A
FORMAÇÃO DO NOME
UNIVERSIDADE ESTADUAL
DE
CAMPINAS
Reitor CARLOS HENRIQUE
DE
BRITO CRUZ
Coordenador Geral da Universidade JOSÉ TADEU JORGE Pró-Reitor de Extensão e Assuntos Comunitários RUBENS MACIEL FILHO
Conselho Editorial ALCIR PÉCORA – ANTÔNIO CARLOS BANNWART – FABIO MAGALHÃES GERALDO DI GIOVANNI – JOSÉ A. R. GONTIJO – LUIZ DAVIDOVICH LUIZ MARQUES – PAULO FRANCHETTI – RICARDO ANIDO Diretor Executivo P AULO F RANCHETTI
Abel Barros Baptista
A FORMAÇÃO DO NOME DUAS
INTERROGAÇÕES SOBRE
MACHADO
DE
ASSIS
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL DA UNICAMP Baptista, Abel Barros B229m
A formação do nome – Duas interrogações sobre Machado de Assis / Abel Barros Baptista. – Campinas, SP: Editora da UNICAMP , 2003.
1. Assis, Machado de, 1839-1908 – Crítica e interpretação. 2. Assis, Machado de, 1839-1908 – Memórias póstumas de Brás Cubas. 3. Assis, Machado de, 1839-1908 – Crítica textual. 4. Literatura brasileira – História e crítica. 5. Nacionalismo e literatura. 6. Nome. I. Título. CDD – B869.341 – B869.09 – 401 e-ISBN85-268-0628-9 85-268-1162-2 ISBN: Índices para catálogo sistemático: 1. Assis, Machado de, 1839-1908 – Crítica e interpretação 2. Assis, Machado de, 1839-1908 – Memórias póstumas de Brás Cubas 3. Assis, Machado de, 1839-1908 – Crítica textual 4. Literatura brasileira – História e crítica 5. Nacionalismo e literatura 6. Nome
B869.341 B869.341 B869.341 B869.09 B869.09 401
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Parece que, em verdade, um nome suposto facilita. Não sei o quê, mas facilita. E se facilita é porque o nome verdadeiro transtorna ou transtorna-se. Haverá assim necessidade da mentira para defender a verdade? ALMADA NEGREIROS, Nome de guerra
Deixo aqui esta página com o fim único de me lembrar que o acaso é também corregedor de mentiras. Um homem que começa mentindo disfarçada ou descaradamente acaba muita vez exato e sincero. MACHADO DE ASSIS, Memorial de Aires
S UMÁRIO
PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA ........................................................................................................................................................ 9 Parte 1 O EPISÓDIO BRASILEIRO Capítulo 1 — PONTO DE PARTIDA ........................................................................................................................................ 21 PERCURSO Capítulo Capítulo Capítulo Capítulo
2 3 4 5
— — — —
INSTINTO ............................................................................................................................................................... 45 RIQUEZA ................................................................................................................................................................. 65 PECÚLIO .................................................................................................................................................................. 85 SENTIMENTO ÍNTIMO ............................................................................................................................. 97 Parte 2 O EPISÓDIO BRÁS CUBAS
Capítulo 6 — PONTO DE PARTIDA ................................................................................................................................ 115 PERCURSO Capítulo 7 Capítulo 8 Capítulo 9 Capítulo 10
— — — —
AUTOR DEFUNTO ..................................................................................................................................... 135 DEFUNTO AUTOR ..................................................................................................................................... 161 LEGADO(S) ........................................................................................................................................................ 189 LOUCURA(S) .................................................................................................................................................... 225
BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................................................................................................... 261
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PREFÁCIO
À EDIÇÃO BRASILEIRA
“O nome Machado de Assis diz-lhe alguma coisa?” A pergunta abria a “Introdução” deste livro na edição original portuguesa, em 1991. Circunscrita pelas aspas, insinuava um contexto em que o nome, grafado em itálico, aparecesse desprovido de familiaridade ou se mencionasse para suspender alguma familiaridade. Por outras palavras, tratava-se menos de usar o nome “Machado de Assis” do que de interrogar a possibilidade de a respectiva menção dizer “alguma coisa” a alguém. Decerto assim se aludia às circunstâncias domésticas da publicação: a pergunta não mencionava nome freqüente na crítica e na instituição literária portuguesas, e sendo este o primeiro livro português inteiramente dedicado ao autor de Dom Casmurro, apenas precedido por escassos artigos, capítulos de obras de divulgação ou episódicas referências de leve intuito comparatista, sem dúvida lhe cumpria realçar, e lamentar, a inacreditável condição de “estrangeiro” em que Machado se mantém nos estudos literários portugueses. A alusão, no entanto, era passageira, até despicienda, porque o alcance da interrogação não se continha nos limites de contexto particular, e aliás destinava-se àquele em que a familiaridade do nome é máxima: o brasileiro, justamente. Com efeito, a pergunta denunciava insatisfação perante a significação familiar do nome “Machado de Assis” e sobretudo apontava para a necessidade de criar, no exterior da continuidade predominante, espaço viável para nova leitura da obra machadiana. Encetava assim o 9
projeto revisionista do livro, mas não apenas de forma figurada, porque também sugeria o meio específico de abertura desse espaço: a idéia de que se começa a compreender a singularidade machadiana interrogando a forma como o nome “Machado de Assis” se dispõe a dizer alguma coisa. O livro levava a sério o título original, Em nome do apelo do nome, como de resto continua a levar, apesar da mudança em favor de outro menos sibilino. Se não renuncia a propor uma leitura alternativa de certos textos de Machado — sobretudo Memórias póstumas de Brás Cubas e o ensaio “Instinto de nacionalidade”, aqui estudados —, nem se abstém de alguma polêmica com os predecessores, fá-lo em nome do nome de Machado — mais precisamente, em nome do nome de Machado inscrito enquanto nome de romancista. Ao suspender a significação familiar do nome para lhe analisar os fundamentos e a pôr à prova no confronto com o texto machadiano, tratava-se então menos de intentar significação alternativa do que de surpreender a condição de possibilidade de qualquer significação do nome e, em particular, de responder ao apelo do nome na obra machadiana. O que poderá ser, então, esse apelo? Michel Foucault defendeu em ensaio famoso que o nome de autor não funciona exatamente como os outros, afetado por oscilação entre o pólo da designação e o pólo da descrição mais perturbadora do que em qualquer outro nome próprio. Um dos exemplos que oferece esclarece bem esta idéia: se se descobrir que certo Pierre Dupont afinal não tem olhos azuis, nem por isso o nome “Pierre Dupont” deixa de designar a mesma pessoa; porém, se se provasse que Shakespeare não escreveu os sonetos, isso afetaria decisivamente o funcionamento do nome de autor. A conclusão de Foucault é que o nome de autor não se situa nem no registro civil nem na ficção, mas na ruptura que instaura certo tipo de discursos e a respectiva singularidade. A figura dessa ruptura é o que aqui chamo, na esteira de Derrida, assinatura. Assinar significa inscrever na obra o nome próprio — em princípio o nome civil, mas não necessariamente —, numa operação de eficácia dupla: por um lado, indicação e reivindicação de origem, de paternidade, de responsabilidade; por outro, possibilidade de curso próprio libertado da origem e fora do alcance da paternidade. A assinatura é sempre momento de despedida: o autor separa-se da obra, e a obra separa-se do autor, 10
guardando dele apenas a memória, quer dizer, o nome. Assim, não é exatamente o nome próprio de autor que difere dos outros, mas a operação de assinatura que o cinde, permitindo-lhe continuar a designar um indivíduo, anterior à obra e seu primeiro agente, do mesmo passo que descreve já não o indivíduo, mas a obra: por efeito da assinatura, o nome converte-se em nome de obra, mais ainda, em nome de certa maneira, de certo estilo, ou, em termos machadianos, de certa “feição do livro”, imitável, repetível, reprodutível sem laço necessário com alguma interioridade ou individualidade original. Mas essa eficácia da assinatura assenta na possibilidade essencial de todo o nome próprio: poder designar o portador na sua ausência, poder chamá-lo ou invocá-lo mesmo quando já não pode responder por ele — mesmo quando está morto. O problema do autor — ou da morte do autor, se ainda é problema — passa inteiramente por aqui: todo o nome é de antemão nome de morto, todo o nome anuncia a morte do portador, na medida em que lhe sobrevive, na medida aliás em que a própria estrutura do nome se define por essa capacidade de lhe sobreviver. A assinatura é, por isso, a operação que consuma a morte do autor, do mesmo passo que lhe assegura a sobrevivência. A leitura de Memórias póstumas de Brás Cubas aqui empreendida, estruturada a partir do motivo do autor suposto ou ficcional, confirma-o duplamente: no modo como Brás Cubas assina o seu livro de memórias, e na modalidade decidida por Machado para inscrever o seu nome num livro que praticamente coincide com o de Brás Cubas. A singularidade de Machado decide-se nessa relação entre duas assinaturas. Nesse ponto, entretanto, cumpre advertir o leitor que agora toma contato com este trabalho de que não coube nunca no respectivo propósito submeter os textos de Machado por via da aplicação de algum método, nem sequer chamá-los a comprovar a validade universal de alguma teoria (do nome ou da assinatura, por exemplo). Bem pelo contrário, e é isso que chamo responder ao apelo do nome, trata-se antes de submeter a leitura ao texto de Machado, de a conduzir de acordo com a sua lei e o seu idioma: o genuíno leitor forma-se — surge e educa-se — nessa submissão ao texto que o precede, de que aceita a lei, o apelo, a singularidade, mas apenas o faz responsavelmente se empenhar 11
nessa aceitação a sua própria singularidade. Nesse sentido, a idéia diretora é antes esta: as Memórias póstumas de Brás Cubas precedem qualquer teoria do nome e da assinatura justamente porque exigem uma teoria do nome e da assinatura. Na análise das Memórias póstumas que aqui levo a cabo, o primeiro traço será talvez a deslocação do centro de gravidade da leitura do romance do famoso delírio para o bem menos considerado emplasto Brás Cubas. O que fica em causa nessa deslocação é o nome próprio, o destino do nome de Brás Cubas, a capacidade de lhe sobreviver, a relação com a morte e a relação com a assinatura. Apenas o exame atento desse episódio na aparência irrisório permite compreender a rigorosa condição póstuma das memórias de Brás Cubas, aliás duplamente póstumas. Por um lado, do curso e da fortuna do livro de Brás Cubas nada reverte senão em favor do nome: é isso o “incomensurável desdém dos finados”, é sobretudo o que resulta de, estando já morto, ser ele antes defunto autor do que autor defunto. Por outro lado, a única continuidade constitutiva da biografia de Brás Cubas consiste no nome e na história do nome, desde o momento do batismo — requerendo aliás uma espécie de pré-história, a genealogia ridícula dos Cubas —, passando pelo episódio terminal do emplasto para ir além, isto é, além-túmulo: o livro do defunto autor é rigorosamente o livro em que o nome conta a sua própria história depois de se ter libertado em definitivo do portador. Assim, o livro prolonga o episódio do emplasto na modalidade que o denuncia e torna irrisória a paixão que nele se revelou como uma das forças motrizes da vida de Brás Cubas. Por outras palavras, o livro permanece ligado a Brás Cubas através do laço que o separa para sempre de Brás Cubas. O laço do nome. Laço que, no entanto, se constituiu pela assinatura, isto é, inteiramente criado pelo livro: seria impossível se Brás Cubas não apusesse o próprio nome no livro que lhe conta a história. Repare-se então que, do ponto de vista da relação com o livro, Brás Cubas, defunto autor, está na condição ordinária de qualquer autor; mas, quanto à relação com a biografia contada pelo livro, está na condição extraordinária que lhe permite escrevê-lo depois de morto. A originalidade extrema do romance de Machado talvez possa formular-se no paradoxo: a condição de morto permitir-lhe-ia definir a assinatura pela possibilidade da ope12
ração autobiográfica coerente e total, por só ela permitir incluir o acontecimento que fecha a biografia, a morte; porém Brás Cubas define-a antes de mais por uma opção romanesca que secundariza — e no limite torna indecidível — a dimensão autobiográfica do livro. A “forma livre de um Sterne, ou de um Xavier de Maistre” é a fórmula que sintetiza essa opção no prólogo ao leitor, que de resto no seu todo a confirma, pois não menciona propósito autobiográfico e tampouco esboça tentativa de fundar no percurso biográfico a razão e o princípio de composição do livro. No preciso momento do prólogo em que se despede do livro (e do leitor), Brás Cubas reafirma a assinatura destinando o próprio nome enquanto nome de livro cujo significado reside por inteiro no mesmo livro. “A obra em si mesma é tudo”, escreve, numa fórmula até profética, considerando que não podia ter lido os formalistas russos. Ora, essa opção romanesca não tem com a biografia de Brás Cubas qualquer laço pertinente, e assim se duplica a relação com o nome que acima referia a propósito do emplasto: a “forma livre de um Sterne” liga o livro a Brás Cubas através de um laço que o separa para sempre de Brás Cubas. Outra vez o laço do nome. Não se atentou devidamente nesta particularidade notável: o livro de Brás Cubas não se apresenta em nome da individualidade do autor, nem do interesse ou da curiosidade da sua vida, nem sequer da condição extraordinária em que se encontra, antes se define pelo recurso a uma “forma livre” que, por sua vez, já traz o nome de outros dois autores e que ele retoma tentando distingui-la através de elemento ainda incerto, as “rabugens de pessimismo”. Isso significa que o primeiro traço do livro de Brás Cubas arrisca a perda da singularidade, implica o risco, perfeitamente assumido, de o seu nome se tornar nome de qualquer coisa repetível, reiterável por qualquer outro, qualquer coisa quer dizer uma maneira, uma forma de composição, uma “feição do livro”. É aqui que o confronto com Machado se torna inescapável. Aliás é aqui que Machado intervém. No prólogo da quarta edição, dirá: “O que faz do meu Brás Cubas um autor particular é o que ele chama ‘rabugens de pessimismo’”. Não vou repetir agora a análise desse passo, que o leitor encontrará a seu tempo; noto apenas dois pontos: Machado reivindica a paternidade de Brás Cubas ao mesmo tempo que lhe deixa o encargo de definir o que faz dele um autor particular; em 13
segundo lugar, decide onde Brás Cubas hesitava, diz “é” onde o defunto dissera “pode ser”. Machado repete, no próprio prólogo, o prólogo de Brás Cubas, divergindo, porém, no ponto preciso da singularidade do seu autor: por um lado, chama a si a responsabilidade da invenção do autor defunto, por outro, atribui-lhe a responsabilidade de definir a “feição do livro”; por um lado, responde pelo livro em nome de Brás Cubas, enquanto, por outro, suprime a falta de resposta de Brás Cubas. O prólogo de Machado consiste na romanesca reafirmação tanto da sua assinatura como da assinatura de Brás Cubas, e é isso que aqui chamo recurso ao motivo do autor suposto. No fundo, trata-se de estipular que tudo foi escrito por Machado, mas o leitor fará como se nada fosse escrito por Machado e sim por Brás Cubas. Trata-se de uma ficção, evidentemente, aliás a primeira ficção que sustenta o romance: mas daí não decorre que tenhamos a liberdade de a ignorar. E decididamente não a podemos ignorar, porque afetará toda a obra machadiana. Na verdade, a partir do momento em que o nome de Brás Cubas designa uma “feição do livro”, reiterável, livre de dependência alguma da biografia ou dos traços de Brás Cubas enquanto personagem, como incluí-la na definição do nome de Machado que a assinatura inscreverá noutros romances? Foi esse problema que levou Augusto Meyer a caracterizar Brás Cubas como “sósia amargo e desabusado” que se debruça sobre o ombro de Machado e lhe sopra frases, trechos, capítulos inteiros: curiosa ficção que testemunha tanto o propósito de preservar uma identidade estável de Machado como o embaraço causado pela presença perturbadora dos autores ficcionais. A idéia final deste livro é que Machado fez do recurso ao autor suposto o traço distintivo da sua assinatura e que a chamada segunda fase consiste na passagem para uma rede diferencial de assinaturas siamesas, a um tempo diferidas e simultâneas, discerníveis e inseparáveis — Machado e Brás Cubas, Machado e Dom Casmurro, Machado e o conselheiro Aires —, em que o nome de Machado é ao mesmo tempo o nome antes dos outros nomes e um nome entre outros: autor de autores e autor entre autores. Não cabe aqui sequer resumir um argumento que retomei e desenvolvi noutro livro, Autobibliografias (1998), de que este constitui, de resto, um passo preparatório. Neste esbocei a idéia de autor suposto e de ficção de autores que naquele seria conduzida à noção de ficção de 14
livro, mais apta a situar Machado na tradição romanesca moderna, mas sobretudo requerida pela leitura de Dom Casmurro. Em particular, as análises elaboradas nesse segundo livro em redor do problema das duas fases e do modo como Machado lidou com ele comprovam a centralidade do problema do nome na leitura das Memórias póstumas de Brás Cubas: ficção em volta do nome que opera a mudança decisiva da relação de Machado com o seu nome e a sua assinatura de romancista. Daí que, numa espécie de efeito retroativo do livro recente sobre o predecessor — espécie de errata —, me tenha parecido necessário alterar o título, tornando-o mais preciso e, em certo sentido, até um tanto polêmico. A tradição crítica machadiana reagiu à ficção de autores fazendo fé e até radicalizando uma rigidez de designação no nome “Machado de Assis”: de José Veríssimo a Roberto Schwarz, os melhores críticos machadianos procuram incansavelmente uma identidade anterior à ficção e ao abrigo dos seus efeitos, que funcionasse como centro estável, seguro, perceptível, a partir do qual todas as distâncias se pudessem medir. O título A formação do nome sublinha o ponto em que me afasto dessa continuidade predominante não por indicar que me interessa mais a obra do que o homem — embora seja exato, não seria isso a distinguir-me de todos os meus predecessores —, antes por sugerir que o nome, não sendo mero rótulo de que nos servimos para designar um escritor e uma obra, forma-se em processo distinto e irredutível ao da formação do escritor e da obra: justamente o processo que lhe permite designar e incessantemente reconfigurar-se para continuar a designar escritor e obra. A formação do nome é legível nos textos, em certos lugares especiais de certos textos, e por isso se desdobra. Por um lado, trata-se de processo concluído: o processo através do qual Machado colocou o próprio nome em relação com o nome de autores ficcionais e renunciou a regular de antemão a distância que o separa de cada um deles, compreendendo que da ficção de autores não se regressa a uma identidade prévia senão através de uma ficção de regresso. Mas, por outro, permanece inacabado, em rigor interminável, a exigir permanente reconfiguração do nome e da assinatura. Por outras palavras, a formação do nome é o processo que lança o apelo do nome: o apelo para que o leitor responda ao modo como o romancista responsavelmente inscreveu o seu nome no livro. 15
O melhor exemplo que a tradição crítica oferece de resposta ao apelo do nome — de leitura em nome do nome de Machado — é o livro da americana Helen Caldwell sobre Dom Casmurro. De fato, o que Caldwell avançou, e é esse, a meu ver, o seu legado, que não pretendeu deixar nem talvez tenha percebido que deixou, foi menos a possibilidade da inocência de Capitu — embora decisiva para a leitura do romance — do que a necessidade de ler o livro contra o autor ficcional, Bento Santiago, apartando-o do próprio Machado e justamente em nome do mesmo Machado. Não se tratava de simplesmente comprovar que Machado não se confunde com Bento Santiago, mera trivialidade, mas de garantir a possibilidade de discernir com sucesso o genuíno Machado no discurso traiçoeiro de Dom Casmurro; sobretudo, tratava-se de afirmar que o silêncio de Machado constituía, afinal, a forma que escolhera para levar o leitor a ler o livro contra o autor ficcional. Os herdeiros de Caldwell ergueriam sobre essa possibilidade todo um paradigma de interpretação, que noutro local chamei “paradigma do pé atrás”. Não é agora altura de retomar a discussão dos problemas atinentes, mas cabe sublinhar que a idéia central desse paradigma — Machado recorre aos autores ficcionais para, deixando-os exporem-se livremente, os submeter a uma crítica feroz — assenta por inteiro no poder do nome e da assinatura: é ainda uma forma de responder ao nome “Machado de Assis”, atribuindo-lhe um apelo para que o libertem da ação nefasta de Brás Cubas ou Bento Santiago. A imputação de intenções secretas ao próprio Machado de Assis, supostamente legíveis no texto do autor ficcional, não é senão uma ficção crítica destinada a conciliar a idéia do nome como mero instrumento de designação rígida com a indispensável reconfiguração do seu significado, e daí que constitua o mais recente capítulo do processo interminável de formação do nome. Esse mesmo capítulo, entretanto, assegura a continuidade de um problema antigo, o da relação de Machado com a realidade brasileira, mostrando que a formação do nome não se esgota na relação com os autores ficcionais. Há um momento especial, que aqui chamo o episódio brasileiro, em que o nome de Machado se define na relação com a literatura brasileira. A primeira parte deste livro analisa o célebre ensaio “Instinto de nacionalidade”, aliás tão célebre quanto ignorado. De certo modo, tratava-se, para o projeto do livro, de um passo propedêutico: o propósito 16
era libertar a leitura de Machado desse centro persistente de referência à questão da nacionalidade, a fim de criar, como deixei dito no começo, espaço viável para uma leitura renovada da sua obra. Era minha convicção que, se tal persistência empobrecia a obra de Machado e obstaculizava a renovação crítica, não era possível ignorar simplesmente um problema que o próprio Machado não ignorou. Ensaiei, então, uma leitura minuciosa da parte geral do artigo “Instinto de nacionalidade”. O leitor interessado perceberá que os resultados não são inteiramente separáveis do movimento da argumentação. Na verdade, a posição de Machado no problema da formação nacional da literatura brasileira está longe de ser simples. Se claramente se demarca do programa romântico de nacionalização da literatura, é também claro que se vê na condição de responder a uma exigência do seu tempo e do seu país. O artigo apresenta, assim, duas linhas de evolução, a exigirem destrinça minuciosa, já que são incompatíveis: uma clara confiança na edificação nacional da literatura brasileira aliada à impiedosa desarticulação do programa disponível para a levar a cabo. A solução da tensão resultante, encontro-a na metáfora do “sentimento íntimo”, e a leitura que dela faço mostra que, para Machado, não se tratava de defender um nacionalismo interior, ou essencial, ou despido de superficialidades localistas, mas de, mais uma vez, colocar o seu nome na disponibilidade para a leitura assente na referência à questão nacional. O “sentimento íntimo” não é o que o escritor exprime na suas obras, mas o que se exige dele, não é um traço substancial, mas um efeito de leitura, como tal caindo por inteiro no âmbito da responsabilidade do leitor. No fundo, Machado limita-se a afirmar que, qualquer que seja o programa literário, qualquer que seja a “feição do livro”, haverá sempre possibilidade de o ler a partir da relação com a realidade nacional. Assim, se muito cedo Machado destina o seu nome disponível para assumir uma significação brasileira, di-la dependente de decisões críticas que não lhe cabem, do mesmo passo que renuncia a legitimá-las com a autoridade de que está investido quem fala em seu próprio nome do seu nome próprio. Não tenho hoje qualquer dúvida de que esse episódio da formação do nome é significativo justamente na medida em que nunca se traduziu em apelo do nome, sendo já de si resposta oblíqua a uma exigência externa e então incontornável. Mas o fato de tal exigência persistir não nos obriga a continuar a ler 17
Machado como se ainda fosse necessário comprovar que foi o mais brasileiro dos escritores brasileiros. Gostaria de terminar deixando dito que quase encaro a publicação deste livro no Brasil como restituição ao seu lugar próprio. Não por motivos nacionais, obviamente, antes materiais, digamos assim, e institucionais, embora daqueles decorrentes. É no Brasil, como se compreende, que este livro pode encontrar espaço e condições para algum debate crítico, ao menos para o que foi impossível nas condições portuguesas. No entanto, também receio que chegue ao lugar próprio fora de tempo. O principal mérito deste livro, até hoje, foi ter dado lugar a outro, Autobibliografias, e como tal ficará sempre, ao menos para mim, como passo preparatório e, em certa medida, provisório. Há nele fragilidades óbvias, desde logo um insuficiente domínio da bibliografia machadiana e um conhecimento superficial da literatura brasileira, mas não faria sentido publicá-lo senão como saiu em 1991, e por isso me limitei a corrigir a redação, procurando torná-la mais clara e mais concisa. Em todo o caso, se a distância não é tão grande que me impeça de responder por ele, é também certo que os livros seguem o seu curso indiferentes aos cálculos e aos receios dos seus autores. Lisboa, 4 de janeiro de 2003
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