6 – Jaime Rodrigues. O infame comércio. Propostas e e­xperiên­cias no final do tráfico de africanos para o Brasil (1800-1850). 7 – C arlos E ugênio L íbano S oares . A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850). 8 – Eduardo Spiller Pena. Pajens da casa imperial. J­urisconsul­tos, es­cravidão e a Lei de 1871.

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9 – João Paulo Coelho de Souza Rodrigues. A dança das c­ adeiras. Literatura e política na Academia Brasileira de Letras (1896-1913). 10 – A lexandre L azzari . Coisas para o povo não fazer. ­C arnaval em Porto Alegre (1870-1915). 11 – M agda R icci . Assombrações de um padre regente. ­D iogo Antô­n io Feijó (1784-1843). 12 – G abriela dos R eis S ampaio . Nas trincheiras da cura. ­A s di­fe­rentes medi­ cinas no Rio de Janeiro imperial. 13 – Maria Clementina Pereira Cunha (org.). Carnavais e outras f(r)estas. Ensaios de história social da cultura. 14 – Silvia Cristina Martins culturais na corte (1832-1868).

de

Souza. As noites do Ginásio. Teatro e tensões

15 – S idney C halhoub , V era R egina B eltrão M arques , G abriela dos Reis Sam­paio e C arlos R oberto G alvão S obrinho (orgs.). Artes e ofícios de curar no Brasil. Capítulos de história social. 16 – Liane Maria Bertucci. Influenza, a medicina enferma. Ciência e práticas de cura na época da gripe espanhola em São Paulo. 17 – P aulo P inheiro M achado . Lideranças do Contestado. A for­m ação e a atuação das chefias caboclas (1912-1916). 18 – C laudio H. M. B atalha , F ernando T eixeira da S ilva e ­A le ­x an ­d re F ortes (orgs.). Culturas de classe. Identidade e diversidade na formação do operariado. 19 – Tiago de Melo Gomes. Um espelho no palco. Identidades sociais e massi­ ficação da cultura no teatro de revista dos anos 1920. 20 – Edilene Toledo. Travessias revolucionárias. Ideias e militantes sin­dicalistas em São Paulo e na Itália (1890-1945). 21 – Sidney Chalhoub, Margarida de Souza Neves e Leonardo Affonso de M iranda P ereira (orgs.). História em cousas miúdas. Capítulos de história social da crônica no Brasil. 22 – Silvia Hunold Lara e Joseli Maria Nunes Mendonça (orgs.). Direitos e justiças no Brasil. Ensaios de história social. 23 – Walter Fraga Filho. Encruzilhadas da liberdade. Histórias de escravos e libertos na Bahia (1870-1910). 24 – J oseli M aria N unes M endonça . Evaristo de Moraes, tribuno da Re­pública.

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25 – V aléria L ima . J.-B. Debret, historiador e pintor. A viagem pitoresca e his­tórica ao Brasil (1816-1839). 26 – L arissa V iana . O idioma da mestiçagem. As irmandades de pardos na América Portuguesa. 27 – F abiane P opinigis . Proletários de casaca. Trabalhadores do comércio carioca (1850-1911). 28 – E neida M aria M ercadante S ela . Modos de ser, modos de ver. Via­ jantes europeus e escravos africanos no Rio de Janeiro (1808-1850). 29 – M arcelo B alaban . Poeta do lápis. Sátira e política na trajetória de Angelo Agostini no Brasil Imperial (1864-1888). 30 – Vitor Wagner Neto de Oliveira. Nas águas do Prata. Os trabalhadores da rota fluvial entre Buenos Aires e Corumbá (1910-1930). 31 – Elciene Azevedo, Jefferson Cano, Maria Clementina Pereira Cunha, S idney C halhoub (orgs.). Trabalhadores na cidade. Cotidiano e cultura no Rio de Janeiro e em São Paulo, séculos XIX e XX. 32 – E lciene A zevedo . O direito dos escravos. Lutas jurídicas e abolicio­ nismos na província de São Paulo. 33 – D aniela M agalhães ratura em Machado de Assis.

da

S ilveira . Fábrica de contos. Ciência e lite­

34 – R icardo F igueiredo P irola . Senzala insurgente. Malungos, parentes e re­bel­des nas fazendas de Campinas (1832). 35 – L uigi B iondi . Classe e nação. Trabalhadores e socialistas italianos em São Paulo, 1890-1920. 36 – M arcelo M ac C ord . Artífices da cidadania. Mutualismo, educação e tra­balho no Recife oitocentista. 37 – J oana M edrado . Terra de vaqueiros. Relações de trabalho e cultura política no sertão da Bahia, 1880-1990. 38 – T hiago M oratelli . Operários de empreitada. Os trabalhadores da constru­ção da estrada de ferro Noroeste do Brasil (São Paulo e Mato Grosso, 1905-1914). 39 – Â ngela de C astro G omes , F ernando T eixeira da S ilva (orgs.). A Justiça do Trabalho e sua história. Os direitos dos trabalhadores no Brasil. 40 – M arcelo M ac C ord , C laudio H. M. B atalha (orgs.). Organizar e prote­ger. Trabalhadores, associações e mutualismo no Brasil (séculos XIX e XX).

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Sumário iNTRODUÇÃO: EXPERIÊNCIAS ASSOCIATIVAS E MUTUALISTAS NO BRASIL Marcelo Mac Cord e Claudio H. M. Batalha .................................................... 11 1 A PRÁTICA DO AUXÍLIO MÚTUO NAS CORPORAÇÕES DE OFÍCIOS NO RIO DE JANEIRO NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XIX Mônica Martins ................................................................................. 25 2 O ASSOCIATIVISMO MUTUALISTA NA FORMAÇÃO DA CLASSE OPERÁRIA EM SALVADOR (1832-1930) Aldrin A. S. Castellucci . . ............................................................................ 47 3 MUTUALISMO, TRABALHO E POLÍTICA: A SEÇÃO IMPÉRIO DO CONSELHO DE ESTADO E A ORGANIZAÇÃO DOS TRABALHADORES NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO (1860-1882) David P. Lacerda.. ..................................................................................... 83 4 ASSOCIATIVISMO ENTRE IMIGRANTES PORTUGUESES NO RIO DE JANEIRO IMPERIAL Ronaldo P. de Jesus .................................................................................. 111 5 MUTUALISMO E IDENTIDADE CAIXEIRAL: O CASO DA SOCIEDADE INSTRUÇÃO E AMPARO DE MACEIÓ (1882-1884) Osvaldo Maciel.. ...................................................................................... 131 6 IMPERIAL SOCIEDADE DOS ARTISTAS MECÂNICOS E LIBERAIS: MUTUALISMO, CIDADANIA E A REFORMA ELEITORAL DE 1881 NO RECIFE Marcelo Mac Cord ..................................................................................... 153

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7 O ETHOS MUTUALISTA: VALORES, COSTUMES E FESTIVIDADES Cláudia Maria Ribeiro Viscardi .................................................................... 193 8 A INFLUÊNCIA DAS ASSOCIAÇÕES VOLUNTÁRIAS DE SOCORROS MÚTUOS DOS TRABALHADORES NA SOCIEDADE DE FLORIANÓPOLIS (1886-1931) Rafaela Leuchtenberger ............................................................................. 219 9 O MUTUALISMO E SEUS DIVERSOS SIGNIFICADOS PARA OS TRABALHADORES CAMPINEIROS NAS PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO XX Paula Christina Bin Nomelini . . .................................................................... 247 SOBRE OS AUTORES . . ................................................................................... 277

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Int r o d u çã o Ex p e r i ê n c i a s a s s o c i at i va s e m u t u a l i s ta s n o B r a s i l

Em sua forma clássica, o associativismo nos remete para al­ guns debates que ganharam corpo com o Iluminismo. Naquele mo­ mento histórico, na medida em que a noção ontológica de indiví­ duo (dotado “naturalmente” de liberdade e de racionalidade) era construída e consolidada, ruía um mundo de Antigo Regime que acreditava no encantamento e no destino marcado pelo nas­cimento. Apesar dos embates, fluxos e refluxos entre essas concepções conflitantes, ganhava cada vez mais espaço a defesa da vida pú­blica, a luta pela participação social mais ampla, o desejo pela ampliação da vida política strictu sensu e os combates pela carreira aberta ao talento. No bojo desse complexo movimento, associações dos mais diversos perfis foram criadas para reunir inteligências, virtudes e vontades. Em outras palavras, elas foram idealizadas para reunir pessoas atuantes e com interesses comuns, focadas na busca de uma ideia de civilização e de progresso. Em uma conjuntu­ra em que o liberalismo conquistava hegemonia, tais grupos foram im­ portantes tanto para o fortalecimento da emergente sociedade civil quanto para a organização de suas múltiplas demandas. De forma bastante generalista, podemos afirmar que, nas úl­ timas décadas do século XVIII, os eruditos europeus recrudesceram o fomento dos grêmios literários e científicos. Tais grupos estavam preocupados com a divulgação de novidades artísticas e científicas entre seus sócios, a promoção de intercâmbios entre entidades congêneres e a instituição de um campo cultural apartado das

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classes subalternas. Concorrentemente a esse processo, aquelas entidades também buscavam construir uma comunidade intelec­ tual mais homogênea no Ocidente, que, fundamentada na escrita e na imprensa, defenderia a inexorabilidade do tempo progres­sivo, do “aperfeiçoamento humano” e da “história universal”1. Os bur­ gueses, por sua vez, fundaram e frequentaram en­tidades de classe que pretendiam representá-los politicamente quando o assunto era o comércio, a agricultura, a indústria e as implicações do livre mercado. Por meio de suas organizações, além de imporem suas demandas econômicas aos outros setores da sociedade, eles de­ monstravam que podiam atuar na esfera pública porque reuniam condições para superar o “atraso” do antigo regime. Entre aqueles que estiveram atentos às mudanças históricas que se processavam, os trabalhadores também perceberam que as novas formas de associativismo, idealizadas pelas elites letradas e proprietárias, seriam muito importantes tanto para suas demandas sociais mais amplas quanto para o fortalecimento de suas estraté­ gias de proteção e de organização. Vale destacar que esses dois últimos aspectos não eram estranhos para muitas categorias de artesãos que compartilhavam formas de autoajuda em irmandades católicas compostas por leigos. A partir dos anos 1830, ao se orga­ nizarem (e/ou reorganizarem) em sociedades mutualistas, os traba­ lhadores reelaboraram suas “velhas” formas de autoproteção, como as práticas de socorros mútuos em caso de doença ou de morte2. No transcorrer do século XIX, em algumas outras associações congêneres, os trabalhadores também lutaram para que fossem reconhecidos como sujeitos afinados com a ideia de civilização e de progresso. Bom exemplo disso é o fato de que muitos deles se reuniram em entidades próprias que contavam com bibliotecas, conferências e aulas noturnas. No Brasil, respeitadas suas especificidades históricas e sociais, o associativismo, em sua forma mais clássica, foi um fenômeno que ganhou mais importância nas primeiras décadas do século XIX. Na crise do domínio português e no próprio processo de inde­ pendência política, algumas lojas maçônicas tiveram papel signi­ ficativo. Na década de 1830, por conta da instabilidade regencial,

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as elites letradas e proprietárias criaram algumas dezenas de gru­ pos preocupados com a civilização e com o progresso nacionais. Em 1831, em São Paulo, surgiu a Sociedade Defensora da Liber­ dade e da Independência Nacional. Quase simultaneamente, outra, homônima, foi criada na corte. No ano seguinte, foi fundada a Sociedade de Agricultura, Comércio e Indústria da Bahia. Os subalternos também criaram suas entidades. Nessa última pro­víncia, também em 1832, foi instalada a Sociedade dos Artífices, que promovia auxílio mútuo e aperfeiçoamento profissional para seus membros. Na corte, em 1835, com objetivos semelhantes à con­ gênere soteropolitana, surgiu a Sociedade Auxiliadora das Artes e Ofícios e Beneficente dos Sócios e suas Famílias3. Em 22 de agosto de 1860, o governo imperial aprovou a lei 1.083. Poucos meses depois, em 19 de dezembro, foi aprovado o decreto 2.711, que regulamentava aquela primeira norma. O obje­ tivo de ambas as regras era disciplinar o que à época era chamado de espírito de empresa, ou seja, a livre-iniciativa. As associações também foram alvo do que ficou conhecido como “Lei dos entra­ ves”. Nesse sentido, os homens livres que quisessem criar, por exemplo, grupos de socorros mútuos, científicos, literários e religiosos precisavam apresentar os estatutos da nova entidade às autoridades públicas. Para que tais documentos fossem aprovados, os solicitantes teriam que comprovar a efetiva utilidade pública do empreendimento e exigir que seus futuros sócios se compro­ metessem com a ordem pública e com os bons costumes. Por sua vez, as associações que funcionavam antes da “Lei dos entraves” deveriam adequar sua vida institucional à nova legislação. Legal­ mente reconhecidos, o funcionamento daqueles referidos grupos ainda seria acompanhado pelas autoridades públicas por meio da fiscalização de seus livros de registros – atas, conta-correntes, matrículas etc.4. A partir da década de 1880, no país, por conta de contun­ dentes mudanças conjunturais, as normas que regulamentavam o associativismo também conheceram algumas importantes alte­ rações. Os golpes no escravismo, o incentivo aos projetos imigra­ tó­r ios, o fortalecimento do abolicionismo, as transformações no

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mundo do trabalho, a maior pujança da vida urbana nas principais capitais brasileiras e o advento da República fomentaram o inte­ resse na montagem de novos grupos de interesses comuns – diver­ si­ficados em seus perfis constitutivos e com novas demandas po­ líticas e sociais. Especialmente entre os trabalhadores, observamos que muitas de suas sociedades mutualistas extrapolaram os tradi­ cionais objetivos previdenciários, chegando mesmo a pautar signi­ ficativas reivindicações de cunho sindical – como melho­r ias nos pagamentos devidos pelos patrões e na diminuição da jornada de trabalho. Classe e nacionalidade também foram categorias funda­ men­tais para que trabalhadores estrangeiros organizassem seus gru­ pos de afinidades e reivindicassem direitos no país que os “acolheu”. No Brasil, do ponto de vista historiográfico, ainda possuímos poucas investigações sobre o associativismo em termos gerais, quando comparamos a temática com outras mais consagradas pe­ los domínios de Clio. Dentre os estudos que foram produzidos, contudo, encontramos mais análises sobre o que era praticado pelos trabalhadores. Entre os anos de 1960 e 1980, os debates sobre o associativismo organizado pelos subalternos, especial­ mente focados nos grupos que surgiram entre meados do século XIX e as primeiras décadas do XX, tenderam a enquadrar o fenô­ meno em uma espécie de pré-história da classe operária5. Teleoló­ gica, tal perspectiva privilegiou os partidos comunistas e os sindi­ catos como lugares de plena expressão e consciência daqueles que sobre­viviam do suor do próprio rosto. Em sentido contrário, o artigo de Michael L. Conniff, de 1975, sobre as associações volun­ tárias no Rio de Janeiro entre 1870 e 1945, além de romper com a periodização então corrente, foi das poucas contribuições a esses estudos que optaram por considerar a tendência à associação como um fenômeno marcante do período6. A partir do final dos anos 1980, aquele tipo de explicação dominante sobre a formação da classe operária brasileira perdeu espaço. Especialmente quando os pesquisadores se debruçaram, de forma mais intensiva, sobre os arquivos e sua documentação. Por meio de investigações com substancial aporte empírico, uma nova geração de historiadores tem ajudado a construir interpre­

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tações inovadoras sobre o associativismo no tempo. Destacamos que essa mudança mais pontual acompanhou um movimento mais geral de renovação da historiografia brasileira, que ocorreu logo após o fim da ditadura civil-militar. Com respeito ao mutualismo, o estudo pioneiro de Tania Regina De Luca, publicado em 1990, permaneceu por algum tempo como um exemplo isolado do in­ teresse sobre o tema7. Porém, já em fins daquela década, a reto­ mada de estudos sobre o associativismo e o mutualismo tornara-se suficientemente visível para permitir a publicação de um número dos Cadernos AEL exclusivamente dedicado ao tema “Sociedades operárias e mutualismo”. O organizador do projeto editorial foi Claudio H. M. Batalha. Desde então, houve uma considerável ampliação das disser­ tações e das teses voltadas para o mutualismo em particular e para o associativismo em geral, cabendo destacar, entre elas, a tese de doutorado de Adhemar Lourenço da Silva Júnior8, que se tornou referência obrigatória sobre o tema. Ao estudar o Rio Grande Sul entre os anos de 1854 e 1940, o pesquisador observou muitas mo­ dalidades de associativismo, como as sociedades mutualistas incen­ tivadas pelo patronato ou criadas pelos próprios trabalhadores – quer por ramo de produção, quer por ofício. A tese e depois livro de Marcelo Mac Cord também merece menção, pois possibilitou uma nova leitura das relações entre irmandade religiosa e socie­ dade mutualista no Recife oitocentista, e demonstrou a persistên­ cia de práticas das corporações de ofício nas instituições poste­ riores9. Caberia ainda mencionar outras teses transformadas em livro, as quais ampliaram consideravelmente o conhecimento so­ bre a temática, as normas legais que regiam as associações e o papel político destas, tais como as de Vitor Manoel da Fonseca e de Luigi Biondi10. Quando, em 2010, a revista eletrônica Mundos do Trabalho publicou um novo dossiê sobre o tema do associativismo de tra­ balhadores, já existia uma produção suficientemente consolidada, a ponto de surgirem abordagens divergentes. Alguns desses estu­ dos entenderam as sociedades mutualistas (e até mesmo as corpo­ rações de ofício) como espaços nos quais a classe trabalhadora

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construiu e legitimou suas identidades socioculturais na mais ­longa duração. Outros, críticos dessa primeira vertente, sublinharam as características previdenciárias das entidades de auxílio mútuo da perspectiva da teoria da escolha racional. Apesar da aparente opo­ sição, ambas as abordagens permitem que conheçamos melhor a referida forma de associativismo. Além desse ponto de convergên­ cia, os textos apresentados naquelas publicações também permitem que relativizemos uma série de mitos historiográficos. Entre eles, a inexistência de demandas próprias e a falta de organicidade dos trabalhadores livres no tempo do escravismo, a natu­ral substitui­ ção das corporações de ofício pelas sociedades mutua­listas, e des­ tas pelos sindicatos, e a falta de consciência de classe fora dos sindicatos e dos partidos operários. Tributária dos esforços intelectuais das duas últimas décadas, a coletânea Organizar e proteger:Trabalhadores, associações e mutua­lismo no Brasil (séculos XIX e XX) passou por um longo, meticuloso e prazeroso processo de produção acadêmica. O primeiro passo dado na direção deste livro foi a realização do Seminário Mutua­ lismo e Assistência: Brasil, Séculos XIX e XX. Organizado pelo Cecult em junho de 2011, no âmbito do projeto temático Fapesp “Trabalhadores no Brasil: Identidades, direitos e política (séculos XVII a XX)”, os autores, vindos de várias partes do país, apresen­ taram e discutiram versões preliminares dos capítulos que escre­ veram. Esses primeiros textos resultaram em novas versões, que incorporaram as discussões travadas naquele seminário. Em se­ guida, os textos revistos passaram por mais uma rodada de lei­tura e avaliação, realizada pelos próprios organizadores da coletânea. Por último, depois de os autores considerarem criticamente as observações finais, foram entregues as versões definitivas dos capítulos, agora publicados pela Editora da Unicamp na coleção “Várias Histórias”. Coletâneas reunindo autores diversos vêm sofrendo críticas de toda ordem nos últimos anos por parte de resenhistas, editores, pareceristas de agências financiadoras de pesquisas, comitês de avaliação. É possível que muitas dessas críticas sejam pertinentes e justas; outras, porém, são guiadas por considerações que pouco

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tem a ver com a genuína preocupação de aprofundamento do co­ nhe­cimento sobre determinada temática. Exemplo disso é a resis­ tência de editores a um gênero de publicação que, segundo eles, é mais propícia de ter partes copiadas, o que nos parece uma preo­ cupação de ordem puramente comercial e que a rigor valeria para toda e qualquer obra acadêmica. Outra crítica frequente, dessa vez partindo de pareceristas das agências de fomento, é ao caráter endógeno de muitas coletâneas (certamente não é o caso desta), mas parece inteiramente despropositado que um grupo de pes­ quisa de uma instituição não possa tornar público os resultados alcançados, por meio de uma publicação coletiva. Ainda outra crítica repetida às coletâneas diz respeito ao caráter desigual das contribuições, algo que nos parece inevitável em uma obra que tem por meta reunir colaborações diversas. Por fim, outra coletâ­ nea publicada pelo Cecult11 recebeu de um resenhista estrangeiro a crítica de que seus organizadores teriam se furtado de apresen­ tar uma conclusão12, o que não deixa de ser surpreendente, uma vez que, coletâneas raramente têm conclusões, justamente por ter como meta reunir contribuições diversas sobre um dado tema. Reafirmamos – a despeito dessas críticas – a importância das coletâneas como forma de divulgação da pesquisa acadêmica e sua grande contribuição para o aprofundamento do debate intelectual. Nesse sentido, o livro que agora entregamos aos leitores se soma aos esforços para melhor compreendermos a importância do asso­ ciativismo e do mutualismo para os indivíduos e para as coletivi­ dades que viveram no passado, compartilharam projetos e alimenta­ ram sonhos comuns. Esta obra é mais um importante esforço inte­ lectual para que possamos relativizar dois pressupos­tos que ainda rondam corações e mentes. O primeiro, que a forma­ção da socie­ dade civil brasileira sempre esteve a reboque do Estado. O outro, que as pretensas incompletude e atipicidade que marcaram seu surgimento foram fruto de ideias fora de lugar. Com esses cuidados, os autores desta coletânea, apesar de suas dife­rentes concepções historiográficas, estão atentos aos sujeitos e valori­zam a especifi­ cidade de suas lutas, de seus projetos, de suas orga­niza­ções, de seus costumes comuns e de suas formas de atuação cotidiana.

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Atentos a essas problemáticas, buscando respeitar a periodiza­ ção e observando as formas associativas que foram experimentadas em vários locais do país, abrimos o livro com o capítulo de Mô­ nica Martins, intitulado “A prática do auxílio mútuo nas corpora­ ções de ofícios no Rio de Janeiro na primeira metade do século XIX ”. Nesse texto, percebemos a importância das irmandades católicas, formadas por leigos, ao longo do período colonial, para a construção de substantivas formas de solidariedade entre seus membros. Segundo a autora, certos grupos de artistas mecânicos mais organizados, que viveram naquela cidade, fizeram dos referi­ dos espaços religiosos excelentes lugares para organizar suas ro­ tinas profissionais, sociais, hierárquicas e devocionais. Para Môni­ ca Martins, até pelo menos a década de 1830, os artesãos encon­ traram em suas bandeiras de ofício importante apoio simbólico para manter identidades comuns e lutar por direitos, seja contra a sanha controladora da municipalidade, seja contra contingentes de trabalhadores independentes ávidos por mercados e privilégios. Os anos de 1830 abrem o capítulo de Aldrin Castellucci, que entende o período como um importante momento para o fomen­ to das sociedades mutualistas. No texto “O associativismo mutua­ lista na formação da classe operária em Salvador (1832-1930)”, observamos as relações umbilicais entre os grupos de auxílio mú­ tuo e a formação da classe operária soteropolitana – sem desconsi­ derar as irmandades de artesãos no processo de elaboração dessas identidades coletivas. No transcorrer do século XIX, como muito bem demonstra o texto, a cidade de Salvador testemunhou pro­ fundos imbricamentos entre cor da pele, ofício e sociedades mu­ tualistas, que garantiram aos egressos do cativeiro e seus descen­ dentes espaços de conquista e/ou manutenção de direitos. Preo­ cupado com a mais longa duração, Aldrin Castellucci analisa como essas experiências compartilhadas em irmandades leigas e associa­ ções mutuais permitiram que alguns negros, formados nas tradições artesanais, conquistassem espaços na vida política stricto sensu – por meio de vitórias eleitorais apoiadas nos votos de trabalhado­ res em tempos de liberalismo excludente.

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Neste livro, um capítulo é fundamental para compreender­ mos a importância da legislação aprovada no ano de 1860, que foi um dos mais significativos divisores de águas na (re)organização dos diversos tipos de grupos de auxílio mútuo. No capítulo “Mutua­ lismo, trabalho e política: A Seção Império do Conselho de Es­tado e a organização dos trabalhadores na cidade do Rio de Ja­neiro (1860-1882)”, David Lacerda discute a relação entre a primeira e mais efetiva regulamentação estatal que incidiu sobre as socieda­ des mutualistas e a formação de identidades no seio da classe artesanal. Para tanto, o autor discute a chamada “Lei dos entraves”, aprovada naquele ano, e o papel do Conselho de Estado na apli­ cação de seus dispositivos legais. Em seus argumentos, a referida norma e a atuação daquela instância de poder contribuíram para a montagem de uma lógica de dominação política sobre as práticas associativas dos subalternos. Entretanto, por meio da análise das fontes, David Lacerda evidencia como esses últimos sujeitos cria­ ram estratégias e um vocabulário próprio para expressar seus mais diversos interesses cotidianos e reforçar o alcance de sua visibili­ dade pública. Ainda sobre a “Lei dos entraves”, Ronaldo Pereira de Jesus analisa como essa norma foi fundamental para a organização for­ mal dos grupos de beneficência que aglutinavam estrangeiros. No capítulo “Associativismo entre imigrantes portugueses no Rio de Janeiro imperial”, que recorta os anos entre 1860 e 1889, o autor demonstra que as sociedades mutualistas também extrapolaram as fronteiras do mundo do trabalho – sem desconsiderá-lo, contudo. No período em quadro, além dos portugueses, indivíduos de várias nacionalidades, entre os quais franceses, belgas e alemães, procura­ ram o Conselho de Estado com o objetivo de aprovar seus estatutos. Os lusitanos – que, por razões históricas e culturais, compunham o maior grupo de estrangeiros instalados na corte – utilizaram as associações para garantir a conquista de bens materiais e cultu­rais a seus compatriotas. Isso se deu por meio da procura/oferta de empregos, da filantropia, da construção de bibliotecas, da instrução mais ampla e dos festejos que reforçavam suas identidades com a pátria de origem. Ao esmiuçar esses objetivos, Ronaldo Pereira

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 | M a r c e l o M . C o r d

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C l au d i o . H . M . B ata l h a

de Jesus mostra a construção de fortes solidariedades verticais e horizontais no seio da comunidade portuguesa. Dois estudos sobre a década de 1880, que analisam cidades localizadas nas então chamadas províncias do Norte (atual Nor­ deste), também compõem este livro. Osvaldo Maciel nos oferece o capítulo intitulado “Mutualismo e identidade caixeiral: O caso da Sociedade Instrução e Amparo de Maceió ( 1882-1884)”, no qual encontramos diversos combates políticos, sociais e culturais pela mais legítima representação dessa categoria profissional ligada ao comércio. Tendo em vista a forte hierarquização da classe caixei­ ral (cuja base é composta pelos trabalhadores conhecidos como “vassouras” e a elite pelos guarda-livros), o texto explora as tensões que levaram os empregados do comércio a brigar por quem seria o “verdadeiro caixeiro”. Preocupado com as disputas que dividiam essa categoria profissional, o autor ainda esmiúça como os grupos de auxílio mútuo precisaram rediscutir tanto as restrições a seu “fechamento” quanto o problema do número ideal de sócios ma­ triculados. Por mais que existisse uma querela entre os níveis hierárquicos da classe caixeiral, era preciso aumentar os quadros sociais de suas organizações por conta da questão financeira e do aumento da visibilidade pública. O outro estudo sobre as províncias do Norte é de Marcelo Mac Cord. No capítulo “Imperial Sociedade dos Artistas Mecâni­ cos e Liberais: Mutualismo, cidadania e a reforma eleitoral de 1881 no Recife”, o autor analisa as lutas de certos artesãos pernambu­ canos especializados, livres e libertos, descendentes de africanos, pelo direito de maior participação política stricto sensu. Tal proje­ to foi sistematicamente discutido desde os anos 1870, quando, por meio da União Artística, pretendiam ser promovidos à condição de eleitores e disputar cargos legislativos. Apesar das restrições advindas da reforma eleitoral de 1881 (expurgo dos analfabetos e daqueles que não comprovavam renda), observamos que os mem­ bros mais destacados da Imperial Sociedade dos Artistas Mecâni­ cos e Liberais, que também controlavam o Liceu de Artes e Ofícios do Recife, conseguiram se qualificar para comparecer às urnas. Por conta disso, o pesquisador percebeu que, na primeira metade

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