A construção da narrativa histórica
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universidade estadual de campinas Reitor José Tadeu Jorge Coordenador Geral da Universidade Alvaro Penteado Crósta
Conselho Editorial Presidente Eduardo Guimarães Esdras Rodrigues Silva – Guita Grin Debert João Luiz de Carvalho Pinto e Silva – Luiz Carlos Dias Luiz Francisco Dias – Marco Aurélio Cremasco Ricardo Antunes – Sedi Hirano
Universidade Federal de São Paulo Reitora Soraya Soubhi Smaili Vice-reitora Valeria Petri
Conselho Editorial Presidente Ruth Guinsburg Anita Hilda Straus Takahashi – Edson Luís de Almeida Teles – Erwin Doescher Marcia Thereza Couto – Mauro Aquiles La Scalea –Nildo Alves Batista Plinio Martins Filho – Ruth Guinsburg –Salvador Andres Schavelzon Editora-assistente Adriana Garcia
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ana nemi néri de barros almeida rossana alves baptista pinheiro (orgs.)
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Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990. Em vigor no Brasil a partir de 2009.
ficha catalográfica elaborada pelo sistema de bibliotecas da unicamp diretoria de tratamento da informação C766
A construção da narrativa histórica: Séculos XIX e XX / organizadoras: Néri de Barros Almeida, Ana Lúcia Lana Nemi, Rossana Alves Baptista Pinheiro. – Campinas, SP: Editora da Unicamp, São Paulo, SP: Fap-Unifesp, 2014. 1. Historiografia. 2. História moderna – Séc. XIX. 3. História moderna – Séc. XX. I. Almeida, Néri de Barros, 1965- II. Nemi, Ana Lúcia Lana. III. Pinhei-
ro, Rossana Alves Baptista.
cdd 907.2 909.81 e-isbn 978-85-268-1242-0 (Editora da Unicamp) 909.82 isbn 978-85-61673-88-8 (Editora Fap-Unifesp) Índices para catálogo sistemático:
1. Historiografia 2. História moderna – Séc. XIX 3. História moderna – Séc. XX
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A impossibilidade de recuperar a experiência única funda imediatamente a historiografia. Reinhart Koselleck, Los estratos del tiempo: Estudios sobre la historia.
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sumário
apresentação Ana Nemi, Néri de Barros Almeida e Rossana Alves Baptista Pinheiro............ 9 1.
os “pais da história” e o discurso do método Néri de Barros Almeida..................................................................................... 15
2.
revisitando o problema da centralização do poder na idade média. reflexões historiográficas Maria Filomena Coelho.. ................................................................................... 39
3.
alexandre herculano e a escrita da história no conto “a abóboda” Ana Nemi.......................................................................................................... 63
4.
o “enigma de burdino”: sobre nacionalismo, hegelianismo e história do papado medieval Leandro Duarte Rust......................................................................................... 83
5.
violência, poder público e memória monárquica na crônica do religioso de saint-denis (1404-c.1408) Fabiano Fernandes............................................................................................ 123
6.
o louvre de luís xiv na historiografia da arte francesa (1924-1964). o classicismo seiscentista visto pelo prisma do neoclassicismo e do modernismo Pedro Paulo Palazzo.......................................................................................... 143 7.
história científica e “verdade” sobre joana d’arc Flávia do Amaral.. ............................................................................................. 157 7
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8.
pedro damiano, pensador e arauto da “reforma gregoriana”? a construção historiográfica de um reformador do século xi Cláudia Regina Bovo......................................................................................... 179
9.
os conceitos de “helenização” e de “romanização” e a construção de uma antiguidade clássica Pedro Paulo A. Funari e José Geraldo Costa Grillo........................................... 205
10. relatos apologéticos de fundação: uma reconstrução
histórica nacionalista para a américa latina Carla Brandalise. . .............................................................................................. 215
11. richard morse através do espelho: genealogia de algumas
temáticas do espelho de próspero
Beatriz Helena Domingues................................................................................ 229 12. os significados do iberismo em josé enrique rodó e
manuel bomfim Maria Emília Prado.. ......................................................................................... 249
13. mosaico de sentidos factíveis: heurística e hermenêutica na
obra de capistrano de abreu
Ana Luiza Marques Bastos................................................................................ 265
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apresentação Ana Nemi Néri de Barros Almeida Rossana Alves Baptista Pinheiro
O grupo de trabalho aqui reunido discute como os séculos XIX e XX, movidos por sua própria dinâmica histórica, adotaram, produziram e reproduziram modelos gerais e duradouros de interpretação do passado. Pretende-se, dessa forma, realizar a crítica de instrumentos de construção da História e a divulgação de formas interpretativas da modernidade que os institui. As contribuições organizam-se em torno da escrita da História, ou seja, a construção e as particularidades da narrativa histórica entre os séculos XIX e XX, com destaque para a fabricação das tradições no contexto nacional e nacionalista do século XIX. As abordagens diacrônicas confirmam, na recorrência dos elementos mobilizados para a escrita da História, o compromisso da produção dessa forma de conhecimento com o presente. De autoria de Néri de Barros Almeida, o texto que abre esta coletânea discute as apropriações e transfigurações da escrita da História de tradição clássica no século XIX, com o objetivo de estabelecer um campo de permanências relativas pouco reconhecido pela História nos últimos dois séculos. Atendo-se às obras de Heródoto e Tucídides, pensa como critérios fundantes — particularmente do que chamamos modernamente de História Política — movimentam-se em um quadro formal relativamente estável de escrita da História e orientam, sobretudo, a constituição de seu âmbito de observação e de sua função. Na sequência, Maria Filomena Coelho discute a construção de uma ideia de Idade Média ao longo do século XIX, constantemente recuperada no século XX, marcada pelas formas políticas modernas relacionadas ao Estado burocrático e normativo. Quer se trate da Idade Média das Trevas ou da Idade Média Onírica, o paradigma do Estado moderno ronda a reconstrução do período transfor
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mando-o em recurso argumentativo da modernidade triunfante ou em crise sobre si mesma. À força desse procedimento historiográfico a autora contrapõe os modelos interpretativos recentes nascidos da inquirição que, desconfiada do plano cerrado em torno da realeza e da nobreza, volta-se para os múltiplos sujeitos medievais e os signos daquilo que reconheciam como governar. No mesmo sentido, Ana Nemi perscruta a escrita da História de Alexandre Her culano (1810-1877), pautada por uma idealização da Idade Média com o obje tivo de legitimar o enraizamento do liberalismo em Portugal. O conto “A abóboda”, cuja narrativa se passa em 1401, é debatido pela autora em relação à factibilidade da documentação estudada por Herculano. Nesse sentido, o conto foi politicamente construído para informar aos portugueses sobre sua história e suas necessidades políticas contemporâneas, voltadas, em seu entender, à legitimização de uma nova monarquia e à crítica da monarquia bragantina que, para o historiador português, não professaria os valores que legitimaram o Rei D. João I, retratado no conto citado. Leandro Duarte Rust, por sua vez, aponta os aspectos nacional e regional da produção historiográfica portuguesa ao buscar desvendar as razões de seu silêncio a respeito da tese do intelectual francês Pierre David (1947) sobre Maurício Burdino, bispo de Braga que ocupou a Sé romana entre 1118 e 1121 e entrou para a posteridade como o antipapa Gregório VIII. Entre as hipóteses explicativas, o autor explora o vínculo dessa historiografia portuguesa com a tradição alemã e hegeliana que fundaria uma reflexão histórica marcada pela união entre consciência e continuidade histó ricas, pelo nacionalismo católico e pela defesa da preeminência da Igreja de Braga na luta pela independência política e territorial de Portugal. Ao adentrar as portas da Basílica de São Pedro, Burdino teria caído em um vácuo interpretativo, uma vez que não mais representava os interesses da diocese bracarense, tampouco poderia ser reconhecido como defensor dos ideais imperiais na Sé Apostólica romana. O Estado como elemento fundamental da sensibilidade historiográfica decimonônica é retomado por Fabiano Fernandes, que discute a pressão decisiva desse modelo para a compreensão da monarquia francesa do século XV. Reconhecendo nesse procedimento uma espécie de “utopia retrospectiva” cons truída em clara oposição à própria memória histórica produzida no período, o autor analisa um caso de violência registrada pela Crônica do religioso de Saint10
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-Denis envolvendo Carlos de Savoisy e o Duque de Borgonha. Episódio compreendido por muitos a partir da lógica dos indícios de antecedentes do Estado moderno. Avaliando as condições de produção da memória do fato, o autor reconhece nelas um papel de clara determinação. Assim, o cronista teria narrado o conflito à luz de um episódio posterior, os distúrbios subsequentes ao assassinato do Duque de Orléans. A defesa do poder real daí resultante não estaria relacionada ao prenúncio do Estado, mas à necessidade de construção de certa memória monárquica motivada por um episódio particular. Pedro Palazzo analisa como o conceito de “nação” teria pressionado a elaboração de concepções teóricas diversas do estilo clássico. O exemplo abordado é o da fachada do Louvre, cuja análise, entre 1924 e 1964, se encontra marcada pelo problema do “nacionalismo cultural”. Flávia do Amaral discute o amplo dossiê documental sobre Joana d’Arc organizado por Jules Quicherat e publicado entre 1841 e 1850. A autora analisa a ascendência sobre o dossiê dos impe rativos nacionais que guiavam o trabalho da Sociedade de História da França, responsável pela publicação, e aponta a obliteração de todos os dossiês ante riores que — embora não tão completos quanto o de Quicherat — integravam uma tradição que foi deixada de lado como peça para a compreensão de Joana. Esse procedimento teria atuado em favor da ideia de que se teria efetuado então, à custa do método científico, a “descoberta” de Joana como heroína nacional. Tal operação textual e ideológica não se esgotaria assim na donzela, mas estaria relacionada à operação mais ampla e duradoura de promoção do método historiográfico decimonônico como uma conquista no campo do estabelecimento da verdade. Cláudia Bovo investiga a relação entre a valorização pela historiografia italiana de finais do século XIX e princípio do XX da obra e da personagem de Pedro Damiano — célebre eremita e cardeal do século XI — e os embates ideológicos em torno da unidade italiana. A autora demonstra como a interpretação da atuação política do eremita “italiano” no contexto da Igreja papal carrega consigo a defesa da ideia de que, antes da unificação, a Itália já teria, ainda em séculos medievais, realizado a coesão nacional por meio do Papado e de um projeto moralizante para o clero produzido por Damiano. Os estudos de Al fonso Capecelatro que convidavam a um consenso em torno da ideia de enraizamento do nacionalismo na tradição católica estiveram por sua vez na origem 11
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da leitura que o historiador Augustin Fliche estabeleceu a respeito daquilo que chamou de “reforma gregoriana”. Pedro Paulo Funari e José Grillo discutem o lugar de conceitos globalizantes como “romanização”, “helenização” e “aculturação” na reconstrução do passado italiano e grego produzida nos séculos XIX e XX. Carla Brandalise também visita a historiografia italiana, mas para apresentar a importância da questão nacional na Itália fascista em sua tentativa de reconstruir sua relação com a América Latina nos anos 20 do século XX. Entendia-se, nessa Itália, Roma como matriz fundadora da latinidade e, por isso, dentro da perspectiva historiográfica do estudo dos usos políticos do passado, a autora nos apresenta uma Itália fascista reescrevendo seu destino a partir de relatos apologéticos sobre suas origens que, por essa lógica, evidenciariam uma natural proximidade e comunidade com a América Latina. Da “latinidade” para o “iberismo” e da Europa para a América, Beatriz Domingues discute O espelho de Próspero, de Richard Morse (1922-2001), em uma perspectiva de longa duração, que sugere a herança medieval na base da ex periência ibérica na América Latina. A autora constrói seu argumento a partir do texto “The heritage of Latin America”, publicado por Morse em 1964, e que constituiria a matriz das teses desenvolvidas em O espelho de Próspero, espe cialmente no que diz respeito às comparações, tanto necessárias quanto inevitáveis, entre os projetos anglo-saxão e ibérico de colonização. Neste último caso, a herança medieval teria sido fundamental para a história urbana latino-ame ricana. Maria Emília Prado, por sua vez, nos apresenta os significados dessa herança ibérica na leitura do uruguaio José Enrique Rodó (1872-1917) e do brasileiro Manuel Bonfim (1868-1932). O primeiro, crítico do utilitarismo anglo-saxão, propunha sentidos para as noções de civilização e progresso coadu nados com a positividade da experiência ibérica. O segundo, por outro lado, reputava ao nosso iberismo fundador a defasagem cultural e social do Brasil. Ambos, no entanto, podem ser localizados, segundo a autora, no debate amplo que marcou a presença pública dos intelectuais entre o final do século XIX e o início do XX no mundo ibérico e que procurava responder sobre como en tender e superar o chamado “atraso” ibérico em relação às potências centrais do capitalismo. Por fim, Ana Luiza Marques Bastos nos apresenta um mosaico de sentidos factíveis nas intenções de Capistrano de Abreu (1853-1908) ao escrever a Histó12
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ria do Brasil e denunciar em sua obra o “atrofiamento da sociedade brasileira”, legado ibérico que só a escrita da História permitiria compreender e superar. A autora perscruta sua atuação na Biblioteca Nacional, suas leituras da Escola histórica alemã e afirma, também com base nas leituras da obra de Capistrano, a relevância conferida por esse historiador à ideia de que a História se escreve sempre a partir de um lugar e um presente. Nessa lógica, o presente pode ser visto dentro de um movimento evolutivo a partir do qual se elege um ponto original para compor uma narrativa que explique o passado e aponte as possibilidades do futuro. Convidamos, assim, os leitores a enfrentar os muitos mosaicos saídos dos textos escritos pelos autores aqui reunidos e por aqueles autores lidos e interpretados nos capítulos que compõem esta coletânea. Estes guardam as inquietações de historiadores cujas reflexões e escritas estão constantemente em construção e desconstrução.
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os “pais da história” e o discurso do método Néri de Barros Almeida1
Entre os historiadores, o século XX começou com o anúncio de novidades importantes. No entanto, uma identidade nem sempre está firmada apenas nas aquisições recentes e, se a da história, como área específica do conhecimento sistemático e como disciplina, ainda tem alguma importância, se faz necessário considerarmos também o que a integra de tradição, o que é permanência ou fundamento de sua função, meios e forma, mesmo que venhamos, assim, a confirmar o caráter controverso de sua relação com o passado. Essa consciência é tanto mais importante quanto a associação a níveis diversos da vida política que é própria da história fazem-na passiva ao fascínio da “novidade” como peça discursiva ante um passado em relação ao qual se pretende deliberadamente estabelecer distanciamento. A história que investiga o passado caminha sempre com o rosto voltado para o presente, de costas para seu objeto. Sem querer negar as conquistas recentes, a discussão da identidade da história e do historiador precisa levar em conta suas formas modernas em relação a uma tradição textual cujos princípios foram lançados pela Antiguidade grega e pela leitura dela produzida nos séculos seguintes — das especulações a respeito da natureza da história aparecidas na Antiguidade Tardia ao humanismo renascentista, por meio do qual a tradição historiográfica antiga é compreendida no século XIX. Trata-se, portanto, de como as diferentes épocas foram capazes de ler os antigos, mas também do fato de sua persistência por mais de 1.500 anos no ambiente dos textos reconhecidos como “história”. Trata-se, por fim, de responder à seguinte pergunta: ainda podemos pensar com os pais da história? Não é demais insistir que, com essa questão, não queremos fazer da história, tal 1 Professora de História Medieval da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
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como a conhecemos hoje, extensão pura e simples da história antiga, mas indagar se ainda podemos — tais como os eruditos da história dos séculos tardo-antigos, os humanistas do Renascimento e os “pais da história moderna” no século XIX — retirar inspiração desse momento original para a reflexão a respeito do conhecimento histórico. Este texto, de certa forma, reage — talvez precipitada e injustamente — a supostos indícios da crise que parece ameaçar a existência da história como disciplina. Esta reflexão sobre os primórdios é, portanto, complementar àquela sobre o fim da história. É preciso que se diga que “fim”, nesse caso, não se refere a um texto que venha dirimir todas as questões ou que possa comprovar o desa parecimento dos problemas e concepções de tempo e memória que davam sentido à preocupação histórica. Também não se trata da identificação do fim da história com a crise da história constituída em face da noção de sentido que, a partir do século XVIII, entendia o passado articulado a projetos que se propunham pensar o futuro. Não falamos no desaparecimento da produção do conhe cimento histórico, mas daquele da história como disciplina e forma de conheci mento acadêmico. Essa suspeita resulta, por um lado, da retração da história nos curricula escolares, da diluição de sua especificidade nos curricula universitários e do progressivo surgimento de escolas superiores de humanidades aplicadas dotadas de uma perspectiva instrumental da história. Por outro lado, decorre do isolamento progressivo dos historiadores que festejam a viagem aos labirintos da especificidade na afirmação técnica da disciplina por meio do retorno crítico à parte mais solitária e minuciosa do método decimonônico.
o silêncio dos antigos A ideia de que a história conheceu ao menos dois nascimentos, um em cidades gregas do século V a.C. e outro nas nações europeias do século XIX, é aceita com relativa facilidade. A história que hoje conhecemos seria herdeira direta desta segunda. Estaria esse ponto de vista, que evidentemente tem sua razão de ser, sendo inteiramente justo em relação à nossa dívida para com a história nascida no mundo antigo? O reconhecimento de Heródoto e Tucídides como os primeiros a merecerem o designativo “historiador” indicaria também 16
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os “pais da história” e o discurso do método
a convicção de que se poderia encontrar em ambos uma originalidade que se estabelece como fundamento mínimo e necessário ao gênero, que nele persiste? Até o século XVIII, a história como gênero narrativo encontra-se envolvida em um circuito informativo relativamente limitado em termos de volume e circulação textual. Cabia ao historiador estar familiarizado com textos da tradição. Todos os que escreviam textos de história estavam conscientes do compromisso com um tipo específico de escrita, vendo-se integrados em uma tradição cuja natureza e formas procuravam reconhecer recorrendo a textos de história anteriores2. A eleição de cânones historiográficos diz algo a respeito das escolhas dos historiadores ao longo dos séculos. Elas apontam modelos historiográficos influentes a despeito de o volume sobrevivente de manuscritos desses textos referenciais não nos parecer indicar uma circulação significativa3. Três problemas se interpõem a nosso desejo de pensar uma longa transmissão dos elementos da tradição narrativa histórica. Em primeiro lugar, as formas de recurso a essa tradição são difíceis de documentar para o passado pré-moderno, sendo certo que fossem regidas por princípios distantes daqueles que caracterizam nossa exploração sistemática dos textos. Identificar que material exatamente foi utilizado para a composição de cada obra é um problema praticamente insolúvel para os séculos recuados. Em segundo lugar, e decorrente desse primeiro ponto, temos o fato de que a utilização dos textos historiográ ficos do passado não foi uniforme. Embora, na Antiguidade, Heródoto e Tucídides, base de nossa reflexão, tenham sido conhecidos de meios sociais e literários decisivos para a consolidação formal da narrativa histórica4, seus textos 2 Não pensamos em uma tradição homogênea. Mesmo as obras de Heródoto e Tucídides
trazem problema se pretendemos realizar uma leitura aproximada de ambas.
3 São nove os manuscritos completos de Guerras pérsicas de Heródoto, todos do período medieval. Além destes, existem 18 papiros escritos nos séculos I-IV d.C. que preservam
fragmentos mais ou menos extensos da obra. Quanto à procedência, os manuscritos completos mais antigos (séculos X-XII) são orientais, assim como os de Tucídides. Da obra deste último chegaram até nós sete manuscritos extensos, todos produzidos no período medieval, em particular nos séculos X e XI. 4 Minhas considerações tomaram por base edições em língua moderna tanto de Guerras pérsicas de Heródoto (HERÓDOTO. História. Trad. J. Brito Broca. São Paulo, Ediouro, 2001; HERÓDOTO. Herodotus. Trad. A.D. Godley. Cambridge, MA; Londres, Harvard University Press; Heinemann, 1920-1925, 4 vols.; e HERÓDOTO. Histoires. Ed. Ph.-E. Legrand. Paris, Les Belles Lettres, 1932-1955, 9 vols.) quanto de Guerra dos peloponésios e 17
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foram utilizados de forma segmentada, e mesmo indireta, passando por apropriações específicas e em volume diverso. Um terceiro ponto a salientar é que parte do que esses textos nos legaram não se deve a intenções por eles próprios estabelecidas, mas a interpretações que receberam de épocas posteriores. De qualquer maneira, a interpretação não exclui a influência na medida em que também estabelece uma relação. Ajudando-nos a pensar nesse sentido, Gabriella Albanese afirma que “a própria definição de historiografia, entendida como ars da escrita da história, no Renascimento e na Época Moderna é rigorosamente dependente da teorética historiográfica fixada pela retórica clássica grega e latina, de Aristóteles a Luciano, de Cícero a Quintiliano”5. A deferência póstuma estabelecida no século I a.C. por Cícero e que tornou Heródoto e Tucídides conhecidos como “pais da história” encerra um fato da maior importância para a identidade da história, aquele de que esta se encontrava ligada a uma tradição com pretensão à especificidade como gênero narrativo que se reconhece pela primeira vez no texto de ambos6. As lacunas e dife-
atenienses de Tucídides (TUCÍDIDES. História da guerra do Peloponeso. Ed. Mário da Gama Kury. Brasília, UnB/Hucitec, 1986; TUCÍDIDES. History of the Peloponnesian War. Ed. Charles Forster Smith. Londres/Nova York, W. Heinemann; Putnam, 1919-1923, 4 vols.; e TUCÍDIDES. Guerre du Péloponnèse. Ed. J. de Romilly. Introdução e notas de Claude Mossé. Paris, Les Belles Lettres, 1953-1972, 5 vols.). Para a leitura de alguns trechos que me pareceram mais significativos, contei com a ajuda de traduções feitas diretamente do grego por Robson Murilo Grando Della Torre, ao qual sou profundamente grata. A contribuição de seus conhecimentos da língua e da história gregas surge em especial nos comentários, em nota e intratextuais, aos parágrafos de 20 a 23 do livro I da obra de Tucídides baseados no texto do Thesaurus Linguae Graecae, que reproduz a seguinte edição: TUCÍDIDES. Historiae. Recognovit breviqve adnotatione critica instrvxit Henricus Stuart Jones; apparatum criticum correxit et auxit Johannes Enoch Powell. Oxford, Clarendon Press, 1902-1942, 2 vols. e na nota 30. 5 ALBANESE, Gabriella. “A redescoberta dos historiadores antigos no humanismo e no Renascimento e o nascimento da historiografia moderna”, em MURARI PIRES, Francisco. Antigos e modernos. Diálogos sobre a (escrita da) história. São Paulo, Alameda, 2009, p. 279. 6 Para Arnaldo Momigliano, embora outros povos tenham produzido formas de registro sistemático da memória, os gregos delinearam, pela primeira vez, “a atitude crítica com relação ao registro de acontecimentos” que permitiu a distinção entre fatos e fantasia (“A tradição herodoteana e tucidideana”, As raízes clássicas da historiografia moderna. Bauru, Edusc, 2004, p. 55). Para François Hartog, a inovação decisiva trazida pelos gregos foi o historiador entendido como um narrador de feitos passados sem ligação direta com um poder político e cuja prática evidencia uma forma nova de relação entre passado e presente, linear e próxima. A esse propósito, comentando os célebres versos da Odisseia em que 18
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renças de ritmo na absorção e na utilização desses dois autores exerceram impacto sobre a forma como se processou sua transmissão à modernidade. Ao longo dessa existência singular, foi particularmente prejudicada sua dimensão retórica que, segundo o gosto grego, associa a excelência à concisão sintática7. Por isso, nas leituras e traduções posteriores, o esforço de transmissão de sen tido introduziu conteúdos e conceitos nem sempre fiéis com a proposta original dos textos. A recuperação dos clássicos e mesmo a descoberta de alguns deles, em particular de escritores gregos durante os séculos XIV-XVI, lançaram sobre suas obras questões novas. Foi através dessa tradução renascentista que sua influência se manifestou no século XIX. Portanto, a tradição antiga tem de ser tomada de duas maneiras: em sua dimensão geral fundante8 das formas elementares de um gênero e em seu aspecto específico, como objeto particular de reflexão e produtor de uma experiência de escrita por meio de alguns autores. Os estudiosos da Antiguidade clássica grega situam o tema da “moderni dade” de Heródoto e Tucídides em um denso debate. Os resultados dessas discussões mostram claramente que os famosos parágrafos de Tucídides em que se pretendeu encontrar o antecedente precoce e isolado do método histórico não devem ser entendidos como produto de um gênio extraordinário só muitos séculos depois compreendido e igualado, mas como método retórico. De fato, algo notável se passa, uma vez que, em seguida ao “exercício de método” que muitos críticos identificam o primeiro registro de historicidade — aqueles em que Ulisses, na corte dos Feácios, chora ao ouvir o aedo contar a sua própria história —, Hartog afirma: “A epopeia separa passado e presente por simples justaposição. A Odisseia gostaria de poder também justapor, mas, tendo escolhido cantar o retorno, encontra-se na impossibilidade de fazê-lo [...] Ela não pode mais simplesmente ‘justapor’ e não sabe ainda ‘cronologizar’” (“Primeiras figuras do historiador na Grécia: Historicidade e história”, Os antigos, o passado e o presente. Brasília, UnB, 2003, pp. 13-14 e 27). Ver também para esta questão FINLEY, Moses I. Uso e abuso da História. São Paulo, Martins Fontes, 1989, sobretudo o capítulo 1, que trata da passagem do mito à história e do papel da razão nesse processo. 7 Do ponto de vista sintático, os textos de Heródoto e de Tucídides podem ser julgados igualmente hábeis. No entanto, é preciso notar que a concisão tucididiana também se aplica à abordagem temática. O texto do ateniense contempla um universo temático mais conciso. 8 Se os testemunhos esparsos sobre o uso desses historiadores decepcionam à primeira vista, eles devem ser reconsiderados à luz de um círculo de leitores influentes. Então, não é apenas à posteridade moderna dos historiadores gregos que devemos sua sobrevida, mas também ao interesse que seus textos despertaram na Antiguidade. 19
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a construção da narrativa histórica
supostamente teria lugar no livro I da Guerra dos peloponésios e atenienses, segue-se um silêncio completo do autor a respeito do tratamento devido às fontes. Ainda hoje, as palavras (traduzidas) de Tucídides impressionam pela familiaridade que parecem evocar9: 20. Segundo minhas pesquisas foram assim os tempos passados, embora seja difícil dar crédito a todos os testemunhos nessa matéria. Os homens, na verdade, aceitam uns dos outros relatos de segunda mão dos eventos passados, negligenciando pô-los à prova, ainda que tais eventos se relacionem com sua própria terra [...]. Há muitos outros fatos, também, pertencentes ao presente e cuja lembrança não foi embotada pelo tempo, a respeito dos quais os outros helenos mantêm igualmente opiniões errôneas [...] a tal ponto chega a aversão de certos homens pela pesquisa meticulosa da verdade, e tão grande é a predisposição para valer-se apenas do que está ao alcance da mão! 21. À luz da evidência apresentada, todavia, ninguém erraria se mantivesse o ponto de vista de que os fatos na Antiguidade foram muito próximos (malista / “aproximadamente, em linhas gerais”)10 de como os descrevi, não dando muito crédito, de um lado, às versões que os poetas cantaram, adornando e simplificando os seus temas, e de outro considerando que os logógrafos compuseram as suas obras mais com a intenção de agradar aos ouvidos que de dizer a verdade, uma vez que suas estórias11 não podem ser verificadas, e eles em sua maioria enveredaram, com o passar do tempo, para a região da fábula, perdendo assim a credibilidade. Devem-se olhar os fatos como estabelecidos com precisão suficiente, à base de informações mais nítidas, embora considerando que aconteceram em épocas mais remotas. Assim, apesar de os homens estarem sempre inclinados, enquanto engajados numa determinada guerra, a julgá-la a maior, e depois que ela termina voltarem a admirar mais os acontecimentos anteriores, ficará provado (hēurēsthai / “descobrir”12), para quem julga por fatos reais (ek tōn epiphanestatōn 9 TUCÍDIDES. História da guerra do Peloponeso. Trad. Mário da Gama Kury. Brasília, UnB/ Hucitec, 1986, I, pp. 20-23. 10 Não há referência nem a “ponto de vista” nem a “antiguidade” nessa frase no original. A
proposta de tradução sugerida por Robson Della Torre seria: “ninguém erraria ao considerar aquilo que narrei como [tendo ocorrido] de tal forma aproximada”. 11 Nesse caso, nem “as suas obras” nem “suas estórias” possuem qualquer equivalente no original grego, sendo inseridas para tornar o período mais inteligível em português. 12 Aqui há um problema de tradução do aspecto do verbo, pois Tucídides não utiliza o fu turo, mas sim a forma do perfeito. Isso dá a entender que o ato de descobrir não se processará no futuro, mas que já se deu no passado, ele já está concluído. Caberá ao leitor, portanto, apenas tomar consciência dessa verdade já concretizada, pondo-se na posição de quem, assim como Tucídides, já conhece a verdade. 20
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